MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964

MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964
Avião que passou no dia 31 de março de 2014 pela orla carioca, com a seguinte mensagem: "PARABÉNS MILITARES: 31/MARÇO/64. GRAÇAS A VOCÊS, O BRASIL NÃO É CUBA." Clique na imagem para abrir MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

A traição dos clérigos - Olavo de Carvalho

A traição dos clérigos

Olavo de Carvalho

Época, 4 de março de 2002

Eles corrompem a Igreja e depois a acusam de corrupta

Em agosto de 1944, após anos de ditadura nazista, a Romênia foi invadida por 1 milhão de soldados russos, que impuseram ao país o regime comunista. “Então – observa em suas memórias o pastor Richard Wurmbrand – começou um pesadelo que fazia o sofrimento da Romênia sob o nazismo parecer um nada.”

Não que os nazistas fossem melhores, é claro: apenas eles tinham a consciência de ser agentes de um governo estrangeiro e por isso limitavam-se a agir no terreno político-militar, sem interferir muito na cultura do país. Já os comunistas, imbuídos de “internacionalismo proletário”, empreenderam reformá-la de alto a baixo, a começar pela religião. Todos os religiosos – ortodoxos, protestantes, judeus, católicos – viram-se de repente forçados a amoldar suas crenças aos novos dogmas estatais do materialismo dialético. Os recalcitrantes iam parar em campos de concentração, onde uma segunda opção lhes era oferecida: oficiar paródias blasfematórias de suas religiões – com um pedaço de excremento em lugar da hóstia ou palavrões cabeludos enxertados no texto da Torá –, ou então ter todos os dentes arrancados a sangue-frio, diante dos fiéis reunidos, ameaçados de punição idêntica ao menor sinal de protesto. Os que se adaptavam passavam a ensinar a religião sob novas modalidades. Conta Wurmbrand: “O presidente dos batistas afirmou que Stálin realizara a vontade de Deus, e também o elogiou como grande professor de assuntos bíblicos. Padres ortodoxos como Patrascoiu e Rosianou foram mais específicos: tornaram-se agentes da polícia secreta. Rapp, bispo representante da Igreja Luterana na Romênia, começou a ensinar no Seminário Teológico que Deus dera três revelações: uma por Moisés, outra através de Jesus e a terceira através de Stálin, esta última superando a anterior”.

É fácil esquecer que Stálin era tão adorado pela intelectualidade esquerdista mundial quanto depois o foram Mao Tsé-tung, Ho Chi Minh e Fidel Castro, que adotaram métodos idênticos ou piores de persuasão religiosa em seus países. Porém mais fácil ainda é perceber a semelhança da religião imposta pelos comunistas na Romênia com aquela que hoje é ensinada no Brasil pela CNBB, apenas trocando-se o nome de Stálin pelo de seus sucessores mais recentes no panteão dos queridinhos da esquerda. Outra diferença, é claro, reside em que os clérigos romenos se submeteram às novas doutrinas por medo, enquanto os brasileiros o fazem espontaneamente e com indisfarçado prazer. Também é fato que não arrancam os dentes de seus adversários: extraem-lhes apenas os meios de falar em público, de modo que os protestos se tornam cada vez mais raros e qualquer descontentamento fica parecendo coisa de malucos desajustados.

Concomitantemente, quando explode algum escândalo que envolve padres ou freiras em casos de drogas, pedofilia ou qualquer outra coisa perfeitamente suína, ninguém na imprensa se lembra de associar o fenômeno ao estado de degradação geral implantado na Igreja pelos comunistas e guevarófilos que se apossaram dela. Ao contrário: o mal é localizado “na” Igreja, assim de maneira genérica e intemporal, enquanto os agentes da corrupção continuam sendo tratados como pessoas acima de qualquer suspeita. Não resta pois ao leitor senão explicar aqueles pecados eclesiásticos como males inerentes à tradição cristã, e não como efeitos de alguma ação empreendida desde dentro por inimigos da Igreja.

Assim, sem nenhum ataque frontal à religião, os jornalistas completam desde fora o trabalho comunista de corrosão interna da fé. Mas por que não haveriam de fazê-lo? Afinal, eles também são “clérigos”, no sentido amplo que o termo tinha na Idade Média e que lhe deu Julien Benda em La Trahison des Clercs: gente que escreve e fala, formadores da opinião pública. E entre eles, tal como no clero stricto sensu, são maioria esmagadora os que crêem que Fidel Castro implantou em Cuba “o reino de Deus na Terra”.

Fonte: https://olavodecarvalho.org/a-traicao-dos-clerigos/


***

A traição dos clérigos


Julien Benda (1867-1956).

Jackson de Figueiredo

O último livro de Julien Benda — famoso desde o seu grande sucesso contra os fáceis sucessos do esnobismo bergsoniano — tem este título notável: “La trahison des clercs”. Por sua vez, ele faz pensar no sucesso pragmático dos títulos. É um chamariz este título. E há razões no ar, escondidos pessimismos, recalcados aborrecimentos, que, de fato, o justificam na prática. 

Mas a verdade é que Julien Benda usa do termo no seu sentido medieval, melhor diríamos, com a sua clássica significação, mas ainda o enobrecendo de modo positivamente arbitrário. 

O clérigo não será somente o letrado eclesiástico ou mesmo leigo, mas sim, todo homem capaz de atividade espiritual desinteressada. O que, ao fim de contas, é antes restringir que alargar o objeto da sua crítica. 

Afirma Julien Benda — e ninguém o contestará — que, em todos os tempos, houve no seio mesmo da civilização ocidental, um escol, uma elite espiritual que, transcendendo, pairando muito além das lutas temporais, atuou intelectual e moralmente sobre os seus contemporâneos pelo exemplo do absoluto desinteresse e a livre e pura defesa dos princípios. 

É o que atualmente não se vê mais, diz ele. 

Homens da Igreja ou não, o certo é que os intelectuais de mais notoriedade nos tempos que correm, são, todos, traidores da própria função de pensar, são todos políticos, todos apaixonados do relativo, todos preocupados do quotidiano, todos em atividade prática e, pior ainda, quase todos — e sempre os mais notáveis — como instrumentos do ódio — ódios de grupo, de nação ou de classe — por isto mesmo mais do que nunca vivos e mais do que nunca generalizados. 

O clérigo, portanto, traiu a sua missão na terra, de onde ser bem provável o aniquilamento da civilização que o criou, na qual o que há ainda de bem positivo e indiscutido é mera “ação do costume, atos feitos por hábito, sem que a vontade tenha parte neles, sem que o espírito reflita o espírito que eles têm”. 

Julga Julien Benda que se o espírito dos nossos realistas atentasse um dia no que eles são, acabaria por proibi-los. 

E a lição do pessimista é verdadeiramente atroz. Não fica, ao fundo da taça que ele nos apresenta, uma só gota do veneno. Ele parece sorrir demoniacamente ao brilho passageiro de cada uma, tocada pela luz da análise mais crua, como um pequenino mundo infernal, a cair sobre a nossa abrasada sede de verdade. 

E as surpresas de uma severa documentação deixam-nos, às vezes, estarrecidos. É do seio mesmo das hostes mais respeitáveis da Igreja, que ele arranca, sucessivamente, os mais rudes e golpeantes exemplos da pragmatização geral do esforço espiritual, de sua já quase absoluta rendição às paixões do século, da sua conformidade à prática mais cruel. 

O caso de Sertillanges, por exemplo, é, à primeira vista, de estarrecer: um homem da Igreja, e dos mais altamente situados nos domínios da especulação filosófica, fazendo a apologia do homem de garras, do herói de “coração duro como o diamante”, vivendo da guerra e para a guerra, fazendo a guerra pela guerra. 

Mas é na facilidade mesma com que é possível a Julien Benda desenvolver a sua tese, que se deixa ver a falha de sua documentação interna, da sua psicologia, enfim, relativamente aos fatos por ele apontados e coordenados como elementos de prova. Pelo menos no que diz respeito ao pensamento católico, à atuação intelectual, à atividade espiritual da Igreja. 

O homem perfeito da Igreja será sempre S. Bernardo ou S. Francisco de Assis — a especulação ou o lirismo, mas sobre um plano de vida real, de vida humana, de relações eminentemente práticas, eminentemente sociais. 

Logo: não há contrapor a Benda o que, em geral, se lhe tem contraposto. Nem é verdade, por exemplo, que ele pregue a volta à “torre de marfim” por parte do nosso clero. O que o seu livro afirma em relação a católicos e não católicos, eclesiásticos e leigos, e que eles não levam mais ao domínio mesmo da prática o espírito puro, os postulados da moral transcendente dos fatos, aquilo mesmo que muitos chamariam ainda hoje a loucura da Cruz. 

O erro de Julien Benda, quanto a nós, católicos, é, pois, só de ordem interna à sua tese. Ele tem uma visão errada, não da Igreja, dos nossos dias, mas da Igreja eterna. Ele não sabe ver que os homens que mais altamente a representam no campo da atividade intelectual (um Sertillanges, por exemplo) são homens que se dirigem ao que o filosofismo alemão até a guerra chamava “a totalidade humana”. 

