MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964

MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964
Avião que passou no dia 31 de março de 2014 pela orla carioca, com a seguinte mensagem: "PARABÉNS MILITARES: 31/MARÇO/64. GRAÇAS A VOCÊS, O BRASIL NÃO É CUBA." Clique na imagem para abrir MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

De Netchaiev a Beslan - por Janer Cristaldo

Vladimir Putin, o Czar do Século XXI


De Netchaiev a Beslan

por Janer Cristaldo

janercr@terra.com.br


Em meados do século XIX, surgiu na Rússia tzarista um pequeno manifesto intitulado O Catecismo Revolucionário, escrito na Suíça e assinado por dois revolucionários russos, Serguei Guennadovich Netchaiev e Mikhail Bakunin. Este panfleto tem sido até hoje a cartilha que inspirou todo terrorismo do século seguinte, desde Lênin, Stalin, Yasser Arafat, George Habash, Wadi Haddad, Carlos, o Chacal, Che Guevara, Aloysio Nunes Ferreira, Lamarca, Marighella e Fernando Gabeira, etarras ou OLP. Entre milhares de outros, bem entendido. (Se alguém não lembra mais quem foi Aloysio Nunes Ferreira, eu ainda lembro. Foi ministro da Justiça no governo Fernando Henrique). As estratégias do catecismo influenciaram todo o século passado e foram utilizadas pela Frente de Liberação Nacional na Argélia, pelo Vietcong no Vietnã, e pelos movimentos guerrilheiros latinoamericanos, entre outros. Se você quiser ler o Catecismo, clique em http://cristaldo.blogspot.com.

Netchaiev tinha 22 anos na época da publicação do panfleto. Sem poder matar um tirano, acabou matando um estudante, Maxim Ivanov – suspeito injustamente de ser agente duplo da Ochrana, polícia política tzarista – o que lhe valeu o afastamento de Bakunin, que reprovou sua “repugnante tática”. Netchaiev, condenado a 25 anos de prisão, continua conspirando mesmo entre as grades, planejando inclusive o assassinato do tzar. Morre nas masmorras da fortaleza Pedro e Paulo, em São Petersburgo, após doze anos de reclusão.

Segundo o manifesto, “é necessário que o revolucionário, duro para com ele próprio, o seja também para os outros. Todas as simpatias, todos os sentimentos que poderiam emocioná-lo e que nascem da família, da amizade, do amor ou do reconhecimento, devem ser sufocados nele pela única e fria paixão da obra revolucionária. Para ele não existe mais que um prazer, que uma consolação, que uma recompensa, que uma satisfação: o sucesso da Revolução. Não deve haver, dia e noite, mais que um pensamento e um objetivo: a destruição inexorável. E prosseguindo com sangue frio e sem descanso a realização deste plano, deve estar pronto a morrer, mas pronto a matar com as suas próprias mãos todos aqueles que se oponham à sua realização. Segundo Bakunin e Netchaiev, “a nossa tarefa é de destruir, uma destruição terrível, total, implacável, universal”. Os autores pregavam ainda a necessidade de se unir “ao mundo selvagem dos bandidos, este verdadeiro e único meio revolucionário da Rússia”.

Sensível aos movimentos subterrâneos de sua época, Dostoievski toma Netchaiev como personagem em Os Possessos. Na obra, um outro personagem, Ouspenski, pergunta a Netchaiev:

- Que direito temos de tirar a vida de um homem?

- Não se trata de direito – diz Netchaiev – mas de nosso dever de eliminar tudo o que prejudica a causa.

O que hoje ocorre na Rússia já estava há mais de século no panfleto de Netchaiev e na obra do vidente e sempre atual Dostoievski. “Neste momento, no seio da revolução, tudo é verdadeiramente permitido, o assassinato pode ser erigido em princípio”, comenta Albert Camus, outro escritor preocupado com o terror, em O Homem Revoltado. Só que desta vez os mensageiros das Fúrias não são os russos. O alvo, hoje, é a Rússia, antes tão distante desses distúrbios “ocidentais”.

Se alguém quiser entender o que hoje ocorre em uma escola em Beslan, na Ossétia do Norte, que releia os clássicos. Nos mais de 360 cadáveres, até ontem contabilizados, nada há de surpreendente. Cria cuervos y te picarán los ojos – costumam dizer os espanhóis. Pouco antes, mulheres-bomba chechenas se explodiram no metrô de Moscou, matando nove pessoas, e em dois aviões russos, matando outras 89. Os chechenos, ou ossetas, ou árabes – que também estavam entre os terroristas – apenas seguiam uma antiga tradição russa.

