MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964

MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964
Avião que passou no dia 31 de março de 2014 pela orla carioca, com a seguinte mensagem: "PARABÉNS MILITARES: 31/MARÇO/64. GRAÇAS A VOCÊS, O BRASIL NÃO É CUBA." Clique na imagem para abrir MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964.

terça-feira, 28 de julho de 2020

TRATADO DA ARGUMENTAÇÃO – A Nova Retórica - por Chaïm Perelman

TRATADO DA ARGUMENTAÇÃO – A Nova Retórica

Chaïm Perelman
Lucie Olbrechts-Tyteca
Editora Martins Fontes, São Paulo, 1999
Tradução de Maria Ermantina Galvão

(Obs.: O “Tratado da Argumentação”, de Perelman, só cita Epicuro uma vez, e como autor de um raciocínio “autofágico” (do tipo judeu defendendo o nazismo): num trecho, o homem do jardim sustenta a tese segundo a qual os pais devem deixar os filhos ao abandono. Perelman reproduz em seguida o argumento que a isto se opôs o filósofo estóico Epicteto: “Se teu pai e tua mãe soubessem que virias a dizer essas coisas, certamente haveriam te abandonado” (“Traité de l’Argumentation. La Nouvelle Rhétorique”, 1970, pg. 276, cit. por Olavo de Carvalho, in O “Jardim das Aflições”, pg. 74)

Introdução

Diz Descartes: “Todas as vezes que dois homens formulam sobre a mesma coisa um juízo contrário, é certo que um dos dois se engana. Há mais, nenhum deles possui a verdade; pois se um tivesse dela uma visão clara e nítida poderia expô-la a seu adversário, de tal modo que ela acabaria por forçar sua convicção.” (pg. 2) Oeuvres

“Opondo a vontade ao entendimento, o esprit de finesse ao esprit de géométrie, o coração à razão e a arte de persuasão à de convencer, Pascal já procurava obviar as insuficiências do método geométrico resultantes do fato de o homem, decaído, já não ser unicamente um ser de razão”. (pg. 3)

“É a finalidades análogas que correspondem a oposição kantiana entre fé e ciência e a antítese bergsoniana entre a intuição e a razão. Mas, quer se trate de filósofos racionalistas, quer daqueles qualificados de anti-racionalistas, todos continuam a tradição cartesiana com a limitação imposta à idéia de razão”. (pg. 3)


Primeira Parte

Os âmbitos da argumentação

Demonstração e argumentação

“Pois toda argumentação visa à adesão dos espíritos e, por isso mesmo, pressupõe a existência de um contato intelectual”. (pg. 16)

Sobre condições prévias para a discussão com outrem, ouvimos frases como: “Não ouças teu anjo mau”; “Não tornes a pôr isso em discussão”, “que são relativas, uma a condições prévias atinentes às pessoas, a outra a condições prévias atinentes ao objeto da argumentação”. (pg. 17)

O contato dos espíritos

Nem sempre é louvável querer persuadir alguém. “Conhece-se a célebre anedota acerca de Aristipo, a quem censuravam por Ter-se abaixado perante o tirano Dionísio, a ponto de pôr-se a seus pés para ser ouvido. Aristipo defendeu-se dizendo que não era culpa sua, mas de Dionísio, que tinha os ouvidos nos pés. Seria então indiferentes onde se encontram os ouvidos?” (pg. 19) Leibniz, in Nouveaux essais sur l’entendement

“Para Atistóteles o perigo de discutir com certas pessoas é que, com elas, se perde a qualidade de sua própria argumentação: ‘Não se deve discutir com todos, nem praticar a Dialética com o primeiro que aparecer, pois, com respeito a certas pessoas, os raciocínios sempre se envenenam. Com efeito, contra um adversário que tenta por todos os meios parecer esquivar-se, é legítimo tentar por todos os meios chegar à conclusão; mas falta elegância a tal procedimento’ ”. (PG. 19) Cf. R.D.D. Whately, Elements of Rhetoric, 1828.

“Não basta falar ou escrever, cumpre ainda ser ouvido, ser lido”. (pg. 19)

O orador e seu auditório

“Esse contato entre orador e seu auditório não concerne unicamente às condições prévias da argumentação: é essencial também para todo o desenvolvimento dela. Com efeito, como a argumentação visa obter a adesão daqueles a quem se dirige, ela é, por inteiro, relativa ao auditório que procura influenciar.
... em matéria de retórica, parece-nos preferível definir o auditório como o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação. Cada orador pensa, de uma forma mais ou menos consciente, naqueles que procura persuadir e que constituem o auditório ao qual se dirigem seus discursos”. (pg. 21-22)

O auditório como construção do orador

“A argumentação efetiva tem de conceber o auditório presumido tão próximo quanto possível da realidade. Uma imagem inadequada do auditório, resultante da ignorância ou de um concurso imprevisto de circunstâncias, pode ter as mais desagradáveis consequências. “ (pg. 22)

“O cuidado com o auditório transforma certos capítulos dos antigos tratados de retórica em verdadeiros estudos de psicologia. Foi em sua Retórica que Aristóteles, ao falar de auditórios classificados conforme a idade e a fortuna, inseriu muitas descrições argutas e sempre válidas de psicologia diferencial. Cícero demonstra que convém falar de modo diferente à espécie de homens ‘ignorante e grosseira, que sempre prefere o útil ao honesto’ e à ‘outra, esclarecida e culta, que põe a dignidade moral acima de tudo’. Quintiliano, depois dele, dedica-se às diferenças de caráter, importantes para o orador”. (pg. 23)

“As considerações sociológicas úteis ao orador podem versar sobre um objeto particularmente preciso, a saber, as funções sociais cumpridas pelos ouvintes. Com efeito, estes constumam adotar atitudes ligadas ao papel que lhes é confiado em certas instituições sociais. Esse fato foi salientado pelo criador da psicologia da forma:
‘Podem-se observar’, escreve ele, ‘maravilhosas mudanças nos indivíduos, como quando uma pessoa apaixonadamente sectária torna-se membro de um júri, ou árbitro, ou juiz, e suas ações mostram então a delicada passagem da atitude sectária a um honesto esforço para tratar o problema em questão de uma maneira justa e objetiva’ (M. Wertheimer, Productive Thinking)” (pg. 23-24)

“Ocorre o mesmo com a mentalidade de um político cuja visão muda quando, após anos passados na oposição, torna-se membro responsável do governo” (pg. 24).

Adaptação do orador ao auditório

“ ‘Todo o objeto da eloquência’, escreve Vico, ‘é relativo aos nossos ouvintes, e é consoante suas opiniões que devemos ajustar os nossos discursos’ (De nostri temporis studiorum ratione). O importante, na argumentação, não é saber o que o próprio orador considera verdadeiro ou probatório, mas qual é o parecer daqueles a quem ela se dirige. Sucede com um discurso, para citar uma comparação de Gracián, ‘o mesmo que com um festim, em que as carnes não são preparadas para o paladar dos cozinheiros, mas para o dos convivas’ (L’homme de cour)” (pg. 26-27)

Para Quintiliano, “a retórica scientia bene dicendi implica que o orador perfeito persuada bem, mas também que dia o bem”. (pg. 28)

Persuadir e convencer

Husserl defende o esforço da racionalidade ocidental: “Somos, em nosso trabalho filosófico, funcionários da humanidade”. (pg. 29 - E. Husserl, La crise des sciences européennes). “É no mesmo espírito que J. Benda acusa os clérigos de traição quando abandonam o cuidado com o eterno e com o universal, para defenderem valores temporais e locais” (pg. 30 – La Trahison des Clercs, de J. Benda).

“Para quem se preocupa com o resultado, persuadir é mais do que convencer, pois a convicção não passa da primeira fase que leva à ação. Para Rousseau, de nada adianta convencer uma criança ‘se não se sabe persuadi-la’ (Rousseau, Émile), pg. 30)

Para Kant (Crítica da razão pura), “a convicção e a persuasão são duas espécies de crença:
‘Quando é válida para cada qual, ao menos na medida em que este tem razão, seu princípio é objetivamente suficiente e a crença se chama convicção. Se ela tem seu fundamento apenas na natureza particular do sujeito, chama-se persuasão. A persuasão é mera aparência, porque o princípio do juízo que está unicamente no sujeito é tido por objetivo. Assim, um juízo desse gênero só tem um valor individual e a crença não pode comunicar-se... Logo, a persuasão não pode, na verdade, ser distinguida subjetivamente da convicção, se o sujeito imagina a crença apenas como um simples fenômeno de seu próprio espírito; ...’ ” (pg 31-32) “A concepão kantiana, embora bastante próxima da nossa por suas consequências, difere dela por fazer da oposição subjetivo-objetivo o critério da distinção entre persuasão e convicção”. (pg. 32)

O auditório universal

“Dumas descreveu, numa linguagem muito expressiva, essa certeza cartesiana:
‘A certeza é a crença plena, que exclui inteiramente a dúvida, é afirmação necessária e universal; isso significa que o homem seguro não imagina a possibilidade de se preferir a afirmação contrária e imagina sua afirmação como devendo impor-se a todos nas mesmas circunstâncias. Em suma, ela é o estado em que temos consciência de pensar a verdade, que é justamente essa coerção universal, essa obrigação mental; a subjetividade desaparece, o homem pensa como inteligência, como homem e não mais como indivíduo. O estado de certeza foi muitas vezes descrito com a ajuda de metáforas, como a luz e a clareza; mas a iluminação da certeza racional traz sua explicação. Ele é repouso e descontração, mesmo que a certeza seja penosa, pois ela acaba com a tensão e com a inquietude da busca e da indecisão. Ele é acompanhado de um sentimento de potência e, ao mesmo tempo, de aniquilamento; sente-se que a prevenção, a paixão, o capricho individual desapareceram... Na crença racional, a verdade torna-se nossa e tornamo-nos a verdade’ “ (pg. 36 – G. Dumas, Traité de Psychologie, t. II, pg. 740)

“O racionalismo, com sua pretensões de eliminar qualquer retórica da filosofia, formulara um programa muito ambicioso que deveria proporcionar o acordo dos espíritos graças à evidência racional que se impõe a todos”. (pg. 36)

“O auditório de elite só encarna o auditório universal para aqueles que lhe reconhecem o papel de vanguarda e de modelo. Para os outros, ao contrário, ele constituirá apenas um auditório particular. O estatuto de um auditório varia conforme as concepções que se têm.
Certos auditórios especializados costumam ser assimilados ao auditório universal, tal como o auditório do cientista dirigindo-se aos seus pares”. (pg. 38)

J.P. Sartre sobre o auditório do escritor: “Dissemos que o escritor se dirigia em princípio a todos os homens. Mas, logo depois, observamos que era lido somente por alguns. Da distância entre o público ideal e o público real nasceu a idéia de universalidade abstrata. Isso quer dizer que o autor postula a perpétua repetição, num futuro indefinido, do punhado de leitores de que dispõe no presente. (...) o recurso à infinidade do tempo busca compensar o fracasso no espaço (volta infinita do homem de bem do autor do século XVII, extensão infinita do clube de escritores e do público de especialistas para o autor do século XIX). (...) Pela universalidade concreta cumpre entender, ao contrário, a totalidade dos homens que vivem numa dada sociedade”. (pg. 38-39 – Sartre, Situations)

A argumentação perante um único ouvinte

“... o discurso degenera invariavelmente em diálogo. É por isso que, segundo Quintiliano, por causa do aspecto mais denso da argumentação, Zenão comparava a dialética, como técnica de diálogo, a um punho fechado, enquanto a retórica lhe parecia semelhante à mão aberta”. (pg. 40)

“O diálogo escrito pressupõe, mais ainda do que o diálogo efetivo, que esse ouvinte encarne o auditório universal. E tal concepção parece justificada sobretudo quando admite, como Platão, que existem no homem princípios internos coercitivos que o guiam no desenvolvimento de seu pensamento.
A argumentação de semelhante diálogo só tem significado filosófico se ela pretende ser válida aos olhos de todos. Compreende-se facilmente que a dialética, assim como a argumentação voltada para o auditório universal, tenha sido identificada com a lógica. Essa é a concepção dos estóicos e da Idade Média”. (pg. 41)

“É que o diálogo, tal como é focalizado aqui, não deve constituir um debate, em que convicções estabelecidas e opostas são defendidas por seus respectivos partidários, mas uma discussão, em que os interlocutores buscam honestamente e sem preconceitos a melhor solução de um problema controvertido. Opondo ao ponto de vista erístico o ponto de vista heurístico, certos autores contemporâneos apresentam a discussão como o instrumento ideal para chegar a conclusões objetivamente válidas. Supõe-se que os interlocutores, na discussão, não se preocupam senão em mostrar e provar todos os argumentos, a favor ou contra, atinentes às diversas teses em presença. A discussão, levada a bom termo, deveria conduzir a uma conclusão inevitável e unanimemente admitida, se os argumentos, presumidamente com mesmo peso para todos, estivessem dispostos como que nos pratos de uma balança. No debate, em contrapartida, cada interlocutor só aventaria argumentos favoráveis à sua tese e só se preocuparia com argumentos que lhe são desfavoráveis para refutá-los ou limitar-lhes o alcance. O homem com posição tomada é portanto parcial, tanto por ter tomado posição como por já não poder fazer valer senão a parte dos argumentos pertinentes que lhe é favorável, ficando os outros, por assim dizer, gelados e só aparecendo no debate se o adversário os aventar. Como se supõe que este último adote a mesma atitude, compreende-se que a discussão seja apresentada como uma busca sincera da verdade, enquanto, no debate, cada qual se preocupa sobretudo com o triunfo de sua própria tese”. (pg. 42)

“Ademais, aquele que defende um determinado ponto de vista está, o mais das vezes, convencido de que se trata de uma tese que é objetivamente a melhor e de que seu triunfo é o triunfo da boa causa”. (pg. 42)

“O diálogo heurístico, em que o interlocutor é uma encarnação do auditório universal, e o diálogo erístico, que teria por meta dominar o adversário, são apenas, ambos, casos excepcionais; no diálogo habitual, os participantes tendem, pura e simplesmente, a persuadir seu auditório com o intuito de determinar uma ação imediata ou futura. É nesse plano prático que se desenvolve a maioria de nossos diálogos diários”. (pg. 43)

“Os filósofos que se ocupavam do diálogo o focalizavam geralmente por seu aspecto privilegiado, em que o interlocutor encarna o auditório universal; ou, então, pelo aspecto mais psicológico, mas também mais escolar, do diálogo erístico, dominado pelo cuidado daquilo a que Schopenhauer chama ‘Rechthaberei’ ”. (pg. 43-44).

A deliberação consigo

“O consentimento de vós mesmos a vós mesmos e a voz constante de vossa razão” é, para Pacal (in Pensées), o melhor critério de verdade; é também empregado por Descartes, nas Méditations, para passar das razões que o convenceram pessoalmente à afirmação de que ele “chegou a um exato e evidente conhecimento da verdade”. (pg. 45)

Convencer/persuadir:
“Quando somos convencidos, somos vencidos apenas por nós mesmos, pelas nossas idéias. Quando somos persuadidos, sempre o somos por outrem”. (ª Ed. Chaignet, La rhétorique et son histoire) (pg. 46)

“Os argumentos pelos quais convencemos os outros falando são os mesmos que utilizamos quando refletimos; chamamos oradores aos que são capazes de falar perante a multidão e consideramos de bom conselho aqueles que podem conversar consigo mesmos, da forma mais judiciosa, sobre os negócios”. (Isócrates, Discursos) (pg. 46)

Os efeitos da argumetação

“O objetivo de toda argumentação, como dissemos, é provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento: uma argumentação eficaz é a que consegue aumentar essa intensidade de adesão, de forma que se desencadeie nos ouvintes a ação pretendida (ação positiva ou abstenção) ou, pelo menos, crie neles uma disposição para a ação, que se manifestará no momento oportuno”. (pg. 50)

“A retórica digna do filósofo, diz-nos Platão em Fedro, aquela que conquistaria, por suas razões, os próprios deuses, deveria ao contrário ser condicionada pela verdade. E, vinte séculos mais tarde, Leibniz, que se dá conta de que o saber humano é limitado e muitas vezes incapaz de fornecer provas suficientes da verdade de toda asserção, queria que ao menos o grau do assentimento concedido a uma tese qualquer fosse proporcional ao que ensina o cálculo das probabilidades ou das presunções”. (Leibniz, in Nouveaux essais sur l’entendement) (pg. 50-51)

O gênero epidíctico

“A maioria das obras-primas da eloquência escolar, os elogios e panegíricos de um Górgias ou de um Isócrates, trechos solenes célebres em toda a Grécia, constituíam discursos do gênero epidíctico. Contrariamente aos debates políticos e judiciários, verdadeiros combates em que os dois adversários procuravam, acerca de matérias controvertidas, ganhar a adesão de um auditório que decidia o desfecho de um processo ou de uma ação por empreender, os discursos epidícticos não eram nada disso. Um orador solitário que, com frequência, nem sequer aparecia perante o público, mas se contentava em fazer circular sua composição escrita, apresentava um discurso ao qual ninguém se opunha, sobre matérias que não pareciam duvidosas e das quais não se via nenhuma consequência prática”. (pg 53)

“Para Aristóteles, o orador se propõe atingir, conforme o gênero do discurso, finalidades diferentes: no deliberativo, aconselhando o útil, ou seja, o melhor; no judiciário, pleiteando o justo; no epidíctico, que trata do elogio e da censura, tendo apenas de ocupar-se com o que é belo ou feio. (...) Com isso, o gênero epidíctico parecia prender-se mais à literatura do que à argumentação. Foi assim que a distinção dos gêneros contribuiu para a posterior desagregação da retórica, pois os dois primeiros gêneros foram anexados pela filosofia e pela dialética, tendo sido o terceiro englobado na prosa literária. E Whately, no século XIX, criticará Aristóteles por ainda ter-lhe atribuído demasiada importância”. (pg 54)

“(...) o temor de ver o discurso sacro ser considerado um espetáculo é tamanho que Bossuet, no Sermon sur la parole de Dieu (Sermão sobre o palavra de Deus), desenvolve uma longa analogia entre o púlpito e o altar, para chegar a esta conclusão:
‘... deveis agora estar convencidos de que os pregadores do Evangelho não sobem aos púlpitos para ali fazerem discursos vãos que se devam ouvir para divertir-se’ ”. (Bossuet, Sermons) – pg. 56

“Ao contrário da demonstração de um teorema de geometria, que estabelece de uma vez por todas um vínculo lógico entre verdades especulativas, a argumentação do discurso epidíctico se propõe aumentar a intensidade da adesão a certos valores, sobre os quais não pairam dúvidas quando considerados isoladamente, mas que, não obstante, poderiam não prevalecer contra outros valores que viessem a entrar em conflito com eles”. (pg. 56)

“É na epidíctica que são apropriados todos os procedimentos da arte literária, pois se trata de promover o concurso de tudo quanto possa favorecer essa comunhão do auditório. É o único gênero que, imediatamente, faz pensar na literatura, o único que poderíamos comparar com o libreto de uma cantata, o que corre maior risco de virar declamação, de tornar-se retórica, no sentido pejorativo e habitual da palavra”. (pg. 57)

Educação e propaganda

“O padre católico que ensina os preceitos de sua religião a crianças católicas de sua paróquia cumpre um papel de educador, ao passo que é propagandista e se diriege, com o mesmo intento, aos adultos membros de outro grupo religioso. Mas, em nossa opinião, há mais. Enquanto o propagandista deve granjear, previamente, a audiência de seu público, o educador foi encarregado por uma comunidade de tornar-se o porta-voz dos valores reconhecidos por ela e, como tal, usufrui um prestígio devido a suas funções”. (pg. 58)

“Assim também, quando é encarregado de inculcar os valores de uma determinada sociedade a crianças muito pequenas, o educador deve proceder mediante afirmação, sem enveredar numa controvérsia em que defenderia livremente os prós e os contras. Aliás, isso seria contrário ao próprio espírito da primeira educação, pois toda discussão pressupõe a adesão prévia a certas teses, sem o que nenhuma argumentação é possível”. (pg. 60)

“Não obstante, na medida em que a educação aumenta a resistência a uma propaganda adversa, é útil considerar educação e propaganda como forças que atuam em sentido contrário.