Em tempo algum o heroísmo, do homem de guerra, nem a dureza política, repugnou à filosofia católica, cujos maiores representantes, aliás, foram de si mesmos homens de guerra intelectual, do abrasante Agostinho até S. Tomás que, com toda a placidez de sua alma, foi o que se pode chamar um reformador. E nem é necessário lembrar os Maistres, os de Bonalds, os Donoso Cortez, em esferas mais próprias de luta. 

A verdade é que todos os heroísmos assim como todos os atos vulgares serão sempre julgados, dentro da filosofia da Igreja, não como fins em si mesmos, mas em relação à verdade superior que os dirige. O ato de guerra, por exemplo, no que ele tenha de beleza como toda a beleza, que, de um ponto de vista filosófico, tem fins em si mesmo. Mas como ato humano, e não só como ato do homem, não em relação ao seu fim imediato, mas, dentro de uma concepção humana da guerra, em relação ao seu fim último. O que quer dizer que num juízo de um Sertillanges sobre um Guynemer, o que há, de fato, é uma hierarquia de juízos, e não se pode compreender o mais alto sem ter em conta o que lhe serve de base; o que há, em verdade, é uma ordem interna (invisível a quem não esteja penetrado do mesmo espírito católico) de que só deixa uma face, ou melhor, um resultado sintético. E se não fora assim, nem seria possível a linguagem escrita ou falada a quem representasse realmente um sistema de ideias tão fortemente ordenado como o da filosofia clássica ou tradicional. 

Perguntando-se ao cardeal Lavigerie o que faria se lhe dessem uma bofetada na face direita, este respondeu: “Sei perfeitamente o que deveria fazer, mas não sei o que faria”. 

Benda, que opõe esta atitude espiritual à dos que, como Sertillanges, sacrificam às paixões terrestres, o que pede é que saibamos manter, pelo menos, este paralelismo entre a doutrina e o ato. 

Mas o seu engano está justamente em pensar que o que lhe parece o “romantismo da dureza” dos nossos homens da Igreja, não corresponde à pura doutrina cristã. Para nós, católicos, não há como diferenciar o Cristo das criancinhas do Cristo que fez uso do chicote. 

E o que, em verdade, mantém um Sertillanges é, não um romantismo da dureza, mas a reação eterna do bom senso contra o romantismo da meiguice e da ternura, de resultados tão funestos sempre para o gênero humano. 

O que há a afirmar sem medo de errar é que nem todo o mundo tem o direito de dar a face esquerda a quem lhe esbofeteia a direita. É preciso primeiro imitar Jesus pelas plantas dos pés, saber, pelo menos, escolher o caminho a seguir, seguir o seu rastro luminoso. 

Tudo o mais é a covardia a mascarar-se de heroísmo, e é contra essa indistinção que a Igreja se levanta. 

E o que, em relação a nós, parece a Julien Benda uma traição à inteligência pura, não é mais do que preito e homenagem à verdade integral. 

Não é por este lado, pois, que se caracterizará uma traição dos nossos clérigos, pelo menos.

Gazeta de Notícias, 11 de janeiro de 1928


Fontehttps://www.institutojacksondefigueiredo.org/coluna-do-patrono/jf-literatura/a-traicao-dos-clerigos

***

Chaui recusa o confronto com a realidade ao discutir ética sem abordar a crise do governo Lula


A traição dos clérigos

DENIS LERRER ROSENFIELD

ESPECIAL PARA A FOLHA

O livro de Marilena Chaui, "Cultura e Democracia - O Discurso Competente e Outras Falas", é uma amostra da persistência de fechados esquemas marxistas de pensamento, que resistem a qualquer revisão, recusando-se a um confronto com a realidade, que chama pelo nome de governo Lula e de ascensão do PT ao poder. Sempre a serviço da "causa", a autora termina referendando o que um pensador francês, Julien Benda, denominava de a "traição dos clérigos": a traição de intelectuais que não mostram nenhum comprometimento com a verdade. A edição ampliada traz novos artigos, alguns recentes, um dos quais intitulado "Ética, Violência e Política", que consegue o prodígio de suscitar a questão da ética sem nenhuma menção aos escândalos éticos do governo petista e do seu abandono da bandeira que o orientava até então. O floreio conceitual tem como propósito omitir o problema ético básico que perpassa a sociedade brasileira, devido à corrupção sistêmica instalada por um projeto "socialista", em nome da luta contra a "hegemonia do neoliberalismo". Logo, a questão não residiria naquilo que o governo Lula fez e faz, mas na "lógica do mercado", que tudo dominaria e controlaria. Escamoteia-se a responsabilidade dos que agiram em proveito do partido, aparelhando o Estado e pondo-o a serviço de um projeto de submissão da sociedade em seu conjunto. A violação do sigilo bancário de um humilde trabalhador, o fato de o governo ter colocado instrumentos do Estado para investigá-lo ilegalmente e a falta de respeito para com as liberdades individuais são o resultado desse tipo de discurso, que não afirma a liberdade senão retoricamente, para logo descartá-la. O livro aparentemente defende a democracia, porém a considera "formal", apregoando a necessidade de uma "democracia participativa". O discurso já é conhecido: defesa dos sovietes e dos conselhos populares como modo de defesa, entre nós, do orçamento participativo. Trata-se do controle do partido sobre a participação popular e do controle do Estado por outros conselhos, como o da proposta do Conselho Federal de Jornalismo. Se conselhos como esse tivessem vingado, o valerioduto, o mensalão e Nildo não teriam existido. A corrupção partidária teria corrido sem limites, ao abrigo dos holofotes da mídia, não formando a opinião pública. A democracia é necessariamente formal, pois baseada na idéia universal de moralidade e de liberdade individual.

Fim das liberdades
Para dar um pretenso conteúdo ao caráter formal da democracia, a autora não cessa de apelar para os movimentos sociais, como se estes fossem capazes de transformar a natureza da democracia representativa. Se pensarmos no movimento das mulheres enquanto movimento social, poderemos constatar que suas justas demandas foram plenamente incorporadas pela democracia representativa, fundada na economia de mercado. Se pensarmos no MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) enquanto movimento social, constataremos, por sua vez, que o seu objetivo consiste na própria destruição da democracia, na abolição da economia de mercado e, logo, na eliminação das liberdades. O modelo desse "movimento social" são a ditadura cubana, Che Guevara e Hugo Chávez. Significativa de sua preocupação ética é o elogio que a autora faz a Alain Badiou [filósofo francês] em seu ensaio "Sobre o Mal", como se esse autor tivesse podido equacionar a questão do bem a partir da idéia da "autoconstrução do sujeito ético". Ora, para esse autor, o critério da moralidade da ação reside na coerência do sujeito nesse processo de autoconstrução. Se a coerência é o critério da moralidade, Stálin e Hitler seriam pessoas que perseguiriam concretamente o bem. O autor em questão, diga-se de passagem, foi um ferrenho defensor, na França, da ditadura de Pol Pot e comparsas no Camboja, que se traduziu no genocídio de metade da população daquele país. É esse o exemplo que serve como referência? À força de insistir no caráter de classe do "discurso competente", voltado para a opressão dos mais desfavorecidos, a autora termina por apagar a distinção entre conhecimento e não-conhecimento, entre pensamento e não-pensamento, como se a ciência, a arte e a filosofia não tivessem critérios objetivos de avaliação. Uma vez que o objeto do livro se torna a crítica do discurso competente, ele abre caminho para o elogio da ignorância, tal como concretizado nos discursos "quase-lógicos" do presidente Lula. Não é casual que o nosso presidente tanto se gabe de sua ignorância, pois parte dos intelectuais o justificava. Serviram à causa e desserviram à verdade e ao país.


DENIS LERRER ROSENFIELD é professor titular de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática), entre outros livros.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2105200605.htm

***

Intelectuais no Brasil, mais uma “traição dos clérigos”

O século 20 assistiu a inúmeros intelectuais que sacrificaram suas posições como intelectuais em benefício de projetos políticos

Por Gustavo Biscaia de Lacerda

Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/intelectuais-no-brasil-mais-uma-traicao-dos-clerigos-2ler2p8lsjyy6vzrdhj99li3d/

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Cinco coisas que Marx queria abolir (além da propriedade privada) - por Jon Miltimore

 Cinco coisas que Marx queria abolir (além da propriedade privada)

Ele foi extraordinariamente franco quanto a seus propósitos

Uma das características mais extraordinárias de
 O Manifesto Comunista é sua honestidade.






Mesmo quem conhece bem a biografia de Marx — repleta de apologias a extermínios em massa de "raças inferiores" e a ditaduras — se surpreende com sua notável franqueza em relação aos objetivos do comunismo.

Com efeito, é possível argumentar que esta audácia passou a permear toda a psique comunista.

No último parágrafo do manifesto, Marx resume toda sua posição: "Os comunistas rejeitam suavizar suas idéias e objetivos. Declaram abertamente que os seus fins só podem ser alcançados pela violenta subversão de toda a ordem social vigente. Que as classes dominantes tremam de medo perante uma revolução comunista!".