Durante a Guerra Fria, a União Soviética – liderada pela Rússia – usou e abusou do terror. Nos campos de treinamento de Aden, Baalbek e Beirute, formaram-se os quadros que saíram a seqüestrar e matar mundo afora. Seu dever era eliminar tudo o que prejudicasse a causa. O Brasil que o diga. Em 1935, antes mesmo da ativação destes campos, Luís Carlos Prestes, assessorado por um grupo de terroristas internacionais a mando de Stalin, voltou ao Brasil para defender a “causa”, isto é, a sovietização do país. Derrotada a Intentona, em 64 a União Soviética, desta vez tendo Cuba como ponta de lança, tenta de novo a conquista do país. Tentativas semelhantes ocorreram na Argentina, Uruguai e Chile.

Como a Revolução devia atingir o orbe todo, África e Ásia também foram manchadas de sangue. O saldo, segundo os autores de O Livro Negro do Comunismo, foi de cem milhões de cadáveres. A Europa, como santuário de terroristas do mundo todo, foi relativamente poupada. Em A Rede do Terror, a jornalista Claire Sterling nos mostra que até a Suécia, a pacata e aprazível Suécia de Olof Palme, foi uma mãe para terroristas de todos azimutes. Não bastasse abrigar carinhosamente os assassinos, chegou a fornecer 300 jovens suecos ao al-Fatah, para serem treinados em campos de guerrilha na Argélia, em 1969. Esta mesma complacência – e generosidade – em relação ao terrorismo, pode ser atribuída a países como a França ou a então Alemanha Ocidental.

Em 1991, quando o império soviético se fragmentava, a Chechênia proclamou a independência da Federação Russa. Moscou não a reconheceu, mas esperou até dezembro de 1994 para intervir militarmente. Os combates se prolongaram até agosto de 1996. Saldo da chamada primeira guerra da Chechênia: cerca de 15 mil soldados russos, 10 mil guerrilheiros e mais de 80 mil civis mortos. Grozni, a capital chechena, foi arrasada a bombas e 80% da cidade foi destruída. O número de refugiados chegou a 350 mil. Claro que tais ações não inspirariam aos chechenos sentimentos exatamente amorosos.

A brutalidade com que Vladimir Putin – este senhor tão bem recebido pelas democracias ocidentais – reprime os anseios de independência do pequeno país, superam as atrocidades de tiranetes menores, tipo Fidel Castro ou Omar Bongo. Segundo os jornais, até hoje todo jovem em idade de participar da resistência é logo perseguido pelos russos. Preso e torturado, é explodido para não deixar vestígios de identidade, ou jogado em poços profundos, onde morre de fome e sede, em meio às próprias fezes. Putin, quando desfila na Europa, é recebido com todas as honrarias devidas aos grandes chefes de Estado.

Em função dos massacres russos, surgiu na Chechênia uma resistência peculiar, a das ditas viúvas negras. São irmãs ou parentes dos chechenos massacrados, que querem devolver o troco aos russos na mesma moeda. Envolvem-se em bombas e explodem o que existe em torno a elas. Putin, com sua extraordinária sensibilidade, a cada vez que tenta retomar um prédio invadido, mata dez ou vinte vezes mais vítimas que os seqüestradores. O que só favorece a contabilidade chechena. Seus profissionais do terror planejam vinte ou trinta mortes e Putin fornece trezentas.

Terror igual medo. Depois do World Trade Center, o Ocidente todo, que tolerava atentados com número relativamente pequeno de vítimas, foi tomado por este desconfortável sentimento. Chegou agora a vez da Rússia, berço histórico e teórico do terror, experimentar na própria carne o terror.

Se o século XVII foi o século das matemáticas, argumentava Camus, se o XVIII foi o século das ciências físicas, se o XIX foi o da biologia, o homem contemporâneo vive o século do medo. "Dir-me-ão que isto não é uma ciência. Mas, primeiramente, a ciência aí está para qualquer coisa, pois seus últimos progressos teóricos a levaram a negar-se a si mesma, dado que seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam a terra inteira de destruição. Além disso, se o medo em si mesmo não pode ser considerado como uma ciência, não resta dúvida alguma que seja uma técnica".

E técnica das mais eficazes. A Rússia degusta hoje o veneno que um dia elaborou.


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