Verdades X Mentiras: o Exército na construção da BR-174
por Hamilton Bonat - general e cronista
A melhoria da infraestrutura fez parte das iniciativas para o desenvolvimento do país, no período de 1964 a 1984. A construção de rodovias como a BR 174, Manaus – Boa vista, com destaque para o trecho Caracaraí (RR) / Manaus (AM), possibilitando a ligação dos dois Estados, por inserir-se neste contexto, representou um passo importantíssimo para a consolidação da rede viária sul-americana e do sistema pan-americano de rodovias (Brasil, Venezuela, Uruguai, Argentina e Paraguai). Para que a BR 174 pudesse ser construída foi preciso criar, pelo Decreto Presidencial No. 63.184, em 27/08/1968, o 6º. Batalhão de Engenharia de Construção, sediado em Boa Vista – RR. Posteriormente, em 1970, o DNER e o Exército Brasileiro assinaram convênio para que a BR 174 fosse construída. Tal ano é considerado o marco do início das ações efetivas para a construção da BR 174.
Cabe ressaltar que:
Ø No cenário da época vigorava a chamada “Guerra Fria” (de 1947 a 1991), tendo de um lado a liderança dos Estados Unidos da América – defensor do capitalismo e da democracia – e de outro a liderança da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), defensora do socialismo e do comunismo. Aliados na Segunda Guerra Mundial, suas ideologias contrastantes segmentaram a liderança política, econômica e militar mundial no pós-guerra. Foi neste contexto que o Governo brasileiro implantou projetos para segurança, integração e desenvolvimento da Amazônia, dentro de um planejamento geopolítico para a região, com base na doutrina de segurança nacional, com alinhamento ao capitalismo e à democracia;
Ø A ideia de construção de uma estrada nos moldes da BR 174 era antiga, tendo sido realizadas várias tentativas, todas sem sucesso: em 1847, em 1893 e em 1928. O ponto central deste desejo sempre foi a integração da Amazônia ao restante do país;
Ø Os waimiris-atroaris na verdade são dois grupos de índios, ambos do Grupo Kinja: os waimiris, que na época da construção da BR 174 eram liderados pelo tuxaua (líder, cacique ou capitão) Maroaga, e os atroaris, então liderados pelo tuxaua Comprido. A comunicação verbal destes grupos é a do ramo Karib. Os atroaris foram considerados mais belicosos do que os waimiris, talvez pela influência do temperamento de seu líder Comprido, mais jovem e sem a maturidade de Maroaga (na faixa dos sessenta anos de idade, na época). Os grupos eram unidos, mesclados, sendo que a companheira de Comprido era filha de Maroaga.
É importante considerar que desde a segunda metade do século 19 a área por onde passaria a rodovia BR 174 serviu de palco para recorrentes conflitos entre os índios waimiris-atroaris e garimpeiros, caçadores, castanheiros, tartarugueiros e aventureiros de todo tipo, bem como com a polícia militar do Amazonas, esta especialmente atuante nos anos 60. A justificativa da PM do Amazonas de interferir no contato com os waimiris-atroaris deveu-se à proximidade de algumas aldeias com a capital Manaus. Em 1968 uma das mais conhecidas expedições para consolidar a aproximação com os índios waimiris-atroaris (dentro das iniciativas denominadas “frentes de atração”, coordenadas pela FUNAI, que substituiu o SPI – Serviço de Proteção ao Índio), foi liderada pelo padre e antropólogo italiano Giovanni Calleri. Onze pessoas fizeram parte de referida expedição, sendo que dez membros da expedição foram mortos pelos waimiris-atroaris, sem nenhuma chance de defesa. O único sobrevivente foi o mateiro Álvaro Paulo da Silva, conhecido como Paulo Mineiro.
Calleri foi alertado por Paulo Mineiro que em função do comportamento rude e teimoso com que estava lidando com os índios havia uma ameaça à vida dos membros da expedição. Apesar do aviso e da insistência do citado mateiro, Calleri não lhe deu a devida importância. Então, Paulo Mineiro decidiu abandonar a expedição para salvar a sua vida. No dia em que Paulo Mineiro fugiu, todos os demais membros da expedição foram mortos pelos índios, alguns enquanto dormiam. Segundo relato de Paulo Mineiro, ele foi perseguido pelos waimiris-atroaris ao longo de alguns dias. Somente logrou sobreviver por causa da sua inegável experiência e competência em lidar com a realidade da selva. O sobrevivente Paulo Mineiro, no período em que estive comandando a construção do trecho da estrada pertinente ao Destacamento Norte, foi um dos mateiros com os quais eu contava. Tive a oportunidade única de ouvir dele mesmo, detalhes do ocorrido na Expedição Padre Calleri. Lamentavelmente, após a minha saída, ele faleceu em decorrência de um acidente, quando prestava serviços de manutenção da estrada. Com ele se foi a memória dos detalhes do ocorrido no massacre dos membros da expedição.
