A Contra-Revolução de 1964
Gilberto Paim - Jornalista
Palestra proferida em 18 de agosto de 2009, no Conselho Técnico da CNC
Sr. Presidente: Permita-me esclarecer que a intenção desta palestra consiste em colocar em debate a perda da memória dos acontecimentos que precederam o 31 de março de 1964. Persiste o veto a qualquer referência favorável à derrubada do governo João Goulart. A circunstância de que os derrotados de 64 estejam em condições de influenciar tantos atos na área oficial (atletas cubanos expulsos do país em avião de Hugo Chavez e a defesa organizada do criminoso Cesare Battisti) é reveladora de uma pronunciada tendência para o esquerdismo. Na universidade, na imprensa, nas editoras, na publicidade, na internet e em várias áreas da vida social brasileira exalta-se a importância das “reformas de base” do governo João Goulart, cuja execução teria sido impedida pelo golpe de Estado. Tais reformas entram na história como uma grande fraude.
Passo ao texto da palestra, intitulada A Contra-Revolução de 64.
Inicio citando, textualmente, uma bravata brizolista:
“O Grupo dos Onze representa a vanguarda avançada do Movimento Revolucionário, a exemplo da Guarda Vermelha da Revolução Socialista de 1917 na União Soviética”, proclamou Leonel Brizola, em outubro de 1963, ao criar essa organização revolucionária.
Da população total hoje existente, cento e dez milhões de brasileiros não respiraram a atmosfera dos anos que precederam o movimento de 31 de março de 1964, quando foi derrubado o presidente João Goulart. Para essa grande massa de patrícios o acontecimento histórico, um divisor de águas, há de parecer remoto ou inexistente. Não será difícil aos formadores de opinião, esquerdistas, anticapitalistas e antiamericanos desenvolver esforços para convencer os desprevenidos de que essa data serve apenas de referência a uma quartelada.
A derrubada do presidente Goulart e de seu grupo de agitadores políticos ofereceu à sociedade a oportunidade de uma descontração, de um alívio profundo, que só pôde ser avaliado pelos que viveram aqueles anos tumultuosos. Na área política, predominavam tensões crescentes. Em todas as regiões metropolitanas as greves, distúrbios, arruaças e tumultos faziam parte da vida cotidiana, perturbando a tranqüilidade pública de modo incessante. À medida que avançava o ano de 1963, intensificava-se a fuga de capitais. Na onda de desespero, muitos vendiam suas propriedades a qualquer preço, pois a escalada de teor esquerdista, fomentada pela Presidência da República, conduzia à crença de que parecia fatal a instauração de um governo comunista. Luiz Carlos Prestes dizia que os comunistas estavam no governo, mas ainda não no poder.
Como os derrotados ganharam o prêmio de uma aplicação de alto rendimento, recebido sob a forma de bilhões de reais em indenizações, a ascensão do esquerdismo político, nos últimos decênios, criou condições em que se tornou fácil denegrir a contra-revolução de 64, como se tivesse sido um golpe de Estado de estilo latino-americano. Mais de cem milhões de brasileiros ignoram que a Nação esteve à beira de uma revolução comunista, à moda de Cuba. Essa grande massa de patrícios não se cansa de ouvir elogios ao governo João Goulart, “impedido pelo golpe” de executar o seu projeto de reformas de base, que era uma palavra de ordem inteiramente vazia. Tudo o que se imaginava como reforma era contra o desenvolvimento sócio-econômico. Propunha-se, por exemplo, que o capital estrangeiro ficasse proibido de operar em energia elétrica, frigoríficos, indústria farmacêutica, refinação de petróleo, telefonia e outros setores. Medida dessa natureza deixaria a economia nacional à margem da comunidade financeira internacional e a colocaria no campo soviético. O Brasil viria a ser mais um satélite de Moscou. Aberração maior foi o decreto do presidente Goulart desapropriando terras, vinte quilômetros ao longo de rodovias, ferrovias, açudes e rios navegáveis, uma pré-condição das fazendas coletivas. Entre as palavras de ordem do esquerdismo ganhava destaque a que propunha que o proprietário de duas casas ou dois apartamentos deveria ceder um aos sem teto. Providências insensatas eram anunciadas quase diariamente, nos últimos meses do governo Goulart, inclusive o aluguel de casas e apartamentos fixado pelo governo e o preço uniforme dos remédios em todas as farmácias. O carro-chefe era um amplo programa de estatização. A parte política das reformas abrangia o direito de voto para analfabetos, sargentos e patentes inferiores, origem de estremecimento nas Forças Armadas.
