MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964

MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964
Avião que passou no dia 31 de março de 2014 pela orla carioca, com a seguinte mensagem: "PARABÉNS MILITARES: 31/MARÇO/64. GRAÇAS A VOCÊS, O BRASIL NÃO É CUBA." Clique na imagem para abrir MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964.

terça-feira, 23 de junho de 2020

O Tenentismo e as ações dos "jovens turcos" no Movimento de 1964

A organização burocrática do Exército na exclusão do tenentismo


Maria Cecília Spina Forjaz

Professora no Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos (FSJ) da EAESP/FGV


1. TENENTISMO, EXÉRCITO E ESTADO

A compreensão do significado político do tenentismo passa necessariamente por uma análise do Exército, enquanto organização; nessa perspectiva, o fenômeno mais abrangente e significativo, ao longo da Primeira República, foi o processo de modernização e profissionalização das Forças Armadas brasileiras.
Desse processo privilegiamos três aspectos principais: o estabelecimento do serviço militar obrigatório; a profissionalização crescente do ensino militar; a modernização do equipamento e da estrutura organizacional do Exército brasileiro.
Limitamos nossa análise ao Exército por várias razões. Ele foi (e continua sendo) a mais poderosa das três armas, tanto do ponto de vista político, quanto do ponto de vista organizacional (a Aeronáutica apenas começa a ser criada já no fim da Primeira República). O movimento tenentista se desenvolveu prioritariamente entre oficiais do Exército, sendo mais reduzida a participação da Marinha. Além dessas razões, já suficientemente fortes, acrescenta-se o fato de que são muito raros os estudos sobre a evolução da Marinha brasileira.
Até 1916 o recrutamento dos praças do Exército, brasileiro era voluntário e no caso de não preenchimento dos efetivos, o que freqüentemente acontecia, "proceder-se-á a recrutamento forçado e o recrutado servirá por seis anos, receberá somente soldo simples, será conduzido preso ao quartel e nele conservado em segurança até que a disciplina o constitua em estado de se lhe facultar maior Uberdade".1
Esse sistema de recrutamento implicava a absorção pelo Exército dos setores mais carentes e desqualificados das classes populares incluindo marginais, mendigos, vagabundos, desempregados etc. A oficialidade era recrutada na classe média e as classes dominantes tinham uma milícia própria, a Guarda Nacional, na qual serviam os cidadãos com renda anual superior a 100$ 000. Dessa forma, o Exército ainda não era uma instituição nacional e não mantinha o monopólio do uso legítimo da violência, nem para cumprir funções constitucionais de manutenção da ordem interna e da segurança externa.
Além da Guarda Nacional, as Polícias Militares estaduais rivalizavam com o Exército no exercício dessas funções. Eram verdadeiros "exércitos" regionais, controlados pelas oligarquias, principalmente as de São Paulo e Rio Grande do Sul, poderosas em efetivos, equipamentos e treinamento de seus homens.
A implantação do sorteio militar universal, conseguida após intensa campanha que se desenvolveu desde fins do século XDC, transformou profundamente o Exército. O alistamento obrigatório em todas as camadas da populaça), a extinção da Guarda Nacional e a abolição do divórcio entre Exército e elites civis fortaleceram a instituição, aumentaram seu prestígio e constituíram um primeiro passo no sentido de torná-la verdadeiramente nacional.
Outra consequência direta da adoção do serviço militar obrigatório foi o aumento dos efetivos militares e a renovação dos equipamentos: "Dans ce domaine les progrès ont été remarquables. Malgré les difficultés budgétaire du pays les acquisitions d'armes furent relativemente importantes. On pourrait signaler surtòut l'adoption de l'aviation, de Partillerie de tir rapide et d'instruments modernes de communication."2
Quanto à profissionalização do ensino militar,3 foi uma tendência crescente nas sucessivas reformas dos regulamentos da Escola Militar do Realengo, que funcionou de 1911 a 1944.
A partir de um ensino eminentemente teórico e voltado prioritariamente para a formação científica dos cadetes, orientação implantada pelo positivismo dominante em fins do século XDC, caminhou-se de forma gradativa para um ensino técnico-militar profissionalizante, sendo o auge dessa orientação o regulamento de 1919, da academia militar.
A modernização do Exército brasileiro está intimamente ligada à influência estrangeira4 e seria importante descrever de modo sucinto as principais iniciativas nesse sentido.
Por iniciativa do Marechal Hermes da Fonseca e do Barão do Rio Branco, visando a remodelação do Exército brasileiro foram enviados oficiais para estagiar no Exército alemão, considerado o melhor do mundo na época: "A primeira turma, de quatro oficiais apenas, ingressou nos corpos da tropa daquela modelar organização militar em 1º de outubro de 1906; a segunda, dois anos depois; a terceira e última, composta de 22 oficiais, em 1º de outubro de 1910, servindo arregimentados, como se fossem oficiais alemães, durante dois anos."5
Voltando ao Brasil, esses oficiais chamados "jovens turcos", por analogia à ação modernizante de jovens militares na Turquia, orientados por instrutores alemães, desenvolveram intensa atuação de propaganda e difusão dos ensinamentos adquiridos na Alemanha.
Partidários de um Exército profissional, os germanófilos criaram uma revista para propagar suas idéias, A defesa nacional, e tiveram grande influência em todos os movimentos de renovação do Exército.
Traduziram obras alemãs, apoiaram o estabelecimento do recrutamento militar obrigatório e participaram ativamente na modernização do ensino militar na Escola do Realengo, tendo vários "jovens turcos" integrado a "Missão Indígena", cujo principal objetivo foi aperfeiçoar a instrução no Exército.
A "Missão Indígena" consistiu em um grupo de instrutores do Realengo, selecionados por concurso6 promovido pelo Estado-Maior do Exército, com a intenção de melhorar o nível e aumentar o caráter prático do treinamento militar: "Pela primeira vez este EME - Estado-Maior do Exército - teve intervenção na escolha dos instrutores da Escola Militar e foi minha preocupação única servir ao ensino prático dos futuros oficiais, como há muito já deveria ter sido feito. Muitos e distintos oficiais têm passado pela Escola Militar como instrutores e, ' ainda agora, alguns de lá saem, mas é de justiça afirmar que nunca o corpo de instrutores da Escola Militar atingiu o grau de homogeneidade que hoje assume com grande esperança para o ensino profissional."7
A primeira turma de instrutores da "Missão Indígena" começou a trabalhar em 1919, o mesmo ano de implantação do regulamento mais profissionalizante do Realengo. A ação modernizante dos "jovens turcos" foi continuada e aprofundada com a vinda da missão militar francesa em 1920, prendendo-se a escolha dessa potência européia aos resultados da I Guerra Mundial.8
Chefiados pelo General Gamelin, trinta oficiais franceses passaram a controlar todos os níveis da instrução militar, com exceção do Realengo, ou seja: o curso de aperfeiçoamento de oficiais, o curso de estado-maior e o curso de revisão de estado-maior.9
Sob a influência da missão francesa intensificou-se, na década de 20, o processo de modernização do Exército brasileiro, principalmente através do desenvolvimento do Estado-Maior como órgão formulador e centralizador da política de defesa nacional em sua acepção moderna, Ou seja, incluindo a noção de que defesa nacional implica o controle de recursos técnicos e econômicos: "Duas principais conseqüências para a organização militar e seu papel surgiram daí. Para a organização, significou movi? mento de centralização e coesão. As atividades militares passaram a ser planejadas e controladas em pormenores pela cúpula hierárquica, o Estado-Maior. ... Este maior controle interno aumentou o poder político da organização, ao reduzir a possibilidade de quebras da hierarquia através da ação autônoma de escalões inferiores. O desenvolvimento das atividades de Estado-Maior era incompatível, por exemplo, com o tenentismo."10
Realmente, o tenentismo é incompatível com os ensinamentos da missão francesa mesmo porque a maioria dós tenentes não sofreu sua influência doutrinária.
Os tenentes históricos se formaram no Realengo nas turmas de 1918 e 1919, portanto, antes da vinda da missão. Além disso, a curto prazo, a influência da missão não se fez sentir nessa academia, já que se dedicou aos graus superiores do ensino militar.
Quanto aos tenentes da segunda geração, formados, entre 1927 e 1930, podem eventualmente ter sofrido influências profissionalizantes, certamente minimizadas pelo clima de instabilidade política e pela liderança e o poder de atração da saga tenentista entre a oficialidade jovem.
No período em que os tenentes faziam suas revoluções e marchavam pelo Brasil na Coluna é que se generalizou no Exército uma nova mentalidade militar que gradativamente se tornou predominante: "Ce nouveau type d'officier passait son temps à étudier les techniques militaires modernes, et s'intéressait à l'instruction et à l'efitrainement de la troupe. II apprenait avec les français ce qu'était une armée moderne, techniquement efficace, unie et disciplinée."11
O tenentismo foi, portanto, um grupo militar que ficou imune às influências da missão; mais do que isso, os revolucionários eram hostis à mentalidade militar francesa e aos vínculos com a França que implicavam a obrigatoriedade da aquisição de armamentos nesse país. Uma das cláusulas do convênio com a França estipulava que o treinamento da missão seria mais eficaz com a utilização de equipamentos militares franceses e o Brasil passou um longo período vinculado a essa cláusula.
A oposição dos tenentes aos franceses se manifestou desde 1922: "Talvez os rebeldes de 1922 estivessem exprimindo mais do que frustração quando lançaram ao mar o novo canhão leve de 75mm que St. Chamond tinha enviado ao Brasil para testes. ... Os tenentes, que vinham lutando contra o Exército orientado pelos franceses desde 1924, desejavam rescindir o contrato da missão."12
