MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964

MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964
Avião que passou no dia 31 de março de 2014 pela orla carioca, com a seguinte mensagem: "PARABÉNS MILITARES: 31/MARÇO/64. GRAÇAS A VOCÊS, O BRASIL NÃO É CUBA." Clique na imagem para abrir MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964.

terça-feira, 28 de julho de 2020

O soviete de Joinville - por Renan Antunes de Oliveira

O soviete de Joinville

por Renan Antunes de Oliveira 


De Joinville, especial para o JB

JORNAL DO BRASIL DE 18/03/2007

Está em curso uma experiência cabocla, anacrônica e politicamente incorreta em Santa Catarina: a formação do 'proletariado bolivariano trotskista estatizante germânico-joinvillense'.

É uma categoria de trabalhadores sem a visão do lucro. Eles tomam a fábrica e expulsam o patrão. Funcionam sem capital e sem matéria-prima. Reduzem a jornada para 30 horas semanais. Produzem com maquinário obsoleto e só o necessário para garantir os próprios salários. Livres dos grilhões do capitalismo, são escravos de si mesmos.

A vanguarda desta turma parada no tempo é formada por 1.070 operários entrincheirados há quatro anos e meio nos galpões da indústria plástica Cipla. Eles esperam o presidente Lula cumprir uma promessa de estatização para salvar os empregos, feita na campanha de 2002.

Enquanto dura o impasse eles desafiam a Justiça que quer tirá-los de lá. Agitam-se sob o total silêncio da imprensa. Enfrentam a hostilidade da elite empresarial catarinense. E teimam em subverter até as leis de mercado: todo ano fecham no vermelho, felizes da vida.

Os operários têm planos de queimar tudo se um dia a polícia invadir o sagrado chão da fábrica. No início aconteceram algumas escaramuças, quando eles botaram para correr a PM, a Polícia Federal e até oficiais de justiça.

Antes dos incidentes a turma obedecia às leis do país e adorava o presidente Lula. Eles radicalizaram depois que o venezuelano Hugo Chávez começou a pagar as contas. Desde dezembro, quando reuniu 600 líderes de ocupações em países hermanos, a Cipla virou solo sagrado do proletariado cucaracha.

Foi tortuoso o caminho de formação desta nova classe de trabalhadores - só o proletariado é o centro da receita. O bolivariano nasce da palavra da hora para revolucionário anti-Bush, deriva do libertador das Américas, Simón Bolívar.

Trotskista é o seguidor da vertente comunista do russo Leon Trotsky, criada no século passado e fracassada em todo lugar onde foi testada.

Estatizante é óbvio. O germânico-joinvillense vem das origens e do local onde ocorre. Joinville, a maior cidade industrial catarinense, uma potência econômica criada à imagem e semelhança da Alemanha. Por décadas o operariado de olhos azuis segue a tradição de trabalhar de cabeça baixa e dizer sim para tudo, em nome da ordem.

A Cipla, hoje vista como um corpo estranho e de operariado desgarrado, nasceu da nata do empresariado germânico e capitalista: ela é a mãe do Grupo Tigre, a maior empresa da América Latina de tubos e conexões.

Seus operários, máquinas e galpões foram separados da parte boa da Tigre quando começou a fazer água, nos anos 90. A família Hansen, dona de tudo, deu uma mexida e a Cipla foi entregue pelo fundador como dote a um dos genros - formado em Harvard, era tido como um geniozinho neoliberal.

Depois de cinco boas temporadas faturando 100 milhões de dólares por ano, o genro gênio deixou de recolher impostos e FGTS. Passou a pagar os operários com vales de 30 por semana. A Tigre, blindada por advogados, não quis saber da parte podre e a deixou naufragar sob uma dívida de 600 milhões.

Foi aí que o proletariado germânico-joinvillense virou revoltado à trotskista. Ele tomou a fábrica - tomada esta insuflada por um líder sindical que passou pela cidade em campanha eleitoral e prometeu estatização.

'Invadam que eu garanto', foi a promessa aos líderes. A invasão se consumou em primeiro de novembro de 2002. O pessoal evolui então para 'estatizante', vendo na encampação a única chance de salvar os empregos.

No janeiro seguinte, o candidato virou presidente. Só então caiu na real. Já não pôde cumprir a promessa - ela estava na contramão da globalização. Para não fazer feio, Lula mandou seu chefe da Casa Civil ajudar o pessoal, mas José Dirceu é que acabou precisando de ajuda, bombardeado primeiro pelo caso Valdomiro Diniz, depois derrubado por Roberto Jefferson.

O pessoal continuou a luta. No ano passado apareceu o novo patrono da causa: Hugo Chávez, líder da sua peculiar Revolução Bolivariana. Ele anunciou que não queria mais comprar de empresas norte-americanas.