Durante a construção da BR 174 há evidências objetivas de 23 (vinte e três) mortes de colaboradores, sendo que 15 (quinze) delas foram decorrentes de ataques de emboscada pelos waimiris-atroaris. Na área de responsabilidade do Destacamento Norte nunca revidamos, molestamos, ferimos ou matamos um índio. Nossos contatos com índios e informações sobre eles eram sempre através da FUNAI. Nosso lema era o mesmo de Rondon: “morrer, se preciso for, matar, nunca”. Nós é que estávamos cortando as terras que eles consideravam ser deles. A atuação da FUNAI ocorria apenas de forma pacífica, sem violência.
Outras iniciativas geradas pelas “frentes de atração”, coordenadas pela FUNAI e seus sertanistas, tiveram sucesso, embora relativo, pois os waimiris-atroaris tinham comportamento notoriamente ambíguo (momentos de aparente receptividade e outros com doses de agressividade). Tal variação de conduta dos waimiris-atroaris provavelmente foi consequência dos contatos e conflitos (segundo pesquisadores, desde 1856), com os invasores já citados no início deste texto.
A construção da BR 174, iniciada em 1970, marcou a efetiva presença do Exército Brasileiro numa área com histórico de conflitos, num ambiente hostil não gerado nem fomentado pelos militares. Tal cenário de atritos, com aproximações e tentativas de aproximação, por décadas, gerou sequelas para todos. As sequelas ocorreram, tanto no lado dos índios quanto no lado de civis e militares, pelas mais diversas razões (conflitos físicos, mortes, doenças como gripe, malária e outras decorrentes da presença de estranhos no bioma natural da região). Presenciei, numa das chegadas de um grupo de waimiris-atroaris no posto da FUNAI na área do Destacamento Norte, em 1976, que vários índios estavam com sarna, que pegaram de seus cachorros. É importante destacar que epidemias oriundas de contatos dos índios com invasores de seu território já eram conhecidas há muito tempo. Por exemplo, há registros de que em 1926 dezenas de waimiris-atroaris morreram por causa de uma epidemia de gripe.
Apesar das conhecidas quinze perdas humanas causadas pelos waimiris-atroaris ao longo da construção da BR 174, reitero que nenhum ataque aos índios nem qualquer morte de um índio ocorreu por ação do Destacamento Norte do 6º. B E Const, Unidade que comandei com muito entusiasmo e energia.
O Exército matou índios durante a construção da BR 174?
É uma pergunta que precisa ser respondida por quem viveu a situação ou por quem analisa informações confiáveis, de forma isenta, e não por pessoas que teorizam sobre a questão. Com a autoridade de quem comandou o Destacamento Norte do 6º. B E Const nos anos 1976 e 1977 (portanto, nos dois últimos anos de construção da BR 174) reafirmo que nenhum índio foi morto por ação militar, em toda a área que cobrimos. As mentiras em contraponto ao que afirmo são revoltantes, disseminadas por meios de comunicação viciados, por pessoas desinformadas ou ideologicamente fanatizadas, considerando apenas as versões que lhes convêm. Na enorme área que abrangeu minha participação na condução das atividades do Destacamento Norte eu asseguro que tratamos os índios de maneira respeitosa, mesmo após termos sido agredidos. Antes de ocuparmos a Amazônia os índios já estavam na terra que chamamos Brasil.
