A teoria do foco guerrilheiro
- Por Carlos Azambuja - 03/12//2013
Fonte: midiasemmascara.com
Movimento Revolucionário
“Os povos que não conhecem seu passado estão condenados a repeti-lo” (Hegel).
“Só se salvarão os que souberem nadar”. Essa foi uma frase memorável, pronunciado por Cataneo, cantor do trio cubano Taicuba, na manhã de 8 de janeiro de 1959, quando Fidel Castro fazia sua entrada triunfal em Havana, à frente de seus guerrilheiros. Hoje, Cataneo é chamado de “o profeta”.
A lógica revolucionária limita o campo político a duas e somente duas posições. Quem não está comigo, está contra mim; quem não é revolucionário, é contra-revolucionário. Essa simplificação recebeu a benção filosófica de Lenin, que a transformou em dogma. Essa mesma frase foi repetida pelo presidente W. Bush, após os atentados de 11 de setembro de 2001, nos EUA. Na década de 60 no Brasil, e em toda a América Latina, diversas organizações voltadas para a luta armada, influenciadas pelo êxito da revolução cubana e objetivando “acelerar o processo”, vislumbraram a possibilidade de substituir os tradicionais partidos comunistas pela guerrilha, baseados nos escritos de Che Guevara sobre a guerra de guerrilhas e de Regis Debray sobre o “foco guerrilheiro” e passaram a aplicar a doutrina acima enunciada: “quem não está comigo está contra mim”.
Muito já se escreveu na América Latina e no mundo sobre esse tema. As organizações guerrilheiras, surgidas dos setores radicalizados da pequena burguesia das cidades, priorizavam a luta armada, as ações imediatas, que serviriam de motor da revolução, negando, com essa prática, o papel histórico do proletariado, doutrinariamente reivindicado pelos partidos comunistas.
A teoria do “foco guerrilheiro”, materializada pelo sucesso de Fidel Castro e Che Guevara em Cuba, foi sistematizada na época por Regis Debray, um intelectual francês, em seu livro “Revolução na Revolução”, que lhe teria sido ditado por Fidel Castro. Posteriormente, já em 1974, Regis Debray, em outro livro, intitulado “A Crítica das Armas”, faria uma autocrítica, mas voltaria a justificar essa teoria com novos argumentos. Na década de 60, Debray – nascido na França em 1941 – era um jovem jornalista, formado em Sociologia e seduzido pelas idéias marxistas e ainda mais pela revolução cubana e pelo fotogênico espetáculo de uma ilha paradisíaca governada por audazes barbudos que preparavam o assalto final contra a fortaleza imperialista norte-americana, logo ali, a apenas 80 milhas.
Na época, em Cuba não faltavam os homens de ação, mas não existiam teóricos capazes de explicar em que lugar ficariam os partidos comunistas e as tradicionais organizações marxistas-leninistas ortodoxas. Desde uma perspectiva teórica tornava-se fundamental explicar a ruptura da guerrilha fidelista com o velho almanaque escrito por Marx e complementado por Lenin. Afinal, não estava escrito que o comunismo surgiria como conseqüência da luta de classes dirigida pela vanguarda revolucionária com base no proletariado, organizada pelo seu estado-maior, o partido comunista?
Foi atribuída a Debray, então, a tarefa de compor outro almanaque revolucionário para os novos tempos, a fim de justificar a tática cubana que ele denominou de “teoria do foco guerrilheiro”, uma vez que ele iria, seguramente, provocar a ira dos partidos comunistas tradicionais, todos dependentes do Ouro de Moscou.
Assim surgiu o livro “Revolução na Revolução”, já mencionado, que continha três teses fundamentais: a primeira advertindo que as revoluções na América Latina deveriam partir de um “foco” militar rural que, no momento adequado, daria à luz uma vanguarda política; a segunda, afirmava que quando se inverte a ordem dos fatores – criando primeiro a vanguarda política para depois gerar o “foco” – acarreta que a organização política converte-se num fim em si mesma e adia para um futuro distante a eclosão da luta armada; e a terceira indica o inimigo a ser destruído: “o imperialismo ianque e seus capatazes locais”.
Segundo Debray, Che Guevara dizia que uma das três regras de ouro era a desconfiança constante. Desconfiança de quem? Das massas, segundo Debray.
A revolução, para os partidários do foco, seria desencadeada não pelos partidos comunistas tradicionais e sim por um grupo selecionado de homens armados, apartado das massas. Esse grupo, pelo exemplo de suas ações, seria o “pequeno motor” que motivaria e daria a partida ao “grande motor”, as massas. Nesse sentido, desprezavam o trabalho político que, segundo a ortodoxia do marxismo-leninismo, precede a luta armada, uma vez que “sem teoria revolucionária não há prática revolucionária” (Lenin). O partido era, então, substituído pelo “foco”, sob a alegação de que o “foco” formaria o partido.
