Relatos ocorridos em audiência judicial, na semana passada, indicam que aeronaves do Exército lançavam veneno, possivelmente Napalm, nas aldeias indígenas
Manaus (AM) – Pela primeira vez, os Kinja, como se autodenominam os indígenas Waimiri-Atroari, falaram abertamente sobre as memórias do genocídio, praticado contra eles, entre os anos 1970 e 1980. Seis sobreviventes dos ataques contaram, em detalhes, como “homens brancos de uniforme ‘cor de mato’ entraram armados em suas terras, destruíram locais sagrados e provocaram a morte de crianças, adolescentes e adultos de aldeias inteiras”. Eles se referiam aos ataques de militares do Exército.
Em 2017, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação civil pública na Justiça Federal, pedindo reparação pelos danos causados aos Waimiri-Atroari, pelas violações cometidas durante a abertura da rodovia BR-174 (Manaus-Boa Vista). Integrante do Grupo de Trabalho Povos Indígenas e Regime Militar do MPF, o procurador da República Julio Araújo é autor da ação que responsabiliza o Estado brasileiro e requer que pague indenizações pelas violações cometidas contra os indígenas, durante a ditadura civil-militar no Brasil.
No último dia 27 de fevereiro, durante uma audiência judicial, realizada na terra indígena, os Waimiri-Atroari relataram “derramamento de veneno, explosivos, ataques a tiros, esfaqueamentos e degolações violentas, praticadas por homens brancos fardados contra indígenas sobreviventes dos ataques aéreos”, segundo nota divulgada pelo MPF. Foi a primeira vez que os Waimiri-Atroari deram depoimentos à Justiça Federal sobre o assunto.
A audiência é decorrência de um processo judicial na Justiça Federal. Em janeiro de 2018, os Kinja chegaram a
obter uma vitória parcial no Judiciário , quando foi concedida uma liminar que condicionava a implementação de grandes empreendimentos, capazes de causar grande impacto na terra indígena, ao consentimento prévio desse povo. A decisão liminar, porém, foi derrubada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) e o caso voltou a tramitar em primeira instância.
À Amazônia Real , o procurador Julio Araújo disse que o processo do MPF pede a declaração de responsabilidade do Estado brasileiro, em razão das violações praticadas durante a obra da rodovia em território indígena. “A ação, a partir de uma ampla apuração e de uma discussão com os indígenas, conseguiu identificar vários fatores e várias práticas, tanto do que se refere à chamada pacificação dos índios quanto à de extermínio”, disse Araújo.
Em um dos depoimentos, um indígena que na época do genocídio era adolescente, relatou um ataque aéreo e terrestre contra uma aldeia localizada nas proximidades do traçado da rodovia BR-174. “Os indígenas ouviram muito barulho vindo de cima e não sabiam do que se tratava. Pouco tempo depois, começaram a sentir muito calor no corpo, não conseguiam mais andar e ficaram todos ‘muito doentes’”, divulgou em nota o MPF, reproduzindo o relato indígena. O calor provinha do veneno que foi lançado do alto, por aeronaves.
“Ele contou ainda que, depois que se ver praticamente sozinho em meio aos corpos de seus pais e irmãos e dos demais indígenas presentes, testemunhou homens brancos entrarem na aldeia por terra, armados com facas e revólveres”, conta o MPF.
Outra testemunha relatou que, por medo de ocorrer um novo massacre, os Waimiri-Atroari tiveram de deixar muitos corpos para trás e procuraram abrigo em áreas mais distantes, mata adentro, para se organizar e resistir.
Ataques aéreos despejavam substâncias químicas
Indígenas Waimiri-Atroari, reunidos em evento na semana passada(Foto: Raphael Alves/TJAM)
“O mais importante da audiência, foi que ela confirmou diversos fatos que estão narrados na inicial [ação civil] a respeito do genocídio. O depoimento do Bare Bornaldo, por exemplo, relata a destruição por meio de ataque à aldeia dele de uma substância que causava calor no corpo, vinda do alto na aldeia Somudy. Ao mesmo tempo, teve ataque terrestre, causando a morte de muitos indígenas, cerca de 30 famílias em média, em cada aldeia, é um episódio marcante. O Bornaldo é um sobrevivente deste ataque”, disse o procurador Júlio Araújo à Amazônia Real.