Como a Cipla produz tubos para a indústria do petróleo, um emissário trotskista-capitalista foi enviado à Venezuela com urgência. Deu negócio. E dos bons. Chávez manda aos companheiros matéria-prima a preços subsidiados. A turma então bolivarianou.

Lula se reelegeu. Em fevereiro, na Bahia, o presidente recebeu Serge Goulart, 52 anos, catarinense, membro do diretório nacional do partido pela corrente radical trotskista O Trabalho, líder da ocupação da Cipla.

Momento tenso. Quatro anos e cinco meses depois de insuflar a turma à invasão, Lula olha o velho companheiro e faz cara de espanto: 'Como ? Ainda não resolveram o problema'? Aí vira-se para o secretário e ordena: 'Dulci (Luís), cuide do caso'.

Em Joinville, enquanto isso...

Tudo dá certo quando começa mal

Com a fábrica sucateada, sem dinheiro para investimentos e no vermelho, não era para as coisas irem bem. Mas a Cipla que faturou só 37 milhões em 2006, quando precisa de 90 para se equilibrar, continua de pé.

Fala Francisco Lessa, advogado da empresa: 'Nós conseguimos pagar os salários de todos, acima do piso da categoria em Joinville'.

Por que a Cipla não cumpre ordens de penhora da Justiça ?

- Elas são para pagar dívidas dos antigos donos. Nós queremos manter os empregos. A Justiça está mais sensível e já entende que se nos tirar equipamentos e receita ficaremos sem ter como garantir os salários de trabalhadores.

Quando pegaram a fábrica vocês não sabiam do rombo?

- Só tivemos a dimensão da coisa quando abrimos os livros. Ocupamos a fábrica quebrada e agora queremos estatização.

Quanto vale a Cipla ?

- O patrimônio está avaliado em cerca de 60 milhões, não dá para pagar nem 10% da dívida. Mas a empresa é viável, segundo um estudo do BNDES.

Como vai a produtividade?

- Ótima. Em 2004 a empresa foi premiada. Em janeiro, adotamos o regime de 30 horas semanais, uma coisa de primeiro mundo. Nosso gargalo é a compra de matéria-prima, porque os antigos donos nos deixaram com o nome sujo na praça.

Qual é o trato com Chávez?

- É um negócio feito com profissionalismo e transparente. Nós estamos passando para a Venezuela tecnologia em construção de casas populares em PVC. Eles nos fornecem materia-prima que teríamos dificuldade de comprar aqui. Nossa fábrica já está montada lá e agora esperamos mais carregamentos para tocar a Cipla.

A estatização não vai contra a política econômica nacional?

- O momento da ocupação foi antes da primeira eleição do presidente Lula. Os trabalhadores botaram muita fé nele. As coisas começaram mal, mas conseguimos nos equilibrar e sobreviver até agora. São mil famílias numa luta histórica. Está na hora de o Estado reconhecer e respeitar isso, fazendo sua parte.

Tigre foge do mico de R$ 800 milhões

A quebra da fábrica Cipla que levou à ocupação pelos operários tem origem na cisão familiar do Grupo Hansen, cuja parte saudável forma hoje a Tubos e Conexões Tigre.

Em 1989, a Cipla, mãe da Tigre, foi separada do império. Ficou com a filha do fundador, Eliseth Hansen, e administrada pelo marido, Luís Batschauer.

Usando suas iniciais, o casal formou a HB. Na gestão dele o faturamento da empresa foi caindo de 200 milhões de dólares para 155, depois 116, 87, e, finalmente, apenas 70 milhões, em 1993.

No ano seguinte a HB pediu concordata, quando já devia 600 milhões de reais em impostos e encargos sociais, além de acossada por centenas de processos trabalhistas. O rombo hoje passa dos 800 milhões.

O marido foi preso, acusado de sonegação fiscal e evasão de divisas. A esposa pediu socorro à família rica, mas não obteve. Foi à Justiça contra os dois irmãos pedindo revisão da herança do patriarca João Hansen Junior, cujo resultado não foi possível apurar.

Um dos irmãos morreu, o outro vendeu sua parte e a Tigre acabou na mão de uma cunhada com quem Eliseth não se dava direito - o resultado é que a Tigre nunca quis assumir o mico de sua fábrica-mãe.

Pelos oito anos da concordata até a ocupação a Cipla foi encolhendo de quase 3 mil para os 1.070 operários que tem hoje.

Cada fim de mês era um parto pagar salários. Os equipamentos ficaram obsoletos e a produção caiu para 30%, sem falar do sufoco que era trabalhar com dezenas de credores batendo às portas todo dia.

Aperreado pelas dívidas, Batschauer tentou vender a fábrica para os operários. Quando eles se deram conta do tamanho do rombo recusaram a oferta.

O empresário então passou uma procuração para o Conselho de Fábrica, órgão formado por gente eleita em assembléia no pátio da firma - o povão.