A oposição dos tenentes à missão francesa coloca a questão das clivagens ideológicas do Exército no contexto do processo de modernização. Ao mesmo tempo em que esse processo produziu, a longo prazo, uma tendência à homogeneização dos valores da instituição e à predominância da disciplina e hierarquia, a imposição de doutrinas militares-européias não se fez sem a emergência de cisões ideológicas e geracionais dentro do Exército.
Os velhos oficiais formados na Praia Vermelha, os chamados "doutores", dado o caráter científico e teórico de sua formação, e que constituíam a cúpula do Exército no período em que os "jovens turcos" começaram a agir, sentiram-se ameaçados pelas novas tendências e pela maior especialização profissional da jovem oficialidade.
Houve resistência dos "germanófilos" à vinda da missão francesa (consideravam as técnicas e equipamentos militares alemães superiores aos franceses) apesar de que a concepção do papel profissional das Forças Armadas fosse semelhante nessas duas corporações militares.
As clivagens ideológicas se referiam principalmente às relações entre o Exército e o sistema político; José Murilo de Carvalho distingue três tipos de "ideologias de intervenção" durante a Primeira República.
A primeira delas, que ele denomina "intervenção reformista", se fundamenta na doutrina do "soldado cidadão'', de origem positivista, e foi predominante na época da Questão Militar. A idéia básica é a de que o soldado é um cidadão fardado que deve ter participação política,13 tendo o Exército brasileiro, expressão da nacionalidade, amplas responsabilidades na preservação das instituições republicanas.
Foi o tenentismo o movimento militar que herdou e desenvolveu as formulações do positivismo republicano:
"Parece que a Constituição republicana de 91 atribuiu sabiamente à força armada, no seu art. 14, a função reguladora de volante da ordem social - capaz de compensar os colapsos de funcionamento da máquina política, provocados pelos excessos do povo e pelos arbitrios dos governos. . . . Seria, porém, ilógico que o Exército, estipendiado pelo povo, apenas exercesse a sua função repressiva contra este, deixando consumar-se impunemente as violências do poder contra a nação. E, mais do que ilógico, seria inóquo que essa força servisse incondicionalmente os caprichos ilegais do poder, transformando-se em verdugo implacável do próprio povo."14
O positivismo tinha uma orientação essencialmente antimilitarista, e sua difusão entre os militares brasileiros produziu essa tendência a "desmilitarizar" o militar e torná-lo o mais "civil" possível.
Opunham-se a essa orientação os partidários do "soldado profissional", totalmente dedicado ao Exército e afastado da política. Essa tendência não-intervencionista pretendia tornar o Exército o "grande mudo", a serviço do poder constituído, a exemplo dos exércitos das democracias ocidentais.
A polêmica entre intervencionistas e neutralistas, ao longo dos anos 20, produziu uma terceira visão sobre o papel do Exército, a doutrina da intervenção "moderadora", ou intervencionismo controlador, que se tornaria hegemônica no pós-30.
Tentando conciliar as duas orientações anteriores, o intervencionismo controlador legitimava a intervenção política do Exército, enquanto instituição global, profissionalizada e moderna: "Esta posição divergia da ideologia do soldado profissional por admitir aberta intervenção na política, embora com ela concordasse quanto à necessidade de preparação profissional do Exército. Concordava com a ideologia do soldado cidadão quanto à legitimidade da intervenção do militar na política, mas dela discordava quanto ao sentido desta intervenção. Os tenentes propugnavam uma intervenção reformista, a ser feita pelo militar independentemente, ou mesmo contra a organização."15
Os principais formuladores dessa ideologia foram Bertoldo Klinger e Góes Monteiro, o primeiro um dos líderes dos "jovens turcos" e o segundo um dos mais brilhantes alunos da missão francesa. Ou seja, ambos formados na tradição profissionalizante dos exércitos europeus, mas igualmente contrários ao neutralismo e isenção política das Forças Armadas.
Ocorre que no Brasil e na América Latina, em geral, a profissionalização não conduziu a uma despolitização das Forças Armadas: "Ao contrário do que o legislador freqüentemente pensa - e, em sua trilha, alguns sociólogos otimistas e imprudentes - a profissionalização não 'despolitiza' os exércitos. Pois o prestígio dos modelos europeus, a consciência da competência dada pela técnica avançada e pela organização burocrática racional dão ao único ramo profissional do aparelho de Estado nas nações da América do Sul recursos políticos que favorecem a intervenção nos negócios públicos."16
O argumento de Alain Rouquié se refere ao fato de que o fortalecimento organizacional propiciado pela modernização foi exatamente um dos fatores que possibilitou a ampliação da intervenção política dos exércitos latino-americanos.
O exército forte, enquanto organização, teve maiores condições de se autonomizar como instância burocrática estatal, capaz de propor projetos políticos próprios à sociedade. É esse o sentido da famosa frase de Góes Monteiro: "Aliás, sendo o Exército um instrumento essencialmente político, a consciência coletiva deve-se criar no sentido de se fazer a política do Exército, e não a política no Exército. ... A política do Exército é a preparação para a guerra e esta preparação interessa e envolve todas as manifestações e atividades da vida nacional, no campo material - no que se refere à economia, à produção e aos recursos de toda natureza - e no campo moral, sobretudo no que concerne à educação do povo e à formação de uma mentalidade que sobreponha a todos os interesses da pátria, suprimindo quanto possível, o individualismo ou qualquer outra espécie de particularismo."17
O aperfeiçoamento profissional forneceu recursos políticos inexistentes na fase anterior. A homogeneidade, coesão em torno dos chefes, o respeito à hierarquia e disciplina tornaram a instituição castrense menos permeável às influências conflitantes da sociedade civil e à subordinação às elites dominantes.
Edmundo Campos Coelho também considera que o maior profissionalismo não significou, para o Exército brasileiro, unia abstenção política: "a aceitação do programa de profissionalização militar não foi extensiva aos valores que o informavam. Mais precisamente, o pressuposto de que a neutralidade ou apolitismo militar era condição indispensável para o aperfeiçoamento profissional foi recusado. Um mínimo de conhecimento de história do Exército era suficiente para que aos oficiais se tornasse evidente a falta de precedentes que suportassem a tese. Pelo contrário, a lição que a história ensina era a de que o correlato da abstenção política fora quase sempre a subalternidade militar imposta pelas elites civis e a ausência de qualquer compensação em termos de níveis mais altos de modernização e profissionalização do aparelho militar. Inversamente, as intervenções na área política, se não elevaram o nível profissional,.não haviam deixado de render dividendos em termos de poder."18
Portanto, o predomínio da ideologia da "intervenção controladora", que se tomaria dominante no Exército ao longo dos anos 30, não implicou uma abstenção política do Exército; pelo contrário, implicou uma intervenção maior e qualitativamente diferente: a intervenção da instituição como um todo, coesa e representada por suas cúpulas.
Porém, a imposição dessa orientação implicou o expurgo do tenentismo, pelo próprio Exército, dado o seu caráter disruptor da organização, principalmente depois da Revolução de 30, quando suas lideranças assumiram importantes funções políticas.
O padrão das intervenções militares típico da Primeira República - ou seja, a intervenção de setores, fragmentos ou facções do Exército, em geral aliadas a frações das elites dominantes - tem no tenentismo a sua última manifestação.
A tendência secular das elites brasileiras para usar o Exército - ou frações dele - como recurso político para a obtenção ou manutenção do poder (o militarismo civil a que se refere Alfred Stepan) era percebida claramente pelos militares: "Um dos aspectos mais impressionantes, e de conseqüências mais graves, com que depara o observador atento da vida política brasileira, é o contraste chocante entre as disposições constitucionais e das leis ordinárias - que regulam o comportamento das Forças Armadas, em conjunto, e de seus membros, isoladamente, em face das atividades políticas - e a opinião, muito generalizada nas classes dirigentes do país, segundo a qual compete aos órgãos responsáveis pela defesa nacional, intervir diretamente na solução das crises políticas, tão freqüentemente no período republicano."19
Assim, como os militares tinham consciência do caráter desagregador da instituição, resultante do militarismo civil, muito precocemente assumiram a importância política das Forças Armadas nos países subdesenvolvidos, o que impedia a realização no Brasil do modelo de Exército profissional e ápolítico típico das democracias ocidentais.
Essa percepção fica patente no editorial do primeiro número da revista A defesa nacional: "É debalde que os espíritos liberais, numa justificada ânsia de futurismo, se insurgem contra as intervenções militares na evolução social dos povos: é um fato histórico que as sociedades nascentes tem necessidade dos elementos militares, para assistirem à sua formação e desenvolvimento, e que só num grau já elevado de civilização elas conseguem emancipar-se da tutela da força, que assim se recolhe e se limita à sua verdadeira função."20 Politicismo militar e militarismo civil têm-se conjugado numa dinâmica complexa que marca um dos traços fundamentais e persistentes, da vida política brasileira.
Vamos na conclusão deste trabalho analisar mais aprofundadamente as repercussões da Revolução de 30 no Exército brasileiro para desenvolver uma das hipóteses centrais desta tese: a de que o tenentismo foi denotado no plano militar pelas, cúpulas do Exército e a eliminação dos tenentes foi uma das condições fundamentais para o fortalecimento da instituição, que está na origem da ampliação de suas funções políticas no pós-30. Em seguida, pretendemos demonstrar como no plano político o tenentismo foi derrotado pelas oligarquias e como esse duplo golpe se consuma com a Revolução de 32.