Argumentação e violência

“A argumentação é uma ação que tende sempre a modificar um estado de coisas preexistente.
Toda sociedade que preza seus valores próprios tem, portanto, de favorecer as ocasiões que permitem aos discursos epidícticos se reproduzirem num ritmo regular: cerimônias em comemoração de fatos que interessam ao país, ofícios religiosos, elogios dos desaparecidos e outras manifestações que servem à comunhão dos espíritos”. (pg. 61)

“O uso da argumentação implica que se tenha renunciado a recorrer unicamente à força, que se dê apreço à adesão do interlocutor, obtida graças a uma persuasão racional, que este não seja tratado como um objeto, mas que se apele à sua liberdade de juízo. O recurso à argumentação supõe o estabelecimento de uma comunidade de espíritos que, enquanto dura, exclui o uso da violência. Consentir na discussão é aceitar colocar-se do ponto de vista do interlocutor, é só se prender ao que ele admite e não se prevalecer de suas próprias crenças, senão na medida em que aquele que procuramos persuadir está disposto a dar-lhe assentimento. ‘Toda justificação’, diz E. Dupréel, ‘já é, por essência, um ato moderador, um passo rumo a mais comunhão das consciências’ (Dialectica)”. (pg. 61-62)

“Calogero concebe o dever do diálogo como ‘liberdade de exprimir sua fé e de esforçar-se por converter os outros a ela, dever de deixar os outros fazerem a mesma coisa conosco e de escutá-los com a mesma boa vontade para compreender-lhes as verdades e torná-las nossas, que reclamamos deles com relação à nossas’ (Verité et liberté)” (pg. 62)”

“Ser de uma opinião que se afasta de todos os outros é romper uma comunhão social fundada, crê-se – e o mais das vezes com toda a razão -, em dados de ordem objetica.
“O século XVIII, francês e alemão, fornece-nos o exemplo de uma tentativa, utópica decerto, mas com toda a certeza emocionante, de estabelecer uma catolicidade dos espíritos com base um racionalismo dogmático que permitia assegurar fundamentos sociais estáveis a uma humanidade impregnada dos princípios racionais. Essa tentativa de resolver, mercê da razão, todos os problemas levantados pela ação, embora tenha contribuído para a generalização da instrução, infelizmente fracassou porque se percebeu, bem depressa, que a unanimidade era precária, ilusória, ou mesmo impensável.
Contudo, as sociedades fazem questão de assegurar essa unanimidade, pois conhecem-lhe o valor e a força. Por isso a oposição a uma norma aceita pode levar o homem à prisão ou a um hospício”. (pg. 63-64)

“Cumpre notar que os caos de interdição do prosseguimento não são limitados aos sistema jurídico. É possível referir-se ao princípio da coisa julgada mesmo fora dos tribunais. Muito antes de sua impossibilidade ter sido demonstrada, a investigação da quadratura do círculo era considerada pela Academia de Ciências de Paris definitivamente fora de discussão. (...)
Existe toda uma zona intermediária entre a interdição absoluta de prosseguimento e a permissão incondicional de prosseguimento; essa zona é regida em grande parte por tradições e costumes extremamente complexos. Este é um dos aspectos não descuráveis da vida de uma comunidade.
A interdição de prosseguir certas discussões pode ser uma manifestação de intolerância, da mesma maneira que a interdição de pôr em questão certos problemas. ... o que a vida social da comunidade arrasta consigo é uma decisão, mas, além disso, as argumentações que a precederam”. (pg. 65)

Argumentação e envolvimento

“Quando uma opinião exerce uma influência sobre a ação, já não basta a objetividade, a menos que se entenda por isso o ponto de vista de um grupo mais amplo, que engloba ao mesmo tempo os adversários e o ‘neutro’. Este é apto a julgar não como neutro – aliás, cada qual pode criticar-lhe a neutralidade em nome de princípios comuns de justiça ou de direito -, mas por ser imparcial: ser imparcial não é ser objetivo, é fazer parte de um mesmo grupo que aqueles a que se julga, sem Ttr previamente tomado partido por nenhum deles. Em muitos debates, o problema de saber quem tem qualidade para intervir, até mesmo para julgar, é penoso e delicado, porque uns tomaram partido e os outros não são membros do grupo. Quando se tratou de julgar a atitude dos oficiais franceses que haviam preferido seu lealismo militar ao prosseguimento da guerra contra a Alemanha em 1940, os franceses não tinham direito de julgá-los por terem tomado partido, os estrangeiros, particularmente os neutros, por não fazerem parte do grupo em questão”. (pg. 67)

“A imparcialidade encontra-se, assim, nos campos em que o pensamento e a ação estão intimamente associados, entre a objetividade que não confere ao terceiro nenhuma qualidade para intervir e o espírito sectário que o desqualifica”. (pg. 67)

“ ‘Todos os homens, diz-nos Pascal, são quase sempre levados a crer não pela prova, mas pelo atrativo’ e procura explicar esse fenômeno insistindo no fato de que ‘as coisas são verdadeiras ou falsas, conforme a face pela qual olhamos. A vontade que se compraz numa mais do que noutra desvia o espírito de considerar as qualidades das que ele não gosta de ver; e assim o espírito, formando um todo com a vontade, detém-se para olhar a face de que gosta; e assim julga pelo que nela vê’ ” (De l’art de persuader, pg. 376) (pg. 68)

“Cada vez que importa refutar a acusação de que nossos desejos é que determinaram nossas crenças, é indispensável fornecer provas, não de nossa objetividade, o que é irrealizável, mas de nossa imparcialidade, indicando as circunstâncias em que, numa situação análoga, agimos contrariamente ao que podia parecer nosso interesse e especificando se possível a regra ou os critérios que seguimos, os quais sejam válidos para um grupo mais amplo que englobaria todos os interlocutores e, no limite, se identificaria com o auditório universal”. (pg. 68-69)

“O fanático é aquele que, aderindo a uma tese contestada e cuja prova indiscutível não pode ser fornecida, recusa mesmo assim considerar a possibilidade de submetê-la a uma livre discussão e, por conseguinte, recusa as condições prévias que permitiriam, nesse ponto, o exercício da argumentação.
Assimilando a adesão a uma tese ao reconhecimento da verdade absoluta desta, chega-se às vezes, não ao fanatismo, mas ao ceticismo. Quem exige, de uma argumentação, que ela forneça provas coercivas, provas demonstrativas, e não se contenta com menos para aderir a uma tese, desconhece tanto quanto o fanático o caráter próprio do processo argumentativo.

(...) Como a prova retórica jamais é totalmente necessária, o espírito que dá sua adesão às conclusões de uma argumentação o faz por um ato que o envolve e pelo qual é responsável. O fanático aceita esse envolvimento, mas como alguém que se inclina ante uma verdade absoluta e irrefragável; o cético recusa esse envolvimento, a pretexto de que ele não lhe parece poder ser definitivo. Recusa-se a aderir porque tem da adesão uma idéia que se assemelha à do fanático: ambos desconhecem que a argumentação visa uma escolha entre possíveis; propondo e justificando a hierarquia deles, ela tenciona tornar racional uma decisão. Fanatismo e ceticismo negam essa função da argumentação em nossas decisões. Tendem ambos a deixar, na falta de razão coerciva, campo livre à violência, recusando o envolvimento da pessoa”. (pg. 69-70)

Segunda parte
O ponto de partida da argumentação

a) Os tipos de objeto de acordo

Os fatos e as verdades

“Entre os objetos de acordo pertencentes ao real distinguiremos, de um lado, os fatos e verdades, de outro, as presunções. (...) Cumpre-nos, ao contrário, insistir em que, na argumentação, a noção de ‘fato’ é caracterizada unicamente pela idéia que se tem de certo gênero de acordos a respeito de certos dados: os que se referem a uma realidade objetiva e designariam, em última análise, citando H. Poincaré, ‘o que é comum a vários entes pensantes e poderia ser comum a todos’ Estas últimas palavras sugerem imediatamente o que chamamos de acordo do auditório universal”. (pg. 75)

“Só estamos em presença de uma fato, do ponto de vista argumentativo, se podemos postular a seu respeito um acordo universal, não controverso”. (pg. 75-76)

“Aplicamos, ao que se chamam verdades, tudo o que acabamos de dizer dos fatos. Fala-se geralmente de fatos para designar objetos de acordo preciso, limitados; em contrapartida, designar-se-ão de preferência com o nome de verdades sistemas mais complexos, relativos a ligações entre fatos, que se trate de teorias científicas ou de concepões filosóficas ou religiosas que transcendem a experiência.
Se bem que, assim como o sublinha Piaget, os dados psicológicos atualmente conhecidos não permitam sequer imaginar que possamos atingir fatos isolados (Traité de logique, pg. 30), a distinção entre fatos e verdades parece-nos oportuna e legítima pra o nosso objeto, por corresponder ao uso habitual da argumentação, que se apóia ora nos fatos, ora nos sistemas de alcance mais geral. Mas não gostaríamos de resolver, de uma vez por todas, o problema filosófico das relações entre fatos e verdades: essas relações caracterizam concepões de auditórios diferentes. Para uns, o fato se opõe à verdade teórica como o contingente ao necessário; para outros, como o real ao esquemático. Pode-se também conceber a relação deles de tal forma que o enunciado de um fato seja uma verdade e que toda verdade enuncie um fato”. (pg. 77)

“O mais das vezes, utilizam-se fatos e verdades (teorias científicas, verdades religiosas, por exemplo) como objetos de acordo distintos, mas entre os quais existem vínculos que permitem a transferência do acordo: a certeza do fato A combinado com a crença no sistema S, acarreta a certeza do fato B, o que significa que admitir o fato A, mais a teoria S, equivale a admitir B.
Em vez de ser admitida como um vínculo certo, a relação entre A e B pode ser apenas provável: admitir-se-á que o aparecimento do fato A acarreta, com certa probabilidade, o aparecimento de B. Quando o grau de probabilidade de B pode ser calculado em virtude de fatos e de uma teoria sobre os quais o acordo é inconteste, a probabilidade considerada não é objeto de um acordo de natureza diferente da do acordo concernente ao fato certo. É por essa razão que assimilamos a acordos sobre os fatos aqueles concernentes à probabilidade dos acontecimentos de uma certa espécie, na medida em que se trata de probabilidades calculáveis.
Kneebone (Proceedings of the Aristotelian Society, New Series, Vol L. pg 36) salienta a esse respeito, com toda a pertinência, que a verossimilhança (“likelihood”) se aplica a proposições, notadamente às conclusões indutivas e, por isso, não é uma quantidade mensurável, ao passo que a probabilidade é uma relação numérica entre duas proposições que se aplicam a dados empíricos específicos, bem definidos, simples. O domínio das probabilidades é, portanto, vinculado ao dos fatos e verdades e se caracteriza, para cada auditório, em função destes”. (pg. 78)

As presunções

“Uma argumentação prévia pode tender a estabelecer que existem certas presunções, da mesma forma que uma argumentação pode tender a mostrar que se está em presença de uma fato. Mas como as presunções, por natureza, estão sujeitas a ser reforçadas parece que, nesse ponto, deve ser salientado um importante matiz: ao passo que a justificação de um fato sempre corre o risco de diminuir-lhe o estatuto, não se dá o mesmo com o que concerne às presunções; para conservar seu estatuto, não há necessidade portanto de separá-las de uma eventual argumentação prévia. Todavia, o mais das vezes as presunções são admitidas de imediato, como ponto de partida das argumentações”. (pg. 79)

“Como característica de uma população (no sentido lato desse termo e sejam quais forem seus elementos, animados ou inanimados, objetos ou comportamentos), é antes o modo do que a média que certamente predomina em todas as presunções baseadas no habitual; é o modo que encontramos como ponto de comparação nas apreciações de grande e de pequeno; é ele que encontramos na base de todos os raciocínios sobre o comportamento, na base das presunções que podem justificar a Einfühlung e que os oradores utilizam tão largamente quando suplicam ao auditório que se ponham no lugar de seus protegidos.
... está claro, não obstante, que todas as presunções baseadas no normal implicam um acordo acerca desse grupo de referência”. (pg. 80-81)

“De um modo geral, qualquer complemento de informação pode provocar uma mudança do grupo de referência e, com isso, modificar nossa concepção do que é notável, monstruoso. A função do orador será, em geral, favorecer essa modificação comunicando informações novas. Quando o advogado do réu alega circunstâncias atenuantes, sugere a mudança do grupo de referência: o comportamento presumido, o que servirá de critério para julgar o réu, será daí em diante o comportamento normal desse novo grupo de referência. Por outro lado, se o círculo de nossas relações se estende, alguns dons naturais que nos parecem notáveis perderão essa característica, porque teremos a oportunidade de encontrá-los com maior frequência. Inversamente, se ocorre um falecimento entre os habitantes de uma grande cidade, não há nada de mais normal; se o mesmo acontecimento afeta o pequeno círculo de nossas relações, achamo-lo extraordinário. É a oposição entre os dois grupos de referência que permite, a um só tempo, que uns se espantem que um mortal tenha morrido e outros se espantem com esse espanto”. (pg. 82)

“A maior parte dos argumentos que tende a mostrar que é extraordinário, contrário a qualquer presunção, que o homem possa ter encontrado um globo à sua medida pressupõe, o mais das vezes sem o dizer, que o grupo de referência, o dos globos habitáveis, é extremamente reduzido. Em contrapartida, um astrônomo como Hoyle, que avalia que os mundos habitáveis são extremamente numerosos, dirá com humor que, se nosso globo não fosse habitável, estaríamos noutro lugar” (F. Hoyle, The Nature of the Universe, pg. 90). (pg. 82-83)

Os valores

“Numa discussão, não podemos subtrair-nos ao valor negando-o pura e simplesmente. Assim como, se contestamos que algo seja um fato, temos de dar as razões dessa alegação (“Não percebo isso”, o que equivale a dizer “percebo outra coisa”), assim também, quando se trata de um valor, podemos desqualificá-lo, subordiná-lo a outros ou interpretá-los, mas não podemos, em bloco, rejeitar todos os valores: estaríamos, então, no domínio da força e não mais no da discussão”. (pg. 85)

... o estatuto dos enunciados evolui: inseridos num sistema de crenças, que se pretende valorizar aos olhos de todos, alguns valores podem ser tratados como fatos ou verdades. No curso da argumentação e, às vezes, por um processo bastante lento, talvez se reconheça que se trata de objetos de acordo que não podem pretender a adesão do auditório universal.
Mas, se é esta, em nosso entender, a característica dos valores, que dizer do que se considera de imediato valores universais ou absolutos, tais como o Verdadeiro, o Bem, o Belo, o Absoluto?
A pretensão ao acordo universal, no que lhes concerne, parece-nos resultar unicamente da generalidade deles; só se pode considerá-los válidos para um auditório universal com a condição de não lhes especificar o conteúdo. A partir do momento em que tentamos precisá-los, já não encontramos senão a adesão de auditórios particulares.
Os valores universais merecem, segundo E. Dupréel, ser chamados de ‘valores de persuasão’ porque são ‘meios de persuasão que, do ponto de vista do sociólogo, são apenas isso, puros, espécie de ferramentas espirituais totalmente separáveis da matéria que permitem moldar, anteriores ao momento de serem utilizadas e que permanecem intactas depois de serem utilizadas, disponíveis, como antes, para outras ocasiões’ (Sociologie générale, pg. 181-2)”. (pg. 85-86)

Valores abstratos e valores concretos

“A argumentação sobre os valores necessita de uma distinção, que julgamos fundamental e foi muito menosprezada, entre valores abstratos, tais como a justiça ou a veracidade, e valores concretos, tais como a França ou a Igreja. O valor concreto é o que se vincula a um ente vivo, a um grupo determinado, a um objeto particular, quando os examinamos em sua unicidade. A valorização do concreto e o valor conferido ao único estão estreitamente ligados: desvelar o caráter único de alguma coisa é valorizá-la pelo próprio fato. Os escritores românticos, revelando-nos o caráter único de certos seres, de certos grupos, de certos momentos históricos, provocaram, até no pensamento filosófico, uma reação contra o racionalismo abstrato, reação que se assinala pela situação eminente conferida à pessoa humana, valor concreto por excelência.
Enquanto a moral ocidental, na medida em que se inspira em concepções greco-romanas, atribui importância sobretudo à observância de regras válidas para todos e em todas as circunstâncias, existem comportamentos e virtudes que não podem ser concebidos senão em comparação com valores concretos. As noções de envolvimento, de fidelidade, de lealdade, de solidariedade, de disciplina são dessa espécie. Da mesma forma que os cinco deveres de obrigação universal de Confúcio (Kou Hon Ming e F. Borrey, Le catéchisme de Confucius, pg. 69), entre governantes e governados, entre pai e filho, entre marido e mulher, entre irmão mais velho e irmão mais moço, entre amigos, são a expressão da importância dada às relações pessoais entre seres que constituem valores concretos uns para os outros.
De fato, serjam quais forem os valores dominantes num meio cultural, a vida do espírito não pode evitar apoiar-se tanto em valores abstratos como em valores concretos”. (pg. 87)

“Em nenhum lugar se observa melhor esse vaivém do valor concreto aos valores abstratos, e inversamente, do que nos raciocínios referentes a Deus, considerado, a um só tempo, valor abstrato absoluto e Ser perfeito. Deus é perfeito por ser a encarnação de todos os valores abstratos? Uma qualidade é perfeição porque certas concepções de Deus permitem conceder-lha? É difícil determinar, nessa matéria, uma prioridade qualquer. As tomadas de posição contraditórias de um Leibniz, a esse respeito, são muito instrutivas. Ele sabe que Deus é perfeito, mas gostaria que essa perfeição fosse justificável e que tudo quanto Deus decide não seja bom unicamente pela própria razão de que Deus o fez (Leibniz, Discours de métaphysique, II, pg. 427). A universalidade do princípio da razão suficiente exige que exista uma razão suficiente, uma conformidade a uma regra, que justifique a escolha divina. Mas, em contrapartida, a crença na perfeição divina precede qualquer prova que Leibniz poderia fornecer e constitui o ponto de partida de sua teologia. Num grande número de pensadores, Deus é o modelo que é preciso seguir, em todos os pontos. Assim, Kenneth Burke pôde fornecer uma lista bastante longa de todos os valores abstratos que encontraram seu fundamento no Ser perfeito (K. Burke, A Rhetoric of Motives, pg. 299-300).
Ideologias que não queriam reconhecer em Deus o fundamento de todos os valores foram obrigadas a recorrer a noções, de outra ordem, como o Estado ou a humanidade. Tais noções, por sua vez, podem ser concebidas, quer como valores concretos do tipo da pessoa, quer como a conclusão de raciocínios baseados nos valores abstratos.” (pg. 88)

“Fénelon, em contrapartida, indigna-se de que preguem mais certas virtudes do que outras, porque um homem que querem elogiar as praticou, ao passo que ‘não se deve elogiar um herói senão para ensinar suas virtudes ao povo, senão para incentivá-lo a imitá-las’ (Dialogues sur l’éloquence, pg. 24-5)” (pg. 89)

“Portanto, o apoio nos valores concretos seria muito mais fácil quando se trata de conservar do que quando se trata de renovar. E a razão pela qual os conservadores se julgam realistas é, talvez, porque põem em primeiro plano semelhantes valores. As noções de fidelidade, de lealdade e de solidariedade, vinculadas a valores concretos, costumam caracterizar, aliás, a argumentação conservadora”. (pg. 90)

As hierarquias

“A argumentação se esteia não só nos valores, abstratos e concretos, mas também nas hierarquias, tais como a superioridade dos homens sobre os animais, dos deuses sobre os homens.
... ao lado das hierarquias concretas, como a que expressa a superioridade dos homens sobre os animais, há hierarquias abstratas, como a que expressa a superioridade do justo sobre o útil”. (pg. 90)

“O que caracteriza cada auditório é menos os valores que admite do que o modo como os hierarquiza”. (pg. 91)

“Tomemos, para ilustrar nossa tese, diferentes maneiras de examinar as relações existentes entre a certeza de um conhecimento e a importância ou o interesse que ele pode apresentar. Isócrates e Santo Tomás concedem mais primazia à importância do que à certeza. Par Isócrates ‘... é melhor emitir sobre assuntos úteis uma opinião razoável do que, sobre inutilidades, conhecimentos exatos’ (Discursos, t. I: Elogio de Helena, §5)” (pg. 93)

Os lugares

“... mas pode-se também recorrer a premissas de ordem muito geral, que qualificaremos com o nome de lugares, os tóroi (& 61556;& 61551;& 61552;& 61551;& 61545;), dos quais derivam os Tópicos, ou tratados consagrados ao raciocínio dialético.
... Aristóteles distinguia os lugares-comuns, que podem servir indiferentemente em qualquer ciência e não dependem de nenhuma, e os lugares específicos, que são próprios, quer de uma ciência particular, quer de um gênero oratório bem definido (Retórica, I, cap. 2, 1358 a).
Portanto, os lugares-comuns se caracterizavam, primitivamente, por sua imensa generalidade, que os tornava utilizáveis em todas as circunstâncias. (pg. 94)

“Os lugares-comuns de nossos dias se caracterizam por uma banalidade que não exclui de modo algum a especificidade. Tais lugares-comuns não são, a bem dizer, senão uma aplicação dos lugares-comuns, no sentido aristotélico, a temas particulares. (...)
Aristóteles estuda, nos Tópicos, toda espécie de lugares que podem servir de premissa para silogismos dialéticos ou retóricos e os classifica, segundo as perspectivas estabelecidas por sua filosofia, em lugares do acidente, do gênero, do próprio, da definição e da identidade. ... só chamaremos de lugares as premissas de ordem geral que permitem fundar valores e hierarquias e que Aristóteles estuda entre os lugares do acidente. Estes lugares constituem as premissas mais gerais, aliás amiúde subentendidas, que intervêm para justificar a maior parte de nossas escolhas”. (pg. 95)

Lugares da quantidade

Entendemos por lugares da quantidade os lugares-comuns que afirmam que alguma coisa é melhor do que outra por razões quantitativas. (...) Para Isócrates, o mérito é proporcional à quantidade de pessoas às quais se prestam serviços (Discursos, t. II: A Nícocles, § 8): os atletas são inferiores aos educadores, porque se beneficiam sozinhos de sua força, ao passo que os homens que pensam bem são proveitosos a todos (Discursos, t. II: Panegírico de Atenas, § 2). É o mesmo argumento que Timon utiliza para valorizar o panfleto: ‘O orador fala aos deputados, o publicista aos homens de Estado, o jornal aos seus assinantes, o Panfleto a todos... Onde o livro não penetra, o jornal chega. Onde o jornal não chega, o Panfleto circula (Livre de orateurs, pg. 90-1)’.
‘O todo é melhor do que a parte’ parece transpor, em termos de preferência, o axioma ‘o todo é maior do que a parte’ ”. (pg. 97)

“Outro lugar de Aristóteles afirma que: ‘É também mais desejável o que é mais útil em todas as ocasiões ou na maior parte do tempo: por exemplo, a justiça e a temperança são preferíveis à coragem, pois as duas primeiras sempre são úteis, ao passo que a coragem só o é em certos momentos (Tópicos, liv. III, cap. 2, 117 a, 35)’.
Rousseau aprecia os raciocínios desse tipo. É em semelhantes considerações de universalidade que é fundamentada a superioridade da educação que ele preconiza: ‘Na ordem social, em que todos os lugares estão marcados, cada qual deve ser educado para o seu. Se um particular formado para o seu lugar sai dele, já não serve para nada... Na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação comum é o estado de homem; e qualquer um que é bem-educado para este não pode cumprir mal aqueles com ele relacionados... Portanto, cumpre generalizar nossas visões e considerar em nosso aluno o homem abstrato, o homem exposto a todos os acidentes da vida humana (Émile, pg. 11-2)’ ”. (pg. 98)

“É preferível, diz Aristóteles, ... de duas coisas, aquela que, sendo possuída por todos, nos suprimiria a necessidade da outra, ...: se todos fossem justos, a coragem de nada serviria, ao passo que, se todos fossem corajosos, a justiça ainda seria útil (Tópicos, liv. III, cap. 2, 117 a-b)”.