Um relato considerado relevante pelo procurador foi dado pelo indígena Temehe, quando ele lembrou de ataques aéreos na aldeia Camaá, com características parecidas com as de Somudy. “Os ataques eram substâncias que a gente supõe que seja napalm”, diz o procurador. Napalm é uma arma química, composta por líquidos inflamáveis e incendiários, que foi muito usada pelos norte-americanos na Guerra do Vietnã.
“Também tem um relato importante do Parany sobre os ataques na aldeia Uará, via terrestre, em que os indígenas identificaram as pessoas uniformizadas, de cor verde, e apontaram a existência de muitas mortes. Muitas mortes por doenças, em decorrência do contato, e o impacto muito grande da estrada nos modos de vida daqueles indígenas”, completa Julio Araújo.
As denúncias de ataques e mortes de centenas de indígenas Waimiri-Atroari neste ano não são inéditas. Em 2014, o Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas lançou o livro “A Ditadura Militar e o Genocídio do Povo Waimiri-Atroari: por que kamña matou kiña”, baseado em documentação e relatos indígenas, reunidos pelos indigenistas Egydio Schwade e Doroti Schwade, que viveram durante quatro anos com os Waimiri-Atroari, na década de 80. Os dois estimaram que cerca de 2 mil Waimiri-Atroari foram mortos no curso do processo das obras da BR-174. A pesquisa integrou o
relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) , que investigou crimes e violações de direitos humanos durante a ditadura militar.
No livro “Visões do Rio Negro” (2008), publicado pelo Instituto Socioambiental (ISA), o líder indígena Mário Parwe conta que nos primeiros contatos, ainda na década de 60, “os brancos que foram chegando pelos rios Camanaú, Jauaperi, Abonari invadiam, atacavam e matavam os índios”. Esses ataques, conta Mário, diminuíram a população de seu povo.
Com o início das obras da BR-174, os Waimiri-Atroari sofreram mais mortes, lembra Mário Parwe. “Foi na época da BR que a gente chegou a ter só 374 pessoas, uma população muito pequena. Com isso, a gente se afastou, só para passar a BR, porque não tinha condição de ficar. Morreu uma aldeia toda com 24 indígenas e a gente não tinha mais condição de enfrentar o Exército brasileiro. Nós sofremos tudo isso, e então chamamos a Funai para saber quem estava atacando índio”, relata Parwe. (link da página).
Na mesma publicação, Porfírio de Carvalho, que foi coordenador do Programa Waimiri-Atroari até sua morte, em 2017, conta como foi o contato com os indígenas em meio aos ataques que eles sofriam.
“Quem ficava ao lado deles era discriminado e acusado. O Exército nos acusava de ter uma célula guerrilheira dentro da área Waimiri-Atroari e nos caçou dentro da mata por diversas vezes, jogando folhetos na mata para que nós nos ‘rendêssemos’.”, diz Carvalho.
Embora reconheça que os ataques aos Waimiri-Atroari já sejam conhecidos, o procurador Júlio Araújo destaca que, na audiência judicial da semana passada, foi a primeira vez que eles contaram, com detalhes e publicamente o genocídio que sofreram.
“Antes se falava sempre de forma genérica, sem muita clareza. Desta vez, eles falaram de aldeias e situações específicas. Nem na época da Comissão Nacional da Verdade, nem mesmo na nossa apuração, isso foi conseguindo de uma maneira tão rica. Mas obviamente como trauma que é, a audiência não consegue captar exatamente o tamanho das dores e das violências que foram praticadas. O modelo [de audiência judicial] é muito rígido Certos enquadramentos que a gente, não indígena, faz são quase que uma violência pra eles. Buscar datas, fotos específicas… Eles têm muitas vezes as memórias de forma coletiva, fragmentada, e veem os fatos sempre de outra maneira. Mas não prejudicou, de modo algum, a clareza dos detalhes”, contou o procurador.
A audiência foi presidida pela juíza federal substituta da 3ª Vara da Justiça Federal no Amazonas, Raffaela Cássia de Sousa, e foi acompanhada por representantes legais de todas as partes do processo: a Associação Waimiri-Atroari, a Advocacia-Geral da União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).
O desabafo dos Kinja acabou, de certa forma, sendo eclipsado pela notícia de que o Linhão do Tucuruí (Manaus-Boa Vista) passou a ser considerado, pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL), uma questão de “Segurança e Defesa Nacional”. A medida foi anunciada no mesmo dia da audiência.