Apostando que o Conselho levaria a empresa à falência em poucos meses, Batschauer recolheu-se a uma peça nos fundos da Cipla, com entrada independente, onde se manteve por quase dois anos torcendo pelo fracasso dos 'despreparados'.

A fábrica continuou funcionando. Contrariado, Bat, como era apelidado pela massa, quis cassar a procuração. Tentou vender tudo para um pastor adventista, querendo zerar as dívidas e retomar o patrimônio.

O Conselho de Fábrica descobriu que o pastor era procurado pela polícia e conseguiu que as autoridades o prendessem.

Injuriados com o golpe do ex-patrão, os operários passaram um cadeado no portão do escritório dele e nunca mais o deixaram entrar na sua Cipla.

E então ele simplesmente desistiu. Uma das figuras mais notáveis da cidade por quase duas décadas, Luís Batschauer está desaparecido da face de Joinville, de Santa Catarina e da Região Sul, quiçá do Brasil: seis detetives particulares estão no encalço dele sem sucesso há dois anos.

A fofoca da cidade é que o casal HB se divorciou para evitar que as dívidas dele respinguem nela quando e se ela conseguir um pedaço da Tigre na Justiça.

Se o divórcio saiu, nada até agora foi averbado na certidão de casamento deles, no cartório de registro civil da cidade, como deve acontecer nestes casos.

Tudo o que se sabe é que o outrora incensado gênio das finanças formado em administração na Universidade de Harvard ofereceu às editoras locais um livro intitulado A inadimplência idônea - sua tentativa de explicar como matou a mãe da Tigre, abriu aquele rombo, não pagou as dívidas e puxou apenas algumas semanas de cadeia.

A obra permanece inédita. E o autor, em local ignorado.

Dona Odete descobre Karl Marx

Renan Antunes de Oliveira De Joinville, especial para o JB

Teve gente que cresceu como gente, depois da ocupação. O maior exemplo é dona Odete Camargo, mãe de quatro filhos, jornada dupla casa/fábrica. Era do tipo cabeça baixa, bem na sua, só batendo cartão.

Vendo o agito, estudou economia capitalista num curso promovido na fábrica por militantes da Quarta Internacional. Foi fundo no capítulo do Manifesto Comunista de Karl Marx.

Diplomada, Odete concluiu que se entrasse na luta 'nada teria a perder, a não ser grilhões'. Agora, só trata os colegas por 'camaradas'.

Acabou eleita para o conselho que dirige a fábrica. E tem mais moleza em casa com a adoção da jornada de 30 horas semanais.

Na fábrica, ela divide o serviço na linha de produção com as reuniões do comando que decide as finanças.

Tudo ali é discutido nos mínimos detalhes. Os operários analisam a planilha como se fossem acionistas: 'Se alguém vê alguma coisa que não gosta, reclama e discute na assembléia', diz Eni, auxiliar da administração.

Os quesitos mais expressivos do relatório são pendurados no mural da fábrica e podem ser questionados até pelos faxineiros. No mês passado, o faturamento foi R$ 3,5 milhões, abaixo do necessário - ninguém chiou.

Os trabalhadores vigiam os companheiros. Quando um dos líderes da primeira greve tentou se eternizar num cargo sem precisar trabalhar, foi demitido por mil votos a um, o dele. Ninguém queria o vagabundo na folha.

Quem paga boa parte dela é uma multinacional. A Mercedes-Benz garante quase R$ 500 mil mensais por várias peças e aquela famosa estrela dos veículos da marca.

Por isso, mesmo com toda turbulência, o pessoal sempre se esforça para manter o setor da estrelinha, virou xodó deles.

Um flash back de 2002: a Volvo também era cliente, mas cancelou seu contrato depois que soube que o comando da fábrica estava com o operariado. Mandou buscar os moldes das peças para trocar de fornecedor.

O Conselho não quis entregá-los. A assembléia apoiou a decisão. A Volvo então foi à Justiça, que mandou a polícia para a Cipla. Não adiantou: os operários se agarraram nos moldes. Aí a multinacional ajoelhou, com medo de parar em vários países por falta de peças: pagou R$ 500 mil, garantindo um Natal gordo no ano da ocupação.

Depois de quatro anos e meio sem patrão, a aventura ainda encanta o proletariado. Os capítulos da novela são acompanhados todos os dias pela rádio peão, o boca-a-boca nas fábricas de 'Xoinfile', como pronunciam os descendentes alemães.

Por conta da experiência a Cipla virou pronto-socorro de crises. Quando trabalhadores de outras fábricas estão em dificuldades, pedem ajuda e know-how ao pessoal dela. Aí o comando despacha especialistas em manifestações e enfrentamentos, na teoria trotskista de exportar a revolução permanente.

No front interno, acabou aquela de corpo mole para escapar da exploração capitalista: 'Sei que se não trabalhar serei eu o prejudicado', diz um operário. 'Porque se a fábrica não é minha, o produto agora é.





Nenhum comentário:

Postar um comentário