2. O TENENTISMO EA SOCIEDADE
Se a compreensão do significado político do tenentismo passa necessariamente por uma análise do Exército enquanto organização, passa, também, por uma análise das Origens sociais da oficialidade do Exército no período histórico que nos ocupa.
Assumindo a perspectiva que associação dimensão social e organizacional como elucidativa do comportamento político militar, especialmente no contexto histórico que pretendemos analisar, quando a autonomia do Exército em relação à sociedade é menor, não poderíamos nos furtar a uma caracterização social e política das camadas médias urbanas da época.
O Exército era (e é) recrutado prioritariamente nos setores médios da população (a oficialidade) e quanto a esse fato há unanimidade na sociologia brasileira. As divergências são muitas, no entanto, no approach teórico com que as "classes médias" ou "camadas médias" são abordadas pela literatura sociológica.
Entretanto, estejam os autores ligados à teoria da estrutura de classes ou às abordagens de estratificação social, "a simples mudança das dimensões que vão ser isoladas para medir as variáveis (pois queiram ou não, neste caso trata-se de variáveis), trocando-se o nível de consumo pela posição na ocupação ou mesmo no sistema produtivo não altera o enfoque em termos de genus proximo, differentia specifica, pelo qual se vão separar os conjuntos apelidados agora de 'classe social."21
As divergências teóricas são muitas e as análises histórico-concretas que envolvem os setores médios são muito poucas. Embora seja incipiente e precária a pesquisa histórica no Brasil, especialmente a história social, a atenção dispensada à história das elites e às histórias das classes populares tem sido muito maior do que a preocupação com os setores médios da sociedade brasileira.22
Sem tentar resolver as complexas, questões teóricas inerentes ao tema, pretendemos apenas uma breve caracterização histórica que privilegie as relações sociais engendradas com outros segmentos da sociedade brasileira.
Temos, também, outra intenção: a de resolver o problema do peso das origens sociais na determinação do comportamento político-ideológico dos tenentes (e não dos militares em geral e nem de outras conjunturas históricas).
Esse movimento político chegou a express demandas das camadas médias urbanas no contexto da crise da sociedade agrária no Brasil? O tenentismo pode ser encarado como um movimento militar que expressa o Exército enquanto ator político autônomo de interesses sociais específicos? Pode o tenentismo ser visto como expressão política e ideológica no Exército enquanto instituição?
Essas são as perguntas que estamos formulando, esse é o nosso problema, para atender ao apelo de Fernando Henrique Cardoso quando diz que: "a questão inicial na análise das classes sociais e da crise política na América Latina não é a discussão formal dos critérios de classificação das classes (por mais inspiradas que possam estar em análises de Marx ou de Weber, ou de quem seja), mas é a pergunta: qual é o movimento das sociedades em discussão e que problema existe para ser resolvido?"23
2.1 As camadas médias na Primeira República são os "primos pobres "das oligarquias
A dimensão mais importante na análise das camadas médias da sociedade agrário-exportadora brasileira são suas relações de dependência e subordinação econômica, social e política às oligarquias agrárias dominantes.
Independentemente de sua inserção no sistema produtivo, do caráter manual ou não manual de suas atividades, de seu nível de renda e consumo, esses grupos, essencialmente urbanos, constituem ramos empobrecidos das famílias oligárquicas.
Mais pobres, ou menos pobres, primos em primeiro ou em quinto grau, esses setores médios têm em comum seus vínculos com as elites, que os tornam uma espécie de apêndice dos grupos dominantes: "le remède au procès de mobilité sociale descendante subi para une partie de l'ancienne classe dominante agraire était dans le mains de Tautre partie, ceile composée par les secteurs plus dynamiques et les plus prosperes. Aux 'aristocrates appauvris', la structure économico-sociale urbaine a réservé les meilleurs postes de la bureaucratie d'Etat, les métiers libéraux, les postes de direction dans l'administration privée. Les liens familiaux et sociaux entre ces couches 'dépossédées' et la classe dominante agraire, ainsi que leur participation comune à un monde de valeurs 'aristocratiques' et pré-industrielles, ont poussé les oligarchies à la pratique du 'parrainage'. . . . D'un point de vue purement analytique et non-chronologique, ces rapports de 'loyauté' créaient les conditions psycosociales nécessaires à la soumission idéologique et politique des couches 'dépossédées', d'autant plus que leur passé 'aristocratique' était encore récent."24
É evidente - e Décio Saés sugere isso - que há clivagens regionais importantes entre essa camada social. Ser "primo pobre" de um próspero cafeicultor paulista é muito diferente de ser primo pobre de um latifundiário improdutivo cearense, em termos de condições econômicas e em termos de recursos políticos e status social disponíveis. E essa clivagem regional nos parece suplantar as outras que também caracterizam esse extrato da sociedade brasileira.
Insistindo na condição social de "primos pobres", gostaríamos de transpor para os müitares as mesmas observações que Sérgio Miceli fez sobre os intelectuais: "As profissões intelectuais constituem um terreno de refúgio reservado aos herdeiros das famílias pertencentes à fração intelectual e, sobretudo, aos filhos das famílias em declínio. Esses últimos, tendo podido se livrar das ameaças de rebaixamento social que rondavam os seus, tiveram a oportunidade de se desgarrarem de seu ambiente de origem e, ao mesmo tempo, de objetivarem através de seus escritos essa experiência peculiar de distanciamento em relação à sua classe."25
O Exército, a socialização militar, os valores próprios da corporação, o fato de pertencer ao aparelho de Estado possibilitaram aos militares o distanciamento em relação à origem social e à formulação de um projeto político antioligárquico, centralizador, estatizante e autoritário.
Mas nesse distanciamento e na construção de um projeto político-social alternativo não se apagaram totalmente os valores e expectativas decorrentes das condições sociais dos tenentes, como pudemos observar na análise do programa tenentista e na sua atuação política concreta no imediato pós-30, enfrentando as oligarquias.
Como já tivemos ocasião de argumentar, os tenentes em sentido lato, a jovem oficialidade do Exército, os ocupantes dos escalões hierárquicos/ inferiores são os menos militares dos militares e, portanto, mais permeáveis às influências da sociedade civil: "Os cadetes e os jovens oficiais, ainda próximos dos civis (suas famílias e seus amigos), são talvez mais sensíveis à opinião destes - o que fez com que persista o mito dos jovens oficiais como representantes das classes médias. Eles são, no mínimo, os menos militares dos oficiais. Sua intervenção só implica o Exército de modo marginar" (grifo nosso).26