Fontes ouvidas pela Amazônia Real consideram que, além de representar um alinhamento com a visão anti-indígena do atual governo, o anúncio do decreto soou como um “recado” da ala linha-dura dos miliares, pelo fato dos Waimiri-Atroari terem revelado, pela primeira vez, as atrocidades de que foram vítimas.
O MPF informou que deverá entrar na justiça contra a medida .
A foto de abertura mostra audiência judicial com os Waimiri-Atroari, sobre a BR-174 (Foto: Ascom/MPF-AM)
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ÍNDIOS
MASSACRAM PESSOAL DA FUNAI DURANTE A CONSTRUÇÃO DA RODOVIA BR-174 (MANAUS-BOA
VISTA)
Relato do General-de-Brigada Gentil Nogueira Paes:
“Comandei o 2º. Grupamento
de Engenharia de Construção, na Amazônia, durante quatro anos. Uma das missões
dos Batalhões do Grupamento era a construção da Rodovia Manaus-Boa Vista –
fronteira com a Venezuela. Era a BR-174.
Quando assumi aquele
Comando, em junho de 1974, essa estrada possuía duas frentes de serviço. Por se
desenvolver no sentido norte-sul e cortar a Linha do Equador, o regime de
chuvas era diferente em cada extremidade da rodovia. Em vista disso, conforme a
estação chuvosa, trocávamos os elementos do sul para o norte e vice-versa.
Encontrei o Batalhão com sua frente de serviço no Rio Abonari, que era a divisa
de uma reserva indígena de duas tribos muito agressivas.
Na base localizada junto ao
rio, ao lado sul, fora da reserva, havia o acampamento da companhia de
engenharia que implantava aquele trecho da estrada. Ao norte do rio, dentro da
reserva indígena, localizava-se o acampamento da Fundação Nacional do Índio
(Funai), que fazia as ligações com os índios – porque o Exército, quando fez o
convênio com o Ministério dos Transportes, para a construção desse rodovia,
exigiu que todo o contato com os índios fosse feito pela Funai.
Antes desse convênio, houve
uma missão da Funai, organizada com a finalidade de fazer contatos preliminares
com os índios, para explicar-lhes que iria ser construída aquela estrada. A
essa missão foi incorporado um padre, que se chamava João Calleri. Pois bem, os
índios pegaram essa expedição composta de 11 pessoas e mataram 10, inclusive o
Padre Calleri, tendo escapado um mineiro funcionário da Fundação. Foi o
primeiro ataque. Quando fizemos a ponte sobre o Rio Abonari, denominei-a Ponte
Padre Calleri.
Havia duas tribos naquela
reserva: a tribo dos atroari e a dos waimiri. O delegado da Funai, na Amazônia,
considerava que os atroari eram agressivos e os waimiri, não. Estes eram seus
amigos, frequentavam sua casa em Manaus, onde o cacique Maruaga se hospedava,
quando ia tratar-se na Cidade. O delegado ficava na maloca dos índios, também.
Como afirmei, assumi o Comando do Grupamento em junho de 1974.
No mês de outubro, os índios
chegaram ao acampamento da Funai e combinaram que no dia seguinte um grupo
sairia para caçar e outro iria para a roça – a Funai tinha uma roça para
ensinar os índios a plantar. Quando amanheceu o dia, o grupo que ficou para
plantar atacou e matou todos os que estavam no acampamento, menos um que
escapou, e os que foram caçar atacaram os funcionários da Fundação que o
acompanhavam e mataram todos. Foi o segundo ataque.
No mês seguinte, reuni o
pessoal e fiz várias determinações, entre as quais que ninguém poderia
trabalhar em grupo com menos de 15 homens. Mas tinha um empreiteiro – era até
um cearense – que trabalhava abrindo picadas na mata e bem à frente do serviço.
Disse-me que os índios eram seus amigos, que tratava deles fornecendo-lhes
remédios e comida, que tinha toda confiança neles. Ainda lembrei ao André – era
esse o nome do empreiteiro – que havia proibido grupos com menos de 15 homens.
Ele saiu dali e mandou uma turma de quatro homens a 20 km adiante do nosso
acampamento. O grupo foi atacado pelos índios. Três morreram e um escapou com
uma flecha atravessada no peito. Foi o terceiro ataque.