Assim como em Mein Kampf, de Hitler, os leitores são apresentados a uma visão pura e nada diluída da ideologia do autor (por mais sombria que seja).

Começa com a propriedade

O manifesto de Marx tornou-se famoso por resumir toda a teoria do comunismo em uma única frase: "Abolição da propriedade privada". Ao final do segundo capítulo, ele inclusive fornece as 10 medidas necessárias para tornar um país comunista. Diz ele:

O proletariado usará sua supremacia política para expropriar, de maneira gradual, todo o capital da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado — isto é, do proletariado organizado como classe dominante. [...]

Naturalmente, isto só poderá ocorrer por meio de intervenções despóticas no direito de propriedade e nas relações de produção burguesas. Por meio de medidas, portanto, que economicamente parecerão insuficientes e insustentáveis, mas que, no decurso do movimento, levam para além de si mesmas, requerendo novas agressões à velha ordem social.[...]

Estas medidas serão, obviamente, naturalmente distintas para os diferentes países.

Não obstante, nos países mais avançados, poderão ser aplicadas de um modo generalizado.

1. Expropriação da propriedade sobre a terra e aplicação de toda a renda obtida com a terra nas despesas do Estado.

2. Imposto de renda fortemente progressivo.

3. Abolição de todos os direitos de herança.

4. Confisco da propriedade de todos os emigrantes e rebeldes.

5. Centralização do crédito nas mãos do Estado, por meio de um banco nacional com capital do Estado usufruindo monopólio exclusivo.

6. Centralização, nas mãos do Estado, de todos os meios de comunicação e transporte.

7. Ampliação das fábricas e dos instrumentos de produção pertencentes ao Estado; arroteamento das terras incultas e melhoramento das terras cultivadas, tudo de acordo com um plano geral.

8. Trabalho obrigatório para todos. Criação de exércitos industriais, em especial para a agricultura.

9. Unificação do trabalho agrícola e industrial. Abolição gradual de toda e qualquer distinção entre cidade e campo por meio de uma distribuição equilibrada da população ao longo do território do país.

10. Educação gratuita para todas as crianças nas escolas públicas. Eliminação do trabalho infantil nas fábricas em sua forma atual. Unificação da educação com a produção industrial etc.

Mas estes famosos 10 pontos do manifesto comunista — que vão desde a abolição da propriedade até a instituição do trabalho compulsório e da reorganização da distribuição demográfica — ainda não englobam todo o pensamento de Marx.

Com efeito, a abolição da propriedade privada está longe de ser a única coisa que o filósofo acreditava que tinha de ser abolida da sociedade burguesa para permitir a marcha do proletariado rumo à utopia.

Em seu manifesto, Marx enfatizou cinco outras idéias e instituições que também tinham de ser erradicadas.

1. A Família

No segundo capítulo, Marx admite que a abolição da família — uma instituição burguesa — é um tópico espinhoso, mesmo para os revolucionários. "Abolição da família! Até os mais radicais se assustam com este propósito infame dos comunistas", escreve ele.

Em seguida, ele explica que os oponentes desta ideia são incapazes de entender um fato crucial sobre a família.

"Sobre quais fundamentos se assenta a família atual, a família burguesa? Sobre o capital, sobre o proveito privado. Em sua forma completamente desenvolvida, a família tradicional é uma instituição burguesa e existe somente na burguesia", afirma Marx.

Para melhorar a situação, abolir a família seria relativamente fácil tão logo a propriedade da burguesia fosse abolida. "A família burguesa será naturalmente eliminada com o eliminar deste seu complemento, e ambos desaparecerão com o desaparecimento do capital."

2. Individualidade

Marx acreditava, corretamente, que o indivíduo e a individualidade eram uma força de resistência ao igualitarismo que ele queria impor.

Consequentemente, também no segundo capítulo, Marx afirma que o "indivíduo" — que para ela era "o burguês, o cidadão de classe média detentor de propriedades" — terá de ser "retirado do caminho, suprimido, e ter sua existência impossibilitada".

Segundo Marx, a individualidade é uma construção social da sociedade capitalista e está profundamente arraigada na própria noção de capital.

"Na sociedade burguesa, o capital é independente e possui individualidade, ao passo que a pessoa é dependente e não possui individualidade", escreveu ele. "E a abolição deste estado de coisas é rotulada pela burguesia de abolição da individualidade e da liberdade! E com razão. A abolição da individualidade burguesa, da independência burguesa e da liberdade burguesa sem dúvida são os nossos objetivos."

3. Verdades eternas

Marx aparentava não acreditar que existisse qualquer outra verdade além da luta de classes. Tudo aquilo que as pessoas comuns consideravam ser verdades era, segundo Marx, apenas imposições da burguesia.

Para Marx, a luta de classes era a única verdade inquestionável. E era ela o que determinava todas as outras "verdades".

"As ideias dominantes de cada época sempre foram apenas as ideias da classe dominante", disse ele. "Quando o mundo antigo estava em declínio, as religiões antigas foram sobrepujadas pelo cristianismo. Quando as ideias cristãs sucumbiram, no século XVIII, às ideias racionalistas, a sociedade feudal travou sua luta de morte com a burguesia, que então era revolucionária."

Ele reconheceu que esta ideia soaria radical demais para seus leitores, principalmente quando se considera que o comunismo não buscava modificar a verdade, mas sim suprimi-la. Porém, argumentou Marx, essas pessoas simplesmente não estavam tendo a visão global das coisas.

Dirão os céticos: "As ideias religiosas, morais, filosóficas, políticas, jurídicas, etc., sofreram várias modificações no decorrer da história. Entretanto, a religião, a moralidade, a filosofia, a ciência política, e o direito sempre sobreviveram a estas mudanças. Além disso, existem verdades eternas, como Liberdade, Justiça etc., que são comuns a todas as camadas sociais. Já o comunismo que abolir as verdades eternas, abolir todas as religiões e toda a moralidade, em vez de apenas tentar configurá-las de novo. Consequentemente, o comunismo age em contradição a toda a experiência histórica passada."

Ora, mas a que se reduz esta acusação? Ela simplesmente afirma e confessa que toda a história da sociedade se baseou na evolução dos antagonismos de classes, antagonismos que assumiram diferentes formas em diferentes épocas.

Porém, qualquer que fosse a forma assumida, um fato é comum a todas as épocas: a exploração de uma parte da sociedade pela outra. Não é de se admirar, portanto, que a consciência social das épocas passadas, a despeito de toda a multiplicidade e variedade de acontecimentos, se manifeste sempre dentro de padrões similares e de acordo com idéias gerais. E isso só irá desaparecer por completo com o desaparecimento total dos antagonismos de classe.

4. Nações

"Os comunistas", disse Marx, "são repreendidos por seu desejo de abolir países e nacionalidades". Mas esses críticos são incapazes de entender a natureza do proletariado, disse ele.

Os operários não têm pátria. Logo, não é possível tirar deles aquilo que eles não têm. Ademais, dado que o proletariado tem primeiro de conquistar a dominação política, de ascender à classe dominante da nação, e finalmente se tornar ele próprio a representação da nação, então podemos dizer que, até o momento, ele ainda é nacional, mas não no sentido burguês da palavra."

Adicionalmente, o próprio Marx admitiu que, por causa do capitalismo, as hostilidades entre as pessoas de diferentes culturas e criações estavam diminuindo. Assim, quando o proletariado chegasse ao poder, não mais haveria necessidade de existir nações, disse ele.

As diferenças nacionais e o antagonismo entre as pessoas de diferentes culturas estão, diariamente, desaparecendo cada vez mais por causa do desenvolvimento da burguesia, da liberdade de comércio, do mercado mundial, e da uniformidade do modo de produção industrial, que gera condições uniformes de vida entre as pessoas.

A supremacia do proletariado fará com que tudo isso desapareça ainda mais rápido.

5. O passado

Marx via a tradição e os costumes como uma ferramenta de dominação da burguesia. Aderência aos costumes e respeito ao passado serviam meramente para distrair o proletariado, atrasando sua busca por emancipação e supremacia. Os tradicionalistas — "reacionários" — apegados ao passado e aos costumes agiam assim unicamente para manter os instintos revolucionários do proletariado sob controle.

"Na sociedade burguesa", escreveu Marx, "o passado domina o presente; na sociedade comunista, o presente domina o passado".

Talvez as sementes da nossa atual era da pós-verdade estejam aí.

Fonte: https://www.mises.org.br/article/2794/cinco-coisas-que-marx-queria-abolir-alem-da-propriedade-privada

Educação x Marxismo - por Pedro Paulo Rocha


Educação x Marxismo

Pedro Paulo Rocha

pedroprocha@netpar.com.br

5 de agosto de 2001

            A influência da psicanálise tem sido considerável na educação. A visão psicanalítica foi adotada, inclusive, pelos marxistas, que hoje dominam praticamente toda a área do ensino, não só no país, como em grande parte do mundo ocidental. Eles compreenderam que atingiriam melhor os seus propósitos, ainda que a longo prazo, se “fizessem a cabeça” dos jovens.