Se atentarmos para a especificidade da condição militar dos tenentes revolucionários percebemos claramente que esses vínculos com a sociedade civil foram muito fortes e a influência da corporação militar muito mais distinta. Vai no mesmo sentido a demonstração do caráter civil/militar do Clube 3 de Outubro, a organização de cúpula do tenentismo depois da revolução.
As alianças políticas que os tenentes tiveram que realizar com as "oligarquias fracas" também contribuíram, a nosso ver, para diluir os componentes militares de sua prática política. Ou seja, a correlação de forças que se estabelece depois da vitória e a recomposição das "oligarquias fortes" contribuíram para a fusão entre determinados interesses sociais e o movimento tenentista.
A distância política e social entre "oligarquias fracas" e primos pobres é evidentemente muito menor do que a distância entre "oligarquias fortes" e primos pobres. Diríamos até que os recursos de poder de determinadas frações oligárquicas estaduais do norte-nordeste eram muito menores do que o poder de decisão dos tenentes no imediato pós-30. Em prol da centralização estatal, benéfica a ambos, a fração mais débil das oligarquias encontrará apoio na fração mais poderosa dos setores médios e vice-versa.
Outra questão deve ser levantada referente às relações entre tenentismo e "primos pobres" que estamos desenvolvendo neste trabalho. Décio Saes, em sua tese de doutoramento, relacionou o tenentismo às baixas camadas médias e a seu projeto industrializante; discordamos dessa interpretação.
A emergência das chamadas "novas classes médias" mais vinculadas à industrialização e oriundas de um processo de mobilidade social ascendente só se toma significativa a partir dos anos 30; o tipo social predominante das camadas médias na etapa anterior são os "primos pobres" com uma mentalidade agrarista e antiindustrialista.
Analisando as relações entre os industriais e a classe média, Eli Diniz argumenta: "A essa altura os importadores contariam cada vez mais com o apoio da classe média urbana, principal vítima da inflação e particularmente sensível ao argumento da alta do custo de vida. Na década de 20 essa classe já representava um setor importante da população das principais cidades, constituindo, senão um grupo contestador, pelo menos um grupo radicalmente insatisfeito. Esse descontentamento de certos setores urbanos favorecia a criação de um clima de hostilidade cada vez mais generalizado contra a indústria nacional."27
Essa insatisfação radical das "classes médias tradicionais" está refletida nas propostas explicitamente agraristas e antiindustrializadas (além de distributivistas) do programa dos tenentes. Nos parece que não há nenhuma evidência histórica, pelo contrário, de ligações entre eles e as baixas camadas médias.
Reforçando o argumento dos vínculos sociais entre tenentes e "primos pobres", podemos verificar (ver quadro 1) como alguns líderes do movimento têm sua trajetória plenamente identificada com a desses grupos destituídos.
Reunindo os dados disponíveis em memórias, biografias e depoimentos, verificamos que todos esses tenentes trazem em sua biografia grande proximidade com as elites agrárias.
Essa origem social dos revolucionários, cujo elitismo não esconde, não discrepa da maioria da oficialidade do Exército na época c as declarações de Nelson Werneck Sodré vão nesse sentido: "Em minha família, pelo menos entre os parentes próximos, não havia militares. Parece que foi a sua decadência econômica que levou alguns, muito poucos, a escolherem a carreira. Os Abreu Sodré, na maior parte, abandonaram a província do Rio de Janeiro ao tempo da abolição; meu avô paterno teve 14 filhos, nenhum militar, apesar de todos se terem formado. Ficaram naquela província, entretanto, alguns parentes: um deles, Feliciano Pires de Abreu Sodré, seguiu a carreira militar. ... Na família materna, nem isso. Meus avós, os barões de Bem posta, permaneceram na província; minha avó materna casou-se com senhor de terras do sul de Minas Gerais; meu avô materno teve uma dúzia de filhos, na maior parte mulheres; um deles freqüentou o Colégio Militar, que abandonou logo, fazendo-se, na sucessão do pai, fazendeiro em São Gonçalo do Sapucaí. Não havia, pois, tradição militar na família. O que era, aliás, comum ao tempo de meus avós, a carreira militar não tinha status social; as famílias, a paterna como a materna, ambas da província do Rio de Janeiro, estavam ligadas à terra - eram famílias proprietárias. Ao mesmo tempo, a carreira das arma era refúgio da classe média, e eles pertenciam à classe (superior com o passar dos tempos e a alteração das condições - as do país, as da carreira, as da família - é que apareceram nesta os que escolheram esse rumo, e foram muito poucos."28
Se no eixo Rio-São Paulo, dado o desenvolvimento industrial e do setor terciário , as camadas médias já eram mais diversificadas e complexas, no resto do Brasil predominavam os "primos pobres": "A classe média representa e sempre representou o aparelho estatal civil e militar. A pequena burguesia, até os idos de 1930, estava constituída unicamente dos quadros da administração, do legislativo e da justiça. .. . Sendo pouco numerosos os funcionários públicos - porque o próprio aparelho estatal, a serviço de simplórias relações de produção, tinha limitadas dimensões - eram eles recrutados, mantidos e pessoalmente fiscalizados pela classe dominante - constituída do patriciado rural e da burguesia comercial, especialmente no Nordeste e demais áreas subdesenvolvidas."29
É uma classe média de soldados, padres e funcionários públicos. Portanto, esse grupo social que designamos classe média está muito próximo do poder político, embora mais distante do poder econômico. A proximidade ao poder é dada tanto pelos vínculos com as oligarquias dominantes, quanto por sua inserção burocrática no Estado brasileiro.
Características próprias também tem esse Exército já profissionalizado e moderno, porém dilacerado por diferentes ideologias sobre o papel político dos militares e freqüentemente usado pelas classes dirigentes em suas dissidências internas.
Além do impulso intervencionista, que a condição de militar no Brasil lhes proporciona, os tenentes - exatamente pela condição de militares - são chamados pelas elites agrárias a intervir no processo político. Quero dizer que se soma ao estímulo para agir politicamente que vem da organização castrense o "militarismo civil" das elites brasileiras.
A análise das relações entre o tenentismo, a estrutura de classe e o Estado no Brasil que estamos desenvolvendo pretende fugir do outro traço característico do economicismo e, em menor escala, do politicismo: a tendência às grandes interpretações globalizantes e "estruturais", mas vazias de conteúdo histórico.
Limitamos o âmbito da pesquisa e fomos a campo buscar fontes primárias de documentação que nos permitam construir, de modo efetivo, a interdependência entre ' o social e o político, ressaltando todas as mediações e momentos constitutivos do processo histórico. Com esse método de investigação talvez seja possível escapar à aplicação de modelos externos - seja o da revolução burguesa clássica, seja o da "modernização conservadora" - ao processo revolucionário de 30. Talvez seja possível captar a especificidade da formação social brasileira, do Estado, das classes e do Exército nesta etapa de seu desenvolvimento.