“Enquanto todos podem entender-se sobre o caráter normal de um acontecimento desde que estejam de acordo sobre o critério do normal que será utilizado, a apresentação do normal como norma exige, ademais, o uso do lugar da quantidade. (...)
A passagem do normal ao normativo, que se encontra em todos os que fundamentam a ética na experiência, foi considerada, com toda a razão, um erro de lógica (Pascal, Pensées, 184 (484), pg. 871 (414, ed. Brunschvicg). Mas devemos reconhecer nisso um dos fundamentos válidos da argumentação, no sentido de que essa passagem é implicitamente admitida, seja qual for o domínio examinado. (...)
A passagem do normal à norma é um fenômeno deveras corrente, que parece ser natural. É a dissociação dos dois e sua oposição mediante a afirmação da prioridade da norma sobre o normal, que necessita de uma argumentação que a justifique: essa argumentação tenderá à desvalorização do normal, o mais das vezes pelo uso de outros lugares que não os da quantidade.
O excepcional é visto com desconfiança, salvo demonstração de seu valor. Descartes chega a fazer dessa desconfiança uma regra de sua moral provisória: ‘E, entre várias opiniões igualmente aceitas, só escolhia as mais moderadas; não só porque são sempre as mais cômodas para a prática e, verossimilmente, as melhores, pois todo excesso costuma ser mau...’ (Discours de la méthode, parte III, pg. 73-4)” (pg. 100)

Lugares da qualidade

Os lugares da qualidade, os menos apreensíveis, aparecem na argumentação quando se contesta a virtude do número. Será esse o caso dos reformadores, daqueles que se revoltam contra a opinião comum, tal como Calvino, que alerta Francisco I contra aqueles que argúem, opondo-se à sua doutrina, que ‘ela já é condenada por um consenso geral de todos os estados (Institution de la religion chrétienne, Au roy de France, pg. 5)’. Rejeita ele o costume, pois ‘a vida dos homens jamais foi regrada tão bem, que as melhores coisas agradassem à maior parte (Idem, pg. 11)’. Ele opõe ao número a qualidade da verdade garantida por Deus: ‘Em oposição a toda essa multidão é enviado Jeremias, para denunciar, da parte de Deus, que a Lei perecerá entre os Sacerdotes, o conselho será retirado dos sábios e a doutrina, dos Profetas (Idem, pg. 13)’.

“Mesmo os chefes podem, pois, enganar-se. Não se trata, no ponto extremo onde se coloca Calvino, de uma ciência superior concedida à elite. Já não se trata, tampouco, de um conhecimento da verdade correspondente ao que admitiria, como em Platão, um auditório universal de deuses e de homens. Trata-se da luta de quem detém a verdade, garantida por Deus, contra a multidão que erra. O verdadeiro não pode sucumbir, seja qual for o número de seus adversários: estamos em presença de um valor de ordem superior, incomparável. É esse aspecto que os protagonistas do lugar da qualidade não podem deixar de enfatizar: no limite, o lugar da qualidade redunda na valorização do único que, assim como o normal, é um dos pivôs da argumentação”. (pg. 101)

“Considerar entes como permutáveis, não ver o que produz a especificidade de suas personalidades é desvalorizá-las. Basta às vezes uma inversão dos termos para que se manifeste o caráter apagado de quem eles designam: ‘Thanks, Rosencrantz and gentle Guildenstern’, diz o Rei. ‘Thanks, Guildenstern and gentle Rosencrantz’, repete a Rainha (Shakespeare, Hamlet, ato II, cena II)”. (pg. 101)

“O mais difícil, dirá Aristóteles, é preferível ao que o é menos, pois apreciamos mais a posse das coisas que não são fáceis de adquirir (Tópicos, liv. III, cap. 2, 117 b).”

“Esse lugar é vinculado a um lugar muito importante citado por Aristóteles, que seria o da oportunidade: ‘Cada coisa é preferível no momento em que tem mais importância: por exemplo, a ausência de mágoa é mais desejável na velhice do que na juventude, pois tem mais importância na velhice’ (Idem, 117 a, 35-39)” (pg. 103) (POR QUÊ?)

“O lugar do irreparável se apresenta como um limite, que vem acentuar o lugar do precário: a força argumetativa, vinculada à sua evocação, pode ter um efeito fulminante. Exemplo, a célebre peroração de São Vicente de Paulo, dirigindo-se às damas piedosas e mostrando-lhes os órfãos por ele protegidos: ‘ Fostes suas mães segundo a graça, desde que suas mães segundo a natureza os abandonaram. Vedes agora se quereis também abandoná-los para sempre...; sua vida e sua morte estão em vossas mãos... Eles viverão, se continuardes a Ter para com eles um cuidado caridoso; mas, declaro-vos perante Deus, estarão mortos amanhã, se vós os desamparardes’ (segundo Baron, De la rhétorique, pg. 212). Se essa peroração teve tanto sucesso (o apelo resultou na fundação do Hospital das Crianças Abandonas), é ao lugar do irreparável que o deve.
O valor do irreparável pode, se quisermos pesquisar-lhe os fundamentos, relacionar-se com a quantidade: duração infinita do tempo que se escoará depois que o irreparável tiver sido feito ou constatado, certeza de que os efeitos, intencionais ou não, se prolongarão indefinidamente”. (pg. 103)

“Vê-se que o irreparável na argumentação é realmente um lugar do preferível, no sentido de que, quando ele se refere a um objeto, só pode ser na medida em que este é portador de um valor; não se mencionará o irreparável, o irremediável, quando se tratar de uma irreparabilidade que não nenhuma consequência na conduta”. (pg. 104)

“Os autores modernos, mesmo que sejam tão bons quanto os antigos, oferecem o inconveniente de não poder servir de norma, de modelo indiscutível: é a multiplicidade dos valores representados pelos modernos que lhes causa a inferioridade pedagógica. Esse mesmo lugar serve a Pascal para justificar o valor do costume: ‘ Por que se seguem as antigas leis e as antigas opiniões? Será que são mais sadias? Não, mas são únicas, e nos extirpam a raiz da diversidade (Pensées)’. O que é único se beneficia de um prestígio inegável: a exemplo de Pascal, pode-se explicar com isso um fenômeno de adesão, fundamentando-o nesse valor positivo que se toma como base de uma argumentação, sem dever fundamentá-lo por sua vez. A inferioridade do múltiplo, seja ele o fungível ou o diverso, parece admitida com muita frequência, sejam quais forem as justificações, muito variadas aliás, que seríamos capazes de lhe encontrar”. (pg. 104-5)

Outros lugares

“Poder-se-ia pensar em reduzir todos os lugares aos da quantidade ou da qualidade, ou mesmo em reduzir todos os lugares aos de uma única espécie... mas parece-nos mais útil... consagrar algumas exposições aos lugares da ordem, do existente, da essência e da pessoa.
Os lugares da ordem afirmam a superioridade do anterior sobre o posterior, ora da causa, dos princípios, ora do fim ou do objetivo.
A superioridade dos princípios, das leis, sobre os fatos, sobre o concreto, que parecem ser a aplicação dos primeiros, é admitida no pensamento não-empirista”. (pg. 105)

“Muitas das grandes discussões filosóficas giram em torno da questão de saber o que é anterior e o que é posterior, para daí tirar conclusões quanto à predominância de um aspecto do real sobre o outro. As teorias finalistas, para valorizar o objetivo, transformam-no em verdadeira causa e origem de um processo. O pensamento existencial, que insiste na importância da ação voltada para o futuro, relaciona o projeto com a estrutura do homem e, com isso, ‘busca sempre remontar ao originário, à fonte’ (J. Wahl, Sur les philosophies de l’existence, Glanes 15-16, pg. 16)” (pg. 106)

“Entendemos por lugar de essência não a atitude metafísica que afirmaria a superioridade da essência sobre cada uma de suas encarnações – e que é fundamentada num lugar da ordem -, mas o fato de conceder um valor superior aos indivíduos enquanto representantes bem caracterizados dessa essência”. (pg. 106)

“É porque o homem é feito para pensar que, para Pascal, bem pensar é o primeiro princípio da moral. É porque, para Marangoni, as deformações são inerentes à essência da arte que é impossível encontrar obra sem deformação entre as consideradas perfeitas (M. Maranoni, Apprendre à voir, pg. 103)

Utilização e redução dos lugares:
Espírito clássico e espírito romântico

“Seria interessante destacar, nas diferentes épocas e nos diferentes meios, os lugares que são aceitos com maior frequência, ou pelo menos parecem aceitos pelo auditório, tal como a imagina o orador.
... Para acentuar o horror de uma heresia ou de uma revolução, empregam-se ora lugares da quantidade, mostrando que essa heresia acumula todas as heresias do passado, que essa revolução, mais do que qualquer outra, amontoa conturbações sobre conturbações, ora lugares da qualidade, mostrando que ela preconiza um desvio inteiramente novo ou um sistema que jamais existiu antes (Ver exemplos em Rivadeneira, Vida del bienaventurado Padre Ignacio de Loyola, pg. 194)”. (pg 108)

“A situação argumentativa, essencial para a determinação dos lugares aos quais se recorrerá, é por sua vez um complexo que abrange, ao mesmo tempo, o objetivo a que se visa e os argumentos com os quais há risco de se chocar. Esses dois elementos estão, aliás, intimamente ligados; com efeito, o objetivo a que se visa, mesmo que se trate de desencadear uma ação bem definida, é a um só tempo a transformação de certas convicções e a réplica a certos argumentos, transformação e réplica que são indispensáveis ao desencadeamento dessa ação”. (pg. 109)

“Sabemos que Calvino costuma utilizar lugares da qualidade. É, como dizíamos, característica frequente da argumentação dos que querem mudar a ordem estabelecida. Em que medida isso se deu, também, porque os adversários de Calvino recorreram aos lugares da quantidade? ‘Eles põem grande empenho em recolher muitos testemunhos da Escritura, a fim de que, se não puderem vencer por tê-los melhores e mais apropriados do que os nossos, possam pelo menos abater-nos com a grande profusão’ (Calvino, Institution de la religion chrétienne, liv. II, cap. V, §6) (pg. 109) Obs.: mudar a ordem estabelecida -> propaganda

“Os lugares do existente podem ser relacionados com os lugares da quantidade, vinculados ao duradouro, ao estável, ao habitual, ao normal. Mas também podem ser relacionados com os lugares da qualidade, vinculados ao único e ao precário: o existente tira seu valor do fato de impor-se enquanto vivência, enquanto irredutível a qualquer outro objeto, enquanto atual. Poder-se-ia, aliás, sustentar que o existente, como concreto, fundamenta os lugares da qualidade, dá valor ao único, e que o existente, como real, fundamenta os lugares da quantidade e dá sentido ao duradouro e ao que se impõe universalmente”. (pg. 110)

O lugar da essência pode ser relacionado com o normal, que é o único que permite, aos pensadores empiristas, a constituição de padrões, de estruturas, cuja realização perfeita foi apreciada em alguns de seus representantes. Mas, para os racionalistas, para um Kant, por exemplo, é o ideal, o arquétipo abstrato, o único fundamento válido de toda normalidade (Kant, Critique de la raison pure, pg. 305 ss.): que esse arquétipo seja valorizado como fonte e origem, ou como realidade de uma espécie superior, como universal ou como racional, trata-se ainda de outro problema”. (pg. 110)

“Os lugares da pessoa podem ser fundamentados nos da ess~encia, da autonomia, da estabilidade, mas também na unicidade e na originalidade do que se relaciona com a personalidade humana. ... Assim é que a primazia concedida aos lugares da quantidade e a tentativa de reduzir a esse ponto de vista todos os outros lugares caracteriza o espírito clássico; o espírito romântico argumenta, pelo contrário, reduzindo os lugares aos lugares da qualidade.
O que é universal e eterno, o que é racional e comumente válido, o que é estável, duradouro, essencial, o que interessa ao maior número, será considerado superior e fundamento de valor entre os clássicos.
O único, o original e o novo, o distinto e o marcante na história, o precário e o irremediável são lugares românticos.
As virtudes clássicas de veracidade e de justiça, o romântico oporá as de amor, de caridade e de fidelidade; se os clássicos se apegam aos valores abstratos, ou ao menos universais, os românticos preconizam os valores concretos e particulares; à superioridade do pensamento e da contemplação, preconizada pelos clássicos, os românticos oporão a da ação eficaz.
Os clássicos se empenharão mesmo em justificar a importância que conferem aos lugares da qualidade apresentando-os como um aspecto da quantidade. A superioridade de uma personalidade original será justificada pelo caráter inesgotável de seu gênio, pela influência que exerce sobre o grande número, pela grandeza das mudanças que ocasiona. ...
Para os românticos, os aspectos quantitativos que levarão em conta poderiam reduzir-se a uma hierarquia puramente qualitativa; tratar-se-á então de uma verdade mais importante, que formará uma realidade de nível superior. Quando o romântico opõe à vontade individual a do grande número, esta última pode ser concebida como manifestação de uma vontade superior, a do grupo, que será descrito como um ser único, com sua história, sua originalidade e seu gênio próprios”. (pg 110-11)

b) OS ACORDOS PRÓPRIOS DE CERTAS ARGUMENTAÇÕES

Acordos de certos auditórios particulares

“Aquilo a que chamamos habitualmente senso comum consiste numa série de crenças admitidas no seio de uma determinada sociedade, que seus membros presumem ser partilhadas por todo ser racional. Mas, ao lado dessas crenças, existem acordos, próprios dos partidários de uma disciplina particular, seja ela de natureza científica ou técnica, jurídica ou teológica. Tais acordos constituem o corpus de uma ciência ou de uma técnica, podem resultar de certas convenções ou da adesão a certos textos, e caracterizam certos auditórios.
Esses auditórios se distinguem em geral pelo uso de uma linguagem técnica que lhes é própria. (...) Pois esses termos, que se deseja tornar tão unívocos quanto possível no contexto da disciplina, acabam por resumir um conjunto de conhecimentos, de regras e de convenções, cuja ignorância faz com que sua compreensão, enquanto termos tornados técnicos, escape inteiramente aos profanos”. (pg. 112)

“Para entrar num grupo especializado, faz-se necessária uma iniciação. Enquanto o orador deve adaptar-se normalmente ao seu auditório, não se dá o mesmo com o mestre encarregado de ensinar aos alunos o que é admitido no grupo particular ao qual estes desejam agregar-se ou, pelo menos, ao qual desejam agregá-los as pessoas responsáveis por sua educação. (...) Por essas particularidades, a iniciação se distingue da vulgarização dirigida ao público em geral, para informá-lo de certos resultados interessantes, numa linguagem não técnica, e sem o capacitar nem para se servir dos métodos que permitiram estabelecer esses resultados nem, a fortiori, para empreender a crítica destes últimos. Tais resultados são, de certo modo, apresentados como independentes da ciência que os elaborou: eles adquiriram o estatuto de verdades, de fatos. A diferença entre a ciência que se edifica, a dos cientistas, e a ciência aceita, que se torna a do auditório universal, é característica da diferença entre iniciação e vulgarização (Cfr. Ch. Perelman, La vulgarisation scientifique, problème philosophique, Revue des Alumni, março de 1953, XXI, 4). (pg. 112-12)

“Pois a não-evidência atribuída a certas regras, a suposta necessidade de justificá-las, resulta do fato de convertermos imediatamente a possibilidade de contestações numa busca de fundamentos; é que toda dificuldade de aplicação, ainda que os valores protegidos pela lei não sejam discutidos, corre o risco de dar início a toda uma argumentação na qual intervirão provavelmente os fundamentos possíveis da regra. Da mesma forma, dizer que um texto sacro é evidente e, uma vez que não se trata de rejeitá-lo, pretender que há uma única maneira de interpretá-lo”. (pg. 114-15)

“Mesmo na vida diária, certos fatos são considerados não ocorridos, e isso porque seria de mau gosto aventá-los. O orador que ataca um adversário não pode avançar certas informações relativas ao comportamento deste último sem depreciar a si próprio: um grande número de regras morais, de regras de etiqueta ou de deontologia impedem a introdução de certos fatos num debate. O auditório jurídico constitui, a esse respeito, um caso privilegiado apenas porque nele as restrições são codificadas e obrigatórias para todas as partes; é isso que distingue essencialmente a prova judiciária da prova histórica (Aubry e Rau, Cours de droit civil français, t. XII, pg. 63, nota 2 bis de Bartin).
Uma distinção tão importante quanto essa concerne às presunções: o vínculo que une certos fatos a outros pode ser considerado pela lei ‘tão forte que a probabilidade de que este esteja acompanhado daquele equivale à certeza judiciária daquele’ (Idem, pg. 100, nota 1 bis de Bartin)”. (pg. 116)

“O que caracteriza geralmente as presunções legais é a dificuldade que há em derrubá-las: elas são amiúde irrefragáveis ou só podem ser recusadas segundo regras muito precisas. Por vezes concernem apenas ao ônus da prova. Este é quase sempre, perante qualquer auditório, função de presunções aceitas. Mas a escolha destas não é imposta como o é em certas matérias jurídicas”. (pg. 116)

“ ‘Um profano’, diz Jouhandeau, ‘que assiste a uma discussão de teólogos não está longe de pensar que descobre um mundo onde as pessoas se empenham em disparatar juntas com a mesma lógica imperturbável que os internos de uma casa de loucos’ (M. Jouhandeau, De la grandeur, pg. 98).
Daí resulta que pode ser vantajoso para o orador a escolha de um auditório determinado. Quando o auditório não é imposto pelas circunstâncias, uma argumentação pode ser apresentada primeiro a certas pessoas, depois a outras, e pode tirar proveito seja da adesão das primeiras, seja, caso mais curioso, da rejeição destas: a escola dos auditórios e dos interlocutores, assim como a ordem na qual se apresentam as argumentações, exercem grande influência na vida pública.
A vizinhança dos auditórios, especializados e não-especializados, reage sobre a argumentação. Um artifício assinado por Schopenhauer, como utilizável durante uma discussão entre cientistas na presença de um público incompetente, consiste em lançar uma objeção não-pertinente, mas que o adversário não poderia refutar sem longos desenvolvimentos técnicos (Schopenhauer, ed. Piper, vol. 6: Eristische Dialektik, pg. 418 – Kunstgriff 28). Esse expediente deixa o adversário numa situação difícil, porque o obriga a valer-se de raciocínios que os ouvintes são incapazes de seguir. O adversário poderá, entretanto, denunciando a manobra, desacreditar quem a ela recorreu, e essa desqualificação, que não requer premissas técnicas, poderá funcionar com todos os membros do auditório, tanto leigos como cientistas. Assim também, num processo, a tendência para julgar em direito se combina com a tendência para julgar em equidade”. (pg. 117)

Acordos próprios de cada discussão

“As premissas da argumentação consistem em proposições admitidas pelos ouvintes. Quando estes não estão ligados por regras precisas que os obrigam a reconhecer certas proposições, todo o edifício de quem argumenta funda-se apenas num fato de ordem psicológica, a adesão dos ouvintes.
(...) Quando Alice, conversando com os seres do País das Maravilhas, quer desdizer uma de suas afirmações, ouve a objeção: ‘Quando você disse uma vez alguma coisa, isso estabelece essa coisa, e você tem de aceitar as consequências dessa afirmação’ (L. Carroll, Through the Looking-Glass, pg. 293). Réplica esquisita, se nos pusermos no plano da verdade, onde a mudança é sempre permitida, pois se pode alegar um erro. Mas observação profunda se nos pusermos no campo da ação, onde o que foi dito constitui uma espécie de envolvimento que, sem razão suficiente, não poderia ser desfeito, sob pena de destruir qualquer possibilidade de vida em comum”. (pg. 118-19)
Obs.: Num campo de batalha, uma ordem dada pode ter consequências irreparáveis, quando não houver tempo de se emitir uma contra-ordem.
As afirmações sempre devem ser responsáveis. Em ambientes hostis e sectários, convém não imitar a jornalista da Nigéria, que, num concurso de Miss Mundo, escreveu que o Profeta Maomé certamente gostaria de desposar uma das beldades presentes. A afirmação foi o estopim que incendiou a comunidade islâmica, em enfrentamentos contra cristãos no país, resultando em mais de 200 mortes.

“De uma maneira geral, todo o aparato de que se cerca a promulgação de certos textos, o pronunciamento de certas falas, tende a tornar-lhe mais difícil o repúdio e a aumentar a confiança social. O juramento, em especial, acresce à adesão expressa uma sanção religiosa ou quase religiosa. Pode ele referir-se à verdade dos fatos, à adesão às normas, estender-se a um conjunto de dogmas, e o relapso era passível das maiores penas, porque transgredia um juramento”. (pg. 119)

“A estranheza de nossa condição, segundo Paulhan, está em ser ‘fácil encontrar razões para os atos singulares, difícil para os atos comuns. *Um homem que come carne de vaca não sabe por que come carne de vaca; mas, se trocar para sempre a carne de vaca pelo salsífi ou pelas rãs, não o fará sem inventar mil provas, umas mais eruditas do que as outras’ (J. Paulhan, Les fleurs des Tarbes, pg. 212)” (pg. 119-20)

“O que Bentham chama de sofisma do medo da inovação ou também de sofisma do veto universal, que consiste em opor-se a qualquer medida nova, simplesmente por ela ser nova, não é de modo algum um sofisma, mas o efeito da inércia que intervém em favor do estado de coisas existentes. Este só deve ser modificado se houver razões a favor da reforma.
Bentham compreende isso muito bem, na realidade, pois àquele que alega que, se a medida fosse boa, já teria sido tomada há muito tempo, replica que interesses particulares podiam opor-se a ela ou que ela podia necessitar de um progresso dos conhecimentos, encarregando-se assim, de fato, do ônus da prova (Oeuvres, t. I: Traité des sophismes politiques, pg. 449-50). Notemos a esse respeito que se, em direito, o mais das vezes cabe ao demandante o encargo probatório, é porque o direito se conforma à inércia; é concebido de modo que ratifique, até informação mais ampla do caso, os fatos tais como são Cf. R. Demogue, Les notions fondamentales du droit privé, pg. 543).
É graças à inércia que a técnica da coisa julgada é prolongada, por assim dizer, pela técnica do precedente. A repetição do precedente só difere da continuação de um estado existente porque os fatos são encarados como algo descontínuo. Por essa ótica ligeiramente diferente, continuamos a ver a inércia em atividade: assim como é preciso dar a prova da utilidade de mudar um estado de coisas, é preciso dar a prova da oportunidade de mudar de conduta diante de uma situação que se repete.
Nos países tradicionalistas, o precedente se torna, assim, parte integrante do sistema jurídico, um modelo pelo qual podemos nos prevalecer, contanto que mostremos que o caso novo se parece suficientemente com o antigo”. (pg. 121)

“O silêncio pode ser interpretado, quer como indício de que nenhuma objeção ou refutação foi encontrada, quer como indício de que o caso é indiscutível. A primeira interpretação afirma um acordo de fato do interlocutor; a Segunda tira do silêncio o direito. ‘O que o adversário não nega’ constitui para Quintiliano um elemento no qual o juiz pode estribar-se (Quintiliano, vol. II, liv. V, cap. X, §13).
O perigo do acordo tirado do silêncio é que explica que, em muitas circunstâncias, escolha-se responder alguma coisa, mesmo que a objeção de que se dispõe momentaneamente seja fraca.
A associação que se estabelece entre silêncio e confissão pode, contudo, intervir em detrimento de certas afirmações. O silêncio absoluto ante certas medidas tomadas pelos poderes públicos parece suspeito, pois é difícil interpretá-lo como uma aprovação unânime; prefere-se, para interpretá-lo, recorrer à hipótese da intimidação.
(...) O uso dialético das perguntas e das respostas tende essencialmente a assegurar acordos explícitos, dos quais se poderá tirar partido em seguida; esta é uma das características da técnica socrática. Uma das explicações desse método consiste na busca de um acordo explícito sobre o ponto a ser julgado, aquele de que o adversário fará depender o desfecho do debate, ou sobre as provas que ele admitirá e considerará concludentes. (pg. 122-23)

“Quintiliano dá este conselho aos advogados:
‘Por isso poderá ser vantajoso dissimular algumas de nossas armas. Pois o adversário as reclama com insistência e amiúde faz com que delas dependa o desfecho da causa, crendo que não as temos; reclamando nossas provas, confere-lhes autoridade’ (Quintiliano, vol. II, liv. VI, cap. IV, § 17)”.
Obs.: Advogados são como urubus: fazem festa em cima da carniça alheia.