A imprensa refletia o clima de desordem. O matutino Correio da Manhã, jornal de grande prestígio na época, proclamava no dia 31 de março: “Basta!” e no dia seguinte declarava “Fora” ao governo João Goulart, que havia perdido a confiança dos representantes da sociedade organizada. Na verdade, o presidente se tornara joguete das forças radicais de esquerda, as quais se empenharam em fomentar um desafio constante às Forças Armadas, alimentando ilusão num suposto “Dispositivo” do general Assis Brasil, chefe da Casa Militar e secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional. Posteriormente, o general declarou: “O dispositivo militar, que dizem que eu montei, nunca existiu”. Propagava-se a informação de que o general comandava a parte “progressista” do Exército, a qual seria capaz de neutralizar as Forças Armadas e de facilitar a tomada do poder pelos extremistas de esquerda. Não demoraram os fatos para provar, de forma categórica, que as forças sob o comando de Jango não passavam de agitadores incapazes de enfrentar um simples embate. O famoso “dispositivo” era pura invenção.
Em certo momento, houve uma aparente disputa entre Jango e seu cunhado Brizola para ver qual dos dois estava mais à esquerda. As agitações de operários, estudantes e lideres de trabalhadores rurais deixaram o presidente da República convencido de que as forças de esquerda podiam lhe assegurar a vitória final, no confronto com os adversários liberais e conservadores.
Demonstrando visível prudência, o governador Magalhães Pinto advertia: “Dois grandes males põem em risco a paz e a liberdade de nossa pátria na conjuntura atual. São eles a inflação financeira e o radicalismo político. O medo de perder gera a mesma fúria agressiva que a cobiça de ganhar. Em breve, se não houver possibilidade de uma solução equilibrada, o destino da maioria dos brasileiros estará à mercê dos grupos extremistas minoritários que se atiram à ação direta, para a resolução ou para o golpe de Estado”.
Os fatos se encarregaram de provar que esse receio tinha sério fundamento. Em março de 1963, uma passeata de militares, em São Paulo, demonstrava a escalda do esquerdismo. Consistia o objetivo do movimento na posse de alguns sargentos eleitos no pleito de 3 de outubro de 1962. Militares da Aeronáutica e da Força Pública compareceram fardados à passeata, a qual foi seguida de solenidade, na qual sentaram-se à mesa diretora os comunistas Geraldo Rodrigues dos Santos, Mario Schemberg, Luiz Tenõrio de Lima, Oswaldo Lourenço e o general reformado Gonzaga Leite, um dos organizadores do Congresso Continental de Solidariedade a Cuba.
As manifestações realizadas em defesa dos militares de baixa patente, cujas reivindicações repercutiam em todo o país, ganharam ímpeto quando o sargento-deputado Garcia Filho afirmou, em Fortaleza, que, se não houvesse uma decisão favorável à posse dos sargentos eleitos, a Justiça Eleitoral seria “fechada”. Garcia pregou o enforcamento dos responsáveis pela tirania dos poderes econômicos e rotulou a instituição militar denazista.
Entre os acontecimentos que tornaram denso o clima político, no ano de 1963, não se pode subestimar o efeito causado pelas comemorações do aniversário do general Osvino Ferreira Alves, comandante do III Exército, em Porto Alegre, onde cerca de oitocentos subtenentes e sargentos se reuniram, em julho, para homenageá-lo. O ato teve significação particular. O general se distinguira como um dos ardorosos defensores da restauração do presidencialismo, contra o parlamentarismo, vigente no ano de 1962, um fator restritivo à ação do presidente Goulart. Osvino representava um dos esteios do janguismo.
Em setembro de 63, Brasília se tornou palco de um fato político de gravidade, quando sargentos da Marinha e da Força Aérea, sob o comando do sargento da FAB Antonio Prestes de Paula, se apossaram do Ministério da Marinha, da Base Aérea, da Área Alfa (da Companhia de Fuzileiros Navais), do Aeroporto Civil, da Estação Rodoviária e da Rádio Nacional. Os revoltosos prenderam um ministro do Supremo Tribunal Federal e o presidente da Câmara Federal. Durante a tarde, o movimento estava dominado com a prisão dos rebelados. Carros blindados do Exército ocuparam pontos estratégicos de Brasília e se dirigiram ao Ministério da Marinha, onde os rebeldes se entregaram. Alguns marinheiros sairam feridos. Houve dois mortos, o soldado fuzileiro Divino Dias dos Anjos, rebelde, e o motorista civil Francisco Moraes.