            Isto levou grupos que ambicionam subjugar as massas e incutir-lhes suas doutrinas, a ter, como objetivo prioritário, o domínio de todas as instituições através das quais poderia controlar a vida intelectual da sociedade, em particular as escolas, universidades e a mídia. Assim, a educação assumiu um cunho nitidamente político, alvo de todos os grupos sectários ou religiosos.

            Um dos exemplos mais fragrantes se deve ao pedagogo Paulo Freire, que ficou famoso por seus métodos, destinados preferencialmente à alfabetização de adultos, em especial operários e camponeses. Conforme revela o dominicano frei Beto, em pronunciamento por ocasião de sua morte, “a pedagogia que defende tem por fim a conscientização“. (* O Globo, maio/1997) O primordial não seria a alfabetização, mas sim “a formação de uma consciência das relações sociais“, segundo exposto na sua obra “A Pedagogia do Oprimido“, evidentemente ensinada sob a ótica marxista. Ou, como afirmou o padre Júlio Lancelloti, que oficiou a missa de corpo presente: “Paulo Freire nos ensinou que a educação é um ato político“. Poderíamos melhor dizer, que transformaram a educação em um ato político, em que ela é usada para doutrinar politicamente o aluno.

            Com resultado, a impressionante constatação de que, nas décadas de 60 e 70, “não havia quarto de adolescente pequeno burguês, ou de filhinho de papai, que não tivesse na parede o rosto do Guerrilheiro Infeliz – Che Guevara – ao lado dos quatro Beatles“. (* O Globo, 29/9/96) Situação induzida por seus professores, nas salas de aula. Aliás a inexplicável atração que a rebeldia exerce sobre artistas, estudantes e intelectuais, “provocou a maior peregrinação de celebridades à região zapatista, situada em plena selva, no México, e que se tornou a nova Meca da esquerda. Eles vão se confraternizar com o último foco de resistência armada ao neoliberalismo da América Latina“. (* Globo 12/maio/96)

            O mais surpreendente neste contexto de boas intenções, e a exigência destes “intelectuais” de se suprimir todo o tipo de censura, sob a estulta alegação de preservar a liberdade de expressão. A conseqüência mais imediata é a divulgação de técnicas de construção de bombas e atentados biológicos, através da Internet, propiciando a expansão dos atos terroristas que, durante os últimos meses de 1996, passaram a ameaçar até Curitiba e Rio de Janeiro.

            Foi na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro que o ex-terro­rista Gabeira promoveu o “abraço a lagoa”, em defesa da “soberania nacional” e da “reserva de mercado”, e contra os contratos de risco na exploração do petróleo. O deputado Gabeira, que participara do seqüestro do embaixador americano, é o eterno defensor de idéias exóticas, como a liberação da maconha, a oficialização do nudismo e o casamento entre gays. Naquela instituição, durante a década de setenta, foi promovida a maior perseguição universitária aos professores que antagonizavam o marxismo. Ação por mim prevista, em carta dirigida em 1973 ao padre Mac Dowell, então reitor daquela universidade, e em denúncia entitulada “A já não mais velada ameaça marxista”, ambas ignoradas. O que lhe custou, pouco tempo depois, a demissão, por exigência destes grupos, que cobraram o seu afastamento quando, tardiamente, pretendeu conter seus excessos.

            O processo evoluiu “usando uma tática simples: expurgaram os adversários até que eles constituíssem uma minoria e dai por diante passaram a resolver todas as questões pelo ‘voto democrático’, obedecendo altaneiramente a vontade da maioria”. (JB 13/5/79) Iniciaram minando progressivamente as bases, alijando principalmente todos os professores militares, oriundos do IME, que tinham construído o Centro Técnico Científico, concluindo com a demissão daqueles que ocupavam cargos de maior destaque, como os professores Anna Maria Moog e Antônio Paim, do departamento de Filosofia, Aroldo Rodrigues, diretor do departamento de psicologia e Arthur Rios, diretor do departamento de Sociologia, a pretexto de restruturação do ensino. Foram afastados, inclusive, dois professores da área biomédica que tinham sido citados no livro “Brasil Nunca Mais”, como envolvidos em colaboração com a repressão política, um deles o Dr. Rubens Janini, numa condenação sem julgamento e sem direito à defesa. Era a prática do que se poderia chamar de “aplicação unilateral da anistia”, porque, simultaneamente, conhecidos terroristas, envolvidos em assaltos a bancos, seqüestros, assassinatos e guerrilhas, eram recebidos de braços abertos, em cargos de projeção, por todo o país.)

            Este é o grande perigo da ingerência política na educação: impedir que o aluno forme a sua própria consciência, robotizando-o e incutindo-lhe preceitos doutrinários.

            Não foi, portanto, atoa que as Igrejas católica e metodista implantaram uma vasta rede escolar. Esse fator foi muito usado não só pelos regimes totalitários, como foi o caso da Alemanha, onde os nazistas criaram a juventude hitleriana, e na URSS, em que o Partido Comunista controlava a educação com mão de ferro. Mas também o é, disfarçadamente, por todos os grupos que ambicionam o poder. Se os marxistas já haviam entendido isso, desde cedo, e se infiltraram no corpo docente das escolas e universidades, os psicanalistas não ficaram atrás. Intervieram abertamente na educação, procurando introduzir seus conceitos.

            Muitas lideranças terroristas, por exemplo, são constituídas, classicamente, por professores universitários. Yasuo Hayashi, o mais procurado líder da seita Verdade Suprema, de 38 anos, foi Ministro da Ciência e Tecnologia do Japão. Era o responsável pela fabricação do gás sarin que, em 20 de março de 1995, matou 12 pessoas e intoxicou mais de cinco mil, em um atentado no metrô de Tóquio. O famoso terrorista Unabomber, procurado durante muitos anos por ser o responsável por inúmeros atentados nos EUA, era nada mais nada menos que o professor universitário Theodore John Kaczinki. O sanguinário Pal Pot, que assassinou milhões de pessoas no Laos, se formou no famoso Quartier Latin. Foi dos bancos das universidades saíram inúmeros militantes do Tupac Amaru e do Sendero Luminoso, que abraçaram a luta armada, sob inspiração maoista, no Peru.

            O que leva um “intelectual”, com formação superior, a praticar atos terroristas que atingem centenas de vítimas inocentes e encaminhar seus alunos para sendas tortuosas? A única explicação talvez seja que “a atividade intelectual e científica, em geral, estreita a mente, ao invés de alargá-la, por força da crescente especialização dos fatos, conceitos e técnicas. A medida que eles se aprofundam, o seu alcance diminui“.(* Christian de Duve – Poeira Vital)

Extraído do livro “A Psicanálise no Divã”

Fonte: https://olavodecarvalho.org/educacao-x-marxismo/

A Teologia Negra - por Miguel Paradowski

A Teologia Negra

por Miguel Paradowski

VERBO, Espanha, maio/julho/75, pg. 10.517




***


A Teologia Negra, segundo James Cone


Por



 

A Teologia Negra (Black Theology), que surge dos movimentos “Black Power” e dos Direitos Civis, não tem a mesma origem da teologia negra africana. Ela é a teologia dos negros que viveram ou vivem em condição de segregação e em situações de marginalização numa sociedade supremacista branca. É uma realidade da cultura negra e das igrejas negras nos Estados Unidos, com uma extensão no Caribe, no Brasil e na África do Sul. A Teologia Negra está, portanto, conectada com a desumanidade do racismo. É uma teologia que surge da luta negra antirracista, que partem das igrejas e dos movimentos.

A Teologia Negra é uma teologia ocidental, porém ela é mais um movimento a partir da comunidade negra do que simplesmente uma construção epistemológica. Ela surge com James Cone, um teólogo metodista, conhecido como “pai da Teologia Negra”. James Cone, quando questionado sobre o porquê da Teologia Negra ser ainda importante atualmente, responde: “A Teologia Negra é importante porque é uma teologia de um povo muito importante, é a voz que emerge de uma comunidade que tem sido silenciada ao longo da história. Então a Teologia Negra, assim como ela surgiu em 1969, das experiências e lutas do povo negro, pelos direitos civis e pelo movimento “Black Power”, hoje ela ainda está falando por meio das lutas do povo negro.” (1)

A Teologia Negra, segundo James Cone, significa esse grito do povo negro em direção à justiça e libertação. O teólogo fala que o Deus da Bíblia é o Deus dos oprimidos. Ele assume que os oprimidos dessa terra é o povo negro. Se tem alguém que se identifica com a morte de Cristo, esse alguém é o povo negro. Jesus morreu da pior forma que o Estado poderia assassinar alguém, e todos os dias corpos negros são selecionados para morrer da pior forma que o Estado pode assassinar alguém, passando por julgamentos injustos e legitimação dos poderes públicos e religiosos. Então, segundo a Teologia Negra, se Cristo tivesse nascido no Brasil na época colonial, provavelmente não teria morrido em uma cruz, mas sim em um tronco. Se Cristo vivesse em 2020 no Rio de Janeiro, ele morreria na ponta de um fuzil do BOPE, com direito a comemoração do governador e tudo.