3. CONCLUSÃO
3.1 A Revolução de 32 como exclusão político-militar do tenentismo
Ao longo do texto referimo-nos várias vezes ao fato de que a Revolução de 30 dividiu profundamente o Exército, sendo que a ascensão política do tenentismo provocou inúmeras resistências dentro da organização militar, assim como fora dela.
Se a oposição das oligarquias à emergência tenentista já foi suficientemente analisada, julgamos conveniente explicitar mais detalhadamente as resistências internas da corporação militar a esse movimento.
Em primeiro lugar, é bom destacar o fato de que "a revolução não fora resultado de consenso dentro das Forças Armadas. Pelo contrário. Embora não tenha sido ainda feito um trabalho mais cuidadoso sobre seus aspectos multares, é fora de dúvida que a maior parte do êxito do movimento se deveu à ação dos dois grandes estados envolvidos - com suas poderosas polícias militares, tão antagonizadas pelas forças federais - e à participação popular, grande no Rio Grande do Sul e em Pernambuco."30
Em outros termos, constatação importante é a de que o grupo militar que se envolve na revolução e participa de sua preparação é uma minoria.31 Além de constituírem uma minoria dentro do Exército, os tenentes revolucionários têm em seu desfavor a condição de oficiais subalternos, o que significa dificuldades imensas para controlar essa instituição, essencialmente fundamentada na hierarquia.
Mas não só a cúpula do Exército se rebelou com o avanço dos tenentes, como já demonstramos em outros momentos deste trabalho. Há evidências de movimentos da jovem oficialidade de repúdio à desagregação da instituição, sendo o principal deles o que se denominou "União da Classe Militar".
Articulando principalmente capitães e majores, o movimento se desenvolveu entre os meses de agosto e novembro de 1931 (ou seja, na fase de maior preeminência política dos tenentes) no Rio de Janeiro, tendo como bandeira principal o desengajamento político do Exército.
Os revolucionários eram o alvo explícito desses oficiais que consideravam que os tenentes estavam se tornando "joguetes na mão de políticos inescrupulosos" e envolvendo o Exército em suas disputas: "O nosso Juarez entrou com os seus tenentes por amor à classe e, ganha a revolução, abraçou-se à política, esquecendo o Exército. Agora os próprios políticos o abandonaram e ele quer o apoio da classe. (. . .) Situação particular do Exército serve de guarda aos tenentes interventores que estão brincando de administradores e aos políticos que disputam os cargos. A ala dos tenentes está mentindo à sua classe. Foram revolucionários por amor a ela e agora sé esquecem disso para depreciá-la e tomá-la desprestigiada no conceito público."32
É patente no documento o repúdio à instrumentalização política do Exército que os tenentes estavam propiciando, assim como fica evidente que esses oficiais - cujo lema era Paz, União e Trabalho - buscaram um oficial superior para liderar o movimento e assim legitimá-lo frente à corporação.
O general mais insistentemente procurado para assumir esse papel foi Bertoldo Klinger, que estava "exilado" na circunscrição militar de Mato Grosso e quando veio de férias para a capital da República tentou obter o consenso dos generais em apoio ao movimento: "Entendemos, Mena e eu, que seria de mais efeito que os generais, todos solicitados pelos autores do projeto da 'União', dessem resposta coletiva, como primeira evidência de que entre eles reinava a ambicionada união. Ficamos bem certos de que, desse modo, não infringíamos o regulamento disciplinar, pois não se tratava de manifestação coletiva da espécie tão justamente condenada, catalogada como infração: tratava-se de um caso imprevisto, de apelo de subordinados em favor da disciplina, precisamente com a insopitável, indenegável resposta dos chefes invocados."33
O consenso entre os generais não foi obtido, o Ministro da Guerra "tenentista" Leite de Castro conseguiu abrandar os ânimos e o movimento fracassou; contribuiu, porém, bastante para generalizar a animosidade dos oficiais em relação ao tenentismo.
Essa animosidade foi amplamente capitalizada pelas "oligarquias fortes" em sua luta contra os tenentes. É o imbricamento, a que já nos referimos, entre a crise política global e a crise especificamente militar, que dilacera o Exército já que diferentes facções oligárquicas buscam diferentes facções militares em seu apoio.
O descontentamento militar resultante do privilegiamento dos "picolés" nas promoções transformou os oficiais preteridos em presa fácil nas mãos das frentes únicas. João Neves, seu grande articulador, percebeu isso claramente: "O caso dos primeiros-tenentes prejudicados - os nossos tenentes - prossegue a sua marcha natural. Invadiu ele todas as camadas do Exército, simpáticas as vítimas da estupidez de Leite de Castro. Tenho segurança de que os ditos tenentes dispõem da força da guarnição daqui, pelo menos nestes 20 dias. Exigem eles a demissão de Leite de Castro, a derrubada do gabinete deste e o cancelamento da ordem de prisão. Como vês, é um mundo."34
O tenentismo, o tempo todo, introduziu a política no Exército e, portarfto, esteve no pólo oposto da mentalidade militar que se tomou hegemônica ao longo dos anos 30, de fazer a política do Exército.
O tenentismo foi o movimento (e o último desse tipo de envolvimento militar de um segmento da instituição não totalmente profissionalizada, típico da República Velha) que significou a antítese dos movimentos militares posteriores a 37, que tinham como princípio básico o envolvimento da instituição como um todo, conduzida por seus chefes, tentando promover seus valores e objetivos próprios.
A eliminação do intervencionismo reformista dos tenentes foi uma das condições para a homogeneização do Exército que prosseguiria passando por 35 e se consolidaria com o Estado Novo: "Estava aí enunciado todo o projeto do intervencionismo controlador: ampla intervenção estatal em todos os setores; ênfase na defesa externa e na segurança interna; preocupação com a eliminação do conflito social e político em tomo da idéia nacional; industrialismo nacionalista; a presença das Forças Armadas, especialmente o Exército, como principais propulsores do progresso a partir de uma posição hegemônica dentro do Estado. Em 1937, as circunstâncias internas e externas permitiram as Forças Armadas, já suficientemente unidas, implantar a ditadura dentro do projeto há tempos em gestação."35
Colocado simultaneamente como obstáculo para a reunificação da corporação militar e obstáculo principal para a reconstitucionalização, ambição maior das "oligarquias fortes", o tenentismo não teria forças para sobreviver a 32.
O próprio Vargas, com a guerra civil e a inevitabilidade da Constituinte, "não tardará, com a ajuda de Góes Monteiro, a liquidar o tenentismo e suas aspirações políticas sem, no entanto, terminar com o peso decisivo do 12. Exército sobre a evolução do Brasil e o destino de seu próprio poder."36
A eliminação do intervencionismo reformista dos tenentes foi, também, a eliminação do reformismo de um dos múltiplos projetos sociais engendrados pela Revolução de 30: o projeto social dos setores médios tradicionais.
A percepção de que 32 significou a derrota tenentista, no plano político e militar, está difundida em diferentes atores políticos envolvidos na Revolução de 32, assim como em diversos autores que a pesquisaram posteriormente.
Comparemos diferentes versões desse mesmo argumento:
1. Góes Monteiro. "A Revolução Paulista trouxe esta conseqüência boa: restabeleceu a disciplina no Exército, que estava, realmente, ao' sabor das conveniências de alguns elementos agitadores e exploradores da farda."37