Na área e no período em que estive na liderança da construção da estrada, até a sua conclusão, e dou meu testemunho de que a atuação do Exército foi digna, competente, honesta e altamente profissional. Orgulho-me deste período da minha vida. Vi subordinados adoecerem, alguns morrerem, outros superarem extremas dificuldades, tudo para o bem do Brasil e dentro dos princípios éticos, de cidadania, de patriotismo, de respeito ao próximo, de disciplina, que caracterizam a formação de qualquer militar. Eu também passei por momentos delicados, de grandes riscos e graças a Deus os superei. Trabalhamos vinte e quatro horas por dia, durante todos os anos da construção, equipes de dia e de noite, sem parar. Paradas apenas no período das chuvas torrenciais, que aproveitávamos para manutenção dos equipamentos, capacitação do pessoal e planejamentos. Nenhuma hora-extra ganhamos ou reivindicamos ao longo do nosso trabalho. O que ganhamos, dinheiro não compra.
A conclusão da BR 174 ocorreu em 06 de abril de 1977, dia do histórico e inesquecível encontro entre as frentes Sul (Destacamento Sul, responsável pela construção no sentido Manaus – Boa Vista) e Norte (Destacamento Norte, responsável pela construção no sentido Boa Vista – Manaus) do 6º. B E Const. Eu estava presente no local (Km 356,4) deste encontro e não é possível transformar em palavras a sensação, o orgulho da missão cumprida, o sentimento de ter concluído um esforço de muitos anos, conquista de muitas pessoas.
O resultado prático da construção da BR 174 nos leva aos seguintes fatos:
Ø Índios morreram, mas não por causa ou ação direta de militares do Exército Brasileiro. Pelo menos na área em que eu atuava isso nunca aconteceu;
Ø Dos 23 (vinte e três) mortos da equipe de construção, 15 (quinze) foram mortos de maneira covarde (emboscada) pelos waimiris-atroaris;
Ø A integração por rodovia com o resto do Brasil e o desenvolvimento de Roraima, tornaram-se realidade;
Ø A magnitude da obra e a capacidade de superação técnica e física dos obstáculos enfrentados com sucesso, é motivo de orgulho para o Brasil, para o Exército Brasileiro como um todo e, particularmente, para a sua Engenharia e logística (Intendência).
O momento atual pelo qual passa nosso país, também merece algumas considerações:
Ø Durante o período em que membros do Exército Brasileiro lideraram os rumos do Brasil, muito foi realizado, bastando buscar os registros do período, sendo que o principal objetivo (evitar que comunistas pró-Cuba e União Soviética destruíssem o Brasil) foi alcançado;
Ø Quando os militares tinham o poder de decisão em suas mãos, democraticamente, nunca se aproveitaram para elevar salários ou gerar benesses próprias. Os salários dos militares sempre foram baixos comparativamente com outros segmentos. Nenhum poderoso militar enriqueceu às custas do dinheiro do povo;
Ø De 1984 até o presente momento, os militares continuaram com baixos salários, sofreram grandes quedas em seus orçamentos e ainda passaram a ser tratados com desrespeito pelos ocupantes do poder;
Ø Está sendo alimentado pelos poderosos do momento, a maioria oriunda de grupos ideológicos ultrapassados, simpáticos a movimentos antidemocráticos e buscando interesses materiais próprios, um preconceito contra os militares e até retaliações;
Ø O povo brasileiro tem orgulho de suas Forças Armadas e boa parte sonha para que assumam novamente as rédeas da nação;
Ø Mentiras são espalhadas, sistematicamente, para desmerecer o comportamento e os feitos do Exército Brasileiro (seminários, jornais, filmes, novelas, programas de entrevistas etc) quase como um mantra, uma orquestração;
Ø Certas análises de valor e de versões dos fatos deixam de levar em conta o cenário, o contexto no período de construção da BR 174, gerando conclusões distorcidas da realidade;
Ø Testemunhos e informações coletadas são analisados e levados em conta desde que sirvam de justificativas para o demérito do Exército Brasileiro e do Governo daquela época.
O exposto neste texto tem por objetivo trazer uma parte da verdade à tona, tendo como foco a BR 174, particularmente quanto à atuação do Destacamento Norte do 6º. B E Const, no período de 1976 e 1977, neste momento em que se divulgam inverdades, mentiras deslavadas, da tal “verdade alternativa”, das meias-verdades, do cinismo, da hipocrisia, de distorções e manipulações de dados e informações, visando interesses sórdidos de pessoas e grupos que assaltam a nação sem nenhuma piedade com seu povo, tão deseducado para entender o quanto é manobrado, o quanto é incapaz de separar o joio do trigo.
Espero que um dia uma verdadeira “Comissão da Verdade” exponha para a nação o fiel retrato do que ocorreu e do que está ocorrendo.