A imprensa denunciava como insuportável a agitação social que descambava para um estado de desordem, o qual interessava, visivelmente, à Presidência da República, como exigência da implantação das “reformas de base”. A denuncia da agitação era a tônica dos editoriais dos Diários Associados, do Estado de S. Paulo, do Jornal do Brasil, da Tribuna da Imprensa e do Globo. Empresários e intelectuais se reuniam em associações civis para advertir a sociedade dos perigos que se avolumavam e combater a infiltração comunista, que pregava a revolução social e a estatização da economia. Estava em plena atividade o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais – IPES, ao lado do Instituto Brasileiro de Ação Democrática – IBAD, o qual se empenhava no combate aberto à infiltração comunista. A CAMDE reunia as esposas de militares, funcionários públicos e dirigentes sindicais contra a desordem. Foi também criado o Movimento Sindical Democrático, para atuar no campo. Era muito ativo em Pernambuco o Serviço de Orientação Rural.
Em oposição ao movimento democrático, eram numerosas as entidades que compunham a frente de agitação esquerdista, inclusive o Comando Geral dos Trabalhadores, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, o Comando dos Trabalhadores Intelectuais e a Frente Parlamentar Nacionalista. Ao mesmo tempo desenvolviam intensa atividade a União Nacional de Estudantes, cujo Centro Popular de Cultura agia em todo país; O Movimento de Educação de Base, a Ação Popular e o próprio Ministério da Educação, por intermédio da Comissão de Cultura Popular, que influía na conduta das Secretarias de Educação dos Estados.
Ganhou importância, nessa atmosfera pré-revolucionária, o documento que o general Castello Branco, chefe do Estado Maior do Exército, encaminhou ao Ministro da Guerra, salientando a necessidade de providências sobre a “ação ilegal, inclusive subversiva, do Comando Geral dos Trabalhadores, a agitação insurrecional promovida pelo Deputado Leonel Brizola, e a conexão de atividades de políticos com o motim de Brasília”. Na mesma ocasião o general se manifestou contrário ao Estado de Sítio pleiteado por João Goulart, para implantação das “reformas de base”.
O encadeamento dos fatos demonstra a marcha acelerada do esquerdismo para a tomada do poder. Assinalemos algumas datas:
5 de julho de 1961 – Durante a greve geral de 5 de julho foi criado o Comando Geral dos Trabalhadores, CGT. As lideranças sindicais criaram o Comando Geral de Greves, CGG, para coordenar o movimento grevista.
25/09/1962 – É fundada a Frente de Libertação Nacional, tendo Leonel Brizola como presidente e Mauro Borges, governador de Goiás, como secretário-geral.
Em 2 de julho de 1962, Auro de Moura Andrade é indicado para primeiro ministro e enfrenta reação das organizações sindicais que decretam greve geral contra sua posse, afetando principalmente o Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, Santos e Fortaleza.
Agosto de 1962 – Os ministros militares lançam manifesto pedindo antecipação do plebiscito sobre o fim do regime parlamentarista e a restauração do presidencialismo. O primeiro ministro Brochado da Rocha defende essa posição em discurso na Câmara
15 de outubro de 1962 – O Comando Geral dos Trabalhadores deflagra greve geral com a finalidade de exigir do Congresso a fixação da data do plebiscito. O Congresso aprova lei complementar número 2 que estabelece a realização do plebiscito em 6 de janeiro de 1963.
6 de janeiro de 1963 – Realização do plebiscito. O presidencialismo venceu por ampla margem: 9.5 milhões contra 2milhões. João Goulart é o grande vencedor.
24 de janeiro de 1963 – tomou posse o primeiro ministério presidencialista.
De 28 a 30 de março, realizou-se em Niterói, na sede do Sindicato dos Operários Navais, um Congresso Continental de Solidariedade a Cuba, com a participação de delegações latino-americanas. Luiz Carlos Prestes foi um dos oradores. Manifestou o desejo de que o Brasil fosse a primeira nação da América do Sul a seguir o exemplo de Cuba.