2. Juracy Magalhães. "Então, quando houve a revolução de São Paulo, ele aproveitou a oportunidade para tentar punir o Exército, que não era revolucionário - o Exército brasileiro não era revolucionário. Ele procurou unir o Exército em torno dessa bandeira de restabelecimento da hierarquia e botar os tenentes nos seus devidos lugares. Foi uma jogada política inteligente que ele deu. Realmente, aí surgiram o Dutra, Guedes da Fontoura e outras generais que passaram a ter maior influência do que os tenentes."38
3. Alzira Vargas do Amaral Peixoto. "A Revolução dita constitucionalista continuava. O 'Club 3 de Outubro', ou Club dos Tenentes', entrara em declínio, desde o começo das hostilidades, mas tinha durado o tempo suficiente para deixar dentro das Forças Armadas um clima de subversão hierárquica. O 'tenentismo' fora um agrupamento de ordem política em que os galões não contavam. Chegava a vez dos generais. O momento era de disciplina, de ordem, de comando."39
4. Robert J. Alexander. "Foi a insurreição de julho de 32 em São Paulo que, finalmente, destruiu o poder dos tenentes enquanto grupo organizado. .. . A seriedade do levante exigia a retomada total da disciplina militar nas Forças Armadas, de modo que muitos oficiais jovens que tinham conseguido desafiar com sucesso a disciplina militar rotineira, entre 1930 e 1932, foram reintegrados na hierarquia normal das Forças Armadas."40
Na nova conjuntura política posterior a 32 só persistem na arena política, os tenentes que, cooptados por Vargas, decidem enfrentar a batalha constitucional no plano político-partidário. É o caso de Juracy Magalhães, que diz o seguinte: "Eu fiquei sozinho, achando que se devia organizar um partido da revolução. Então, todos os três, quer dizer o Miguel, o Landri e o Roberto Carneiro de Mendonça, foram contra. Por eles mantinha-se a ditadura. Bem, mas eu fiquei vencido por 3 a 1. Ia saindo cabisbaixo, quando o Amaro da Silveira, ajudante-de-ordens de Getúlio Vargas me chamou e disse:
- O presidente pede ao senhor para ir falar com ele. Aí, coisa do temperamento de Getúlio, ele disse:
- Juracy, mandei chamar pra te dar os parabéns. Tu estás vendo muito claro o problema político. Não te importes com a opinião dos outros.. Crie o teu partido na Bahia, isso é que está certo."41
O Partido Social Democrático foi constituído por Juracy e teve brilhante desempenho eleitoral. Mas Juracy estava deixando de ser o tenente revolucionário e começando sua longa carreira política. Apesar das resistências apontadas por Juracy, a maioria dos interventores acabou se submetendo ao comando getulista e organizando partidos políticos e o processo eleitoral em seus respectivos estados.
Tratava-se de aglutinar as forças revolucionárias nos estados para apoiar o governo provisório e constituir bancadas situacionistas na Assembléia Constituinte, que significassem um contrapeso à influência dos estados sulinos.
Os interventores do Norte-Nordeste, abdicando de seu absenteísmo político anterior a 32, tornaram-se os articuladores de um bloco político centralizador, que atuaria na Constituinte tentando neutralizar o poder dos grandes estados, Sà"o Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul: "duas ordens de propostas estão presentes para o Norte. A primeira de retomada das articulações em prol da coesão política da região, tendo em vista a atuação na Constituinte. A segunda de cunho renovador, implicando uma preparação do terreno administrativo, de forma a facilitar e talvez até a assegurar o futuro espaço político do Norte."42
Mas essa nova inserção política de alguns tenentes contribuiu para a fragmentação político-ideológica do grupo tenentista e para a abdicação de seus projetos sócio-políticos próprios. Derrotados pélas "oligarquias fortes", depois de 32 eles são obrigados a conciliar-se com as oligarquias pobres e tornar-se porta-vozes de suas pretensões de ascensão política, que passava necessariamente pela centralização estatal.
Outros tenentes, como Juracy, aceitaram a inevitabilidade da Constituinte, imposta pelas "oligarquias fortes", como é o caso de João Alberto, que também preservou sua carreira política.
Sua opção foi feita ainda antes da Revolução de 32, quando defendia a transformação do Clube 3 de Outubro em partido político, contra a opinião da maioria dos tenentes, o que o levou a abandonar o clube.
Tanto é assim que, em entrevista ao jornal A Noite, realizada em fevereiro de 1932, declarava: "A própria atividade do Clube 3 de Outubro, atividade puramente construtiva, demonstra que é um índice bastante expressivo de que nós contamos com uma nova fase para a vida nacional, pois até a imediata transformação do clube em partido político está por nós prevista e só se organiza partido para disputar o poder por meios legais."43
Augusto do Amaral Peixoto, outro tenente que fez uma opção partidária, percebe o esvaziamento do Clube 3 de Outubro depois da Revolução de 3 2:-"Quando veio a fase da Constituinte (...) o Clube, como eu já disse, procurou tomar um novo rumo: ou dissolver-se, ou transformar-se em partido político, ou continuar na expectativa - como ficou resolvido - como um órgão de controle, acompanhando a situação, para uma nova intervenção, caso houvesse necessidade. Mas, evidentemente, com a criação dos partidos regionais - como aqui foi criado, no Distrito Federal, o Partido Autonomista - o Clube 3 de Outubro perdeu quase que a sua razão de ser, porque os partidos que surgiram preencheram a sua finalidade (grifo nosso). E, com a Revolução de 32 e o afastamento dos militares do Clube, ingressaram centenas de cidadãos que deram uma orientação completamente diferente da inicial: daí a sua extinção paulatina."44 Amaral Peixoto foi eleito para a Constituinte pelo Partido Autonomista, fundado por Pedro Ernesto Batista, que se tornou mais tarde interventor e prefeito do Distrito Federal.45
Juarez Távora, que tinha sido readmitido no Exército como major, foi nomeado ministro da Agricultura em 21 de dezembro de 1932 e, enquanto ministro de Vargas, teve ativa participação na Constituinte. Posteriormente, voltou ao serviço ativo no Exército e integrou a ala dos ex-tenentes que romperam com Vargas e acabaram fundando e liderando a UDN.
Osvaldo Cordeiro de Faria também abandonou o clube, tendo se mantido fiel a Getúlio Vargas,46 sendo nomeado interventor do Rio Grande do Sul em substituição ao General Daltrp Filho, voltou ao serviço ativo do Exército, onde se destacou como um dos fundadores da Escola Superior de Guerra e um dos principais articuladores da derrubada do Presidente João Goulart.47
Enquanto alguns tenentes aceitavam as novas condições políticas impostas pelas oligarquias, o remanescente Clube 3 de Outubro, esvaziado das principais lideranças tenentistas, mantinha uma posição intransigentemente contrária à Constituinte: "O Clube 3 de Outubro compreende e respeita os escrúpulos do honrado e nobre cidadão que nos governa, agora escravo da própria palavra, no tocante à data das eleições para a Constituinte. Continua a pensar, contudo, coerente consigo mesmo, que é prematuro o pleito em ambiente confuso, quando ideologias várias mal começam a formar correntes sem tempo de propaganda bastante para que o povo, entre elas, refletidamente escolha. Pensa mais o Clube, que eleições de tal espécie representam o mais propício ambiente para o triunfo apenas das velhas máquinas, ou mesmo de máquinas novas, construídas de peças velhas e pela mesma técnica."48
Com a fragmentação do tenentismo em 32, alguns de seus elementos encaminharam-se politicamente para a esquerda, vindo a integrar o Partido Socialista Brasileiro ou mesmo o Partido Comunista e muitos deles tiveram participação ativa na Aliança Nacional Libertadora. É o caso de Hercolino Cascardo, Agildo Barata, Trifino Corra, Sillo Meirelles e muitos outros. O integralismo também absorveu alguns tenentes, mas a grande maioria deles abandonou a militância política, reintegrando-se ao Exército e voltando a ter presença na política nacional enquanto integrantes das Forças Armadas.