Ao negar a necessidade do partido os “foquistas” assumiam a direção da revolução, tirando-a das mãos do proletariado – a “única classe conseqüente e verdadeiramente revolucionária”, segundo a doutrina, “dirigido pelo estado-maior da classe operária, o Partido” (assim, com inicial maiúscula)– colocando-a nas mãos da classe que representava: a pequena burguesia urbana, condenando, assim, a revolução à derrota, segundo os marxistas-leninistas ortodoxos.
Tudo isso havia sido exposto por Che Guevara em seu livro, escrito na década de 60, “Guerra de Guerrilhas”, CHE proclamava a necessidade de “criar dois, três Vietnãs” e que, nesse sentido, situar a guerrilha sob a dependência tática ou estratégica de um partido, ou como ramificação de um partido, acarretaria, como conseqüência, uma série de erros militares mortais. Para que o “pequeno motor” – a guerrilha – pusesse realmente em marcha o “grande motor” - as massas - seria necessário, primeiro, que seja reconhecido por essas massas como seu único intérprete e guia, sob pena de dividir e debilitar as forças populares. Para que se opere esse reconhecimento é preciso que a guerrilha assuma todas as funções de comando político e militar.
Che Guevara nem de longe poderia suspeitar o irônico que soaria essa sua frase na década de 90, pois converter a América Latina em um Vietnã seria conduzi-la velozmente ao capitalismo. Sob uma ditadura que cada vez mais vai sendo menos comunista, o atual regime vietnamita abriu as comportas do regime ao capitalismo ocidental e os estragos feitos pela Coca-Cola e pelo McDonald´s são muito mais significativos que os da revolução comunista do Vietcong. O mais importante, no entanto, é que ninguém obrigou o Vietnã a pôr em prática essa sua atual política. O país, simplesmente, livrou-se dos herdeiros de Ho-Chi-Min.
Nos países do Terceiro Mundo foram editados mais de um milhão de exemplares do livro “Guerra de Guerrilhas”. Che Guevara, ao redigi-lo, partiu de três axiomas extraídos da experiência cubana: a guerrilha pode derrotar os exércitos regulares; não é necessário aguardar que exista um clima insurrecional, pois ele será criado pelo “foco guerrilheiro”; o cenário natural para a guerrilha é o campo e não as cidades.
A partir desses dogmas, CHE explica a estratégia geral, a tática do “morde e foge”, a formação das unidades guerrilheiras, o tipo de armamento, o apoio, a saúde, o papel das mulheres, e a qualidade de apoio que deve ser ministrado pelos guerrilheiros urbanos. Com esse livro, Che Guevara, o Von Clausewitz do Terceiro Mundo, buscou demonstrar que todos os comunistas dos países subdesenvolvidos poderiam fazer sua revolução caseira sem grandes contratempos.
Regis Debray complementava o raciocínio de CHE, aduzindo que os partidos comunistas tradicionais “aspiram a uma vida legal e a participar da vida política normal por um certo tempo, visando consolidar-se e fazer nome”, preparando, assim, as condições para a luta armada. Nesse terreno, todavia, é pouco a pouco absorvido, tragado pela rotina. Recruta alguns quadros, alguns militantes, realiza o Primeiro Congresso, mimeografa um jornal e panfletos. Depois vêm as assembléias anuais, mil reuniões, os primeiros contatos internacionais, o envio de delegados ao exterior, pois é preciso assistir a múltiplos congressos, fazer-se representar permanentemente em diversos organismos, manter relações públicas. O saldo é sempre positivo: os funcionários funcionam, a imprensa imprime, os delegados viajam, crescem os apoios e as amizades internacionais, os dirigentes estão cheios de trabalho. Em resumo, “a máquina anda”. Ela custou caro e é preciso cuidá-la. A perspectiva de luta insurrecional, no entanto, passa de alguns meses para alguns anos; o tempo passa e a abertura de hostilidades é considerada cada vez mais algo sacrílego, aventureiro, eternamente prematuro. Torna-se necessário acalmar alguns militantes inquietos que exigem ação. A cada ano é formado um pequeno contingente de quadros militares, assunto afeto à alta direção do partido, mas conhecido de toda a militância, que vai segredando as suas esperanças. Ah! Mas o momento ainda não é chegado, pois sempre surgem os imprevistos. Os militantes precisam compreender que passar “imediatamente” à luta armada seria romper a unidade do partido, que é a sua razão de ser. Em resumo: o partido vê em si mesmo a finalidade de sua existência. Não passará à luta armada porque, primeiro, deve constituir-se em um sólido partido de vanguarda. “Esse círculo vicioso vem corrompendo a luta armada há alguns anos”, escreveu Che Guevara.
