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O governo invisível - Parte I
Quando comecei a trabalhar no jornalismo, todos ali sabíamos que o produto do nosso trabalho eram superficialidades para consumo popular.
Olavo de Carvalho
17/5/2009 - 19h53
Um dia, discutindo com oficiais de alta patente no Clube Militar do Rio de Janeiro, perguntei a um deles, homem com experiência em serviços de inteligência, se havia lido algum documento de fonte primária sobre o tópico em discussão. Não, não havia. Livros especializados? Também não. Estudos publicados em revistas acadêmicas? Também não. Relatórios de serviços de inteligência? Também não. 'Então, de onde raios você tira as suas informações?', perguntei. E ele, com a cara mais bisonha do mundo: 'Dos jornais.'
Foi nesse instante que, com um arrepio na espinha, senti a catástrofe mental brasileira em toda a sua extensão. Quando comecei a trabalhar no jornalismo, todos ali sabíamos que o produto do nosso trabalho eram superficialidades para consumo popular. Quando entrevistávamos um estudioso, esperávamos sempre que ele tivesse fontes de informação melhores que as nossas. De repente, eu me via na situação terrivelmente incongruente de conversar com um especialista que só tinha a dizer aos repórteres aquilo que eles mesmos lhe haviam contado. O País dirigido por uma classe pensante nutrida tão somente dessa ração intelectual só podia mesmo ir para o buraco.
O pior era que, no vácuo de fontes mais substanciosas, a mídia crescera em prestígio na razão inversa da sua audiência: jornais que no último dia do milênio vendiam menos que na década de 50 haviam se tornado, no ambiente de ignorância geral, os proprietários quase monopolísticos do dom da credibilidade, incumbidos de separar realidade e fantasia ante os olhos de um cândido mundo.
Sei que esse processo, nos EUA, está longe de ter alcançado a compacta densidade das trevas brasileiras. No entanto, a velocidade que ele ganhou na última eleição justifica o temor de que, em breve, as classes falantes americanas também estarão tateando no escuro, sem exigir claridade por já não imaginarem que raio de coisa é isso.
Durante a campanha, a ocupação mais intensa da mídia americana foi uma sucessão de acrobacias admiráveis destinadas a fazer de Barack Obama o homem mais visível do mundo e proibir, ao mesmo tempo, qualquer investigação séria de sua biografia. Toda tentativa, por mais tímida e modesta, de desencavar dos arquivos a certidão de nascimento, os registros médicos, o histórico escolar e quaisquer daqueles documentos que todo candidato em campanha exibe normalmente, foi unanimemente condenada pelos maiores jornais e noticiários de TV como um delituoso extremismo de direita. Transcendendo a mera autocensura, a classe jornalística em peso impôs a mordaça ao resto da sociedade.
Mas isso não é nada em comparação com o que vem acontecendo desde que a misteriosa criatura foi juramentada como presidente de superpotência. Tendo prometido uma era de transparência e sinceridade jamais vista na história, o que Obama inaugurou foi um governo secreto, não no sentido usual das ocultações conspiratórias, mas num sentido absolutamente novo e inédito: o que se oculta do público não são ações ilícitas cometidas na calada da noite – são os próprios atos oficiais do governo.
Se não houvesse internet, nem agências independentes, nem fontes primárias, nem o Freedom of Information Act, as decisões mais importantes da administração Obama nos últimos três meses teriam permanecido absolutamente confidenciais, invisíveis como um conluio de anarquistas famintos num porão miserável. Quando não foram totalmente omitidas pela grande mídia, foram noticiadas com discrição anestésica própria a torná-las ainda mais insensíveis do que poderia fazê-lo o silêncio total. Ou então foram relatadas sem o mínimo quadro comparativo capaz de elucidar seu alcance e seu significado.
Como aquilo que chega aos jornais brasileiros é um recorte diminutivo do que sai na mídia americana, a ignorância dos nossos compatriotas quanto ao que se passa nos EUA só encontra comparação nas concepções astronômicas das minhocas e protozoários.