A cristologia assumida pela Teologia Negra é o enegrecimento do Cristo, não só pelo viés histórico, mas também pela opressão sofrida pelo povo negro. Cristo não é negro pela pura rebeldia ou por uma questão político-partidária, mas porque morreu como um jovem negro morreria hoje no Brasil e no ocidente do mundo. A negritude de Cristo está em todos os detalhes de sua caminhada: ele assume a opressão e grita a libertação através da missão por justiça e afronta o Estado que o assassinou.

Martin Luther King, Jr. é o exemplo máximo de uma Teologia Negra prática, não sistematizada ou enclausurada. Enquanto James Cone escrevia e sistematizava a Teologia Negra, Martin Luther King, Jr. encarnou o que James Cone escreveu e desenvolveu. A importância dos dois, atuando na mesma época, traz para a comunidade negra um exemplo de encarnação da luta antirracista através do Espírito de justiça de Deus, mas também uma construção epistemológica que vai inspirar e empoderar gerações.

A Teologia Negra acredita no tensionamento das instituições que não querem enfrentar o problema racial, e acredita que o confronto pode gerar justiça racial. Martin Luther King, Jr. chega a afirmar: “A ação direta não violenta busca criar uma crise e fomentar tal tensão para que uma comunidade que se recusa a negociar constantemente seja forçada a enfrentar o problema”. O levante contra esse centro epistemológico, institucional e do saber é um dos principais desafios da Teologia Negra. A principal função da Teologia Negra está na vocação profética de seu nascimento, não amenizando as questões que construíram os saberes teológicos.

A Teologia Negra não banaliza o significado do perdão; não toma para si uma visão moralista diante de um dos valores mais subversivos e poderosos da fé cristã, que é o perdão. James Cone afirma o seguinte:

“A cruz também pode resgatar linchadores brancos e seus descendentes, mas não sem custo profundo, não sem a revelação da ira e a justiça de Deus, que executa o julgamento divino, com a demanda para o arrependimento e reparação, como pressuposto da divina misericórdia e perdão. A maioria dos brancos quer misericórdia e perdão, mas não justiça e reparação, pois eles querem a reconciliação sem a libertação, a ressurreição sem a cruz”.

Portanto, o autor assume um compromisso inegociável, afirmando que o perdão, a misericórdia, a ressureição e a reconciliação só são de fato alcançadas com justiça, a reparação, a libertação e a crucificação. A Teologia Negra entende a radicalidade da missão e do ministério da reconciliação no processo de encarnação do seguidor de Jesus na luta antirracista. Na perspectiva de Cone sobre o cristianismo libertador, que nada tem a ver com a religião branca supremacista, ele afirma o seguinte:

“A questão é clara: o racismo é a negação absoluta da encarnação, e, portanto, do cristianismo. Portanto, as igrejas de denominação branca não são mais cristãs. São expressão da vontade de tolerar e perpetuar esse estado de coisas. A antiga distinção filosófica entre qualidades primárias e secundárias de um objeto fornece uma analogia a esse propósito. De fato, apenas as qualidades primárias constituem a essência das coisas. Falando da igreja, a comunhão e o serviço são qualidades primárias, sem as quais a ‘igreja’ não é igreja. Ainda podemos dizer que uma comunidade é cristã se é racista de cima a baixo? A minha tese é de que o racismo implica ausência de comunhão e de serviço, e estas são qualidades primárias, ‘notas’ indispensáveis da igreja. Ser racista significa se colocar fora da definição da igreja.”

Para Cone, só é possível ser igreja a partir da prática da justiça social, a Teologia Negra só é possível a partir da lógica comunitária de um povo que foi excluído da mesa dos santos. Portanto, praticar a comunhão para o povo negro é subverter o lugar que fomos colocados, do não humano, onde não poderíamos falar sobre Deus e partilhar o pão com os irmãos. A religião negra é uma alternativa revolucionária, escancara as portas do evangelho, emancipa pessoas e traz transformações sociais. Por isso, a experiência da Teologia Negra é limitada e tem a ver com a história de um povo, afirmando que nenhuma produção teológica pode universalizar a experiência com Cristo. Jesus era de Nazaré, um Judeu que nasceu na região da Palestina, e sua experiência não foi universal. Assim, o contexto sempre vai importar. Como James Cone afirma, a Teologia Negra é baseada nas Escrituras e na experiência dos negros, e essas duas coisas têm a ver com a vida, a encarnação e a ressureição de Jesus.

Por fim, concluo com essa citação de James Cone:

“Eu queria dizer: Não! O Evangelho cristão não é a religião do homem branco. É uma religião de libertação, uma religião que diz que Deus criou todas as pessoas para serem livres. Mas percebi que, para os negros serem livres, eles devem primeiro amar sua negritude”.

É isso. A Teologia Negra é um levante contra o deus branco e opressor, que matou Cristo e continua a matar todos os que são considerados menores nessa sociedade.

* Jackson Augusto é um dos articuladores do Movimento Negro Evangélico de Pernambuco, fez o curso de fé e política na Escola Martin Luther king Jr, é ativista da teologia negra no Brasil e faz parte do Colegiado Nacional do Miqueias Brasil.

Notas

(1) Entrevista de James Cone a Ronilso Pacheco, em abril de 2017: http://novosdialogos.com/videos/ronilso-pacheco-entrevista-james-cone/

Fontes

CONE, James. The Cross and the Lynching Tree. Maryknoll: Orbis Books, 2011.

CONE, James. O Deus dos oprimidos. Trad. Josué Xavier. São Paulo: Paulinas, 1985.

CARSON, Clayborne (Org.). A autobiografia de Martin Luther King. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/579392-james-cone-1939-2018-in-memoriam

Fonte: http://novosdialogos.com/artigos/a-teologia-negra-segundo-james-cone/


***


Leia, ainda, A Teologia Negra da Libertação em James Cone

https://www.redalyc.org/jatsRepo/3130/313058154007/313058154007.pdf

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

I Encontro do Foro de Brasília tem inscrições abertas

I Encontro do Foro de Brasília tem inscrições abertas


Participantes devem fazer a inscrição pela internet

Da Redação

O Foro de Brasília, uma organização apartidária, realizará no próximo sábado (8), a partir das 8h, na Asa Norte, o I Encontro do Foro de Brasília. As inscrições são gratuitas e o participante precisa se inscrever aqui.

O objetivo do encontro é reunir os movimentos conservadores, liberais e libertários em Brasília para coordenar e fortalecer uma ampla frente de direita. Nesse encontro também será apresentada a estrutura do Foro de Brasília, que pretende ser um fórum permanente de discussão e interação entre os movimentos que combatem o comunismo, a centralização do poder e o autoritarismo.

Publicidade

Confira a programação do evento aqui.

Saiba Mais
Recentemente, o Foro de Brasília entrou com uma ação popular para impedir que o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) faça investimentos para infraestrutura no exterior. A organização quer abrir a “caixa preta” do BNDES para descobrir o que aconteceu com o dinheiro do Brasil que foi enviado para construção do Porto de Mariel em Cuba.

No site do Foro de Brasília é possível conhecer os projetos da organização. Além disso, assistir vídeos de alguns políticos que apoiam o grupo, como por exemplo, o Deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e o Senador Aécio Neves (PSDB-MG).

Fonte: https://www.politicadistrital.com.br/2016/10/06/i-encontro-do-foro-de-brasilia-tem-inscricoes-abertas/  

Veja programação em:

http://media.wix.com/ugd/9795a2_918ae0bf551245dea53e7b658a17ae2b.pdf

Os arquivos secretos da Marinha: Os infiltrados da ditadura - por Leonel Rocha, da revista Época

Os arquivos secretos da Marinha

26 DE NOVEMBRO DE 2011

Confira a seguir um trecho dessa reportagem que pode ser lida na íntegra na edição da revista Época de 28/novembro/2011

ÉPOCA teve acesso a documentos inéditos produzidos pelo Cenimar, o serviço de informações da força naval. Eles revelam o submundo da repressão às organizações de esquerda durante a ditadura militar


LEONEL ROCHA

Uma caixinha de papelão do tamanho de um livro guardou por mais de três décadas uma valiosa coleção de segredos do regime militar implantado no Brasil em 1964. Escondidas por um militar anônimo, 2.326 páginas de documentos microfilmados daquele período foram preservadas intactas da destruição da memória ordenada pelos comandantes fardados. Os papéis copiados em minúsculos fotogramas fazem parte dos arquivos produzidos pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar), o serviço secreto da força naval. Ostentam as tarjas de “secretos” e “ultrassecretos”, níveis máximos para a classificação dos segredos de Estado e considerados de segurança nacional. Obtido com exclusividade por ÉPOCA, o material inédito possui grande importância histórica por manter intactos registros oficiais feitos pelos militares na época em que os fatos ocorreram. Para os brasileiros, trata-se de uma oportunidade rara de conhecer o que se passou no submundo do aparato repressivo estruturado pelas Forças Armadas depois da tomada do poder em 1964. Muitos dos mistérios desvendados pelos documentos se referem a alguns dos maiores tabus cultivados pelos envolvidos no enfrentamento entre o governo militar e as organizações de esquerda.