Rio de Janeiro – RJ, 23 de outubro de 2017
Telmo Travassos de Azambuja
Ø Capitão da Arma de Engenharia, da reserva não remunerada, graduado na AMAN em 1969.
.Guerreiro de Selva, No. GS 0418.
Ø Pós-graduado na EsAO – Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, em 1978.
Ø Engenheiro civil, graduado pela Universidade Católica de Pernambuco, em 1975.
Ø Pós-graduação, nível especialização, em engenharia de transportes pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1975.
Ø Cursos e estágios para especialização em gestão da qualidade no Japão, França, Espanha e Reino Unido.
Ø Supervisor Técnico Independente Nível III na área de engenharia civil e auditor líder na área de gestão da qualidade pelo Instituto Brasileiro da Qualidade Nuclear, de 1980 a 1988, com atuação na construção das usinas nucleares de Angra 1, 2 e 3 e na construção do submarino nuclear da Marinha do Brasil.
Ø Auditor líder de sistemas de gestão da qualidade, gestão ambiental, gestão da responsabilidade social e gestão da saúde e segurança do trabalho, reconhecido no Brasil e no exterior.
Ø Auditor ambiental reconhecido pela EARA (The Environmental Auditors Registration Association), do Reino Unido
Ø Auditor líder de sistemas de gestão da qualidade, reconhecido pelo RAC (Registro de auditores Certificados), no Brasil, e no Reino Unido pelo IRCA ( International Register of Certificated Auditors) e pela Batalas.
Ø Membro do “International Who’s Who of Professionals” (EUA), em 1997.
Ø Membro Fellow (mais alto nível possível) do “The Institute of Quality assurance”, do Reino Unido
Ø Membro da ASQ (American Society for Quality), dos EUA.
Ø Membro do Comitê de Coordenação do PEGQ (Projeto de Especialização em Gestão da qualidade), liderado pelo Ministério de Indústria e Comércio do Brasil, na década de 80.
Ø Consultor para implantação de um novo modelo de gestão para a CNI (Confederação Nacional da Indústria).
Ø Coordenador do projeto de implantação do Centro de Gestão do Conhecimento no Ministério de Relações Exteriores do Brasil, envolvendo todas as embaixadas brasileiras, com implementação inicial em Berlim, Londres e Madri.
Ø Consultor membro de equipe de especialistas do Banco Mundial para implantação do Programa de Qualidade e Produtividade de El Salvador (América Central), junto à Comissão Presidencial do referido país.
Ø Consultor para implantação dos Programas de Qualidade e Produtividade da Argentina e do México.
Ø Consultoria (representando a ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas) para o Governo de Moçambique (África), objetivando a implantação de um sistema para certificação de produtos e de sistemas de gestão no país, com apoio do Banco Mundial.
Ø Coordenador do projeto de modernização da gestão da empresa estatal MATAV (Companhia de Telecomunicações da Hungria), objetivando adaptação da gestão da empresa, até então sob o modelo comunista, para atuação no regime capitalista, recém implantado naquele país.
Ø Consultor, auditor e verificador de inventários e de mitigação de emissões de gases de efeito estufa, reconhecido pela ABNT (Brasil) e ANSI (EUA).
Ø Consultor e palestrante, na área de gestão, para uma centena de empresas no Brasil e no Exterior, tais como: Serpro, Grupo Gerdau, Votorantim, Merck, Rhodia, Norton, Anglo American, Sebrae Nacional, CNI, Senai, Ford, Mercedes-Benz, Petrobras, Açominas, Eletronorte, Usiminas, Tribunal de Justiça do RJ, Tribunal Regional do Trabalho de Goiânia, INMETRO, YPF, PDVSA, PEMEX, BVQI…
Ø Instrutor líder de aproximadamente 320 cursos para formação de auditores líderes de sistemas de gestão da qualidade ISO 9001, tendo formado cerca de 3.500 alunos no Brasil e no Exterior. Curso reconhecido pelo INMETRO (Brasil), pelo RAC (Brasil), pelo IRCA (Reino Unido) e pelo RAB (EUA).
Ø Autor de livros sobre gestão, tendo sido indicado pela Editora Campus ao Prêmio Jabuti, período 1996/1997.
Ø Professor em cursos de pós-graduação na área de gestão.