Definindo as tarefas militares como prioritárias, os partidários do “foco” relegam as tarefas políticas, ignorando a máxima de Mao-Tsetung, segundo a qual “as armas são um fator importante numa guerra, mas não o decisivo. O decisivo é o homem, não as coisas”.
Alguns partidários do “foco guerrilheiro”, entusiasmados com a revolução em Cuba e com algumas eventuais vitórias contra as forças da ordem em alguns países, chegaram ao ponto de etiquetar o “fidelismo” como a “terceira etapa do marxismo-leninismo”.
Em artigo, “Fidelismo, a longa marcha na América Latina”, Regis Debray foi um dos que afirmaram, na época, ser o “fidelismo” essa “terceira etapa do marxismo-leninismo”. Embora sem atingir esse ridículo, Carlos Marighela, em seus escritos, adotou posição semelhante.
A teoria do “foco” foi, no entanto, uma divergência entre comunistas, que parece superada. O “foco guerrilheiro” foi eliminado. O “trabalho de massas” dos PCs ortodoxos permaneceu e, em alguns países deu frutos, com a legalização dos partidos comunistas clandestinos e a garantia de alguns cargos nos governos burgueses, como ocorreu no Brasil.
Será, no entanto, que os partidários do “foco guerrilheiro”, ao adotá-lo como “uma forma de luta”, renegavam o marxismo-leninismo, pelo fato de fazerem a substituição do marxismo pela guerrilha?
NÃO! O “foco guerrilheiro”, tal como foi concebido, nada mais era do que uma versão particular do partido – escreveu Regis Debray, em 1977, em seu livro “A Crítica das Armas” -. À semelhança do que fora definido por Lenin em “O que Fazer?”, um pequeno grupo de elite, compacto e disciplinado, devotado de corpo e alma à revolução, sujeito às suas próprias regras de funcionamento, à sua disciplina e aos seus métodos clandestinos de trabalho, sem ligação orgânica com os movimentos de massas abandonados às suas reivindicações econômicas setoriais. O “foco guerrilheiro”, diz Regis Debray, “é o partido em verde”. Significa importar a guerrilha, de fora, para a região escolhida, assim como – diz o marxismo-leninismo – a “consciência de classe é importada, de fora, pelos intelectuais burgueses, portadores da doutrina científica do socialismo”, para o interior do movimento operário.
Da mesma forma que o movimento operário é dado, historicamente, como incapaz de produzir, com suas próprias forças, uma “organização política consciente”, também o chamado “proletariado rural” é incapaz de passar do descontentamento latente à utilização consciente da “violência revolucionária”. Torna-se, portanto, necessário, a uns e outros, a intervenção de um elemento exterior, portador da “violência iluminada”.
Por outro lado, mais além de “O que Fazer?”, escrito por Lenin em 1902.poderia ser dito que as origens do “foco guerrilheiro” estariam nas fontes da social-democracia: em Karl Kaustky, guia intelectual da II Internacional e mestre do pensamento de Lenin entre 1900 e 1914, pois os considerandos que deram origem à teoria do “foco guerrilheiro” foram enunciados, pela primeira vez, em Viena, em 1901, no projeto do Partido Social Democrata Austríaco. As implicações desses postulados teóricos viriam a ser desenvolvidos, posteriormente, por Lenin, numa teoria revolucionária, inexistente no que Marx e Engels haviam escrito.
Segundo Regis Debray, em “A Crítica das Armas” não existe uma só frase que em “O Que Fazer?” não possa ser traduzida em linguagem “foquista”, pois – assinala Debray – o “esquema foquista” e o que Lenin escreveu têm a mesma lógica e partem dos mesmos pressupostos: pode-se substituir, por exemplo “organização de revolucionários profissionais” por “vanguarda político-militar”, sem destruir a coerência da argumentação leninista.
Em 1996, Regis Debray foi mais longe em sua profissão de ideólogo das revoluções. Em 12 de maio de 1996, em Paris, em entrevista à imprensa, falando sobre o seu mais recente livro, “Elogiados Sejam Nossos Senhores”, um livro carregado de desilusões e de ceticismo, no entanto, entusiasma-se, e ainda atiça uma esperança: o “Subcomandante Marcos”, do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Segundo Debray, Marcos é um revolucionário pós-moderno, pois encarna um novo estilo. Para Debray, o zapatismo não deixa de ser uma “Revolução na Revolução”.
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