FIM DO SEGREDO A caixa de papelão com os microfilmes de documentos do Cenimar. Ela foi guardada por um militar anônimo por mais de três décadas (Foto: Igo Estrela/ÉPOCA)

As revelações mais surpreendentes estão nas pastas rotuladas de “Secretinho”, uma espécie de cadastro dos espiões nas organizações de esquerda. Fichas e relatórios do Cenimar identificam colaboradores da ditadura, homens e mulheres, que atuavam infiltrados nas organizações que faziam oposição, armada ou não, ao regime militar. Agiam dentro dos partidos, dos grupos armados e dos movimentos estudantil e sindical. O trabalho dos informantes e agentes secretos era pago com dinheiro público e exigia prestação de contas. Muitos infiltrados eram militares treinados pelos serviços secretos das Forças Armadas que atuavam profissionalmente. Outros foram recrutados pelos serviços secretos entre os esquerdistas, por pressão ou tortura. Havia ainda dezenas de colaboradores eventuais, simpatizantes do regime, que trabalhavam em setores estratégicos, como faculdades, sindicatos e no setor público. A metódica organização da Marinha juntou relatórios, fotografias, cartas e anotações de agentes e militantes.

Reveladores, os papéis microfilmados divulgados por ÉPOCA antecipam alguns dos debates mais importantes previstos para a Comissão da Verdade, cuja lei de criação foi sancionada recentemente pela presidente Dilma Rousseff. Aprovada pelo Congresso, a comissão foi criada com o objetivo de esclarecer os abusos contra os direitos humanos cometidos, principalmente, durante a ditadura militar. Se investigar a fundo o que se passou nas entranhas do aparato repressivo, chegará à participação de militantes de esquerda nas ações que levaram à prisão, à morte e ao desaparecimento de antigos companheiros.

O PRECURSOR  José Anselmo dos Santos (ao centro, de bigode), o “Cabo Anselmo”, o mais famoso dos agentes duplos da ditadura, numa foto de 1964. Acima, uma reprodução de um documento do Cenimar, em que seu nome aparece numa lista de civis e militares investigados (Foto: Arquivo O Dia)

Durante a luta armada, as acusações de traição muitas vezes determinaram justiçamentos, com a execução dos suspeitos pelos próprios integrantes das organizações comunistas. Isso aconteceu com Salathiel Teixeira, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que integrou o revolucionário Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), dissidência do “Partidão” que migrou para a luta armada. Salathiel terminou morto por companheiros por suspeita de ter fornecido, sob tortura, informações aos órgãos de repressão. Os documentos da Marinha mostram como Maria Thereza, funcionária do antigo INPS do Rio de Janeiro e amiga de Salathiel, foi recrutada e paga para ajudar a prendê-lo em 1970. A prisão de Salathiel foi chave para a prisão de dirigentes do partido (leia mais na reportagem).

O Cenimar representava a Marinha na poderosa comunidade de informações do governo militar, que incluía também os serviços secretos do Exército, da Aeronáutica, da Polícia Federal e das polícias Civil e Militar. O marco inicial da estruturação dessa rede que investigava e caçava inimigos dos militares foi a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), em 1964, pelo então coronel Golbery do Couto e Silva, um dos homens fortes dos governos dos presidentes Humberto de Alencar Castelo Branco, Ernesto Geisel e João Figueiredo.

Para compreender bem o confronto sangrento entre as Forças Armadas e as organizações de inspiração comunista, é necessário lembrar o contexto da época. O mundo vivia a Guerra Fria, período de polarização ideológica em que Estados Unidos e União Soviética disputavam o controle de regiões inteiras do planeta. O Brasil importou o conflito internacional. O governo militar tinha o apoio dos Estados Unidos, e parte da oposição aderiu aos regimes comunistas, com forte influência de Cuba e China. O PCB se dividiu em dezenas de siglas adotadas por grupos radicais que adotaram a luta armada como instrumento para a derrubada dos militares. O PCB defendia a via pacífica para a chegada ao poder. Nem assim escapou da perseguição do aparato repressivo e muitos de seus seguidores foram mortos e desapareceram com a participação direta da comunidade de informações. Dentro do PCB sempre se soube que a ação de agentes infiltrados teve grande responsabilidade nas prisões dos comunistas. Os documentos do Cenimar revelam que um discreto dirigente do PCB em São Paulo, Álvaro Bandarra, fez um acordo com os militares em 1968 para colaborar com a caçada aos integrantes do partido.

Os documentos do Cenimar mostram ainda como agiram os espiões para ajudar no desmantelamento de algumas das dissidências do PCB. Os agentes infiltrados pela Marinha tiveram importante participação na derrocada do PCBR, da Ação Libertadora Nacional (ALN), da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e da Frente de Libertação Nacional (FLN). Os militantes viviam escondidos em casas e apartamentos, chamados por eles mesmos de “aparelhos”. Num tempo em que não havia telefone celular nem internet, marcavam locais de encontro, conhecidos como “pontos”, com semanas ou meses de antecedência para garantir o funcionamento das organizações. Num desses “pontos”, descoberto por um agente secreto de codinome “Luciano”, morreu Juarez Guimarães de Brito, um dos líderes da VPR, procurado pelo governo por ter comandado o lendário assalto ao cofre do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros.

Os arquivos da Marinha revelam também como os comunistas subestimaram a força da ditadura e cometeram erros infantis que facilitaram o trabalho da repressão. Num tempo em que os grampos telefônicos já eram comuns, guerrilheiros tramavam ações armadas e falavam despreocupadamente ao telefone. Também convidavam para participar de grupos de ação armada pessoas que mal conheciam, o que facilitou a infiltração dos agentes secretos. A fragilidade das organizações de esquerda permitiu a infiltração do fuzileiro naval Gilberto Melo em entidades do movimento estudantil no Rio de Janeiro.

A história de Gilberto guarda grande semelhança com a do mais conhecido dos agentes duplos da ditadura, José Anselmo dos Santos, conhecido por “Cabo Anselmo”. Anselmo se tornou conhecido ainda antes do golpe como presidente da Associação dos Marinheiros, um dos focos de agitação durante o governo de João Goulart, e depois se infiltrou em organizações da luta armada como informante da repressão. Gilberto passava os dias perambulando pelo restaurante Calabouço, local de encontro dos estudantes e de organização das manifestações contra o regime militar. Ele viu quando o secundarista Edson Luiz Lima Souto foi morto durante uma manifestação por policiais no Calabouço, com um tiro no peito, no dia 28 de março de 1968.

Nos dias seguintes à morte de Edson Luiz, Gilberto, conhecido no Cenimar como Soriano, participou das manifestações desencadeadas pelo assassinato, que culminaram na famosa passeata dos 100 mil, em junho de 1968, no Rio de Janeiro. Gilberto incorporou tanto o disfarce que terminou preso duas vezes. Foi espancado e torturado como se fosse um esquerdista. Nunca revelou que era agente secreto. A morte de Edson foi um dos fatos mais marcantes daquele período, que culminou com o recrudescimento da repressão pelo regime militar e a implantação do Ato Institucional Número 5 (AI-5) no final de 1968.

Os papéis microfilmados constituem um valioso acervo para a compreensão dos métodos empregados pelos órgãos de repressão. Por razões óbvias, nos registros não constam as práticas mais hediondas, como tortura, prisões ilegais, assassinatos ou desaparecimento de pessoas. Mas eles têm o mérito de expor personagens e mostrar o roteiro das perseguições aos inimigos do regime. Os relatórios do Cenimar também registram o envolvimento de oficiais da Marinha. Eles controlavam a rede de espiões espalhados pelo país, chefiavam as equipes de busca e coordenavam os interrogatórios. “Documentos que mostram relatórios de informantes, contratações e atuação direta são raros”, afirma Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um dos principais historiadores do período militar. “Provavelmente (esses documentos) deveriam ter sido expurgados. Por algum motivo, alguém os salvou.”

O expurgo mencionado por Fico foi concretizado no acervo do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa). O Cisa fazia o mesmo trabalho do Cenimar. Também tinha agentes e controlava elementos infiltrados em organizações de esquerda. No início do ano, o Arquivo Nacional abriu a consulta aos documentos acumulados pelo Cisa e entregues um ano antes pela Aeronáutica. Mas quem for até lá em busca de documentos como os do Cenimar vai se decepcionar. Não há nada que leve à identidade de agentes e informantes, seus relatórios, comprovantes de pagamentos, material que existe fartamente nos arquivos obtidos por ÉPOCA. Procurada, a Marinha afirmou desconhecer os documentos do arquivo secreto. “Não foram encontrados, no Centro de Inteligência da Marinha, registros pertinentes aos questionamentos apresentados”, afirmou o contra-almirante Paulo Maurício Farias Alves, diretor do Centro de Comunicação Social da Marinha.

Até hoje, a história da ditadura militar no Brasil se revelou aos poucos, em imprevisíveis divulgações de documentos, relatos contraditórios de militares e incompletas declarações dos perseguidos pelo regime militar. Menos de três décadas depois de restaurada a democracia, ainda existem importantes segredos. Nas próximas semanas, ÉPOCA publicará novos capítulos dessa história ainda desconhecida.