Ø Avaliador independente quanto ao atendimento por empresas de construção civil, dos requisitos do PBQP-H (Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade do Habitat), coordenado pela Secretaria Nacional de habitação, do Ministério das Cidades.
Ø Diretor de responsabilidade social da ONG Novamosanta, sediada em Petrópolis – RJ.
Ø Presidente do Itaipava Country Club, de 2015 a 2017.
Membro da Turma Jubileu de Prata (1969), da AMAN.
Este artigo foi publicado em Friday, 27/10/2017 e está arquivado dentro de Segurança Nacional. Você pode passar para o fim e deixar um comentário.
Obs.:
Sobre o assunto, veja em História Oral do Exército - 31 de Março de 1964:
ÍNDIOS
MASSACRAM PESSOAL DA FUNAI DURANTE A CONSTRUÇÃO DA RODOVIA BR-174 (MANAUS-BOA
VISTA)
“Comandei o 2º. Grupamento
de Engenharia de Construção, na Amazônia, durante quatro anos. Uma das missões
dos Batalhões do Grupamento era a construção da Rodovia Manaus-Boa Vista –
fronteira com a Venezuela. Era a BR-174.
Quando assumi aquele
Comando, em junho de 1974, essa estrada possuía duas frentes de serviço. Por se
desenvolver no sentido norte-sul e cortar a Linha do Equador, o regime de
chuvas era diferente em cada extremidade da rodovia. Em vista disso, conforme a
estação chuvosa, trocávamos os elementos do sul para o norte e vice-versa. Encontrei
o Batalhão com sua frente de serviço no Rio Abonari, que era a divisa de uma
reserva indígena de duas tribos muito agressivas.
Na base localizada junto ao
rio, ao lado sul, fora da reserva, havia o acampamento da companhia de
engenharia que implantava aquele trecho da estrada. Ao norte do rio, dentro da
reserva indígena, localizava-se o acampamento da Fundação Nacional do Índio
(Funai), que fazia as ligações com os índios – porque o Exército, quando fez o
convênio com o Ministério dos Transportes, para a construção desse rodovia,
exigiu que todo o contato com os índios fosse feito pela Funai.
Antes desse convênio, houve
uma missão da Funai, organizada com a finalidade de fazer contatos preliminares
com os índios, para explicar-lhes que iria ser construída aquela estrada. A
essa missão foi incorporado um padre, que se chamava João Calleri. Pois bem, os
índios pegaram essa expedição composta de 11 pessoas e mataram 10, inclusive o
Padre Calleri, tendo escapado um mineiro funcionário da Fundação. Foi o primeiro
ataque. Quando fizemos a ponte sobre o Rio Abonari, denominei-a Ponte Padre
Calleri.
Havia duas tribos naquela
reserva: a tribo dos atroari e a dos waimiri. O delegado da Funai, na Amazônia,
considerava que os atroari eram agressivos e os waimiri, não. Estes eram seus
amigos, frequentavam sua casa em Manaus, onde o cacique Maruaga se hospedava,
quando ia tratar-se na Cidade. O delegado ficava na maloca dos índios, também.
Como afirmei, assumi o Comando do Grupamento em junho de 1974.
No mês de outubro, os índios
chegaram ao acampamento da Funai e combinaram que no dia seguinte um grupo
sairia para caçar e outro iria para a roça – a Funai tinha uma roça para
ensinar os índios a plantar. Quando amanheceu o dia, o grupo que ficou para
plantar atacou e matou todos os que estavam no acampamento, menos um que
escapou, e os que foram caçar atacaram os funcionários da Fundação que o
acompanhavam e mataram todos. Foi o segundo ataque.
No mês seguinte, reuni o
pessoal e fiz várias determinações, entre as quais que ninguém poderia
trabalhar em grupo com menos de 15 homens. Mas tinha um empreiteiro – era até
um cearense – que trabalhava abrindo picadas na mata e bem à frente do serviço.
Disse-me que os índios eram seus amigos, que tratava deles fornecendo-lhes remédios
e comida, que tinha toda confiança neles. Ainda lembrei ao André – era esse o
nome do empreiteiro – que havia proibido grupos com menos de 15 homens. Ele
saiu dali e mandou uma turma de quatro homens a 20 km adiante do nosso
acampamento. O grupo foi atacado pelos índios. Três morreram e um escapou com
uma flecha atravessada no peito. Foi o terceiro ataque.