Dizer que os brasileiros estão por fora é eufemismo. Graças aos bons préstimos da Folha, do Estadão, do Globo e outras entidades sublimes, os EUA que existem na imaginação dos nossos patrícios se parecem tanto com a realidade quanto um picolé de limão se parece com uma equação de segundo grau. Estamos no reino da heterogeneidade absoluta, irredutível à linguagem humana.
Olavo de Carvalho é ensaísta, jornalista e professor de Filosofia
***
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O governo invisível - Final
Medidas drásticas, de consequências incalculáveis, estão sendo adotadas pelo governo Obama, todas prejudiciais à nação americana, e noticiadas de tal modo que nenhuma discussão suscitem.
Olavo de Carvalho
18/5/2009 - 20h29
Os fatos que vou resumir neste artigo não só estão fora da nossa mídia – pelo menos se considerados na sua devida perspectiva –, mas fora da imaginação da nossa classe jornalística. Ao publicá-los, o Diário do Comércio cumpre sozinho a tarefa da mídia inteira:
1. Tão logo soube da morte de civis afegãos em bombardeio ocorrido em Farah, em 3 de maio, a Secretária de Estado Hillary Clinton apressou-se em pedir desculpas, puxando a responsabilidade do crime sobre o seu próprio país. No dia seguinte, revelou-se que o Taliban havia lançado granadas contra a população, de modo a culpar os americanos pelas mortes. O segundo fato foi noticiado sem referência ao primeiro, e os repórteres abstiveram-se gentilmente de perguntar à secretária de Estado se mantinha o despropositado pedido de desculpas. Foi como se estas se referissem a um episódio totalmente diferente.
2. Em 5 de abril, em visita a Praga, horas após o lançamento do míssil Taepodong-2 pela Coréia do Norte, Obama, diante de uma platéia de 20 mil tchecos, fez a promessa mais absurda, irrealizável e suicida que um presidente americano já fez: anunciou que vai acabar com o arsenal nuclear dos EUA unilateralmente. Qualquer de seus antecessores que dissesse isso seria torrado e moído pela mídia inteira e acusado de crime de traição. A enormidade obâmica foi noticiada com discrição blasée pelo Washington Post de 6 de abril.
3. Nenhum jornal ou noticiário de TV deu o menor sinal de perceber algo de ofensivo quando Hugo Chávez, na Cúpula das Américas em Trinidad-Tobago, deu a Obama um exemplar de As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, um dos livros mais virulentamente antiamericanos já publicados no planeta. Como a maioria do eleitorado americano não tem a menor idéia de quem é Galeano, tudo se passou como se o presente fosse uma amabilidade e não um tapa na cara como foi. Obama engoliu o sapo com a gentileza sorridente de quem acreditasse, como acredita, que ofensas ao seu país não o atingem. No mesmo evento e com o mesmo cavalheirismo, ouviu cinquenta minutos de pregação antiamericana do nicaragüense Daniel Ortega e voltou para casa seguro de que ninguém na mídia lhe faria nenhuma cobrança por isso, como de fato ninguém fez.
4. Pela primeira vez na história americana, um presidente promete ajuda a todos os regimes totalitários e genocidas do mundo sem lhes fazer a mais mínima exigência no que diz respeito a direitos humanos. O resultado é que, em países como o Irã ou a Coréia do Norte, Obama é amado, enquanto seu país é odiado. Embora isso fosse demonstrado por conclusivas pesquisas de opinião, ninguém na grande mídia deu sinal de perceber que o presidente está se promovendo entre povos inimigos às custas do prestígio nacional.