Fonte: https://hannaharendt.wordpress.com/2011/11/26/os-arquivos-secretos-da-marinha/


***


Os infiltrados da ditadura


Leonel Rocha - Revista Época

Data: 26/11/11

As organizações de esquerda passavam por grandes dificuldades no segundo semestre de 1969. Com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5) no final do ano anterior, o governo militar ampliou os instrumentos legais de perseguição às organizações que combatiam a ditadura. As prisões de militantes levavam os grupos armados a tentar recrutar mais gente. Em outubro de 1969, um homem ofereceu serviços de bombeiro hidráulico na Administradora Bolívar, uma imobiliária de Copacabana. Disse chamar-se Luciano e conseguiu trabalho com a responsável pela empresa, Maria Nazareth Cunha da Rocha. Bom de conversa, falava de política enquanto fazia os consertos nos encanamentos. Nazareth gostou do sujeito. Mais ainda quando ele disse que estivera preso por ter participado de atividades contra o golpe militar. 

Poucos dias depois, em tom confidencial, Nazareth perguntou se Luciano gostaria de fazer parte de uma organização de luta armada. A imobiliária Bolívar era, na verdade, uma espécie de condomínio de várias organizações da luta armada. Reunia a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e a Frente de Libertação Nacional (FLN). No topo, de acordo com Nazareth, estava Carlos Marighella, líder máximo da Ação Libertadora Nacional (ALN), que seria morto em São Paulo poucos dias depois, em novembro de 1969. Ela convidou Luciano a integrar um grupo de homens "dispostos a tudo", para realizar operações de assalto e sabotagem. Sem titubear, Luciano respondeu que sim. Militante experiente, na faixa de 40 anos de idade, Maria Nazareth não sabia, ao fazer o convite, que era enganada. Luciano, o homem que se apresentou como bombeiro hidráulico, era um agente do Centro de Informações da Marinha, o Cenimar. 

Na vida real, Luciano se chama Manoel Antonio Mendes Rodrigues. Uma ficha dos arquivos do Cenimar descreve Manoel Antonio, ou "Luciano", como um agente remunerado que teve conexões com assaltos a banco e contatos em várias organizações da luta armada, como FLN, VPR e MR-8. No serviço secreto da Marinha, consta que ele mantinha contato com vários oficiais. 

O Cenimar grampeou os telefones da Administradora Bolívar. Os informes da imobiliária eram transcritos à mão em "folhas de trabalho" do serviço secreto. A infiltração de Luciano nos grupos que operavam na Administradora Bolívar coincide com a prisão de vários militantes. Dos arquivos do Cenimar, é possível inferir que ela foi fundamental para a obtenção de informações que levaram a essas prisões. 

Um exemplo: em 26 de novembro de 1969, os espiões descobriram que o militante Salathiel Teixeira Rolim viajara do Rio para São Paulo e Curitiba num carro modelo JK, verde, placas GB Z0 5575. Ex-integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Salathiel entrou para o radical PCBR no fim da década de 1960. Depois de rastreado pelo Cenimar, foi preso em janeiro de 1970. Torturado, deu informações que, na avaliação de antigos aliados, contribuíram para a captura de dirigentes do PCBR. Em 1973, depois de sair da cadeia, Salathiel foi morto por militantes do PCBR, sob a acusação de que traíra o partido na prisão. 

A infiltração de Luciano resultou também na espionagem contra um dos mais importantes dirigentes da VPR, Juarez Guimarães de Brito. Juarez entrara em 1968 para o Comando de Libertação Nacional (Colina), organização a que pertenceu a presidente Dilma Rousseff. Em julho de 1969, integrava a VAR-Palmares, organização oriunda da fusão entre Colina e VPR. Foi Juarez quem comandou no Rio de Janeiro o assalto ao cofre de Ana Capriglione, amante do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros. Trata-se do assalto mais bem-sucedido realizado por um grupo de esquerda durante a ditadura. Ele rendeu US$ 2,6 milhões aos assaltantes. 

No dia 13 de abril de 1970, Luciano relatou aos chefes do Cenimar que estivera com Juarez num encontro com Maria Nazareth. Ele telefonou outra vez ao Cenimar no dia 16, para informar que Juarez tinha um encontro no dia 18 com outro militante da VPR, Wellington Moreira Diniz, na Rua Jardim Botânico, numa esquina com a rua que "tem a seta indicando Ipanema". 

Manoel Antonio Rodrigues
Bombeiro informante do Cenimar 

Infiltrado num esconderijo da esquerda como encanador, ajudou a desmantelar organizações de esquerda como PCBR, MR-8, FLN e VPR 

"Sempre fui ligado à esquerda e estive entre os militares que defenderam a posse de João Goulart depois da renúncia de Jânio Quadros. Eu era do Corpo de Bombeiros de Nilópolis. Fui preso e solto algumas vezes. Na última delas, em 1969, fiquei na Ilha das Flores, no Rio, onde fui barbaramente torturado durante dois meses. Fui espancado, enfiaram agulhas embaixo das minhas unhas e arrancaram unhas dos meus pés. Chegaram a ameaçar abrir meu crânio com talhadeira e marreta. Até um punhal enfiaram no meu ânus. Aceitei colaborar porque não suportava mais tanto sofrimento. Passei informações, revelei dados sem muita importância. Mantive contato com Carlos Lamarca e Carlos Marighella. Eu era da FLN quando fui torturado. Algumas vezes fui acusado de ser infiltrado, mas tinha avisado o (Joaquim) Cerveira (chefe dele na FLN) sobre minha situação, e ele me defendeu de ser justiçado." 

A direção da VPR não sabia, mas Wellington estava preso desde o dia 11 de abril. No dia 18, os militares o levaram ao encontro com Juarez. No horário previsto, Juarez e sua mulher, Maria do Carmo, chegaram. De imediato, foram cercados por homens armados. Houve tiroteio – e Juarez se suicidou com uma bala no ouvido. Maria do Carmo foi apanhada viva.

ÉPOCA encontrou Manoel Antonio Mendes Rodrigues, o Luciano, no bairro de Guaratiba, no Rio de Janeiro. Coronel reformado da Polícia Militar, ele confirmou todas as informações que constam dos documentos do Cenimar. Disse que passou a colaborar com a Marinha depois de preso e torturado. Afirmou também que teve três filhos com uma militante de esquerda, professora da Escola de Belas-Artes, no Rio. Entrou com um processo na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e foi considerado perseguido político. Não pediu reparação financeira. "Não pesa na minha consciência que algum companheiro tenha sido morto por minha causa", afirma Manoel Antonio. 

Esse tipo de atitude fria e desapaixonada não deve gerar espanto quando se leva em conta o treinamento rigoroso que recebiam os agentes do Cenimar. Para preservar suas fontes de informação, era preciso que os agentes mantivessem a discrição e o silêncio perante os demais organismos do governo e da repressão. Um caso que ilustra bem essa característica foi vivido em 1968 pelo agente Gilberto de Oliveira Melo, na época com 26 anos. 

Gilberto havia sido infiltrado pelo Cenimar em um dos principais pontos das agitações políticas do Rio de Janeiro nos anos 1960, o restaurante estudantil Calabouço, um ponto de concentração dos secundaristas cariocas. Ele participava de protestos e foi preso pela Polícia Militar numa passeata. Na cadeia, recebeu murros na cabeça e no abdome.Fiel às normas de segurança dos militares, nada disse sobre sua relação com a Marinha. Depois de solto, ele começou a sentir tonteiras e lapsos de memória. Esses problemas foram descritos num documento assinado pelo diretor do Cenimar, capitão de mar e guerra Fernando Pessoa da Rocha Paranhos, endereçado ao ministro da Marinha. 

Gilberto de Oliveira Melo
O marinheiro e agente duplo 

Falso estudante, ajudou a monitorar manifestações no Rio de Janeiro em 1968. Ele afirma que não se arrepende de nada do que fez e faria tudo de novo 

Entrei na Marinha para fazer o serviço militar em 1961 e me transformei em soldado profissional. Fui escolhido para o Cenimar porque tinha excelente disciplina e não questionava ordens. Eu era louco por realizar ações, principalmente as mais perigosas. Passava os dias entre os estudantes, jogava pingue-pongue, almoçava no restaurante e até frequentava algumas aulas. Cheguei a namorar uma colega que estudava farmácia. Vi o momento em que (o estudante) Édson Luis foi baleado e morto. Ele não atendeu a meus gritos para que se deitasse no chão e continuou jogando pedras na polícia. Simpático, não era comunista nem revolucionário. Na cadeia fui torturado e não podia dizer que era infiltrado. Fazia parte do disfarce resistir até que outro agente avisasse o Cenimar. Meus relatos eram feitos à mão todas as noites. Não me arrependo de nada. Cumpri meu dever como militar e, se fosse chamado hoje, faria tudo novamente, mesmo com quase 70 anos. 