“Receando que o acusado desvie a atenção da assembléia para pontos secundários, Demóstenes prescreve-lhe, por assim dizer, a técnica de sua defesa, cujo valor, por isso mesmo, se compromete a reconhecer. Assim é que o interlocutor que, numa controvérsia, repete, ponto por ponto, as alegações de seu predecessor prova sua lealdade no debate, ao aceitar a ordem do discurso.
Assegurar para si certos acordos ou certas rejeições é, portanto, um dos objetivos que determinam a ordem da argumentação. Com efeito, a construção de um discurso não é unicamente o desenvolvimento de premissas dadas no início; é também estabelecimento de premissas, explicitação e estabilização de acordos (Cf. § 103: Ordem e persuasão).
Assim é que cada discussão apresenta etapas, balizadas pelos acordos que se devem estabelecer, resultantes às vezes da atitude das partes, e que às vezes são institucionalizadas graças a hábitos assumidos ou a regras explícitas de procedimento”. (pg. 124)

A argumentação ad hominem e a petição de princípio

As possibilidades de argumentação dependem do que cada qual está disposto a conceder, dos valores que reconhece, dos fatos sobre os quais expressa seu acordo; por isso, toda argumentação é uma argumentação ad hominem ou ex concessis. No entanto, se é frequente opor à argumentação ad hominem a argumentação ad rem (Cf. Schopenhauer, ed. Brockhaus, vol. 6: Parerga und Paralipomena, II, pg. 29), a primeira baseada na opinião e a Segunda referente à verdade ou à própria coisa, é porque se esquece que a verdade em questão deve ser admitida. Em termos da nossa teoria, a argumentação ad rem corresponde a uma argumentação que o orador pretende válida para toda a humanidade racional, ou seja, ad humanitatem. Esta seria um caso particular, mas eminente, da argumentação ad hominem.
A argumentação que visa ao auditório universal, a argumentação ad humanitatem, evitará, tanto quanto possível, o uso de argumentos que só forem válidos para grupos particulares. Será este o cuidado, notadamente, da argumentação filosófica.
Poderíamos distinguir tipos de argumentos ad hominem tão variados quanto os auditórios aos quais se dirigem; propomos qualificá-los de argumentos ad hominem, no sentido restrito, quando o orador sabe que eles não teriam peso para o auditório universal, tal como ele o imagina.
Eis um exemplo muito simples. Seremos onze ao almoço. A empregada exclama: ‘Oh! Isso dá azar!’. Apressada, a patroa responde: ‘Não, Marie, você está enganada: treze é que dá azar’. O argumento não tem réplica e termina imediatamente o diálogo. Essa resposta pode ser considerada um tipo de argumentação ad hominem. Não questiona nenhum interesse pessoal da empregada, mas baseia-se no que esta admite. Mais rapidamente eficaz do que seria uma dissertação sobre o ridículo das superstições, ela permite argumentar no âmbito do preconceito, ao invés de combatê-lo.
Os argumentos ad hominem são em geral qualificados de pseudo-argumentos, porque são argumentos que persuadem manifestamente certas pessoas, ao passo que não o deveriam, pela simples razão de que, pensa quem os desvaloriza assim, não teriam nenhum efeito sobre ele próprio. De fato, quem os trata com tal desprezo, de um lado, acredita que a única argumentação verdadeira é a que se dirige ao auditório universal e, de outro, constitui-se representante autêntico desse auditório. Por considerarem que toda argumentação deve valer para o auditório universal, alguns verão na eficácia dos argumentos ad hominem stricto sensu um sinal da fraqueza humana. Schopenhauer qualificará de artifício (Kunstgriff) o uso do argumento ad hominem que consiste em pôr o interlocutor em contradição com suas próprias afirmações, com os ensinamentos de um partido que ele aprova ou com seus próprios atos (Schopenhauer, ed. Piper, vol. 6: Eristische Dialektik, pg. 415 – Kunstgriff 16). (...)
Não se deve confundir o argumento ad hominem com o argumento ad personam, ou seja, com um ataque contra a pessoa do adversário, que visa, essencialmente, a desqualificá-lo. A confusão pode estabelecer-se porque as duas espécies de argumentação costumam interagir. Aquele cuja tese foi refutada graças a uma argumentação ad hominem vê seu prestígio diminuído, mas não esqueçamos que esta é uma consequência de qualquer refutação, seja qual for a técnica utilizada: ‘Um erro factual’, já observou La Bruyère, ‘lança um homem sábio no ridículo’ (La Bruyère, Bibl. La Pléiade, Les caractères, Des jugements, 47, pg. 379)” (pg. 125-26).

“É em função da argumentação, em geral, e da argumentação ad hominem, em particular, que se pode compreender em que consiste a petição de princípio.
Esta é amiúde considerada um erro na técnica da demonstração, e Aristóteles trata dela não só nos Tópicos mas também nos Analíticos (Aristóteles, Primeiros analíticos, liv. II, cap. 16, 64 b26-65a36): ela consistiria no fato de se postular o que se quer provar.
Constatemos imediatamente que, no plano da lógica formal, a acusação de petição de princípio é desprovida de sentido. Poder-se-ia, de fato, pretender que toda dedução formalmente correta consiste numa petição de princípio, e o princípio de identidade, que afirma que toda proposição implica a si própria, seria mesmo a petição de princípio formalizada.
De fato, a petição de princípio, que não diz respeito à verdade, mas à adesão dos interlocutores às premissas que se pressupõem, não é um erro de lógica, mas de retórica; é compreendida, não no interior de uma teoria da demonstração, mas relativamente à técnica argumentativa. A petição de princípio consiste num uso do argumento ad hominem quando ele não utilizável, porque ela supõe que o interlocutor já aderiu a uma tese que o orador justamente se esforça por fazê-lo admitir. Além disso, é preciso que as duas proposições, o princípio e a conclusão, que nunca são exatamente as mesmas, estejam suficientemente próximas uma da outra para que a acusação de petição de princípio seja justificada. Por isso, quase sempre surge uma discussão a respeito da legitimidade da acusação.
(...) É extremamente raro que essa dependência fique suficientemente assegurada para que a acusação seja admitida sem réplica. Isso porque semelhante acusação implica que se pode, numa argumentação, discernir com precisão não só se, sim ou não, o enunciado de uma premissa se distingue do enunciado da conclusão, mas também qual parte compete a certo tipo de argumentos, e exclusivamente a ele, na relação ‘conclusão-premissa-conclusão’ (pg. 127)”.

“Quem acusa seu interlocutor de cometer uma petição de princípio terá, pois, todo o interesse de formalizar o raciocínio. Eis uma petição de princípio, assinalada por Navarre na esteira de Blass, numa passagem do discurso de Antifonte sobre o assassínio de Herodes [73]:
‘Bem sabeis que mereço muito mais vossa piedade do que um castigo. De fato, o castigo cabe aos culpados, a piedade aos que são objeto de uma acusação injusta’ (O. Navarre, Essai sur la rhétorique grecque avant Aristote, pg. 141).
A ordem da premissa maior e da conclusão está invertida. A premissa menor subentendida (‘Sou objeto de uma acusação injusta’) não pode ser admitida pelos ouvintes porque, se tivesse sido aceita, o processo estaria julgado. É por essa razão que Antifonte, em vez de apresentar o direito que pretende Ter à piedade como conclusão de um silogismo, apresenta sua afirmação antes da premissa maior para conferir-lhe uma espécie de validade independente”. (pg. 128)

“Bentham qualificou de ‘petição de princípio oculta numa única palavra’ a utilização de apreciações valorizadoras ou desvalorizadoras na descrição de certos fenômenos (Bentham, Oeuvres, t. I: Traité des sophismes politiques, pg. 481)”.

“Para concluir, a petição de princípio é um erro de argumentação. Concerne à argumentação ad hominem e a pressupõe, pois seu campo não é o da verdade, mas o da adesão. Se reconhecermos que é ilegítimo cometer petições de princípio, ou seja, fundamentar nossa argumentação em premissas que o auditório rejeita, isso implica que podemos servir-nos daquelas que ele admite. Quando se trata de verdade, e não de adesão, o argumento ad hominem dever ser proscrito, mas nesse caso a petição de princípio é impossível. Os dois são correlativos: não se pode levar em conta a acusação de ‘petição de princípio’ e pesar a legitimidade da crítica que ela implica senão no âmbito de uma teoria da argumentação” (pg. 129)


Capítulo II
A escolha dos dados e sua adaptação com vista à argumentação

A seleção dos dados e a presença

“Os acordos de que dispõe um orador, nos quais pode apoiar-se para argumentar, constituem um dado, mas tão amplo e suscetível de ser utilizado de modos tão diversos, que a maneira de prevalecer-se dele apresenta uma importância capital. Portanto, antes de examinar o uso argumentativo desse dado, é indispensável chamar a atenção sobre o papel da seleção prévia dos elementos que servirão de ponto de partida para a argumentação e da adaptação deles aos objetivos desta última”. (pg. 131)

“O fato de selecionar certos elementos e de apresentá-los ao auditório já implica a importância e a pertinência deles no debate. Isso porque semelhante escolha confere a esses elementos uma presença, que é um fator essencial da argumentação, por demais menosprezado, aliás, nas concepções racionalistas do raciocínio.
Um bonito relato chinês ilustrará o nosso pensamento:
‘Um rei vê passar um boi que deve ser sacrificado. Sente piedade dele e ordena que o substituam por um carneiro. Confessa que isso aconteceu porque estava vendo o boi e não via o carneiro’ (Meng-Tseu, Primeiro livro, § 7 – Pauthier, Confucius et Mencius, pg. 230 ss – Resumido por Pareto, Traité de sociologie, I, pg. 600, § 1135, a respeito de sua análise da piedade como resíduo).
A presença atua de um modo direto sobre a nossa sensibilidade. É um dado psicológico que, como mostra Piaget, exerce uma ação já no nível da percepção: por ocasião do confronto de dois elementos, por exemplo, um padrão fixo e grandezas variáveis com as quais ele é comparado, aquilo em que o olhar está centrado, o que é visto de um modo melhor ou com mais frequência é, apenas por isso, supervalorizado (Piaget, Introduction à l’épistémologie génétique, vol. I, pg. 174-5)”. (pg.132)

“Bacon exprime, na lignuagem filosófica de seu tempo, uma idéia próxima da nossa: a presença, fenômeno psicológico no início, torna-se um elemento essencial na argumentação”. (pg. 133)

“Há que observar, aliás, que o esforço para tornar presente à consciência pode referir-se não só a um objeto real, mas também a um juízo ou a todo um desenvolvimento argumentativo. Esse esforço visa, na medida do possível, fazer que se ocupe, com essa presença, todo o campo da consciência e isolá-lo, por assim dizer, do conjunto mental do ouvinte. E isso é capital. Se foi possível constatar que um silogismo bem conduzido e aceito pelo ouvinte não determina necessariamente este último a agir conformemente às conclusões, é porque as premissas, isoladas durante a demonstração, puderam esbarrar em obstáculos, depois de terem entrado no circuito mental de quem elas deveriam persuadir (R.D.D. Whately, Elements of Rhetoric, Apêndice C, pg. 366 ss - Cf. § 6: Persuadir e convencer)”.

“... leva à conclusão inevitável de que toda argumentação é seletiva. Ela escolhe os elementos e a forma de torná-los presentes, Com isso, expõe-se inevitavelmente à crítica de ser parcial e, portanto, parcial e tendenciosa. E é uma censura que se deve levar em conta quando se trata de uma argumentação que pretende ser convincente, ou seja, válida para o auditório universal. Uma argumentação tendenciosa, adotada de caso pensado, com vistas a uma posição que se favorece por interesse ou por função, deveria ser completada pela argumentação adversa, a fim de permitir um equilíbrio na apreciação dos elementos conhecidos. O juiz só decidirá depois de ter ouvido as duas partes”. (pg. 135-6).

“Toda argumentação supõe, portanto, uma escolha, que consiste não só na seleção dos elementos que são utilizados, mas também na técnica da apresentação destes”. (pg. 136)

A interpretação dos dados

Toda demonstração exige a univocidade dos elementos nos quais ela se fundamenta. Presume-se que estes últimos são compreendidos por todos da mesma forma, graças a meios de conhecimento que se supões intersubjetivos, e, se não for esse o caso, reduz-se artificialmente o objeto do raciocínio aos únicos elementos cuja ambiguidade parece, de fato, excluída”. (pg. 136-7)

“As infinita complexidade das interpretações, sua mobilidade e sua interação explicam suficientemente a impossibilidade de reduzir todos os enunciados a proposições cuja probabilidade numérica possa ser determinada. (...) As possibilidades de interpretação parecem inesgotáveis.
Por vezes, o esforço daqueles que argumentam não visa tanto impor uma determinada interpretação como mostrar a ambiguidade da situação e as diversas maneiras de compreendê-la. (...) Para Pascal, o que nos impede de reconhecer as verdades é a nossa vontade corrompida (Pascal, Bibl. De la Pléiade, De l’esprit géométrique et de l’art de persuader, seção II, pg. 378); nessa concepção não se concebe justificação racional possível para uma multiplicidade de interpretações”. (pg. 139)

“Entre os antigos , sejam eles filósofos, juristas ou teólogos, a interpretação concerne normalmente a textos; foram sobretudo os psicólogos modernos que insistiram na ubiqüidade da interpretação, a qual não está ausente sequer do nível da percepção (Cf. Claparède, La genèse de l’hypothèse). Para dissipar um pouco as confusões que esses usos múltiplos da noção de interpretação não deixariam de provocar, sugerimos uma distinção – que parece essencial, numa teoria da argumentação – entre a interpretação de signos e a de indícios. Entendemos por signos todos os fenômenos suscetíveis de evocar outro fenômeno, na medida em que são utilizados num ato de comunicação, com vistas a essa evocação. Sejam eles lingüísticos ou não, o importante, para nós, é a intenção de comunicar que os caracteriza. O indício, em contrapartida, permite evocar outro fenômeno, de uma forma por assim dizer objetiva, independentemente de qualquer intencionalidade. O mesmo ato, o de fechar uma janela, pode ser, conforme o caso, signo convencionado ou indício de que alguém está com frio. A ordem ‘saiam!’ pode ser simultaneamente interpretada não só como um convite a sair dirigido a alguém, mas também um indício da cólera de quem a profere”. (pg. 139)

A interpretação do discurso e seus problemas

“... assistimos a um esforço para encontrar regras que permitam limitar as demasiado amplas possibilidades de interpretação teoricamente admissíveis.
Ninguém trabalhou para isso com mais paixão do que I.A. Richards. Para ele, a retórica não é essencialmente ligada, como para nós, à argumentação; ela é, como para Jean Paulhan, estudo da expressão, porém, mais especialmente ainda, da interpretação lingüística; a retórica deveria ser, segundo ele, o estudo do mal-entendido e das maneiras de saná-lo (I.A. Richards, The Philosophie of Rhetoric, pg. 3). (pg. 140)

“É sempre o contexto, diz-nos Richardas, que atribui a uma palavra sua função e é somente pelo contexto que podemos descobrir o que ela desmpenha”. (pg. 140)

“Todo autor deve poder contar com a boa vontade do intérprete (I.. Richards, A symposium on emotive meaning, The philosophical Reviev, 1948, pg. 145); este estará tanto mais disposto ao esforço quanto mais prestigioso for o texto. ... Quando o crente interpreta uma passagem da Bíblia, supõe que o texto é não só coerente, mas ainda verídico. Como diz Pascal: ‘Mesmo quando a palavra de Deus, que é veraz, é falsa literalmente, é verdadeira espiritualmente... (Pensées)’. Mas aquele que decidiu nada rejeitar da Escritura só poderá interpretá-la de acordo com verdades às quais adere previamente”. (pg. 141)

A escolha das qualificações

“A organização dos dados com vistas à argumentação consiste não só na interpretação deles, no significado que se lhes concede, mas também na apresentação de certos aspectos desses dados, graças aos acordos subjacentes na linguagem que é utilizada.
Essa escolha se manifesta da forma mais aparente pelo uso de epíteto. Este resulta da seleção visível de uma qualidade que se enfatiza e que deve completar nosso conhecimento do objeto. Esse epíteto é utilizado sem justificação, porque se presume que enuncia fatos incontestáveis; apenas a escolha desses fatos parecerá tendenciosa. É permitido chamar a Revolução Francesa de ‘aquela sangrenta revolução’, mas não é a única maneira de qualificá-la e outros epítetos também poderiam perfeitamente ser escolhidos. O papel argumentativo dos epítetos é percebido com maior clareza quando duas qualificações simétricas e de valor oposto parecem igualmente possíveis: qualificar Orestes de ‘assassino de sua mãe’ ou de ‘vingador de seu pai’, dizer de uma mula ‘filha de jumento’ ou ‘filha do corcel de patas rápidas (Aristóteles, Retórica, liv. III, cap. 2, § 14, 1405 b), é escolher nitidamente um ponto de vista cujo caráter tendensioso se percebe porque se vê imediatamente como se poderia corrigi-lo. Mas nem todos os epítetos se apresentam como uma escolha entre dois pontos de vista que exigem, por assim dizer, ser completados um pelo outro; o mais das vezes os aspectos de uma realidade se situam em planos diferentes, e uma visão mais completa do real em planos diferentes tem de consistir numa multiplicação progressiva de aspectos para os quais se chama a atenção'” (pg. 143)

Obs.: “Lula-laite” (light), “Lulinha paz e amor”, “Getúlio, pai dos pobres”

“Mas, na verdade, as classificações existentes que utilizam na qualificação são numerosas, não sendo possível qualificar sem escolher, ao mesmo tempo, a classificação à qual se concederá a preeminência. Tal escolha raramente é desprovida de intenção argumentativa. Com efeito, as classes são caracterizadas não só por características comuns aos seus membros, mas ainda, e às vezes sobretudo, pela atitude adotada a seu respeito, pela maneira de julgá-las e de tratá-las. As diversas legislações regulamentam essa relação: declarar alguém que cometeu um roubo é também determinar as penas de que é passível. Dizer de alguém que sofre de tal doença já é prejulgar, pelo menos parcialmente, o tratamento a que o submeterão”. (pg. 144)

“Não só a argumentação concreta implica a existência de classificações, mas às vezes até nos apoiamos nestas últimas para desqualificar o que nelas não se insere e parece, por essa razão, defeituoso. Os marxistas classificam todas as filosofias como materialistas ou idealistas; por conseguinte, os metafísicos que não se enfileiram em nenhuma das duas categorias serão acusados de falta de coragem (H. Lefebvre, À la lumière du matérialisme dialectique, I: Logique formelle, logique dialectique, pg. 25).
Essas classificações podem ser combatidas, modificadas e adaptadas; porém, mais amiúde, contentar-se-ão em opor-lhes outras classificações, julgadas mais importantes, mais interessantes ou mais fecundas. Em vez de separar os indivíduos em pobres e ricos, basta pôr no primeiro plano a oposição entre negros e brancos, para que o branco pobre se sinta valorizado. ‘Da mesma forma’, diz-nos S. de Beauvoir, ‘o mais medíocre dos varões se crê, em face das mulheres, um semideus’ (Le deuxième sexe, vol. I, pg. 25).
Assim é que, diz-nos ainda S. de Beauvoir, ‘uma fé sincera ajuda muito a menina a evitar todo complexo de inferioridade: ela não é macho nem fêmea, mas uma criatura de Deus’ (ibid., vol. II, pg. 449).