5 de maio de 1963 – Leonel Brizola discursa em Natal, fazendo acusações ao general Antonio Carlos Muricy, a quem chama de “gorila” e “golpista”. Seguem-se manifestações de militares apoiando o general.
12 de maio e 1963 – Sob o comando do subtenente Gelci Rodrigues Correia, mais de mil suboficiais, sargentos e cabos se reúnem no auditório antigo do IAPC, no Rio, para defender a elegibibilidade dos graduados. Gelci refere-se também à possibilidade de os graduados lançarem mão de “seus instrumentos de trabalho” (as armas) para exigir do governo federal as reformas de base.
O ministro da Guerra, Amauri Kruel, determina a detenção do subtenente Gelci por 30 dias.
15 de junho de 1963 – João Goulart muda pela quarta vez o seu ministério. Os ministros do Exército, da Aeronáutica e da Marinha são substituídos.
23 de setembro de 1963 – A Frente Parlamentar Nacionalista e a União Nacional de Estudantes defendem a elegibilidade dos sargentos e condenam declarações do general Peri Bevilacqua, que criticou a revolta dos sargentos e a solidariedade sindical a esse movimento. O general, que havia apoiado a posse de Goulart e a realização do plebiscito, atribuiu ao Comando Geral dos Trabalhadores, ao Pacto de Unidade e Acão e ao Fórum Sindical de Debates a responsabilidade pela insurreição dos sargentos, tachando a cúpula do movimento sindical de “aglomerados de malfeitores sindicais”.
4 de outubro de 1963 - Goulart envia mensagem ao Congresso solicitando a decretação de estado de sítio por trinta dias. Mas sofre derrota.
6 de outubro -Tropas do IV Exército, por ordem do seu comandante, o general Justino Alves Bastos, ocupam Recife para conter trinta mil manifestantes camponeses nas proximidades do palácio do governo estadual. O governador Miguel Arrais apóia a manifestação.
Outubro de 1963 – Brizola organiza o “Grupo dos Onze Companheiros”. Seu objetivo era tomar o poder pela luta armada. Segundo Brizola, o G-11 seria a “vanguarda avançada do Movimento Revolucionário, a exemplo da Guarda Vermelha da Revolução Socialista de 1917 na União Soviética”. Brizola chegou a lançar um boletim, intitulado “O Panfleto”, cujo objetivo era literalmente fomentar distúrbios.
A Nação estava na expectativa de uma grande concentração popular anunciada pelas lideranças de esquerda para o dia 13 de março de 64. Prepararam o grande ato o Comando Geral dos Trabalhadores, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, o Comando dos Trabalhadores Intelectuais, a União Nacional de Estudantes, a Frente Parlamentar Nacionalista e conhecidos dirigentes de esquerda. Nos comunicados à opinião pública, declararam essas organizações que o objetivo era demonstrar a exigência das reformas, as quais deveriam entrar em vigor ainda no ano de 64. Outro objetivo era a defesa das liberdades democráticas e sindicais, exigindo-se a extensão do direito de voto aos soldados, marinheiros e cabos, assim como a elegibilidade para todos os eleitores e a necessidade de imediata anistia a todos os civis e militares indiciados e processados por crimes políticos e pelo exercício de atividades sindicais.
Era grande a efervescência no momento em que se realizava o comício de 13 de março de 64, na Praça da República, vizinhanças do Quartel-General do Exército e da Central do Brasil. Nessa concentração, a que compareceram Goulart e sua esposa, Maria Teresa, ao lado de vários ministros de seu governo, deputados e líderes sindicais. Ficou demonstrado que o presidente não era o ponto de equilíbrio, lembrado por Magalhães Pinto, capaz de evitar a destruição das instituições democráticas. Animado pelos aplausos da multidão, Goulart decreta a encampação das refinarias de petróleo privadas e autoriza a expropriação de terras, vinte quilômetros à beira de rodovias, ferrovias, rios navegáveis e açudes.
O matutino Estado de S. Paulo, no dia 14 de março, um dia depois do grande comício da Central do Brasil, em que o presidente Goulart fez pronunciamentos tipicamente de esquerda, escreveu: “Depois do que se passou naquela praça, após a leitura dos decretos presidenciais que violam a lei, não tem mais sentido falar-se em legalidade democrática, como coisa existente”.