Paranhos relatou que Gilberto era fuzileiro naval e se tornara agente do Cenimar em outubro de 1967. Elogiou sua atuação na identificação de líderes do movimento estudantil. Examinado pela Marinha depois de apanhar da PM, Gilberto disse que se ferira numa briga, atitude classificada por Paranhos como "altamente elogiável quanto à segurança". Os arquivos do Cenimar guardaram cópias de três fotos do momento em que Gilberto foi preso na manifestação. Têm também cópias de título de eleitor e carteiras de identidade, trabalho e de estudante do Instituto Cooperativo de Ensino. "Atua na área estudantil, é remunerado. Trabalhando na UFRJ como arquivista", diz o documento. 

ÉPOCA encontrou Gilberto de Oliveira Melo no Rio de Janeiro. Ele mora numa casa cheia de grades, parecida com um bunker, no bairro da Penha. Gilberto leu os documentos do Cenimar e confirmou todas as informações que constaram deles. Reclamou do vazamento dos arquivos secretos e se mostrou preocupado em dar entrevista sem autorização da Marinha. Aceitou conversar com a reportagem, mas não quis ser fotografado. Aos 69 anos, está na reserva como cabo dos Fuzileiros Navais. Ao longo da conversa, mostrou-se um abnegado agente secreto, disposto a qualquer sacrifício em nome do Cenimar. Gilberto brincou dizendo ser "meio doidinho" por causa das sequelas que precisou tratar. Vive desconfiado – e teme retaliação dos militantes de esquerda. 

Uma atitude também frequente entre os ex-infiltrados é oposta à de Gilberto. Ele teme retaliação. Outros chegam a exigir reparação e a pedir indenização do governo por ter sido perseguidos durante a ditadura. Uma história surpreendente é de Vanderli Pinheiro dos Santos. Quem consulta os arquivos da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça descobre que Vanderli foi indenizado pelo Estado em cerca de R$ 234 mil e recebe um benefício mensal de pouco mais de R$ 3 mil. À comissão, ele afirmou ter entrado para o PCB em 1964, ter treinado guerrilha, mas ter desistido da militância em 1969. Segundo ele, quando tentava se engajar no Corpo de Bombeiros do Distrito Federal, foi preso e torturado no Batalhão de Polícia do Exército em Brasília, acusado de subversão. Depois de solto, afirmou, não conseguiu emprego e decidiu mudar para o Rio de Janeiro, onde ficou detido por 30 dias para "averiguações". 

Clóvis Bezerra
Ex-militante da ALN 

Ele afirma que sempre desconfiou de Vanderli. Na ocasião, propôs aos companheiros executá-lo, mas foi voto vencido na organização 

Vanderli foi o mais grave caso de infiltração policial de que tenho conhecimento. Desconfiávamos que ele tinha sido recrutado pela repressão desde antes do golpe militar. Na ALN (Ação Libertadora Nacional), ele atuou no Rio e no Paraná, onde ajudou a entregar militantes do MR-8. O (Carlos) Marighella pediu que indicássemos dois militantes para treinar guerrilha em Cuba. Vanderli foi um dos escolhidos. Semanas depois, ele desistiu e confirmei minha desconfiança. Propus ao nosso grupo que ele fosse executado, mas fui voto vencido. Vanderli viu as armas que guardávamos na casa do meu irmão e nos delatou. Corremos para retirar as armas, mas logo depois a polícia chegou ao local. Encontrei Vanderli novamente na cadeia e perguntei por que ele tinha virado informante. Ele me disse, com cinismo, que tinha sido sacaneado pelo grupo. Depois, encontrei-o como taxista em Brasília. Eu me recusei a conversar com um traidor. Ele sozinho entregou toda a ALN em Brasília. 

Quem consulta os arquivos do Cenimar, porém, descobre que Vanderli foi um infiltrado. Quando uma equipe da Marinha estourou no Rio quatro esconderijos do MR-8, em 2 de março de 1969, prendeu Vanderli e outros quatro militantes. Vanderli se apresentou como agente infiltrado do Serviço Nacional de Informações (SNI). O Cenimar registra que entrou em contato com o SNI e confirmou a informação. No depoimento à Marinha, Vanderli, então com 25 anos, dizia que, depois de solto, teria condições de se infiltrar num grupo esquerdista de Brasília.

ÉPOCA investigou a vida de Vanderli no Distrito Federal. Antigos militantes de esquerda afirmam tê-lo conhecido. Desde os tempos de clandestinidade, pesavam sobre Vanderli suspeitas de que ele trabalhava para a repressão. "Vanderli sozinho entregou toda a ALN de Brasília", afirma Clóvis Bezerra, ex-militante da organização. ÉPOCA tentou entrevistar Vanderli nas últimas semanas, sem sucesso. Ele tem uma chácara na periferia de Brasília e, segundo um vizinho, trabalha com táxi. Quando a reportagem conseguiu contato com Vanderli pelo telefone e disse que pretendia conversar sobre os tempos da ditadura, ouviu a seguinte pergunta: "Como você conseguiu meu telefone?". Vanderli disse então que voltaria a ligar em seguida. Nunca mais ligou nem atendeu os telefonemas. 

Os documentos secretos do Cenimar revelam que a extensão da infiltração dos órgãos militares nas organizações de esquerda ia além do nível da militância e muitas vezes chegava à cúpula. A pasta número 7 dos arquivos, sob o título "Documentos de Pessoas Efetivamente Registradas no Cenimar" e o timbre do Ministério da Marinha, afirma que Alvaro Bandarra, integrante da alta cúpula do PCB em São Paulo, trabalhou para a ditadura. Ele aparece com o nome falso "Nicolau" e é identificado pelo código KT-67. A ficha de Bandarra o descreve como comunista ligado ao PCB desde 1947. Ele nasceu em Santos em 1926, candidatou-se a vereador em 1947 e, no mesmo período, participou da campanha O petróleo é nosso. No pé da página, uma observação manuscrita registra o dia 9 de outubro de 1968 como a data a partir da qual ele passou a colaborar com a repressão. 

Bandarra ocupava um posto estratégico na estrutura do PCB. Usava o codinome "Machado" e era integrante do comitê municipal em Santos e do comitê estadual em São Paulo. Um relatório interno do partido diz que ele era dono de uma livraria em Santos. Mantinha contatos frequentes com Walter Ribeiro, integrante do comitê central do PCB que usava o codinome "Beto", hoje desaparecido. O documento interno não faz nenhuma acusação direta a Bandarra, mas afirma que, pela quantidade de prisões ocorridas no Estado, parecia que a polícia tinha um informante específico para o comitê de São Paulo. O relatório diz ainda que Bandarra, depois de uma reunião do comitê central em novembro de 1973, foi chamado a prestar esclarecimentos à polícia de Santos. Indiciado como dirigente comunista, não foi condenado. 

ÉPOCA localizou um filho de Alvaro Bandarra. Ele tem o mesmo nome do pai, que já morreu. Alvaro Bandarra Filho diz que considera "improvável" que o pai tenha colaborado com a repressão durante a ditadura. "A família foi orientada pelo meu pai a não revelar as reuniões políticas que aconteciam na minha casa", afirma.

 A vida dos infiltrados era cheia de medo, dúvida e tensão. Todos esses ingredientes estão presentes na correspondência da militante Maria Thereza Ribeiro da Silva. Primeiro, suas cartas foram interceptadas pelo Cenimar. Depois, ela acabou aliciada como informante. "Estou desesperada. Acabo de me convencer, com os últimos acontecimentos lidos nos jornais, que dentro em breve serei presa", escreveu ela em 1o de agosto de 1969, numa carta manuscrita a uma amiga, Odete. Maria Thereza disse ter sido iludida pela organização de esquerda em que militava (o PCBR) e que não tinha dinheiro para quitar uma nota promissória. "Entre outras coisas, cheguei a comprar dois carros em nome de um motorista conhecido meu, de nome Bispo, com dinheiro fornecido por Salathiel." Três dias depois de escrever a carta, Maria Thereza foi presa por agentes do Cenimar. Um manuscrito do Cenimar com data de 4 de agosto de 1969 registra um acordo feito com ela. No primeiro dia, a militante aliciada pela Marinha recebeu 100 cruzeiros novos. 

No Cenimar, ela ficou conhecida pelo código RK-33 e pelos nomes falsos “Renata” e “Lindolfo”. Os contatos com o serviço secreto eram feitos por meio do capitão de corveta “Alfredo”. Três anos e meio depois do acordo com o Cenimar, Maria Thereza enviou uma carta a “Alfredo”, datada de 26 de fevereiro de 1973 e assinada por “Renata”. Ela reclama das dificuldades que tem para sustentar a filha, “Dominique”, e ajudar os pais com o dinheiro que ganha com uma pensão alimentícia e com o pagamento do Cenimar. No total, recebe Cr$ 1.270. Para equilibrar o orçamento, pede que o Cenimar aumente seu salário. 

ÉPOCA não conseguiu entrevistar Maria Thereza. O nome dela aparece em cadastros do governo federal, mas seu endereço na periferia do Rio não foi encontrado. Ex-militantes do PCBR procurados não se lembraram dela. A ex-colaboradora da Marinha permaneceu nas sombras mesmo depois do fim da ditadura. Como seria de esperar de um agente secreto.

Fonte: https://fenapef.org.br/35910/