“Os autores humorísticos, os criadores de utopias, em geral, conseguem produzir um efeito cômico tratando da mesma forma comportamentos regidos por convenções sociais e outros que não o são em absoluto.
Semelhante tratamento não redunda necessariamente na formação de classes tecnicamente elaboradas. O mais das vezes nenhuma noção permitirá designá-los: basta que os indivíduos assim justapostos e formando classe reajam uns sobre os outros na mente do ouviente, e é assim que essa técnica adquire valor argumentativo. ... Já vimos que o uso tendencioso de qualificações como ‘tirano’ ou ‘pirata’ foi condenado por Bentham sob o nome de ‘petição de princípio numa única palavra’ (Cf. § 28: A argumentação ad hominem e a petição de princípio)”. (pg. 146)

Sobre o uso das noções

“A qualificação dos dados e sua inserção nas classes constituem os dois aspectos de uma mesma atividade, focalizada ora como compreensão, ora como extensão; é ela a aplicação das noções ao objeto do discurso”. (pg. 147)

“... as idéias vagas são parte integrante da ciência e que toda teoria da significação que as nega não é uma teoria da ciência”. (pg. 148)
“... uma noção só pode ser considerada unívoca se seu campo de aplicação for inteiramente determinado, o que só é possível num sistema formal do qual se pôde eliminar qualquer imprevisto: a noção de ‘bispo’ no jogo de xadrez satisfaz a essa condição. Mas não se dá o mesmo quando se trata de noções elaboradas no seio de um sistema científico ou jurídico, que devem aplicar-se a acontecimentos futuros cuja natureza nem sempre pode ser completamente especificada”. (pg. 148)

“Na medida em que as experiências futuras e a maneira de examiná-las não são inteiramente previsíveis, é indispensável conceber os termos mais bem especificados como que cercados de uma margem de indeterminação suficiente para que possam aplicar-se ao real. Uma noção perfeitamente clara é aquela cujos casos de aplicação são todos conhecidos e que não admite, portanto, novo uso, que seria um uso imprevisto; apenas um conhecimento divino ou convencionalmente limitado é adequado a tal exigência”. (pg. 148-9)

“Por essas razões, não é possível, como sugere Bobbio, aproximar o rigor do direito ao das matemáticas (Cf. N. Bobbio, Scienza del diritto e analisi del linguaggio, em Saggi di critica delle scienze, pg. 55) nem, como propõe Kelsen, ver no direito apenas uma ordem fechada (H. Kelsen, Reine Rechtslehre, 1934). Com efeito, o juiz não pode, a exemplo do lógico formalista, limitar, de uma vez por todas, o campo de aplicação de seu sistema. Ele arrisca-se a tornar-se culpado de negativa de prestação jurisdicional, se se recusar a julgar ‘sob pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei’ (art. 4 do Código Napoleão). Ele deve, a cada vez, poder julgar se a disposição legal invocada é ou não é aplicável à situação, mesmo que esta última não tenha sido prevista pelo legislador: isto o obriga a tomar uma decisão motivada quanto à maneira pela qual ele especificará uma ou outra categoria jurídica.
Quando o uso das noções não está formalizado, a aplicação destas levanta, pois, problemas relativos à organização e à previsão dos conceitos. Tais problemas são tanto mais inevitáveis quanto mais vagas e mais confusas são as noções empregadas. É este o caso, mais particularmente, das noções que, explícita ou implicitamente, se referem a conjuntos indeterminados, tais como as expressões negativas do tipo ‘o que não é vivo’, ‘os que não pagam impostos’. É este o caso mormente das noções confusas, tal como a noção de justiça, que só poderão ser especificadas e aplicadas se escolhermos e pusermos em evidência alguns de seus aspectos, incompatíveis com outros, ou ainda noções como a de mérito, cujo uso só se concebe em função da sua própria confusão. Trata-se de avaliar referindo-se, a um só tempo, ao sujeito atuante e ao resultado obtido”. (pg. 149)

“... A linguagem não é somente meio de comunicação, é também instrumento de ação sobre as mentes, meio de persuasão. ... Notadamente no tocante às noções fundamentais da moral e da filosofia, apenas a argumentação e a controvérsia possibilitam explicar por que as matizamos, por que introduzimos distinções que mostram a ambigüidade do que fora considerado claro anteriormente. E é justamente porque as noções utilizadas na argumentação não são unívocas e seu sentido não é fixado ne varietur que as conclusões de uma argumentação não são coercivas”. (pg. 150)

Aclaramento e obscurecimento das noções

“A necessidade de uma linguagem unívoca, que domine o pensamento científico, fez da clareza das noções um ideal que, crê-se, sempre se deva procurar realizar, esquecendo-se que esta mesma clareza pode ser um obstáculo a outras funções da linguagem”. (pg. 150)

“... resulta que, fora de um puro formalismo, as noções só podem ficar claras e unívocas em relação a uma área de aplicação conhecida e determinada”. (pg. 151)

“Mas uma noção confusa não pode ser esmiuçada pela enumeração de seus casos de aplicação. Isso também significa que ela não pode ser eliminada de nossas preocupações pela crítica sucessiva de uma série de seus aspectos: não basta mostrar que todas as formas de justiça, de liberdade, de sabedoria que analisamos são um logro para desvalorizar definitivamente essas noções”. (152)

“Assim é que a adoção da declaração universal dos direitos do homem por partidários de ideologias muito diferentes permitiu, como o diz J. Maritain, chegar a normas práticas que, ‘diversamente justificadas por cada qual, são para uns e outros princípios de ação analogicamente comuns’ (Autour de la nouvelle déclaration universelle des droits de l’homme, Introdução, pg. 12). Apenas o uso de noções confusas, compreendidas e interpretadas por cada qual segundo seus próprios valores, permitiu esse acordo, cujo principal mérito é favorecer um diálogo posterior”.(pg. 152)

“Como o sentido das noções depende dos sistemas nos quais são utilizadas, para mudar o sentido de uma noção basta inseri-la num novo contexto e, notadamente, integrá-la em novos raciocínios. É o que observa sagazmente Keneth Burke a propósito das provas cartesianas da existência de Deus: ‘Um dos editores de Descartes, John Veitch, disse que quando este punha em dúvida um velho dogma, em vez de atacá-lo de frente, visava ‘solapar-lhe os fundamentos’. E desembaraçava-se dos princípios tradicionais ‘não tanto atacando-os diretamente quanto substituindo-os por novas provas e premissas’. Veitch cita também um defensor de Descartes que diz ironicamente que seus inimigos o chamavam de ateu ‘provavelmente porque ele dera novas provas da existência de Deus!’ Mas essas novas provas eram, de fato, novas determinações de Deus. Por isso, mudavam sutilmente a natureza de ‘Deus’ como termo de motivação...’ (K. Burke, A Grammar of Motives, pg. 55)” (pg. 152-3)

“As noções confusas deixam aquele que as utiliza diante de dificuldades que, para serem resolvidas, requerem uma organização de conceitos, uma decisão concernente à maneira de compreendê-las num caso dado. Essa decisão, uma vez admitida, terá o efeito de aclarar a noção em alguns de seus usos, nos quais ela poderá desempenhar o papel de noção técnica. Uma noção parece suficientemente clara enquanto não se vêem situações em que ela se prestaria a interpretações divergentes. Quando surge uma situação assim, a noção se obscurece, mas, depois de uma decisão que regulamenta sua aplicação unívoca, ela parecerá mais clara do que antes, contanto que essa decisão seja unanimemente admitida, se não por todos, pelo menos por todos os membros de um grupo especializado, científico ou jurídico.
As noções têm tanto mais possibilidades de serem obscurecidas quanto mais as proposições nas quais estão inseridas parecerem difíceis de rejeitar, seja porque confirmam certos valores universais, seja porque são obrigatoriamente válidas, como textos sagrados ou prescrições legais. Todo o empenho tem, de fato, de centrar-se na interpretação dessas proposições”. (pg. 153)

“As noções se obscurecem igualmente em conseqüência das confusões que situações novas podem introduzir nas relações aceitas entre os diferentes aspectos das noções. ... O mesmo objetivo virá a expressar, de uma forma indiscernível e ambígua, uma determinação no espaço ou no tempo, o fato de pertencer a um partido e uma forma de manifestar-se: europeu, medieval, liberal qualificam uma cultura, uma arte, uma política, por suas determinações e pela natureza de suas manifestações. Se estas últimas acabam não coincidindo mais, se a cultura européia se espalha nos outros continentes, se as igrejas góticas são construídas no século XX, se membros de outros partidos aderem a uma política liberal ou se, inversamente, habitantes da Europa se deixam influenciar pela cultura da Índia, se encontramos, na Idade Média, manifestações de arte clássica e se membros do partido liberal preconizam medidas socialistas, as noções se obscurecem e perguntamo-nos se não é o caso de procurar, de novo, um critério que permita a aplicação unívoca delas”. (pg. 154)

“Todo uso analógico ou metafórico de uma noção a obscurece. Com efeito, para que haja uso analógico, é preciso que a noção seja aplicada a outro domínio que não o seu campo normal de aplicação e, portanto, esse uso não pode ser regulamentado e especificado”. (pg. 155)

Usos argumentativos e plasticidade das noções

“A maneira pela qual apresentamos as noções fundamentais numa discussão depende amiúde do fato de elas serem vinculadas às teses por nós defendidas ou às do adversário”. (pg. 156)

“O materialismo pode e deve englobar tudo o que é válido, beneficia-se de uma plasticidade que é explicitamente negada ao idealismo, o qual é definido, como diz o autor, por sua ‘unilateralidade’.
A mesma rigidez é imposta à noção de ‘metafísica’, considerada expressão de um estado do conhecimento ultrapassado. O autor se pergunta mesmo como a metafísica foi possível (H. Lefebvre, À la lumière du matérialisme dialectique, I: Logique formelle, logique dialectique, pg. 20); sua atitude supõe que a metafísica é incapaz de adaptação e de renovação, que é delimitada, de uma vez por todas, e que suas funções estão definitivamente congeladas. Poder-se-ia opor a esse ponto de vista as reflexões sobre a metafísica desenvolvidas por um de nós, que apresentou ampliações sucessivas da metafísica e procurou mostrar a permanência desta: metafísica como ontologia, depois como epistemologia, depois como elucidação das razões da opção axiológica, metafísica futura, enfim, com fronteiras imprevisíveis. Sem querer, ele deu assim um exemplo de flexibilidade de uma noção”. (pg. 157)

“A flexibilização e o enrijecimento das noções é uma técnica adotada quando a apreciação que lhes concerne deve resultar, ao menos em parte, da argumentação. ... Ela consiste, pura e simplesmente, em ampliar ou restringir o campo de uma noção, de modo que ela englobe ou não certos seres, certas coisas, certas idéias, certas situações. Por exemplo, alargaremos o campo do termo pejorativo ‘fascista’ para nele englobar certos adversários; ao passo que restringiremos a extensão do termo ‘democrático’ que é valorizador, para excluí-los dele. Inversamente, limitaremos o sentido da palavra ‘fascista’ para dela excluir os amigos que apoiamos e alargaremos o sentido da palavra ‘democrático’ para nela os incluirmos. Essa técnica não é utilizada unicamente em política. Encontramo-la mesmo em controvérsias científicas. ... E Claparède termina sua divertida análise concluindo: ‘Sempre se é o associacionista de alguém’ (La genèse de l’hypothèse, pg. 45)”. (pg. 158)

Capítulo III
Apresentação dos dados e forma do discurso

Matéria e forma do discurso

“Antes mesmo de argumentar a partir de certas premissas, é essencial que o conteúdo delas se destaque contra o fundo indistinto dos elementos de acordo disponíveis”. (pg. 161)

“O que focalizaremos no exame da forma do discurso, na medida em que a cremos discernível de sua matéria, são os meios que possibilitam a uma determinada apresentação dos dados situar o acordo num determinado nível, imprimi-lo com certa intensidade nas consciências, enfatizar alguns de seus aspectos”. (pg. 162)

Problemas técnicos de apresentação dos dados

Todo discurso é limitado no tempo, dando-se praticamente o mesmo com todo escrito dirigido a terceiros. Se essa limitação e imposta convencionalmente ou dependente da oportunidade, da atenção dos ouvintes, de seu interesse, do espaço disponível num jornal ou numa revista, dos custos acarretados pela impressão de um texto, são fatores que a forma do discurso tem de levar em conta. ... Quem pronuncia um discurso visando à persuasão – ao contrário das exigências de uma demonstração formal, na qual, em princípio, nada deveria ficar subentendido – deve organizar bem seu tempo e a atenção dos ouvintes; é normal que conceda a cada parte de sua exposição um espaço proporcional à importância que gostaria de ver-lhe atribuída na consciência dos que o escutam”. (pg. 162-3)

“Se uma das premissas é conhecida, escreve Aristóteles, não há sequer necessidade de enunciá-la: o ouvinte a supre. Por exemplo, para concluir que Dorieu recebeu uma coroa como prêmio de sua vitória, basta dizer: ele foi vencedor em Olímpia; inútil acrescentar: em Olímpia, o vencedor recebe uma coroa; é um fato conhecido de todos (Aristóteles, Retórica, I, cap. 2, 1357 a, 18-21).
Esta observação, que é indiscutivelmente justa, requer contudo duas observações. Nem sempre é tão fácil indicar a premissa subentendida, e essa premissa nem sempre é tão evidente como no exemplo citado. Alguns oradores não deixam de utilizar essa latitude para omitir premissas, ao contrário, muito discutíveis e para as quais preferem não chamar a atenção de seu auditório”. (pg. 163

“Eu costumava também, escreve Quintiliano, destacar os pontos em que meu adversário e eu estávamos de acordo... e não somente tirar das confissões de meu adversário todas as conseqüências possíveis, mas multiplicá-las por meio da divisão (Quintiliano, vol. III, liv. VII, cap. I, § 29).
O conselho de Aristóteles, justo quando se trata de um fato que serve unicamente de elo numa argumentação, deve ser substituído pelo de Quintiliano, quando se trata de fatos indubitáveis, mas que convém valorizar tornando-os familiares. Se o estilo rápido é favorável ao raciocínio, o estilo lento é criador de emoção: ‘pois o amor se forma pelo hábito... Daí advém que os oradores concisos e breves penetram pouco o coração e emocionam menos (Vico, Delle Instituzioni oratorie, pg. 87)”. (pg. 163-4)

“A literatura romântica, drama e novela, revalorizou a Idade Média e, devolvendo-lhe a presença, ela serviu, como diz com pertinência Reyes, de espora ao pensamento histórico (A. Reyes, El deslinde, pg. 101)”. (pg. 164)

“Pode-se perguntar se um dos efeitos benfazejos de certos textos obscuros não é avivar a atenção; a ‘presença de espírito’ tornaria presente o que se quer comunicar (Cf. J. Cocteau, La difficulté d’être, pg. 177)”. (pg. 164)

“A impressão de realidade é criada da mesma forma pela acumulação de todas as condições que precedem um ato ou pela indicação de todas as suas consequências”. (pg. 165)

“Num de seus discursos, Demóstenes evoca a hipótese de que um Ésquines seria o acusador, Filipe o juiz e ele próprio o acusado. Ele imagina, nessa situação fictícia, o comportamento, as reações de cada um, para deduzir daí o que devem ser o comportamento e as reações na situação real. Às vezes, ao contrário, a hipótese é descrita em todos os seus detalhes, para torná-la violentamente indesejável ou chocante. Essas duas possibilidades indicam-nos os dois usos argumentativos habituais de todas as formas da utopia. Como pretende com todo acerto R. Ruyer, a utopia busca menos a verdade do que um aumento de consciência, confronta o real com uma presença imaginária, que ela impõe para daí tirar reações mais duradouras. É por isso que a utopia propriamente dita tende a desenvolver-se em seus mais ínfimos detalhes; não se hesita em manter o auditório nesse meio novo durante longas horas”. (pg. 166)

“Os mitos coletivos, as narrativas legendárias que fazem parte de um fundo comum de cultura, têm, sobre as hipóteses e as utopias, a vantagem de se beneficiarem com muito mais facilidade da presença. Para combater a crença na superioridade da mão direita sobre a mão esquerda, Platão nos diz: ‘Se tivéssemos cem mãos, como Gerião e Briareu, cumpriria, com essas cem mãos, ser capaz de lançar cem dardos’ (Platão, Leis, VII, 794 d ss). Ele passa, assim, da antiga estrutura, em que havia uma diferença qualitativa entre as duas mãos, para uma estrutura em que as mãos são homogêneas. Por poder referir-se à mitologia, a hipótese de Platão se impõe com mais facilidade à atenção; parece menos arbitrária, menos abstrata.
Para criar a emoção (D.O. Hebb, The Organization of Behavior), é indispensável a especificação. As noções gerais, os esquemas abstratos não atuam muito sobre a imaginação. ... Para dar a impressão de presença é útil especificar o lugar e o momento de uma ação; Whately aconselha mesmo utilizar, todas as vezes que for possível, o termo concreto em vez do termo abstrato. Quanto mais especiais os termos, mais viva a imagem que evocam, quanto mais gerais eles são, mais fraca ela é. Assim é que nos discursos de Antônio, no Júlio César de Shakespeare, os conjurados não são designados como aqueles que ‘mataram’ César, mas como aqueles cujos ‘punhais trespassaram’ César (Whately, Elements of Rhetoric, pg. 194-7). O termo concreto aumenta a presença.

“Abandonando a oposição entre concreto e abstrato, pode-se tentar hierarquizar certos níveis de abstração. Comentando a escala de Korzybski, que sobe aos níveis de abstração mais elevados, Hayakawa assinala que, nos níveis mais baixos, os próprios fatos atuam diretamente sobre a nossa afetividade (Hayakawa, Language in Thought and Action, pg. 127); mas isso nem sempre será verdade, se pensarmos que, para Korzybski, a vaca que percebemos seria mais abstrata do que os átomos, os elétrons, de que ela é constituída e que a ciência apreende (Idem, pg. 169)”. (pg. 167)

“O modo intuitivo de exprimir-se, o uso do termo que impressiona nem sempre deixa de ter inconvenientes. Schopenhauer constatou que certos escritores evitam, na medida do possível, a expressão mais definida e preferem o uso de noções mais abstratas que lhes permitem escapar mais facilmente às objeções (Parenga und Paralipomena, II, § 283, pg. 552)”. (pg. 168)

Formas verbais e argumentação

“A apresentação dos dados não é independente dos problemas de linguagem. A escolha dos termos, para expressar o pensamento, raramente deixa de ter alcance argumentativo. ... Mas, quando se trata de sua utilização por um orador num discurso particular, a equivalência dos sinônimos só pode ser assegurada levando-se em conta a situação de conjunto na qual se insere o discurso, notadamente certas convenções sociais que poderiam regê-lo”. (pg. 168-9)

“... grosso modo, poderemos considerar habitual o termo que passa despercebido. Não existe escolha neutra – mas há uma escolha que parece neutra e é a partir dela que se podem estudar as modificações argumentativas. O termo neutro depende evidentemente do meio. ... Assim também o uso da perífrase ‘pessoa com uma disposição para induzir em erro’ para designar ‘o mentiroso’ pode ter o objetivo de despojar tanto quanto possível esse termo do elemento desvalorizador para assimilá-lo a um termo descritivo e conferir ao juízo no qual ele intervém a aparência de um juízo de fato, donde o significado argumentativo dessa perífrase, que não possui o termo ‘mentiroso’.” (pg. 169)

“O conjunto de locuções disponíveis poderia ser chamado, seguindo a terminologia dos significistas holandeses, família de palavras, que não são palavras ligadas por um sistema de derivações, mas expressões aparentadas por seu sentido (Cf. G. Mannoury, Handboek der analytische signifika, I, pg. 43). Claro, a constituição de semelhante família de palavras não é desprovida de certa arbitrariedade, pois essa família não é determinada por nenhum outro critério senão a idéia prévia que temos do conceito que essa família permitirá elucidar. A evolução do conceito dependeria das variações no uso de cada um dos quase-sinônimos que fazem parte da mesma família; esses termos formariam um sistema de interação”. (pg. 170)

“Os antigos costumavam falar do argumento pelas flexões (Aristóteles, Retórica, liv. II, cap. 23, 1397 a), que consiste em aplicar um mesmo predicado aos termos derivados um do outro, tais como ‘justamente’ e ‘justo’. Esse gênero de argumento está sujeito a muitas objeções por descurar, notadamente, da divergência das evoluções semânticas. Mas a verdade é que, antes de qualquer argumentação, é geralmente importante apresentar um enunciado em termos suscetíveis de evocar outros por derivação, verdadeira ou imaginária”. (pg. 171)

“Quando a relação entre formas habituais não basta, poderemos recorrer aos metagramas e outras mutações para efetuar as aproximações desejadas”. (pg. 171)

“Quando nos perguntamos por que um orador se expressa de maneira neutra, subentendemos que ele poderia não o fazer e que, fazendo-o, tem um objetivo. (...)
... Yves Gandon se engana quando compara o clima febril de Mauriac ao de Gide. Mauriac se integra na tradição cristã, enquanto Gide tenta promover normas novas: é febril pelo que aprova, não pelo que descreve. Ora, bem parece que, no interior de uma ortodoxia, todos os expedientes são utilizáveis; em contrapartida, quando se tenta promover juízos de valor inusitados, chocantes, estes seriam aceitos com mais facilidade quando o estilo, por sua vez, não choca”. (pg. 172)

Obs.: A “novilíngua” ou “newspeak” e o “doublethink” (duplo pensamento) visam solapar normas antigas arraigadas na sociedade, substituindo-as pelas ideologias modernas, como a marxista – ver Orwell.