No quarto ataque, os índios
mataram todos os homens da Funai, no acampamento, inclusive o delegado da
Fundação na Amazônia, o Gilberto Pinto – muito amigo nosso – do qual tenho
ainda uma fotografia com uma flecha
atravessada no tronco. Mataram todos, escapou somente um. Por coincidência, em
todos os quatro ataques, sempre escapou um. O povo dizia que era para contar a
história, mas acho que não, pois esse camarada só escapou porque se atirou no
rio e saiu mergulhando.
Em todos esses episódios,
foram atacados, exclusivamente, o pessoal da Funai e esse empreiteiro. Nunca
houve atrito de militares, ou mesmo civis do Grupamento, com os índios. Nos
ataques, nenhum índio foi morto ou ferido; todos os mortos foram abatidos pelos
índios. Essa é a história real.
Pasquim
manauara acusa Exército de “exterminador de índios”
Pois bem, passei o Comando
do Grupamento em 1978 e, cinco ou mais anos depois, já tendo me retirado da
Ativa do Exército, recebi uma carta de um amigo, que estava servindo em Manaus,
mandando-me um recorte de jornal daquela cidade, uma espécie de ‘Pasquim’,
imprensa marrom que só faz chantagem. O dono do jornal, o Sr. Lucena, por conta
disso, foi eleito vereador, deputado e senador, e como senador, em Brasília,
acabou dando um tiro na cabeça, justiça com as próprias mãos.
A reportagem do jornal me
acusava – a ao Exército – de ‘exterminadores de índios’, e dava conta da morte
de milhares de índios. Ora, não havia morrido nenhum índio! Redigi uma carta
detalhada a esse colega e o autorizei a falar com o Comandante do Comando
Militar da Amazônia (CMA), dizendo que estava à disposição para ser interrogado
e prestar todos os esclarecimentos necessários, se ele quisesse fazer qualquer
investigação. Eles acharam melhor arquivar aquilo, não houve providências. Fiquei
tranquilo.
A
farsa do repórter Francisco José, do Fantástico
Posteriormente, me aparece
aqui em Fortaleza, no meu apartamento, uma equipe de reportagem da Rede Globo,
do Fantástico . O repórter Francisco
José subiu ao apartamento, com sua equipe. Conversamos mais de meia hora.
Expliquei tudo, contei toda a história, que não se matou nenhum índio. O
repórter, afirmando que só queria a minha palavra, armou toda aquela
parafernália na sala do meu apartamento, leu aquele trecho da reportagem, onde
constavam as acusações contra mim e contra o Exército e pediu que eu dissesse
se aquilo era verdade ou não. Disse que era mentira, que jamais um índio fora
ferido. E relatei tudo de novo. Pois bem, quando a matéria saiu no Fantástico,
a única fala minha era essa: ‘É mentira!’ Mais nada. O repórter só queria
mostrar que eu tinha sido ouvido. Não deu direito ao público de conhecer toda a
história que lhe foi revelada, porque ele gravou mas não publicou. Ficou nisso.
A
revista Terra “mata” 200 soldados!...
Uns anos depois, recebo em
casa um número da revista Terra , que
eu assinava, trazendo uma reportagem sobre a ligação Manaus-Caribe, aquela
estrada em que trabalhei e onde aconteceu toda a história. A reportagem era
muito bonita, muito bem feita, mas copiava tudo o que a mídia já tinha dito e
ainda acrescentava que tinham morrido 200 soldados. Escrevi uma carta para a
revista, contestando aquilo tudo, contando a história verdadeira. Ora, dizer
que tinham morrido duzentos soldados! Isso era todo o efetivo da Companhia que trabalhava
lá! Então a revista publicou uns
pequenos trechos da minha carta, sem comentário, sem nenhum destaque. A verdade
continuou sendo negada ao público.
Narrando esses fatos, desejo
mostrar o quanto é difícil modificar algo na mídia, principalmente quando
interessa aos repórteres atacar as Forças Armadas. Nesses três episódios, como
se vê, nada foi modificado, e lá continuamos nós, eu e o Exército, como
‘exterminadores de índios’ ” (General-de-Brigada Gentil Nogueira Paes, História Oral do Exército - 1964, Tomo 12,
pg. 142-145).
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