A agitação no comício foi o sinal de que as forças de esquerda marchavam para a tomada do poder. Essa concentração não foi um ato isolado, Comícios semelhantes foram à mesma hora realizados em Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte e São Paulo, para veiculação de orações de teor sindical-esquerdista. No Rio, participavam da comissão organizadora do comício o radical Oswaldo Pacheco da Silva, presidente da Federação Nacional dos Estivadores e representante do Comando Geral dos Trabalhadores e do Pacto de Unidade e Ação; o deputado comunista Hércules Corrêa dos Reis, secretário da Comissão Permanente das Organizações Sindicais, e o deputado José Talarico, secretário do PTB na Guanabara e assessor de Goulart nas atividades sindicais.
No dia 19 de março, mulheres paulistas lideraram a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, um movimento que envolveu centenas de milhares de pessoas, traduzindo a inquietação generalizada dos brasileiros. No dia seguinte, O GLOBO comentou: “Sirva o acontecimento para mostrar aos que pensam em desviar o Brasil de seu caminho normal, apresentando-lhe soluções contrárias ao ideal democrático e ensejando a tomada do poder pelos comunistas, que o povo brasileiro jamais concordará em perder a liberdade, nem assistirá de braços cruzados ao sacrifício das instituições”.
O grevismo era o principal instrumento de agitação política. Na área de Santos, o ano de 1963 registrou em média de 3 a 4 greves por mês. Houve durante o ano duas greves gerais. Junho e agosto viveram os meses mais agitados, numa sucessão de paralisações de trabalhadores do Porto, de hospitais, funcionários públicos e até de juízes de futebol. O clima era de greve onde quer quehouvesse trabalho sindicalizado. Houve momentos em que se tornou necessária a presença de tropas federais para assegurar a ordem na faixa portuária e na área da refinaria de petróleo e do oleoduto.
As greves gerais foram decretadas pelo Fórum Sindical de Debates, que contava com o apoio de quarenta sindicatos e associações de trabalhadores. Durante todo o ano de 1963 e primeiros meses de 1964, a baixada santista viveu momentos de grande tensão, causada pelo grevismo e as agitações de rua. Qualquer pretexto servia para se proclamar uma greve. No dia 24 de fevereiro de 1964, foi declarada greve que parou totalmente o porto de Santos depois de um incidente entre um vigilante das Docas e um delegado da Polícia Marítima.
Maior e mais intensa foi a inquietação social causada pelo grevismo no Estado da Guanabara, onde, nos anos de 1962 a 1964, foram declaradas 176 greves, abrangendo em grande parte empresas privadas, mas também as governamentais, que eram mais tolerantes com o paredismo. Na capital da República, fonte de informação disseminada a todo o país, a população carioca e da periferia esteve dominada por tensão generalizada e viveu mais de perto a ameaça da implantação do regime comunista. Em 1963 houve setenta e seis greves no Rio e 38 nos primeiros meses de 64, segundo o pesquisador Marcelo Badaró Matos, in Revista Brasileira de História, Vol. 24/2004, S. Paulo. Segundo esse autor, as greves por aumentos salariais estavam sempre impregnadas de motivação política. Greves e mais greves se sucediam. Bancos, escolas, hospitais, serviços públicos, transportes, tudo estava sujeito a paralisação. Os habitantes da metrópole eram quase diariamente vítimas de greves que perturbavam a vida da cidade.
O Rio viveu os momentos mais intensos da desordem. No dia 25 de março de 64, houve o motim dos marinheiros, precedido de uma assembléia de mais de dois mil militares de baixa patente, realizada no Sindicato dos Metalúrgicos. Esse numeroso grupo, onde predominavam marinheiros e taifeiros, exigia melhores condições de existência, extensivas aos militares de outras Armas, e declaravam apoio às “reformas de base”, anunciadas por João Goulart. Exigia, também, a suspensão de medidas disciplinares impostas aos diretores da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, entidade que funcionava à revelia do regulamento da Marinha. O então ministro da Marinha, almirante Silvio Mota, ordenou que fossem presos os líderes dos amotinados, enviando destacamento dos fuzileiros navais, sob o comando do almirante Candido Aragão. No entanto, ocorreu a adesão dessa tropa aos amotinados. O presidente Goulart expediu ordens, no dia 26, proibindo a invasão da sede do Sindicato onde se realizava a assembleia. Coube ao ministro do Trabalho negociar com os marinheiros a desocupação pacífica do edifício.