“A aproximação entre linguagem comum e idéias aceitas não é fortuita: a linguagem comum é, por si só, a manifestação de um acordo, de uma concordância, da mesma forma que as idéias aceitas”. (pg. 173)

“... argumentação de Epicteto: por que se espantar de que um vaso frágil se quebre, de que um mortal morra. Pelo uso da classificação, situando o morto entre os mortais, introduz-se explicitamente na segunda versão uma argumentação que estava apenas explícita no esboço. Acrescentemos um exagero, um reforço da observação: não só se fala de uma morte imprevista, mas ‘ouvem-se apenas palavras de espanto’; o absurdo parecerá ainda mais grave por sua manifestação ser mais freqüente. ... Não devemos esquecer, é artificialmente e para a comodidade da análise que se separam premissas e argumentação; na realidade, já há argumentação na própria posição das premissas”. (pg. 173-4)

As modalidades na expressão do pensamento

“A maneira pela qual formulamos o nosso pensamento mostra algumas de suas modalidades, que modificam a realidade, a certeza ou a importância dos dados do discurso.
... No caso da formulação negativa, a referência a outra coisa é totalmente explícita: a negação é uma reação a uma afirmação real ou virtual de outrem (Cf. Guillaume, Manuel de psychologie, pg. 261)”. (pg. 174-5)

“Encontra-se a mesma ambigüidade quando a negação se aplica não a uma asserção, mas a uma noção, pela aposição de um prefixo. Assim é que em ‘desumano’ a negação pode concernir ao gênero e designar o que é completamente alheio ao homem, ou designar a espécie de homens ou de condutas humanas que não realizam o ideal humano. A formulação negativa deixa na indeterminação o conceito em cujo seio se opera o recorte”. (pg. 176)

“Tomemos um caso muito simples de uma sucessão de acontecimentos: ‘Encontrei teu amigo ontem; ele não me falou de ti’. A primeira oração é um fato, que meu interlocutor não contesta; a Segunda, igualmente. São coordenadas e poderiam unir-se pela conjunção ‘e’. Mas a interpretação normal em certas situações será: ‘teu amigo não me falou de ti, conquanto tenha tido a oportunidade’. A inserção dessa primeira oração, nesse lugar, precedendo a Segunda, à qual está efetivamente subordinada, modifica, pois, consideravelmente a impressão que a afirmação desses dois fatos simplesmente coordenados provocaria. Os juízos de fato se revestem, com isso, de uma interpretação implícita, que lhes confere todo o seu significado”. (pg. 177)

“... o orador é capaz de guiar o ouvinte de uma maneira extremamente eficaz para o que quer fazê-lo admitir; assim Auerbach salientou com razão o caráter estratégico (Auerbach, Mimesis, pg. 92) da construção que estabelece relações precisas entre os elementos do discurso e que foi qualificado de ‘sindética’. A esta, opõe-se a construção assindética, que renuncia a qualquer ligação precisa entre as partes. O exemplo típico apresentado por Auerbach é a frase latina da Vulgata: ‘Dixitque Deus: fiat lux, et facta est lux’ (idem, pg. 74). O ouvinte fica livre para imaginar entre os elementos uma relação que, dada a sua própria imprecisão, assume um feitio misterioso, mágico; por isso, aliás, ela pode provocar um efeito altamente dramático”. (pg. 178)

“A construção sindética é a construção argumentativa por excelência; seria, segundo Auerbach – em oposição à construção assindética própria da cultura hebraica -, característica dos escritos greco-romanos. O síndeto cria contextos, constitui uma tomada de posição. Ele impõe-se ao leitor, obriga-o a ver certas relações, limita as interpretações que ele poderia levar em consideração, inspira-se no raciocínio jurídico bem-construído. O assíndeto deixa mais liberdade, não parece querer impor nenhum ponto de vista; assim, é decerto por ser assindética que a frase compassada, equilibrada, dos escritores do século XVIII dá, como diz R.M. Weaver, uma impressão filosófica ou, melhor dizendo, descritiva, contemplativa, imparcial.
As modalidades, no sentido técnico do lingüista, são, como geralmente se admite, em número de quatro: a assertiva, a injuntiva, a interrogativa e a optativa.
A modalidade assertiva convém a qualquer argumentação; não há por que falar dela.
A modalidade injuntiva se expressa, em nossas línguas, pelo imperativo.
... O interrogativo é um modo cuja importância retórica é considerável. A pergunta supõe um objeto, sobre o qual incide, e sugere que há um acordo sobre a existência desse objeto. Responder a uma pergunta é confirmar esse acordo implícito; os diálogos socráticos nos ensinam muito sobre a utilidade e os perigos dessa técnica dialética.
O papel da interrogação no procedimento judiciário é um dos pontos sobre os quais os antigos, notadamente Quintiliano, enunciaram muitas observações práticas que continuam atuais. O uso da interrogação visa às vezes a uma confissão sobre um fato real desconhecido de quem questiona, mas cuja existência, assim como a de suas condições, se presume. ‘Que o senhor fez naquele dia em tal lugar?’ já implica que o interpelado se achava em certo momento no lugar indicado; se ele responde, mostra seu acordo a esse respeito. ... As perguntas são, em geral, apenas uma forma hábil para encetar raciocínios, notadamente usando da alternativa ou da divisão, com a cumplicidade, por assim dizer, do interlocutor que se compromete, por suas respostas, a adotar esse modo de argumentação.
... Dizendo ‘que é que pôde realmente levar os alemães a iniciar ultimamente tantas guerras?’ sugere-se amiúde que as respostas que virão espontaneamente ao espírito deverão ser rejeitadas. A pergunta visa menos à busca de um motivo do que à busca da razão pela qual não o encontraremos”. (pg. 179-80)
... A interrogação seria, segundo Wittgenstein, numa frase como “O tempo não está esplêndido hoje?’ um simples juízo (Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, pg. 10). Bem mais, segundo Sartre, nestes versos de Rimbaud: ‘Ó estações, ó castelos, qual alma não tem defeitos?’ (Rimabaud, Bibl. de la Pléiade, Poésies, LXXXIII, pg. 139) a interrogação se teria tornado ‘coisa’, ‘substância’. De fato, a forma interrogativa não deixa de introduzir um apelo à comunhão com um auditório, ainda que este fosse o próprio sujeito”. (pg. 180)

“A modalidade optativa talvez seja a que melhor se presta à expressão das normas. A ação do voto ‘tomara que ele consiga’ é da mesma ordem que a do discurso epidíctico; o voto exprime uma aprovação e, indiretamente, uma norma; por isso, aproxima-se do imperativo que exprime um rogo, uma súplica.
Também o emprego dos tempos permite agir sobre o auditório. Cada grupo de línguas oferece, a esse respeito, possibilidades que mereceriam um estudo minucioso.
No que concerne ao francês, pode-se dizer que o perfeito é irrefragável, o fato; o imperfeito é o tempo do transitório; o presente expressa o universal, a lei, o normal. O presente é o tempo da máxima, do adágio, ou seja, daquilo que é considerado sempre atual, jamais invalidado – é o presente que parece, por isso, Ter o papel mais equívoco; é ele que melhor expressa o normal em sua passagem para a norma. Numa frase como ‘a mulher gosta de falar’, insiste-se no normal a ponto de fazer dele um caráter geral; não se pode à primeira vista distinguir semelhante enunciado da afirmação ‘o homem é sujeito à morte’. Se substituíssemos o presente por ‘constatou-se que a mulher gostava de falar’, a confusão com o sentido distributivo não seria tão forte. Escapar-se-ia à lei para ficar na observação.
O presente tem também a propriedade de proporcionar mais facilmente o que chamamos de ‘sentimento de presença’. Os retóricos reconheceram-lhe com freqüência essa função. Talvez seja esta a razão de seu emprego pelos romancistas contemporâneos”. (pg. 181)

“O presente narrativo é descoberto ou, pelo menos, posto em voga pelos contemporâneos: Jules Romains, por exemplo, o aprecia. Como o observa Y. Gandon, ‘a ilusão da vida é obtida com menores esforços’ (Y. Gandon, Le démon du style, p. XV, pg. 86).
Claro, não é certo que em todas as línguas a forma do presente seja a que melhor exprime esse sentimento. Sabe-se que nas línguas eslavas a forma gramatical do presente, dos verbos de ação perfeita, expressa na realidade um futuro e só é utilizada nessa acepção”. (pg. 182)

“O emprego da terceira pessoa, mesmo definida, no lugar da primeira pode Ter por efeito, tal como o uso do ‘on’ (‘a gente’), diminuir a responsabilidade do sujeito, criar uma distância entre quem fala e o que ele diz.
... É por isso que o ‘contador de lorotas... invoca, como testemunhas do que afirma, homens obscuros que não se podem encontrar para desvendar-lhes a falsidade (La Bruyère, Les caractères de Théophraste, Du débit des nouvelles, pg. 51)”. (pg. 183)

“Em química, experimenta-se em corpos particulares e tiram-se daí afirmações concernentes a ‘o cloro’, ‘o fósforo’; a artigo definido permite tratar as amostras como representantes de uma espécie. Assim também, o uso do singular pelo plural, ‘o judeu’, ‘o russo’, tem um significado inegável (Cf. V. Klemperer, L.T.I., Notizbuch eines Philologen, pg. 186). Julgamos reconhecer aí, a um só tempo, uma ação de presença, pela transformação do grupo em uma pessoa, e a unificação do ponto de vista, a impossibilidade de distinguir entre os bons e os maus que tal transformação acarreta”. (pg. 184)

Forma do discurso e comunhão com o auditório

“A forma em que são apresentados os dados não se destina somente a produzir efeitos argumentativos relativos ao objeto do discurso; pode também oferecer um conjunto de características relativas à comunhão com o auditório.
Todo sistema lingüístico implica regras formais de estrutura que unem os usuários desse sistema, mas a utilização deste aceita diversos estilos, expressões particulares, características de um meio, do lugar que nele se ocupa, de certa atmosfera cultural”. (pg. 185)

“Começa-se a reconhecer que, a cada estrutura social, corresponderiam modos específicos de expressar a comunhão social. Lasswell, em seus trabalhos sobre a propaganda, insistiu nesse problema. Até agora, parece que foram distinguidos dois grandes estilos na transmissão do pensamento: o das sociedades democráticas e o das sociedades hierárquicas. ... Já foram formuladas importantes hipóteses: parece que certas estruturas linguísticas convêm melhor a uma sociedade baseada na igualdade, na iniciativa individual; outras conviriam melhor às sociedades baseadas numa estrutura hierárquica.
Em seu interessante estudo sobre o alemão dos nazistas, Heinz Paechter se esforça por assinalar tais estruturas. A gramática das sociedades igualitárias enfatizaria os predicados, as avaliações pelo sujeito. A linguagem das sociedades hierárquicas seria evocadora, sua gramática e sua sintaxe seriam mágica: ‘Os símbolos verbais já não serão representativos das coisas, mas tenderão a tornar-se coisas por si sós, com um lugar bem definido na hierarquia dos valores e uma participação no ritual, em seu plano próprio’ (H. Paechter, Nazi-Deutsch, pg. 6).
A linguagem, que, numa sociedade igualitária, pertence a todo o mundo e evolui quase livremente, congela-se numa sociedade hierárquica. Nela as expressões, as fórmulas se tornam rituais, são escutadas dentro de um espírito de comunhão e de submissão total.
Mas basta que as fórmulas deixem de ser obrigatórias, que deixem de ser ouvidas no mesmo espírito de comunhão, para que adquiram o feitio de um clichê. A imitação do estilo bíblico, característica de certos sermões... parecem clichês, justamente por causa de sua pretensão à originalidade.
Se os clichês são perseguidos, desde o romantismo, em nossa cultura apaixonada pela originalidade – e Jean Paulhan pôs mesmo em evidência esse reinado do terrorismo na literatura – é porque a expressão estereotipada só tem valor como meio fácil, fácil demais às vezes, de comunhão com os ouvintes. ... Os termos ‘direito’, ‘liberdade’, ‘democracia’ permitem a comunhão, como o desfraldar de uma bandeira.
Para que essas expressões, essas palavras, sejam percebidas como clichês, é preciso uma distância, é preciso que o ouvinte já não se identifique, em todos os pontos de vista, com os que as utilizam e as aceitam. ... o clichê é, a um só tempo, fundo e forma. ... para que uma expressão seja percebida como clichê, basta que as pessoas se dêem conta de que haveria meios de dizer tão bem, até melhor, a mesma coisa de outro modo. ... Mas basta também que se rejeitem os valores expressos pelo clichê. (pg. 186-7)

“As máximas não condensam somente a sabedoria das nações – são também os meios mais eficazes de promover essa sabedoria e de fazê-la evoluir; o uso das máximas nos faz ver claramente o papel dos valores aceitos e os processos de sua transferência. ...
A máxima & 61543;& 61550;& 61558;& 61549;& 61544;, tal como a descreve Aristóteles, é realmente o que qualificaríamos hoje de juízo de valor. Ela confere ao discurso, diz ele, um caráter ético (Retórica, liv. II, cap. 21, 1395 b,11). Seu significado se deve à elaboração social. ...
Os provérbios, dizem nossos dicionários, são máximas curtas, tornadas populares. Schopenhauer os aproxima dos lugares: são, diz ele, lugares com tendência prática. ... o provérbio exprime um acontecimento particular e sugere uma norma; daí, decerto, sua difusão fácil, seu aspecto popular, que o opõe ao aspecto livresco, erudito, de certas máximas. ...
... Os rosários de provérbios desfiados por Sancho Pança equivalem a admoestações para quem esquecesse alguns dos valores de que convém não descurar totalmente”. (pg. 188)

“Os slogans, as palavras de ordem, constituem máximas elaboradas para as necessidades de uma ação particular. ... Embora possam ser um incentivo à ação, têm muito menos serventia para determinar uma crença; seu papel é essencialmente o de impor, por sua forma, certas idéias à nossa atenção”. (pg. 189)

Figuras de retórica e argumentação

Desde a Antigüidade, provavelmente desde que o homem meditou sobre a linguagem, reconheceu-se a existência de certos modos de expressão que não se enquadram no comum, cujo estudo foi em geral incluído nos tratados de retórica; daí seu nome de figuras de retórica. ...
... Tomemos a definição da hipotipose (demonstratio) tal como a encontramos na Rhetorica ad Herennium, como figura ‘que expõe as coisas de uma maneira tal que a ação parece desenrolar-se e a coisa acontecer ante nossos olhos’. ... Jean Paulhan constata que, se nos atemos ao que se pode tirar dos autores, ‘as figuras têm, como única característica, as reflexões e a investigação que os retóricos fazem continuamente a seu respeito’. Esse paradoxo obriga Paulhan a repensar o problema da relação entre o pensamento e sua expressão. ...
... Duas características parecem indispensáveis para que haja figura: uma estrutura discernível, independente do conteúdo, ou seja, uma forma (seja ela, conforme a distinção dos lógicos modernos, sintática, semântica ou pragmática), e um emprego que se afasta do modo normal de expressar-se e, com isso, chama a atenção. ... Assim, Omer Talon definiu a figura como ‘uma expressão pela qual o andamento do discurso difere do hábito direto e simples’. ...
Quem estuda os discursos do ponto de vista estrutural se acha diante de formas que parecerão, de imediato, figuras (por exemplo, a repetição) mas também formas que parecem normais (a interrogação, p. ex.) e que, não obstante, podem, em certos casos, ser consideradas figuras. ...
Cumpre que uma estrutura, para poder ser objeto de estudo, seja isolável, possa ser reconhecida como tal; por outro lado, cumpre que se saiba em que um uso deve ser considerado incomum. A frase exclamativa, a frase com reinício hesitante são estruturas; elas só seriam figuras gora de seu emprego normal, ou seja, fora da surpresa e da hesitação verdadeiras.
Isso não será estabelecer um vínculo direto entre o emprego de figuras e a simulação? Segundo Volkmann, é bem essa a idéia que os antigos tinham delas. É certo, de todo modo, que só há figura quando se pode operar uma dissociação entre o uso normal de uma estrutura e seu uso no discurso, quando o ouvinte faz uma distinção entre a forma e o fundo, que lhe parece impor-se. ...
... Se, por exemplo, o orador introduz em seu período objeções para respondê-las ele próprio, estaremos diante de uma figura, a prolepse, que seria apenas uma simulação. Tais objeções podem ser manifestamente imaginárias, mas pode ser importante mostrar que a própria pessoa entreviu objeções possíveis, que as levou em conta. Na realidade, há uma série de graus entre a objeção real e a objeção simulada. Uma mesma estrutura pode passar de um grau a outro, mercê do próprio efeito produzido pelo discurso. ... Consideraremos uma figura argumentativa se, acarretando uma mudança de perspectiva, seu emprego parecer normal em relação à nova situação sugerida. Se, em contrapartida, o discurso não acarretar a adesão do ouvinte a essa forma argumentativa, a figura será percebida como ornamento, como figura de estilo. Ela poderá suscitar a admiração, mas no plano estético, ou como testemunho da originalidade do orador. (pg. 189-92).

“Certas figuras, como a alusão, nunca são reconhecidas senão em seu contexto, pois sua estrutura não é nem gramatical, nem semântica, mas se deve a uma relação com alguma coisa que não é o objeto imediato do discurso”. (pg. 192)

“Percebemos melhor ainda a importância do movimento do discurso se examinarmos certas metáforas. A. Smith, numa passagem célebre, mostra por qual mecanismo o indivíduo, buscando seu proveito pessoal, serve também ao interesse geral: ‘... ele só tem em vista seu próprio ganho e, nisso como em muitos outros casos, é conduzido por uma mão invisível a promover um fim que não fazia parte de sua intenção’ (Adam Smith, The Wealth of Nations, pg. 423).
(Obs.: o padeiro levanta de madrugada, não para ajudar a comunidade, mas para fabricar o pão, ganhar dinheiro, subir de vida e dar conforto à família; entretanto, apesar desse seu “egoísmo”, o bem que faz à comunidade é enorme, nós não precisamos madrugar para fabricar o próprio pão.)
A célebre expressão ‘mão invisível’ utilizada por Smith não é em geral percebida pelo ouvinte como a expressão normal do pensamento, no sentido de que poucos ouvintes admitirão que A. Smith realmente tem em vista uma mão de carne e osso; mas o ouvinte sente que essa mão invisível deve persuadir que a harmonia entre o interesse individual e o interesse coletivo não é devida ao acaso, que seria permitido explicá-la por uma intervenção sobrenatural, que a presciência recusada ao homem pode ser a de um ser supremo. ... Cumpre observar, a esse respeito, que para ser percebida como argumentativa uma figura não deve necessariamente acarretar a adesão às conclusões do discurso, bastando que o argumento seja percebido em seu pleno valor; pouco importa se outras considerações se oponham à aceitação da tese em questão.
Resulta do que precede que uma figura, cujo efeito argumentativo não foi feliz, cairá à posição de figura de estilo. Assim, para negar a uma teoria filosófica um valor que não o literário, pretender-se-á ver nessa teoria apenas uma figura de retórica.
‘Esse passado bergsoniano, escreve Sartre, que adere ao presente e até o penetra não é muito mais que uma figura de retórica. E é isso que bem mostram as dificuldades que Bergson encontrou em sua teoria da memória’ ((J.P. Sartre, L’être et le néant, pg. 179)”. (pg. 192-3)

As figuras da escolha, da presença e da comunhão

“A definição oratória é uma figura de escolha, pois utiliza a estrutura da definição, não para fornecer o sentido de uma palavra, mas para pôr em destaque certos aspectos de uma realidade que correriam o risco de ficar no último plano da consciência”. (pg. 195-6)

“A perífrase pode desempenhar o mesmo papel que a definição oratória. A expressão ‘as três deusas infernais que, segundo a fábula, tecem a trama de nossos dias’, para designar as Parcas, será percebida como uma perífrase, se essa expressão não servir para fornecer uma definição do termo ‘Parcas’ mas sim para substituí-lo, o que supõe que se conheça a existência do nome que é substituído por essa expressão” (pg. 196)

“Muitas perífrases podem ser analisadas em termos de figuras, tais como a sinédoque ou a metonímia, cujas funções não são essencialmente a da escolha, ainda que possam servir-lhe: ‘os mortais’, para ‘os homens’, é uma maneira de chamar a atenção para uma característica particular dos homens. Mencionemos aqui sobretudo, enquanto figura de escolha, a antonomásia, que Littré define como ‘uma espécie de sinédoque que consiste em tomar um nome comum por um nome próprio ou um nome próprio por um nome comum. Em sua primeira forma, ela às vezes visa evitar que se pronuncie um nome próprio; mas às vezes, também, qualificar alguém de um modo útil para a argumentação: ‘os netos do Africano’ para ‘os gracos’ pode tender a esse objetivo.
A prolepse ou antecipação (praesumptio) pode ser figura de escolha quando visa insinuar que há motivo de substituir uma qualificação que poderia Ter levantado objeções por outra:
‘E no entanto era menos um castigo do que um meio de prevenir o crime’ (Quintiliano, vol. III, liv. IX, cap. II, § 18)
A hesitação marcada pela retificação (reprehensio) não tem, por certo, outro objetivo senão salientar a legitimidade de uma escolha:
‘Cidadãos, disse eu, se é permitido chamá-los por esse nome’ (Idem)
Da mesma forma a correção, que substitui uma palavra por outra:
‘Se o acusado houvesse pedido aos seus hospedeiros, ou melhor, se lhes houvesse feito apenas um sinal...’ (Rhetorica ad Herennium, liv. IV, § 36)
As figuras da presença têm por efeito tornar presente na consciência o objeto do discurso.
A primeira dessas figuras é a onomatopéia. Que a onomatopéia espontânea tenha dado ou não origem a certos termos da linguagem não é muito relevante. O onomatopéia é percebida como figura quando há, para evocar um ruído real, quer criação de uma palavra, quer uso inusitado de palavras existentes, pouco importando, aliás, que o som reproduza exatamente ou não o ruído do que se quer tornar presente; apenas a intenção de imitação parece contar. É divertido constatar, a esse respeito, que Dumarsais cita como exemplo de onomatopéia ‘bilbit amphora’ que traduz por ‘a garrafinha faz gluglu’ (Des tropes, pg. 161).
Entre as figuras que têm por efeito aumentar o sentimento de presença, as mais simples se relacionam com a repetição, que é importante em argumentação, ao passo que numa demonstração e no raciocínio científico em geral, ela nada proporciona. ... Assim, nesse exemplo de anáfora, repetição das primeiras palavras em duas frase sucessivas:
‘Trois fois je jetai les bras au cou
Trois fois s’enfuit la vaine image.
(Três vezes ao pescoço lancei-lhe os braços
Três vezes fugiu a vã imagem’
(Citado por Vico, Della instituzioni oratorie, pg. 142).
Mas a maioria das figuras que os retóricos classificam sob o nome de figuras de repetição parece ter um efeito argumentativo muito mais complexo do que o de proporcionar a presença. É que elas visam sobretudo, sob a forma da repetição, sugerir distinções. É o que acontece com expressões do tipo:
‘Córidon desde então é para mim Córidon!’
que são percebidas como figura em razão desse uso anormal da repetição.
Mais próximas, contudo, de figuras da presença são a conduplicatio da Rhetorica ad Herennium e o adjectio de Quintiliano:
‘Guerras, C. Graco, guerras domésticas intestinas, eis o que provocas...’ (Rhetorica ad Herennium, liv. IV, § 38)
‘Matei, sim, matei’ (Quintiliano, vol. III, liv. IX, cap. III, § 28) (”. (pg. 197-9).