5. Ao revelar os memorandos secretos da CIA sobre o uso de técnicas drásticas de interrogatório, ameaçando processar o governo anterior por crimes contra os direitos humanos, a Casa Branca omitiu-se de informar que essas técnicas foram adotadas com pleno conhecimento e apoio das lideranças do próprio partido governante. Se Dick Cheney, retirado da política, não tivesse ido à televisão por sua conta para contar isso, ninguém saberia de nada, porque o 'jornalismo investigativo' da grande mídia não se interessa por essas coisas.
6. Após anunciar gastos públicos de 3,4 trilhões de dólares, que o próprio Fed confessa não saber como contabilizar, Obama teve a cara de pau de ordenar um corte de 17 bilhões de dólares, meio por cento do total, e ainda alardear, com a aparente anuência da classe jornalística, que isso inaugurava 'uma nova era de austeridade' nos gastos públicos. A desproporção passaria despercebida se não existisse mídia alternativa para mostrá-la.
7. Os cortes foram, na sua quase totalidade, efetuados sobre o orçamento da defesa – acontecimento inédito num país em guerra –, desfalcando as Forças Armadas e debilitando a polícia de fronteira num momento em que a invasão de ilegais é o maior problema de segurança dos EUA. Em compensação, verbas faraônicas têm chovido sobre as entidades que apoiaram Obama durante a campanha, especialmente a Acorn, premiada com 4 bilhões de dólares por seus serviços eleitorais, inclusive a distribuição de títulos de eleitor falsos (a liderança democrata já anunciou que não tem vontade de investigar o assunto). O caso – o mais óbvio exemplo de medida antipatriótica aliada a favorecimento ilícito que se viu nas últimas décadas – foi noticiado pela grande mídia com tal comedimento que nem as lideranças republicanas deram sinal de perceber algo de errado.
8. Na reestruturação da Chrysler e da GM, segundo os planos anunciados por Obama, o sindicato United Auto Workers assumirá o controle acionário da primeira e terá 39% das ações da segunda. Além de ter sido o principal responsável pela falência das duas empresas, o sindicato é um dos grandes contribuintes de fundos de campanha para o Partido Democrata. Como esses três fatos só aparecem separadamente, ninguém se dá conta do crime.
9. Tendo prometido acabar com a 'cultura dos earmarks' (verbas politiqueiras destinadas a agradar eleitorados locais), Obama sancionou uma lei de orçamento com mais de 9 mil earmarks – recorde que a imprensa, gentilmente, se omitiu de assinalar. Tendo prometido, ademais, que nenhuma lei seria aprovada pelo seu governo sem ficar disponível para consulta pública no site da Casa Branca por pelo menos cinco dias, Obama assinou as leis de orçamento e 'estímulo' sem expor no site o respectivo calhamaço, de mais de mil páginas. A mídia não reparou no detalhe.
10. Obama nomeou Arturo Valenzuela chefe do setor latino-americano do Departamento de Estado. Valenzuela é diretor da ONG La Raza. Seguindo o estilo entorpecente de seus modelos jornalísticos americanos, o UOL informa que La Raza é 'a principal organização de defesa de hispânicos nos Estados Unidos'. La Raza não é nada disso: é uma organização separatista, empenhada em transferir para a soberania mexicana os estados da Flórida, do Texas e da Califórnia.
Em artigos vindouros, darei mais exemplos de medidas drásticas, de consequências incalculáveis, que estão sendo adotadas pelo governo Obama, todas prejudiciais à nação americana, e noticiadas de tal modo que nenhuma discussão suscitem – isto quando não passam despercebidas, soterradas sob páginas e páginas de futilidades sobre os vestidos da sra. Obama, o cãozinho da família ou o tempero do sanduíche comido pelo presidente numa loja de fast-food, coisas que antigamente ficavam para os tablóides de fofocas, e que agora são matéria de amorosa atenção pelo Washington Post e pelo New York Times.
A América, sem sombra de dúvida, brasilianiza-se.
Olavo de Carvalho é ensaísta, jornalista e professor de Filosofia
Obs.: Transcrito em https://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=66795&cat=Ensaios&vinda=S
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