Logo em seguida, uma tropa prendeu os líderes dos amotinados, porém João Goulart lhes concedeu imediato perdão, o que exaltou o ânimo da oficialidade. O ministro Silvio Mota, que ordenara a prisão dos dirigentes da associação, foi demitido e substituído pelo almirante Paulo Mário da Cunha Rodrigues. A resposta do almirantado foi hostil ao governo. No Clube Naval, um grupo de almirantes hasteou a bandeira nacional a meio pau. O Clube Militar se solidarizou. A decisão do novo ministro, que concedeu anistia aos rebeldes marinheiros, provocou a coesão militar contra João Goulart. Vinte almirantes subscreveram uma nota de protesto, em que afirmavam: “O grave acontecimento que ora envolve a Marinha, ferindo-a na sua estrutura, abalando a disciplina, não pode ser situado apenas no setor naval. É um acontecimento de repercussão nas Forças Armadas e a ele o Exército e a Aeronáutica não podem ficar indiferentes”.
A Folha de São Paulo, de 27 de março, indagava: “Até quando as forças responsáveis deste país, as que encarnam os ideais e os princípios da democracia, assistirão passivamente ao sistemático, obstinado e agora já claramente declarado empenho capitaneado pelo presidente de República de destruir as instituições democráticas?”
Pouco depois, no dia 30 de março, véspera da derrubada do governo, estava marcada, no Rio de Janeiro, uma reunião de sargentos das três Forças, mais os da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, a ser realizada no Automovel Clube. Diante da notícia, o Comando do Primeiro Exército ordenou que suas unidades retivesse dentro dos quartéis os sargentos, o que impediu a presença destes na reunião. Para presidi-la foi convidado o presidente da República. Tancredo Neves, político experiente, aconselhou-o a não comparecer. O deputado Tenório Cavalcanti, um ativista das esquerdas, recomendou a Jango que não saísse do Palácio das Laranjeiras. Tudo inútil. Acompanhado do general Assis Brasil, responsável pelo esquema de segurança, o presidente se dirigiu ao Automóvel Clube, onde foi festivamente recebido pelos sargentos.
O clima, nessa noite, o induziu a deixar de lado o discurso escrito, para falar de improviso, ressaltando a importância do sargento como elemento de ligação entre as Forças Armadas e o povo. Estavam presentes o almirante Aragão e o “cabo” Anselmo que pronunciaram discursos inflamados e foram aplaudidos com entusiasmo.
Comentando o fato, escreveu o Jornal do Brasil, em 31 de março: “Pois não pode mais ter amparo legal quem, no exercício da Presidência da República, violando o Código Penal Militar, comparece a uma reunião de sargentos para pronunciar discurso altamente demagógico e de incitamento à divisão das Forças Armadas”.
Horas depois da reunião no Automóvel Clube, iniciaram o avanço em direção o Rio de Janeiro as tropas de Minas, sob o comando dos generais Mourão e Guedes. As informações que Goulart conseguiu reunir, na manhã do dia 1º de abril, eram confusas. O presidente decidiu viajar a Brasília, para manter contato com parlamentares e deixou no Rio o general Assis Brasil. Logo a seguir, o general Âncora telefona a Assis para informá-lo de que “o Norte já aderiu à revolução. Minas está toda revoltada. O batalhão que mandei daqui se passou para o lado dos revoltosos, os quais ganharam a adesão do batalhão de Barra do Piraí. As tropas de São Paulo já estão marchando. Colocaram os cadetes da Academia Militar na vanguarda”.
Relatou o general Assis Brasil os últimos momentos do governo Goulart. Disse que, antes de ir para Brasília, realizou uma reunião com os ministros militares e depois com os civis. O único que queria resistir era o da Marinha, justamente o que não tinha tropa”. Assis chegou a Brasília às 20 horas e encontrou Goulart no aeroporto. Havia um avião da Panair do Brasil sendo preparado. Disse o general que, antes de falar com Goulart, mandou que os oficiais da Casa Militar fossem para seus postos e passassem os cargos aos substitutos. “Ninguém falou em resistência entre os meus auxiliares. Um deles perguntou: “E o senhor?”. Respondi: vou com o presidente, porque esta é a minha função. Não sei para onde ele vai, mas o meu destino, enquanto ele estiver vivo, está ligado ao dele. Fui ao encontro de Jango, que queria saber da situação. Informei que o III Exército perdeu o Paraná e Santa Catarina, mas Porto Alegre está intacta. Militarmente, dá para o senhor descer lá, mas não podemos pensar em resistência.