“Obtém-se o efeito de presença, muito mais do que por uma repetição literal, por outro procedimento que é a amplificação; entendemos, com isso, o desenvolvimento oratório de um assunto, independentemente do exagero com o qual o associam geralmente.
... Eis um exemplo de congérie dado por Vico:
‘Teus olhos são formados para a imprudência, o rosto para a audácia, a língua para os perjúrios, as mãos para as rapinas, o ventre para glutonaria... os pés para a fuga: logo, tu és toda malignidade’ (Della instituzioni oratorie, pg. 81).
Assim também, a sinonímia ou metábole, que é descrita como a repetição de uma mesma idéia mediante termos diferentes, utiliza, pra proporcionar a presença, uma forma que sugere a correção progressiva. Em:
‘Va, cours, vole et nous venge.
(Vai, corre, voa e nos vinga.)’
(Corneille, Le Cid, ato I, cena VI)
o autor usa termos que parecem convir cada vez melhor; a sinonímia seria como que uma correção abreviada, ou mesmo como uma prolepse abreviada: proporcionaria a presença mediante uma forma destinada essencialmente à escolha.
Muito próxima dessa figura é o procedimento (interpretatio) que consiste em explicitar um membro de frase por outro, mas isto menos com intuito de aclaramento do que para aumentar a presença:
‘Foi a república que tu derrubaste de alto a baixo, o Estado que abateste completamente’ (Rhetorica ad Herennium, liv. IV, § 38)
No pseudodiscurso direto aumenta-se o sentimento de presença atribuindo ficticiamente palavras a uma pessoa ou a várias conversando entre si; a tradição distingue, a esse respeito, a sermocinatio do dialogismo”. (pg. 199-200)

“Assinalemos por fim as figuras relativas ao tempo gramatical. É a brusca passagem do pretérito, tempo da narrativa, para o presente, tempo da descrição, que faz amiúde que esta pareça uma figura, a hipotipose; o modelo geralmente citado é a narrativa da morte de Hipólito, cujos verbos estão todos no presente.
A substituição sintática de um tempo por outro, contrariamente às ligações normais, ou seja, a enálage de tempo, poderá Ter um efeito de presença muito marcante: ‘Se falas, morres’ sugere que a consequência ocorrerá instantaneamente, no momento em que se transgride a injunção.
As figuras de comunhão são aquelas em que, mediante procedimentos literários, o orador empenha-se em criar ou confirmar a comunhão com o auditório. Amiúde essa comunhão é obtida mercê de referências a uma cultura, a uma tradição, a um passado comuns.
A alusão, que muitos autores tratam como uma figura, desempenha certamente esse papel. Há alusão quando a interpretação de um texto, se se omitisse a referência voluntária do autor a algo que ele evoca sem designar, estaria incompleta; esse algo pode consistir num acontecimento do passado, num uso ou num fato cultural, cujo conhecimento é próprio dos membros do grupo com os quais o orador busca estabelecer essa comunhão. A esses fatos culturais atribui-se em geral uma afetividade: enternecimento ante as lembranças, orgulho da comunidade; a alusão aumenta o prestígio do orador que possui e sabe utilizar tais riquezas. Assim faz Mirabeau nesta passagem citada por Baron:
‘Eu não necessitava dessa lição para saber que não há mais que um passo do Capitólio à rocha Tarpéia’ (Baron, De la rhétorique, pg. 335)
A citação só é uma figura de comunhão quando não serve ao que é sua função normal, a saber: apoiar o que se diz com o peso de uma autoridade.
Máximas e provérbios também podem ser considerados citações. Quando seu uso não parece resultar das necessidades da argumentação, passando o conteúdo deles para o segundo plano, serão percebidos como figura; tornam-se o sinal do arraigamento numa cultura em Sancho Pança ou em Teviê o Leiteiro. Do mesmo modo que o clichê, a citação pode ser percebida como um formalismo. Mas a personagem de quem La Bruyère nos diz:
‘Não é nem para dar mais autoridade ao que diz, nem talvez para vangloriar-se do que sabe. Ele quer citar’ (Caractères, Des jugements, 64, pg. 385).
sem dúvida ainda está, neste momento, em busca de comunhão com o auditório”. (200-1)

“A apóstrofe, a interrogação oratória, que não visa nem a informar-se, nem a assegurar um acordo, são em geral figuras de comunhão; na comunicação oratória o orador pede ao próprio adversário, ao juiz, que reflita sobre a situação em que se dá, convida-o a participar da deliberação que ele parece prosseguir à frente dele, ou então o orador procura confundir-se com o seu auditório:
‘Ora, pergunto-vos, exclama Massillon, e vo-lo pergunto pasmo de horror, não separando nesse ponto a minha sorte da vossa...’ (Citado pro Saint-Aubin, Guide pour la classe rhétorique, pg. 91).
O mesmo efeito é igualmente obtido pela enálage da pessoa, a permutação do ‘eu’ ou do ‘ele’ pelo ‘tu’, que faz com que ‘o ouvinte julgue ver a si mesmo em meio ao perigo’ (Longino, Tratado do sublime, cap. XXII, pg. 112-3) e que é figura de presença e de comunhão. E também pela enálage do número de pessoas, a permutação do ‘eu’, do ‘tu’ pelo ‘vós’. É esta que a mãe utiliza ao dizer ao filho: ‘Vamos nos deitar’.
...
‘Vós’, ‘nós’, ‘eu’ são etapas pelas quais o orador se assimila aos seus ouvintes, confundindo-se a última, aliás, com o pseudodiscurso direto que, por sua vez, pode ser portanto figura de comunhão”. (pg. 202)

O estatuto dos elementos de argumentação e sua apresentação

“Os diferentes tipos de objetos de acordo usufruem, como sabemos, privilégios diferentes. Presume-se que alguns deles se beneficiam do acordo do auditório universal: são os fatos, as verdades, as presunções. Outros se beneficiam apenas do acordo de auditórios particulares: são os valores, as hierarquias, os lugares. A precariedade desses diferentes objetos de acordo não é vinculada às mesmas condições. ...
Presume-se, normalmente, que o orador e seu auditório reconheçam o mesmo estatuto para os elementos do discurso. ...
O mais das vezes o esforço do orador tende a atribuir aos elementos nos quais se apóia o estatuto mais elevado possível, o estatuto que usufrui o acordo mais amplo. Assim é que o estatuto de valor será atribuído aos sentimentos pessoais, o estatuto de fato será atribuído aos valores”. (pg. 203)

“Juízos de valor e, mesmo, sentimentos puramente subjetivos podem, mediante artifícios de apresentação, ser transformados em juízo de fato. A frase ‘estas maçãs não me apetecem’ para ‘não gosto destas maçãs’ permite operar uma espécie de transferência de responsabilidade. Reprova-se ao objeto não emitir apelo, considera-se que, se houve reação desfavorável, isso resulta de um comportamento do objeto. Claro que essa asserção se refere a um fato inverificável e o ouvinte poderia recusar seu acordo. Mas ninguém pensa nisso no momento em que gostaria de defender, como contraditor, a excelência dessas maçãs.
Substituindo a qualificação ‘mentiroso’ por ‘pessoa com uma disposição para induzir cientemente em erro’, ter-se-á a impressão de haver transformado o juízo de valor, no qual aparece essa qualificação, em juízo de fato, porque o enunciado, em sua nova forma, parece mais preciso, pois se insiste em suas condições de verificação. A não-utilização do termo ‘mentiroso’ salienta, aliás, a intenção de evitar uma apreciação desfavorável. O uso de termos que servem habitualmente para a descrição de fatos, para incitar a juízos de valor, sem os enunciar explicitamente, é oportuno perante auditórios que desconfiam de tudo o que não parece verificável. Aquele que, em vez de dizer ‘eu agi bem’, declara ‘agi de tal forma’ parece ater-se a uma afirmação de fato, inegável e objetiva”. (pg. 204)

“Quem qualifica a solução, que considera a melhor, de única solução opera uma transposição análoga do juízo de valor em juízo de fato”. (pg. 205)

“Certas figuras, em especial a metalepse, podem facilitar a transposição de valores em fatos. ‘Ele esquece os favores’ por ‘ele não é reconhecido’; ‘lembrem-se de nosso pacto’ por ‘observem nosso pacto’, são maneiras de atribuir uma conduta a um fenômeno de memória, que permite ao interlocutor modificar sua atitude parecendo ter somente melhorado seu conhecimento dos fatos. Assim também, ‘não conheço o senhor’ por ‘desprezo o senhor’ transpõe o juízo de valor num juízo de existência”. (pg. 206)

“... N. Bobbio, tratando da arte em regime totalitário (Libertà dell’arte e politica culturale, Nuovi argomenti, 1953, n. 2), recusa-se a examinar se o artista é mais livre na América ou na URSS, se a qualidade estética das produções russas é satisfatória ou não, porque estas são, segundo ele, questões de fato, irrelevantes para a controvérsia, e Bobbio qualifica de fato tudo quanto não diz respeito ao valor que está em jogo – a liberdade”. (pg. 207)

“... acontece com frequência que, voluntariamente, os elementos postos no primeiro plano sejam apenas valores. Um exemplo célebre é o discurso de Bruto à multidão em Júlio César de Shakespeare, do qual é eliminado tudo quanto é alheio ao valor da liberdade:
‘Preferiríeis que César vivesse e morrêsseis todos escravos, a que César morresse e vivêssemos livres?’ (Julius Cesar, ato III,cena II).
O discurso de Bruto foi amiúde considerado o de um frio lógico, em contraste com o de Antônio. No entanto, o que o caracteriza não é a eliminação dos valores, muito pelo contrário, mas a vontade enfatizada de transpor o debate unicamente a uma escolha particular”. (pg. 207-8)


TERCEIRA PARTE

As técnicas argumentativas

Generalidades

“Os esquemas... se caracterizam por processos de ligação e de dissociação.
Entendemos por processos de ligação esquemas que aproximam elementos distintos e permitem estabelecer entre estes uma solidariedade que visa, seja estruturá-los, seja valorizá-los positiva ou negativamente um pelo outro. Entendemos por processos de dissociação técnicas de ruptura com o objetivo de dissociar, de separar, de desunir elementos considerados um todo, ou pelo menos um conjunto solidário dentro de um mesmo sistema de pensamento”. (pg. 215)

Capítulo I
Os argumentos quase-lógicos

Características da argumentação quase-lógica

“Os argumentos que vamos examinar... se apresentam como comparáveis a raciocínios formais, lógicos ou matemáticos. No entanto, quem os submete à análise logo percebe as diferenças entre essas argumentações e as demonstrações formais, pois apenas um esforço de redução ou de precisão, de natureza não-formal, permite dar a tais argumentos uma aparência demonstrativa; é por essa razão que os qualificamos de quase-lógicos”. (pg. 219)

“O que caracteriza a argumentação quase-lógica é, portanto, seu caráter não-formal e o esforço mental de que necessita sua redução ao formal. ... Quando se tratar de justificar determinada redução, que não tiver parecido convincente pela simples apresentação dos elementos do discurso, recorrer-se-á o mais das vezes a outras formas de argumentação que não os argumentos quase-lógicos. ...
Quem critica um argumento tenderá a pretender que o que tem à sua frente depende da lógica; a acusação de cometer uma falta de lógica é, em geral, por sua vez, uma argumentação quase-lógica. A pessoa se prevalece, com essa acusação, do prestígio do raciocínio rigoroso. Essa acusação poderá ser precisa (acusação de contradição, p. ex.) e situar-se no próprio nível da argumentação. Poderá também ser genérica (acusação de fazer um discurso passional em vez de um discurso lógico)”. (pg. 220)

“Analisaremos, entre os argumentos quase-lógicos, em primeiro lugar os que apelam para estruturas lógicas – contradição, identidade total ou parcial, transitividade; em segundo, os que apelam para relações matemáticas – relação da parte com o todo, do menor com o maior, relação de freqüência.

Contradição e incompatibilidade

“A asserção, dentro de um mesmo sistema, de uma proposição e de sua negação, ao tornar manifesta uma contradição que ele contém, torna o sistema incoerente e, com isso, inutilizável. ...
Quando os enunciados são perfeitamente unívocos, como nos sistemas formais, onde apenas os signos, por sua combinação, bastam para tornar a contradição indiscutível, não podemos deixar de nos inclinar ante a evidência”. (pg. 221)

“De hábito, a argumentação se empenhará em mostrar que as teses combatidas levam a uma incompatibilidade, que nisso se parece com uma contradição, que ela consiste em duas asserções entre as quais cumpre escolher, a menos que se renuncie a ambas”. (pg. 222)

“O chefe de governo que levanta a questão de confiança, a propósito de um problema particular, cria uma incompatibilidade entre sua manutenção no cargo e a rejeição da solução que preconiza. Um ultimato cria uma incompatibilidade entre a recusa de ceder e a manutenção da paz entre dois Estados”. (pg. 223)

“A neutralidade entre as mulheres que são igualmente amigas nossas, conquanto tenham elas rompido por interesses em que não tínhamos participação alguma, é um ponto difícil: cumpre amiúde escolher entre elas ou perdê-las a ambas” (La Bruyère, Oeuvres) (pg. 223)

“A neutralidade entre Estado, em tempo de guerra, ou de forte tensão, não é menos difícil de observar. Como notou D. Dupréel, em seu capítulo relativo à lógica dos conflitos: ‘Toda contenda tende a estender-se aos terceiros, que a desenvolvem tomando partido’ (Sociologie générale, pg. 143) (pg. 223)

Procedimentos que permitem evitar uma incompatibilidade

“As incompatibilidades obrigam a uma escolha que sempre é penosa. Cumprirá sacrificar uma das duas regras, um dos dois valores – a não ser que se renuncie aos dois, o que acarreta muitas vezes novas incompatiblidades. ...
“... compreende-se que possam ser adotadas três atitudes muito diferentes no modo de tratar os problemas que esse confronto entre regras e situações pode trazer ao teórico e ao homem de ação.
A primeira, a que se poderia chamar lógica, é aquela em que nos preocupamos, de antemão, com resolver todas as dificuldades e todos os problemas que podem surgir, nas mais variadas situações. ... É normalmente a atitude do cientista: ele se esforça em formular leis que lhe parecem reger seu campo de estudo. ...
A essa atitude opõe-se a do homem prático, que só resolve os problemas à medida que eles se vão apresentando. ... Será essa, contrariamente à dos teóricos, a atitude dos homens da prática. ... É normalmente a atitude do juiz que, sabendo que cada uma das suas decisões constitui um precedente, procura limitar-lhes o alcance o quanto puder, enunciá-las sem ultrapassar em seus considerandos o que é necessário dizer para fundamentar sua decisão. ...
Enfim, a terceira das atitudes, que qualificaríamos de diplomática, pensando na expressão ‘doença diplomática’, é aquela em que não se desejando, pelo menos num momento e em determinadas circunstâncias, pôr-se em oposição a uma regra ou resolver, de um modo ou de outro, o conflito nascido da incompatibilidade entre duas regras que podem ser aplicadas a uma situação particular, inventam-se procedimentos para evitar que a incompatibilidade apareça ou para remeter a um momento mais oportuno as decisões a tomar”. (pg. 224-5)

“A ficção, a mentira, o silêncio servem para evitar uma incompatibilidade no plano da ação, para não Ter de resolver no plano teórico. O hipócrita finge adotar uma regra de conduta conforme à dos outros para evitar Ter de justificar uma conduta por ele preferida ou adotada na realidade. Muitas vezes foi dito que a hipocrisia era uma homenagem que o vício presta à virtude: conviria precisar que a hipocrisia é uma homenagem a um determinado valor, aquele que se sacrifica, simulando ao mesmo tempo segui-lo, porque se recusa a confrontá-lo com outros valores. ... Poder-se-ia lembrar aqui a aproximação, feita por V. Jandélévitch, entre a esmola e a mentira: ‘a esmola, como a mentira, adia o problema sem o resolver; protela a dificuldade tornando-a mais pesada’ (Traité des vertus, pg. 435)”
Obs.: O “Fome Zero”, de Lula-laite, é um exemplo claro.

“Sartre desenvolveu uma teoria da má-fé, como sendo ‘certa arte de formar conceitos contraditórios’ (L’être et le néant, pg. 95). Esses conceitos ‘unem em si uma idéia e a negação desta idéia’ (idem pg. 109). Ressalta com bastante clareza dos exemplos dados por ele que não se está no campo do contraditório e que a má-fé de Sartre é a recusa de reconhecer incompatibilidades: atesta-o o exemplo da mulher a quem dizem palavras espiritualistas e de quem se pega a mão. ... Mas a distinção que ela estabelece no início, entre a facticidade, o que as palavras e os gestos significam, e a transcendência, aquilo ao que eles tendem, e que a má-fé recusa coordenar, pode ser útil para descrever certas incompatibilidades e a recusa de reconhecê-las”. (pg. 227)

Técnicas que visam apresentar teses como compatíveis ou incompatíveis

“Duas proposições são ditas contraditórias, num sistema formalizado, quando, sendo uma a negação da outra, supõe-se que, cada vez que uma delas pode aplicar-se a uma situação, a outra igualmente o pode. ...
O mundo ‘onde há ser’ e aquele sem ser são, para G. Marcel, os pressupostos ontológicos de dois modos de vida, o da personalidade e o da função, um ‘cheio’, o outro ‘vazio’, que, descritos como incompatíveis, parecem o Ter sido com toda razão por causa desses mesmos pressupostos (G. Marcel, Position et approches concrètes du mystère ontologique)”. (pg. 228-9)

“Uma das técnicas para expor incompatibilidades consiste em afirmar que, de duas teses que se excluem, ao menos uma é sempre aplicável, o que tornaria inevitável o conflito com a outra tese, contanto que sejam aplicáveis, ambas, a um mesmo objeto. As duas teses se tornarão compatíveis se uma divisão no tempo ou uma divisão quanto ao objeto permitirem evitar o conflito. Duas afirmações de uma só pessoa, em momentos diferentes da sua vida, podem ser apresentadas como incompatíveis, se todos os enunciados dessa pessoa são tratados como formando um único sistema; se se tratam os diversos períodos de sua vida como não sendo solidários um do outro, a incompatibilidade desaparece”. (pg. 229)

“... daremos a esse tipo de incompatibilidades... o nome genérico de autofagia. A generalização de uma regra, sua aplicação sem exceção, conduziria ao impedimento de sua aplicação, à sua destruição. Para tomar um exemplo em Pascal: ‘Nada fortalece mais o pirronismo que o fato de haver algumas pessoas que não são pirônicas; se todos o fossem, estariam errados’ (Oeuvre, Bibl. de la Pléiade, Pensées, 185 (81), pg. 871 – 374 ed. Brunschvicg).
A retorsão, que chamavam na Idade Média de redarguitio elenchica, constitui o uso mais célebre da autofagia: é um argumento que tende a mostrar que o ato empregado para atacar uma regra é incompatível com o princípio que sustenta esse ataque. A retorsão costuma ser utilizada, desde Aristóteles, para defender a existência dos princípios primeiros. É o que Ledger Wood chama com todo acerto de ‘method of affirmation by attempted denial’ (The Analysis of Knowledge, pg. 194 ss.)”. (pg. 231)

“Outra situação que pode levar à autofagia é aquela em que não se opõe um enunciado ao ato pelo qual é afirmado, mas em que se aplica a regra a ela mesma: a autofagia resulta da auto-inclusão. Aos positivistas que afirmam que toda proposição é analítica ou de natureza experimental, perguntar-se-á se o que acabaram de dizer é uma proposição analítica ou resultante da experiência. Ao filósofo que pretende que todo juízo é um juízo de realidade ou um juízo de valor, perguntar-se-á qual é o estatuto de sua afirmação. A quem argumenta para rejeitar a validade de todo raciocínio não-demonstrativo, perguntar-se-á qual é o valor de sua própria argumentação. ...
Outra forma ainda de autofagia é a que opõe uma regra às consequências que parecem dela decorrer. Em seus Sofismas anárquicos, Bentham critica a constituição francesa que justifica as insurreições:
‘Mas justificá-las é incentivá-las... Justificar a destruição ilegal de um governo é solapar qualquer outro governo, sem excetuar sequer aquele mesmo que se quer pôr no lugar do primeiro. Os legisladores da França imitavam, sem perceber, o autor daquela lei bárbara que conferia ao assassino de um príncipe o direito de suceder-lhe no trono’ (Oeuvres, t. I: Sophismes anarchiques, pg. 524) (pg. 232)

“É o ridículo, e não o absurdo, a principal arma da argumentação; por isso é indispensável consagrar a essa noção uma explanação mais importante”. (pg. 233)

O ridículo e seu papel na argumentação

“O ridículo é aquilo que merece ser sancionado pelo riso, aquilo que E. Dupréel, em sua excelente análise, qualificou de ‘riso da exclusão’. Este é a sanção da transgressão de uma regra aceita, uma forma de condenar um comportamento excêntrico, que não se julga bastante grave ou perigoso para reprimi-lo com meios mais violentos”. (pg. 233)

“Basta um erro de fato, constata La Bruyère, para lançar um homem sensato no ridículo (Bibl.de la Pléiade, Les caractères, Des jugements, 47, pg. 379). ...
O ridículo é a arma poderosa de que o orador dispõe contra os que podem, provavelmente, abalar-lhe a argumentação, recusando-se, sem razão, a aderir a uma ou outra premissa de seu discurso. É ela, também, que se deve utilizar contra os que se atreverem a aderir, ou a continuar a adesão, a duas teses julgadas incompatíveis, sem se esforçarem em remover essa incompatibilidade. O ridículo só atinge quem se deixa prender nas malhas do sistema forjado pelo adversário. O ridículo é a sanção contra a obcecação e só se manifesta para aqueles a quem essa obcecação não dá margem a dúvidas”. (pg. 234)

“Dizer de um autor que sua opiniões são inadmissíveis, porque suas consequências seriam ridículas, é uma das mais fortes objeções que se possam apresentar na argumentação”. (pg. 234)

“Assim como, em geometria, o raciocínio pelo absurdo começa supondo-se verdadeira uma proposição “A”, para mostrar que suas consequências são contraditórias com o que se admitiu por outro lado e passar daí à verdade de “não-A”, assim também a mais caracterizada argumentação quase-lógica pelo ridículo consistirá em admitir momentaneamente uma tese oposta àquela que se quer defender, em desenvolver-lhe as consequências, em mostrar a incompatibilidade destas com o que se crê por outro lado e em pretender passar daí à verdade da tese que se sustenta”. (pg. 235)

“A assunção provisória pela qual começa esse gênero de raciocínio pode traduzir-se por uma figura, a ironia. Através da ironia ‘quer-se dar a entender o contrário do que se diz’ (Dumarsais, Des tropes, pg. 131). Por que esse rodeio? É que, na realidade, estamos lidando com uma argumentação indireta. Eis um belo exemplo dela, extraído de Demóstenes:
‘Realmente, o povo de Oreu teve muito do que se regozijar por se Ter posto nas mãos dos amigos de Filipe e por Ter afastado Eufreu! Tiveram do que se regozijar, os eretrienses, por terem mandado embora os vossos deputados e por se terem entregue a Clitarco! Ei-los escravos, açoitam-nos e degolam-nos!’ (Orações e discursos políticos, t. II: Terceira filípica, § 66)
Obs.: Primeira Olavítica: digressão sobre as ‘catilinárias’, as ‘filípicas’ de Olavo de Carvalho.