1 Carvalho, José Murilo de. As Forças Armadas na Primeira Republica. p. 189.
2 Domirtgos Neto, Manuel. L'influence étrangère et la formation des groupes et tendances au sein de l'Armée brésilienne (1889¬ 1930). In: Rouqué, Alain, Les partis militaires au Brésil. Paris, Presses dé la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1980. p. 45.
3 Sobre a evolução do ensino militar, ver Motta, Jeovah. Formação do oficial do Exército; (currículos e regimes na Academia Militar 1810-1944). Companhia Brasileira de Artes Gráficas, 1976.
"Par influence militaire, nous entendons l'ensemble des contributions apportées par divers pays étrangers à l'institution militaire brésilienne, les contributions allant du modèle même d'.organization militaire jusqu'à la fourniture d'armement; à l'envoie de techniciens et d'instructeurs. C'est précisément l'apport étranger qui. a permis à l'armée brésilienne de subir la plus grande transformation qu'elle ait connue depuis sa criation, celle de la 'modernisation'." Domingos Neto, Manuel, op. cit. p. 41.
5 Carvalho, Estevão Leitão de. Dever militar e política partidária. Companhia Editora Nacional, 1959, p. 34.         [ Links ]
6 Sobre a "Missão Indígena" ver: Denys, Odylio. Ciclo revolucionário brasileiro: memórias (5 de julho de 1922 a 31 de março de 1964). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p. 169-74. Coleção Brasil Século 20.
7 História do Exército brasileiro. Perfil militar de um povo. Brasília/Rio de Janeiro, Estado-Maior do Exército, 1972. v. 2. p. 809.         [ Links ]
8 "Ao final da I Guerra, a politica americana não era favorável a um estreitamento de laços entre os dois exércitos. Como parte da disputa mundial com os ingleses, Washington decidiu que a influência política e o prestígio comercial americanos lucrariam muito com a eliminação da influência inglesa na Marinha brasileira. E, apesar de o Departamento de Estado preferir que o treinamento dos Exércitos latino-americanos fosse realizado pelos Estados Unidos do que por governos europeus, predominou a opinião do embaixador Morgan, a de que uma missão militar francesa obteria resultados mais rápidos que qualquer outra e não prejudicaria os interesses americanos. Assim, tornou-se um dogma para a política americana, até o final dos anos 20, não tentar atrair o exército brasileiro para os Estados Unidos." In: McCann, Frank D. A influência estrangeira e o Exército brasileiro, 1905-1945. Paper apresentado ao Seminário sobre a Revolução de 30, organizado pelo CPDOC/FGV. Rio de Janeiro, 22 a 25 set. 1980. p. 6-7, mimeogr.
9 Sobre a influência da missão francesa, assim se manifestou Juracy Magalhães: "Na Escola Militar do Realengo já havia influência da missão francesa. Fiz um discurso saudando o General Juan quando ele veio ao Brasil, como chefe do Estado-Maior. Se quiserem, vocês podem consultar os anais para ver o discurso. Nele faço um estudo da evolução do pensamento militar no Exército brasileiro e digo: O Exército brasileiro teve duas fases: antes e depois da missão militar francesa. (...) Não tinham diretamente oficiais da missão francesa na Escola, porém. A minha turma ainda dava muito mais valor aquelas cadeiras básicas científicas, do que às cadeiras profissionais." In: Entrevista com Juracy Magalhães, Projeto de história oral, CPDOC/FGV. p. 45-6.
10 Carvalho, José Murilo de. op. cit. p. 200.
11 Domingos Neto, Manuel, op. cit. p. 57.
12 McCann, Frank D. op. cit. p. 10 e 19.
13 Sobre, a polêmica entre a doutrina do "soldado cidadão" e o "soldado profissional", no contexto da sucessão de Epitácio Pessoa e da Reação Republicana, ver: Forjaz, Maria Cecília Spiru. Tenentismo e política. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. p. 41-5.
14 Távora, Juarez. A guisa de depoimento sobre a Revolução brasileira de 1924. São Paulo, O Combate, 1927. p. 88 e 91.         [ Links ]
15 Carvalho, José Murilo, op. cit. p. 213.
16 Rouquié, Alain. Papéis e comportamentos políticos das Forças Armadas na América Latina (1930-1945); algumas reflexões para um estudo comparativo. Paper apresentado ao Seminário sobre a Revolução de 30, organizado pelo CPDOC/FGV. Rio de Janeiro, 22 a 25 set. 1980. mimeogr. p. 7.         [ Links ]
17 Góes Monteiro. A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército. Rio de Janeiro, Andersen, s.d. p. 163.         [ Links ]
18 Coelho, Edmundo Campos. Em busca de identidade; o Exercito e a política na sociedade brasileira. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1976. p. 80-1.         [ Links ]
19 Carvalho, Estevão Leitão, op. cit. p. 5.
20 A defesa nacional (revista de assuntos militares), Rio de Janeiro, 1(1): 1. out. 1913.         [ Links ]
21 Cardoso, Fernando Henrique. A formação do capitalismo e as classes sociais na América Latina; problemas e algumas questões de método. In: Albuquerque, J. A. Guilhon, coord. Classes médias e política no Brasa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. p. 54.
22 "Como todo assunto sobre o qual se fala constantemente, como todo argumento empregado a torto e a direito, muito pouco se sabe e se escreve de teoricamente sólido sobre as classes médias no Brasil. Para todos os efeitos, fica sempre a classe média como o grande obstáculo para qualquer progresso no campo político e institucional. E o conceito de classe média, atravessado no caminho de quem quer que tente uma analise da estrutura de classes no Brasil." In: Albuquerque, J. A. Guilhon. op. cit p. 9.
23 Cardoso, Fernando Henrique, op. cit. p. 57.
24 Saes, Décio. Classe moyenne et système politique au Brésil, p. 80-1.         [ Links ]
25 Miceli, Sergio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo, Difel. 1979. v.17, p. xxii. (Coleção Corpo e Alma do Brasil.         [ Links ])
26 Rouquié, Alain. op. cit., p. 17.
27 Diniz, Eli. Empresário, Estado e capitalismo no Brasil: 1930-1945. Paz e Terra, 1978. p. 226-7.         [ Links ]
28 Sodre, Nelson Werneck. Memórias de um soldado. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1967. p. 1-2.         [ Links ] (. . .) Sobre suas origens sociais, depõe o General Góes Monteiro: "Originário da plutocracia rural nordestina decadente, que definhava ao peso das modernas técnicas de trabalho, já nasci na fase de empobrecimento progressivo de minha família, sob o signo de uma depressão econômica indisfarçável. Minha mocidade foi melancólica e desordenada, primogênito de uma família numerosa, filho de um médico provinciano, excelente facultativo. (. . .) Cedo falecia meu pai, vítima de um ataque cardíaco que o fulminou pouco depois de completar 40 anos de idade, na tortura de deixar uma prole desamparada de nove filhos e uma viúva." In: Coutinho, Lourival. O General Góes depõe. Rio de Janeiro. Coelho Branco, 1955. p. XII e XIII.         [ Links ] "Como conseqüência da revolta do Forte de Copacabana, que resultou na vinda para Sergipe de pelo menos dois sergipanos implicados. Primeiro foi Manuel Xavier de Oliveira, nascido em 16 de junho de 1900, na cidade de Capela, certamente por influência do pai, que também era militar, seguiu a carreira das armas. (. . .) Desligado da escola no mês seguinte, regressou a seu estado, onde teria grande atividade como professor e jornalista no Correio de Aracaju. Além de Manuel Xavier de Oliveira, regressou também a Sergipe Augusto Maynard Gomes. Nascido em 16 de fevereiro de 1886; no engenho de Campo Redondo, no município de Rosário do Catete, filho de um senhor de engenho." In: Dantas, José Iberê Costa. O tenentismo em Sergipe. Petrópolis. Vozes, 1974. p. 84-5.         [ Links ]
29 Joffily, Jose. Revolta e revolução; cinqüenta anos depois. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. p. 139.         [ Links ]
30 Carvalho, José Murilo de. Forças Armadas e política 1930-1945: 1980. mimeogr. p. 2.         [ Links ]
31 Em entrevista que nos concedeu, o General Zerbini confirmou o caráter minoritário do tenentismo e, além disso, afirmou que as resistências a esse movimento incluíram a jovem oficialidade do Exército. Concorda com ó General Zerbini o maior líder tenentista dos anos 20, Luís Carlos Prestes, que nos disse o seguinte, em entrevista-realizada no Rio de Janeiro, em 25 de abril de 1980: "O grupo tenentista era um grupo minoritário. Foi sempre minoritário no Exército. São os oficiais mais jovens, em geral da pequena burguesia, mais pobres também e os mais estudiosos." Sobre a "anarquia" do Exército no pós-30, Prestes asam se pronunciou: "Eu vou dizer uma coisa. Até 35 essa anarquia no Exército existia. Tanto que, era mais fácil em 35, 34/35, organizar partidos comunistas nos quartéis do que nas fábricas. Nós tinhamos três jornais; um jornal pró-Exército, um jornal pró-Marinha. ... O Partido Comunista tinha um jornal pró-Exército, um jornal pró-Marinha e um jornal pró-Aeronáutica. Os comunistas, nos quartéis, faziam questão de colocar o jornal na mesa do comandante. Era uma verdadeira provocação."
32 Arquivo Bertoldo Klinger, CPDOC/FGV: Documentos BK 31.08.29/2 e BK 3.09.02. O manifesto principal do movimento também está no arquivo Bertoldo Klinger, documento BK 31.11.14 , e sobre a finalidade da "União" diz o seguinte: "Integrar o Exército na sua verdadeira função, isto é, organizar, coordenar e orientar os esforços individuais, ora dispersos, numa só diretriz, de forma a que o Exército possa estar, pelo grau de cultura profissional e moral de seus quadros, pela sua organização material, pela sua disciplina e trabalho produtivo, em condições de cumprir, em qualquer momento, as missões que lhe são inerentes e peculiares."
33 Klinger, Bertoldo. Parada e desfile de uma vida de voluntário do Brasil na primeva metade do século. Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1958. p. 405.         [ Links ]
34 Carta de João Neves a Lindolfo Collor. Arquivo Lindolfo Collor. CPDOC/FGV. Documento LC 32.05.31.
35 Carvalho, José Murilo de. op. cit. p. 49-50.
36 Rouquié, Alain. op. cit. p. 16.
37 Góes Monteiro, op. cit. p. 208.
38 Magalhães, Juracy. Entrevista ao Projeto de História Oral do CPDOC/FGV. p. 123.         [ Links ]
39 Peixoto, Alzira Vargas do Amaral. Getúlio Vargas, meu pai. Porto Alegre, Globo, 1960. p. 60.         [ Links ]
40 Alexander, Robert J. Os tenentes depois da Revolução de 30. In: Figueiredo, Eurico de Lima, coord. Os multares e a Revolução de 30. Rio de Janeiro, Paz e Terra. p. 167-8.
41 Entrevista que Juracy Magalhães nos concedeu no 1º semestre de 1980. p. 26-7.
42 Pandolfi, Dulce Chaves. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascensão política. In: Gomes, Angela Maria de Castro, coord. Regionalismo e centralização política; partidos, e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. p. 361. (Coleção Brasil Século 20.)
43 Entrevista de João Alberto. In: Carone, Edgard. O tenentismo; acontecimentos, personagens, programas. São Paulo, Difusão, 1975. p. 386.
44 Entrevista de Augusto do Amaral Peixoto. Projeto de Historia Oral do CPDOC/FGV. p. 125-6.
45 Sobre esse partido, ver: O Partido autonomista. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1935, 2 v.
46 Em entrevista que nos concedeu no primeiro semestre de 1980, Cordeiro de Farias negou que tivesse pertencido ao Clube, embora sua ficha esteja entre a dos primeiros inscritos nessa organização tenentista.
47 Sobre a carreira política e militar de Cordeiro de Farias, ver: Camargo, Aspásia & Góes, Walder. Meio século de combate; diálogo com Cordeiro de Farias. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1961.
48 Carone, Edgard, op. cit. p. 417. Essa citação pertence a manifesto do Clube publicado em abril de 1933, ou seja, às vésperas das eleições para a Constituinte.