Prossegue o relato das horas finais:
- Fomos para Porto Alegre. Chegamos pela madrugada. O general Ladário, que chefiava as tropas, queria resistir. Jango me disse que também Brizola falava em resistir. Eram quatro horas da manhã. A guerra estava perdida. Durante a manhã, embarcamos e fomos para a estância Rancho Grande, em São Borja, onde se encontravam Maria Teresa e filhos. Jango não sabia o que fazer, estava atordoado. Eu disse: O senhor tem que sair daqui, senão vão lhe prender. Havia três aviões, um dos quais levou a Brasília os oficiais que me acompanhavam.
- De lá fomos para uma das fazendas de Jango, à margem do rio Uruguai. Consegui demover Jango da idéia de ir para o Brasil Central e ficar em uma de suas fazendas. Quando ele me perguntou qual era a minha sugestão, sugeri o Uruguai. Mandamos um portador a Montevidéu para sondar a posição do governo. O piloto voltou com a notícia de que Jango e família seriam recebidos de braços abertos. Às três e meia da tarde do dia 4 de abril, partimos de uma segunda estância de Jango e logo desembarcamos em Montevidéu, onde Goulart foi muito bem recebido.
Assis Brasil viajou de volta ao Brasil para se apresentar ao Exército. Foi preso. Perdeu os vencimentos. Passou muitas dificuldades. Ganhava a sobrevivência como professor. Até que foi anistiado.
Leonel Brizola não se conformou com a derrota. Pronunciou discursos acalorados em Porto Alegre, dirigindo-se aos “sargentos do III Exército. Dessas Unidades que me ouvem neste momento. Atenção, sargentos das Unidades chefiadas por esses militares golpistas. Atenção, oficiais nacionalistas dessas Unidades. O povo, do qual sois uma parte inseparável, vos pede neste instante. Pedem a todos vós, pede aos sargentos que se levantem, tomem os quartéis e prendam os gorilas”.
Sem demora, o lider esquerdista também seguiu o caminho do exílio.
A Nação havia escapado de um golpe comunista que esteve barulhentamente articulado, deixando a Nação em suspenso diante da possibilidade de se materializar.
O movimento esquerdista não contou com o apoio do general Machado Lopes, aquele que levantou o III Exército para garantir, em 1961, a posse de Goulart na Presidência da Republica. Em livro que publicou em 1981, o general escreveu: “A Nação, estarrecida, assistia aos desmandos do próprio chefe do Governo. E o Sr. Leonel Brizola vibrava no meio da desordem, que parecia levar o país para o caos. O Clero, o povo e principalmente as Forças Armadas puseram em 1964 um paradeiro na situação caótica em que se encontrava o país”.
No dia 1º de abril de 1964, o Diário de Notícias, do Rio, assim definia o governo: “Por mais que o sr. João Goulart negaceie, tergiverse e dissimule, ninguém poderá negar – porque está à vista de todos, porque é público e ostensivo – que os elementos chamados de “formação marxista”, não somente conseguiram infiltrar-se facilmente em todos os postos, mas também são os preferidos pelo governo para esses postos, sobretudo os de comando e direção. Atualmente, no presente governo, que ainda se diz democrata, a ideologia marxista e mesmo a militância comunista indisfarçada constituem recomendação especial os olhos do governo”.
Concluiu o Diário de Noticias: “Era como se já estivéssemos em pleno regime “marxista-leninista”, com que sonham os que desejam incluir sua pátria no grande império soviético, às ordens do Kremlin”.
O Brasil foi salvo à beira do precipício do retrocesso econômico e do empobrecimento crescente, à moda de Cuba, e a alteração de seu destino colocou a sua economia entre as maiores do mundo, mas não escapou da falsificação da história, simbolizada em dois atos oficiais: João Goulart recebeu o prêmio de anistiado político, enquanto a viúva Maria Tereza, milionária, foi contemplada por indenização de R$643 mil e pensão vitalícia de R$4,5 mil.
A contra-revolução de 64 representa uma página oculta em nosso passado.
Fonte: http://www.ternuma.com.br/gpaim1001.htm
Transcrito em https://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=67234&cat=Ensaios&vinda=S
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