“A ironia é pedagógica porque, se o povo de Oreu e os eretrienses não podem fazer mais nada, o povo de Atenas, este, ainda pode escolher. Lembremos a esse respeito a emoção causada na Bélgica, em 1950, por um discurso em que Paul Reynaud falara da ‘neutralidade que foi tão bem-sucedida por duas vezes na Bélgica’. O orador declarou que não quisera criticar a Bélgica, mas mostrar que a neutralidade não era uma garantia, ou seja, que concordava com que, para a Bélgica, houvera, em favor da neutralidade, coação material ou psicológica, reservando o ridículo aos seus ouvintes franceses ainda livres para decidir”. (pg. 236)

“A ironia fica ainda mais eficaz quando é dirigida a um grupo bem-delimitado. ...
O uso da ironia é possível em todas as situações argumentativas. ...
Embora seja verdade que o ridículo desempenhe, na argumentação, um papel análogo ao do absurdo na demonstração, ainda assim – sendo esta mesma a prova de que a argumentação jamais é coerciva – o orador pode afrontar o ridículo, colocando-se em franca oposição a uma regra habitualmente admitida. Quem afronta o ridículo sacrifica essa regra e expõe-se à condenação por parte do grupo. Mas tal sacrifício pode ser apenas provisório, se o grupo consentir seja em admitir exceções, seja em modificar a regra”. (pg. 236-7)

“Um prestígio sobre-humano seria necessário para opor-se aos fatos ou à razão: daí o alcance do credo quia absurdum. Normalmente a argumentação, obra humana, apenas se opõe ao que não é considerado objetivamente válido”, (pg. 237)

Identidade e definição na argumentação

“Uma das técnicas essenciais da argumentação quase-lógica é a identificação de diversos elementos que são o objeto do discurso. ...
O procedimento mais característico de identificação completa consiste no uso das definições. ...
Entre as definições que levam à identificação do que é definido com o que o define, distinguiremos, com Arne Naess (Cf. A. Naess, Interpretation and Preciseness, cap IV), as quatro seguintes espécies:
1) as definições normativas, que indicam a forma em que se quer que uma palavra seja utilizada. Tal norma pode resultar de um compromisso individual, de uma ordem destinada a outros, de uma regra que se crê que deveria ser seguida por todos;
2) as definições descritivas, que indicam qual o sentido conferido a uma palavra em certo meio, num certo momento;
3) as definições de condensação, que indicam elementos essenciais da definição descritiva;
4) as definições complexas, que combinam, de forma variável, elementos das três espécies precedentes.
Essas diversas definições seriam, quer prescrições, quer hipóteses empíricas referentes à sinonímia do definiendum e do definiens.
Entre as definições normativas, apenas as que se apresentam como uma regra obrigatória são suscetíveis de ser apoiadas ou combatidas através da argumentação; dá-se o mesmo com definições de condensação, acerca das quais é possível perguntar-se em que medida as indicações que fornecem são essenciais. Quanto às definições descritivas, elas usufruirão, enquanto não forem contestadas, o estatuto de um fato”. (pg. 238-9)

“Quando, no início de sua Ética, Spinoza define a causa de si como ‘aquilo cuja essência envolve a existência, ou (sive) aquilo cuja natureza só pode ser conhecida como existente; quando define a substância como ‘o que está em si e é concebido por si, isto é (hoc est) aquilo cujo conceito pode ser formado sem necessitar do conceito de outra coisa (Ética, liv. I, defs. I e III), as palavras sive e hoc est afirmam o caráter intercambiável de duas definições diferentes de uma mesma noção”. (pg. 242)

Analiticidade, análise e tautologia

“Toda análise, na medida em que não se apresenta como puramente convencional, pode ser considerada uma argumentação quase-lógica, utilizando quer definições, quer um procedimento por enumeração, que limita a extensão de um conceito aos elementos relacionados”. (pg. 244)

“Toda argumentação quase-lógica, cujo caráter evidente e mesmo necessário se reconhece, se arrisca assim, em vez de ser criticada como fraca e não-concludente, a ser atacada como totalmente carente de interesse, porque não nos ensina de novo: uma afirmação assim será qualificada de tautologia, porque resultante do próprio sentido dos termos utilizados.
Eis um texto de Nogaro, iulstrativo desse procedimento:
‘Por muito tempo os clássicos afirmaram que a depreciação, ou a baixa do valor da moeda, provoca a alta dos preços, sem atentarem que baixa de valor da moeda (com relação às mercadorias) e alta dos preços são duas expressões invertidas de um mesmo fenômeno e que há aí, por conseguinte, não uma relação de causa e efeito, mas uma tautologia’ (B. Nogaro, La valeur logique des théories économiques, pg. 12-3)
A acusação de tautologia equivale a apresentar uma afirmação como resultado de uma definição, de uma convenção puramente linguística, que nada nos ensina no tocante às ligações empíricas que um fenômeno pode ter com outros e para o estudo das quais seria indispensável uma pesquisa experimental”. (pg. 244-5)

“Quando, numa discussão não-formal, a tautologia parece evidente e voluntária, como nas expressões do tipo ‘um tostão é um tostão’, ‘crianças são crianças’, deverá ela ser considerada uma figura. ... A interpretação da figura, a que chamaremos tautologia aparente, requer portanto um mínimo de boa vontade da parte do ouvinte”. (pg. 246)

“Faz tempo que esses enunciados chamam a atenção dos teóricos do estilo. Vendo que os dois termos deveriam ter um significado diferente, eles transformaram essas tautologias em casos particulares de outras figuras: segundo Vico, na figura chamada ploce (‘Córidon desde aquele tempo me é Córidon’), o mesmo termo é tomado para significar a pessoa e para significar o comportamento (ou a coisa e suas propriedades) (Delle instituzioni oratorie, pg. 142); segundo Dumarsais, em ‘pai é sempre pai’ o segundo termo é um substantivo tomado adjetivamente (Des tropes, pg. 173); segundo Baron, é uma silepse oratória, estando uma das palavras no sentido próprio, a outra no figurado (De la rhétorique, pg. 337) (pg. 246)

“... não passa de uma maneira formal do procedimento que consiste em valorizar positiva ou negativamente alguma coisa com um pleonasmo, sendo-nos dado um bonito exemplo seu por Les ana de madame Apremont:
‘Quando vejo tudo o que vejo, penso o que penso’ (M. Jouhandeau, Les ana de madame Apremont, pg. 61).
Aqui, como na repetição, o segundo enunciado do termo é que comporta o valor”. (pg 246-7)

“A identidade dos contraditórios deve ser posta no mesmo plano; p. ex., a célebre máxima de Heráclito:
‘Entramos e não entramos no mesmo rio’. (Obs.: em português, essa máxima recebeu a tradução ‘não podes entrar duas vezes no mesmo rio. N. do T.)
As tautologias e as contradições têm um aspecto quase-lógico porque, logo de início, tratamos os termos como unívocos, como suscetíveis de identificarem-se, de excluírem-se. Mas, após a interpretação, surgem as diferenças. Estas podem ser conhecidas previamente à argumentação. Na antanáclase já não se trata senão de um emprego da homonímia:
‘É-me caro ser amado, contanto que não me custe caro’ (Vico, Delle instituzioni oratorie, pg. 142)
Aqui, o conhecimento dos usos linguísticos fornece imediatamente a solução. Mas, nas tautologias de identidade, a diferença geralmente não está fixada. ...
Embora algumas dessas identidades possam desempenhar o papel de máximas (‘uma mulher é uma mulher’ pode ser maneira de enunciar que todas as mulheres são iguais, mas também de enunciar que uma mulher deve portar-se como uma mulher), elas só adquirem significado argumentativo quando se aplicam a uma situação concreta, a única que dá a essas noções o significado particular que convém”. (pg. 247)

A regra da justiça

“A regra da justiça requer a aplicação de um tratamento idêntico a seres ou a situações que são integrados numa mesma categoria. A racionalidade dessa regra e a validade que lhe reconhecem se reportam ao princípio da inércia, do qual resulta, notadamente, a importância conferida ao precedente.
Para que a regra de justiça constitua o fundamento de uma demonstração rigorosa, os objetos aos quais ela se aplica deveriam ser idênticos, ou seja, completamente intercambiáveis. Mas, na verdade, isso nunca acontece. Os objetos sempre diferem em algum aspecto, e o grande problema, o que suscita a maioria das controvérsias, é decidir se as diferenças constatadas são ou não irrelevantes ou, outros termos, se os objetos não diferem pelas características que se consideram essenciais, isto é, os únicos a serem levados em conta na administração da justiça”. (pg. 248)

“O romance inteiro de Gheorghiu, A vigésima quinta hora, é um protesto contra a mecanização dos homens, contra a sua desindividualização operada por sua inserção em categorias administrativas. Eis uma passagem em que seu humor macabro se revolta contra tal redução:
‘Essas frações de homens, que não têm mais do que pedaços de carne, recebem a mesma quantidade de alimentos que os prisioneiros em perfeita posse de seus corpos. É uma grande injustiça. Proponho que esses prisioneiros recebam rações alimentares proporcionais à quantidade de corpo que ainda possuem’ (La vingt-cinquième heure, pg. 274)
Para mostrar o caráter arbitrário de todas as classificações administrativas, o autor introduz uma sugestão bufa: propõe a intervenção de um elemento horrível, a mutilação. Tende assim a ridicularizar as classificações estabelecidas que não tratam os homens como indivíduos, consoante um espírito de caridade e de amor, mas como membros intercambiáveis de uma classe”. (pg. 249)

“... Locke espera convidar seus concidadãos a mais tolerância:
‘Homem nenhum se queixa do mau governo dos negócios de seu vizinho. Homem nenhum se irrita contra outro por um erro cometido ao semear seu campo ou ao casar a filha. Ninguém corrige um pródigo que consome seu patrimônio nas tabernas... Mas, se algum homem não frequenta a Igreja, se ali não adapta exatamente a sua conduta às cerimônias habituais, ou se não leva os filhos para serem iniciados nos mistérios sagrados desta ou daquela congregação, isto causa imediatamente um tumulto’ (The Second Treatise of Civil Government and a Letter Concerning Toleration, pg. 136)
Locke queria que se aplicasse a mesma regra para as questões religiosas e para as questões civis, e vale-se da tolerância usual, em sua época, no tocante às últimas, para incitar à mesma tolerância nos assuntos religiosos. Mas, hoje, recuaríamos ante a assimilação dessas situações diferentes, temendo que ela conduzisse a uma intervenção do Estado nas questões de consciência, análoga ao dirigismo que caracteriza vários setores da vida econômica”. (pg. 249-50)

Argumentos de reciprocidade

“Os argumentos de reciprocidade visam aplicar o mesmo tratamento a duas situações correspondentes. A identificação das situações, necessária para que seja aplicável a regra de justiça, é aqui indireta, no sentido de que requer a intervenção da noção de simetria”. (pg. 250)

“Entre os exemplos de argumentos, que Aristóteles já considerava tirados das ‘relações recíprocas’, encontramos o do publicano Diomedonte dizendo a propósito dos impostos:
‘Se não é vergonhoso para vós vendê-los, também não o é para nós comprá-lo’ (Aristóteles, Retórica, liv. II, cap. 23, 1397 a)
Quintiliano fornece como exemplo do mesmo gênero de proposições ‘que se confirmam mutuamente’:
‘O que é honroso aprender, também é honroso ensinar’ (vol II, liv. V, cap. X, § 78)
Com um raciocínio da mesma natureza, La Bruyère condena os cristãos que assistem aos espetáculos, uma vez que os comediantes são condeandos às penas do inferno por apresentarem os mesmos espetáculos (Bibl. de la Pléiade, Caractères, De quelques usages, 21, pg. 432)
... Essa influência da qualificação fica manifesta em certos argumentos em que ela comanda sozinha a simetria invocada, tal como este argumento de Rousseau:
‘Não há mãe, não há filho. Entre ambos, os deveres são recíprocos; e, se forem mal cumpridos de um lado, do outro serão negligenciados’ (Émile, pg. 18)”. (pg. 251)

“Já que achamos estranhos os costumes dos persas, estes não deveriam espantar-se com os nossos? Os costumes ridículos dos países de utopia, descritos com condescendência, levam-nos a refletir sobre alguns de nossos usos que lhes são correspondentes e a considerá-los igualmente ridículos”. (pg. 252)
Obs.: os países de utopia (comunistas) vistos com agrado por muitos intelectuais (‘ópio dos intelectuais’), como Frei Betto mostra seu agrado por Cuba e pelo tirano Fidel Castro.

“Os preceitos de moral humanista, trate-se de enunciados judaico-cristãos (‘Não faças a outrem o que não gostarias que te fizessem’) ou do imperativo categórico de Kant (‘Age de tal forma que a máxima de tua vontade sempre possa valer, ao mesmo tempo, como princípio de uma legislação universal’), supõem que o indivíduo e suas regras de ação não podem pretender uma situação privilegiada, que, ao contrário, ele é regido por um princípio de reciprocidade, que parece racional, porque quase-lógico'” (pg. 252)

“O retrato do diplomata, traçado por La Bruyère, cujo desígnio seria sempre o embuste, corresponde a uma visão bastante comum. Mas os fingimentos descritos prazerosamente não são mais que maneiras de valer-se das simetrias de situação; a tarefa do diplomata é chegar aos seus fins com boas razões: o argumento de reciprocidade, embora nem sempre esteja expresso, é uma das bases de uma diplomacia que se exerce de igual para igual; ora, é a esse caso ideal que corresponde a descrição clássica de La Bruyère (Les caractères, Du souverain ou de la république, 12, pg. 295 s.)
Por vezes a identificação de situações resulta de que dois atos, mesmo sendo distintos, concorreram para um mesmo efeito:
‘Eu acusei; vós condenastes’ é uma réplica célebre de Domício Afer (Quintiliano, vol. II, liv. V, cap. X, § 79) (pg. 253)

“Algumas argumentações quase-lógicas podem utilizar outro tipo de simetria resultante do fato de duas ações, duas condutas, dois eventos serem apresentados como o inverso um do outro. ...
O conhecido pensamento de Pascal:
‘Pouca coisa nos consola, porque pouca coisa nos aflige’
tira sua força de persuasão dessa mesma simetria”. (pg. 254)

“A maior parte dos exemplos que os antigos nos dão de argumentação pelos contrários levam a uma generalização, partindo de uma situação particular e exigindo que se aplique o mesmo tratamento à situação simétrica:
‘Se não é justo deixar-se levar pela cólera contra quem nos fez mal sem querer, aquele que nos fez bem porque a isso era forçado não tem o direito a nenhum reconhecimento’ (Aristóteles, Retórica, II, cap. 23, 1397 a.) (pg. 255)

“O uso do argumento de reciprocidade está na base de uma generalização frequente em filosofia, como a que afirma que tudo que nasce morre, passando assim do nascimento de um ser à sua contingência. Montaigne tira disso uma lição de moral:
‘É igual loucura lastimar que não estaremos vivos daqui a cem anos e lastimar que não estávamos vivos cem anos atrás’ (Gibert, Jugements des savans sur les auterus que ont traité de la rhétorique, vol. III, pg. 154) (pg. 255)

“Laurence Sterne explora de um modo consciente esse mesmo filão, o cômico da argumentação, numa passagem de Tristram Shandy:
‘- Eh! Exclamou Kysarcius, quem teve a idéia de deitar-se com a avó?
- Esse rapaz, replicou Yorick, de quem Selden fala, e que não somente teve essa idéia mas ainda a justificou perante o pai, baseando-se na lei de talião: ‘Vós que deitais’, disse ele, ‘com a minha mãe, por que não me deitaria eu com a vossa?’ É um argumentum commune, acrescentou Yorick’ (L. Sterne, Vie et opinions de Tristram Shandy, liv. IV, cap. XXIX, pg. 275)

“Às vezes, a simetria de situação é evocada, condescendentemente, com o único intuito de poder negá-la. Como nessa fala recolhida por Jouhandeau:
‘Lévy, se eu tivesse sabido que eras tão rico... Não te amo, mas serias tua, em vez de Raymond, que me terias desposado e eu te teria enganado com ele, até o dia que, de tanto de roubar, quando pudéssemos ficar muito felizes juntos sem ti, eu te teria largado. Mas tudo aconteceu de um modo diferente: sou a mulher dele e, mesmo que fosses ainda mais rico, nem por ouro nem por prata eu enganaria o meu Raymond contigo’ (Un Monde, pg. 251) (pg. 257)

Argumentos de transitividade

“A transitividade é uma propriedade formal de certas relações que permite passar da afirmação de que existe a mesma relação entre os termos a e b e entre os termos b e c, à conclusão de que ela existe entre os termos a e c: as relações de igualdade, de superioridade, de inclusão, de ascendência são relações transitivas” (pg. 257)

“... uma das relações transitivas mais importantes é a relação de implicação. A prática argumentativa não utiliza todas as implicações que a lógica formal pode definir. Mas faz largo uso da relação de consequência lógica. O raciocínio silogístico é essencialmente fundamentado na transitividade. Não é de espantar que os autores antigos tenham tentado pôr na forma silogística os argumentos que encontravam: os termos entimema e epiquirema correspondem, grosso modo, aos argumentos quase-lógicos apresentados em forma de silogismo. Aristóteles qualifica de entimeme e Quintiliano de epiquirema o silogismo da retórica”. (pg. 260)

“Há um tipo de raciocínio que é característico. Encontramo-lo fartamente nos escritos chineses e certos autores dão-lhe o nome de sorites (nome que outros reservam ao paradoxo do monte de trigo, & 61555;& 61559;& 61554;& 61551;& 61560;: chamaremos um de sorites chinês, o outro de sorites grego, por comodidade, deixando a questão da relação que pode uni-los para o momento oportuno. Eis um exemplo de sorites, tirado de Ta Hio:
‘Os antigos, que queriam cumprir com inteligência seu papel educador em todo o país, primeiro punham em ordem seu principado; querendo pôr em ordem seu principado, primeiro regravam sua vida familiar; querendo regrar sua vida familiar, primeiro cultivavam sua pessoa; desejando cultivar sua pessoa, primeiro reformavam seu coração; querendo reformar seu coração, buscavam a sinceridade em seus pensamentos; buscando a sinceridade em seus pensamentos, primeiro se aplicavam à ciência perfeita; essa ciência perfeita consiste em adquirir o senso das realidade’ (O Tao Hio, Primeira Parte, § 4)

A inclusão da parte no todo

“A relação de inclusão ocasiona dois grupos de argumentos que há interesse em distinguir: os que se limitam a demonstrar essa inclusão das partes num todo e os que demonstram a divisão do todo em suas partes e as relações entre as partes daí resultantes”. (pg. 262)

“Isso possibilita apresentar argumentações fundamentadas no esquema ‘o que vale para o todo vale para a parte’, por exemplo, esta afirmação de Locke:
‘Nada do que não é permitido pela lei a toda a Igreja, pode, por algum direito eclesiástico, tornar-se legal para algum de seus membros’ (The Second Treatise of Civil Government and a Letter Concerning Toleration, pg. 135) (pg. 262)

A divisão do todo em suas partes

“A concepção do todo como a soma de suas partes serve de fundamento para uma série de argumentos que podemos qualificar de argumentos de divisão ou de partição, tal como o entimema de Aristóteles:
‘Todos os homens cometem a injustiça com três finalidades (esta, essa ou aquela); e por duas razões o delito era impossível; quanto à terceira, os próprios adversários não a mencionam’ (Retórica, liv. II, cap. 23, IX, 1398 a).
Pode-se aproximar deste o seguinte entimema:
‘Um outro se tira das partes, como, nos Tópicos, qual espécie de movimento é a alma: ou esta ou aqueloutra’ (Idem, liv. II, cap. 23, XII, 1399 a). (pg. 265)

“Eis um exemplo, tomado de Bergson, onde este se pergunta qual força pode desempenhar, na moral aspiração, o papel que a pressão do grupo desempenha na moral social:
‘Não temos escolha. Fora do instinto e do hábito, não há ação direta sobre o querer senão a da sensibilidade’ (Les deux sources de la moralle et de la religion, pg. 35) (pg. 267)

“Todos os argumentos por divisão implicam evidentemente, entre as partes, certas relações que fazem que a soma delas seja capaz de reconstituir o conjunto. ...
A negação desempenha a esse respeito um papel essencial; ela é que parece garantir que a divisão é exaustiva. Assim como neste argumento erístico (Kunstgriff 13), que Schopenhauer expõe nos seguintes termos:
‘Para fazer uma proposição ser admitida pelo adversário, é preciso juntar-lhe o seu contrário e deixar a escolha ao adversário; esse contrário será formulado de um modo assaz cru para que, não querendo ser paradoxal, o interlocutor aceite a nossa proposição que, em relação à outra, parece mais plausível. Por exemplo, para que ele concorde com que se deve fazer tudo quanto o pai ordena, perguntar-se-á: ‘Deve-se em todas as coisas obedecer ou desobedecer aos pais’ (Eristische Dialiktik, pg. 414)”. (pg. 271)

“La Bruyère escreve:
‘A impossibilidade em que estou de provar que Deus não existe revela-me a sua existência’ (Caractères, Des esprits forts, 13, pg. 472)
É esse tipo de raciocínio que se baseia geralmente, como mostrou E. Dupréel, a noção de necessidade em filosofia (Essais pluralistes, Da necessidade, pg. 77). (pg. 272)

“O bispo Blougram mostra que crença e descrença são complementares:
‘Tudo o que ganhamos com nossa descrença
é uma vida de dúvida diversificada pela fé,
por uma vida de fé diversificada pela dúvida:
chamávamos o tabuleiro de xadrez de branco
- chamamo-lo de negro’ (R. Browning, Poems, Bishop Blougram’s Apology, pg. 140).
Uma afirmação e sua negação são, num sentido, sempre complementares. Mas, ao acentuar a complementaridade, elimina-se a idéia de oposição e de escolha indispensável, para chegar, ao contrário, à idéia de que a escolha é indiferente. As negações utilizadas nos dilemas poderiam, por esse viés, reportar-se à complementaridade.
A importância da maneira pela qual é percebida a relação entre partes que formam um todo é particularmente marcante nos argumentos a pari e a contrario, muito conhecidos na tradição jurídica. Tratam eles da aplicação ou da não-aplicação, a uma outra espécie particular. Tomemos um exemplo. Uma lei edita certas disposições relativas aos filhos herdeiros; por intermédio do argumento a pari procura-se estender essas disposições às filhas; o argumento a contrario, ao inverso, permite pretender que elas não se aplicam às pessoas do sexo masculino. No primeiro caso, a lei é considerada um exemplo de uma regra que concerne ao gênero inteiro; no segundo, é concebida como uma exceção de uma regra subentendida referente ao gênero.
O argumento a pari é entendido como uma identificação; a argumentação a contrario, como divisão”. (pg. 273-4)

Argumentos de comparação

“A argumentação não poderia ir muito longe sem recorrer a comparações, nas quais se cotejam vários objetos para avaliá-los um em relação ao outro. Nesse sentido, os argumentos de comparação deverão ser distinguidos tanto dos argumentos de identificação quanto do raciocínio por analogia”. (pg. 274)

Fonte: https://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=64615&cat=Ensaios&vinda=S


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