No quarto ataque, os índios
mataram todos os homens da Funai, no acampamento, inclusive o delegado da
Fundação na Amazônia, o Gilberto Pinto – muito amigo nosso – do qual tenho
ainda uma fotografia com uma flecha
atravessada no tronco. Mataram todos, escapou somente um. Por coincidência, em
todos os quatro ataques, sempre escapou um. O povo dizia que era para contar a
história, mas acho que não, pois esse camarada só escapou porque se atirou no
rio e saiu mergulhando.
Em todos esses episódios,
foram atacados, exclusivamente, o pessoal da Funai e esse empreiteiro. Nunca
houve atrito de militares, ou mesmo civis do Grupamento, com os índios. Nos
ataques, nenhum índio foi morto ou ferido; todos os mortos foram abatidos pelos
índios. Essa é a história real.
Pasquim
manauara acusa Exército de “exterminador de índios”
Pois bem, passei o Comando
do Grupamento em 1978 e, cinco ou mais anos depois, já tendo me retirado da
Ativa do Exército, recebi uma carta de um amigo, que estava servindo em Manaus,
mandando-me um recorte de jornal daquela cidade, uma espécie de ‘Pasquim’,
imprensa marrom que só faz chantagem. O dono do jornal, o Sr. Lucena, por conta
disso, foi eleito vereador, deputado e senador, e como senador, em Brasília,
acabou dando um tiro na cabeça, justiça com as próprias mãos.
A reportagem do jornal me
acusava – a ao Exército – de ‘exterminadores de índios’, e dava conta da morte
de milhares de índios. Ora, não havia morrido nenhum índio! Redigi uma carta
detalhada a esse colega e o autorizei a falar com o Comandante do Comando
Militar da Amazônia (CMA), dizendo que estava à disposição para ser interrogado
e prestar todos os esclarecimentos necessários, se ele quisesse fazer qualquer
investigação. Eles acharam melhor arquivar aquilo, não houve providências.
Fiquei tranquilo.
A
farsa do repórter Francisco José, do Fantástico
Posteriormente, me aparece
aqui em Fortaleza, no meu apartamento, uma equipe de reportagem da Rede Globo,
do Fantástico. O repórter Francisco
José subiu ao apartamento, com sua equipe. Conversamos mais de meia hora.
Expliquei tudo, contei toda a história, que não se matou nenhum índio. O
repórter, afirmando que só queria a minha palavra, armou toda aquela
parafernália na sala do meu apartamento, leu aquele trecho da reportagem, onde
constavam as acusações contra mim e contra o Exército e pediu que eu dissesse
se aquilo era verdade ou não. Disse que era mentira, que jamais um índio fora
ferido. E relatei tudo de novo. Pois bem, quando a matéria saiu no Fantástico,
a única fala minha era essa: ‘É mentira!’ Mais nada. O repórter só queria
mostrar que eu tinha sido ouvido. Não deu direito ao público de conhecer toda a
história que lhe foi revelada, porque ele gravou mas não publicou. Ficou nisso.
A
revista Terra “mata” 200 soldados!...
Uns anos depois, recebo em
casa um número da revista Terra, que
eu assinava, trazendo uma reportagem sobre a ligação Manaus-Caribe, aquela
estrada em que trabalhei e onde aconteceu toda a história. A reportagem era
muito bonita, muito bem feita, mas copiava tudo o que a mídia já tinha dito e
ainda acrescentava que tinham morrido 200 soldados. Escrevi uma carta para a
revista, contestando aquilo tudo, contando a história verdadeira. Ora, dizer
que tinham morrido duzentos soldados! Isso era todo o efetivo da Companhia que
trabalhava lá! Então a revista publicou
uns pequenos trechos da minha carta, sem comentário, sem nenhum destaque. A
verdade continou sendo negada ao público.
Narrando esses fatos, desejo
mostrar o quanto é difícil modificar algo na mídia, principalmente quando
interessa aos repórteres atacar as Forças Armadas. Nesses três episódios, como
se vê, nada foi modificado, e lá continuamos nós, eu e o Exército, como
‘exterminadores de índios’ ” (General-de-Brigada Gentil Nogueira Paes, Tomo 12,
pg. 142-145).
Obs.:
A
respeito do assunto, leia a fake history
propalada pela imprensa:
F.
M.
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