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ANTECEDENTES DO 31 DE MARÇO DE 1964

(Extraído de História Oral do Exército - 31 de Março de 1964 - Parte I: http://felixmaier1950.blogspot.com/2020/09/historia-oral-do-exercito-31-de-marco.html)

Muitos dos entrevistados voltam aos tempos da Proclamação da República, golpe desferido pelo Exército contra a Monarquia por militares doutrinados na filosofia do Positivismo de Augusto Comte, lembrando sua ideologia autoritária, que levou a muitas quarteladas durante quase um século, e que, inicialmente, pensavam que o Movimento de 1964 fosse mais uma dessas quarteladas passageiras, logo retornando o poder aos civis.

Outros entrevistados voltam à década de 1920, afirmando ser o Tenentismo (Revolta dos 18 do Forte, Coluna Miguel Costa-Prestes, Revolução de 1930) um dos motivos longínquos que redundou no Movimento de 1964, por ser um movimento político-militar que criticava a corrupção e o atraso sócio-econômico do Brasil, ao mesmo tempo em que pregava um desenvolvimento industrial rápido para o País. Estes analistas afirmam que a força remanescente ou pelo menos o espírito dos “Jovens Turcos” de outrora prevaleceu no sentido de o Movimento de 1964 se prolongar por 21 anos. Ou seja, venceu a turma dos “costistas” (Costa e Silva) – incluindo o presidente Médici, que queria aproveitar o Movimento para desenvolver econômica e socialmente o Brasil - sobre a turma dos “castelistas” (Castello Branco) – esses querendo devolver o poder logo aos civis, após a arrumação da ordem pública.

Diz Geisel no livro “Ernesto Geisel”, publicado pela Editora Fundação Getúlio Vargas, 5ª. Edição, 1998, à pg. 166:

“Lembro-me também de um fato, que nunca vi publicado, ocorrido um ou dois dias depois da revolução: houve uma reunião no gabinete do Costa e Silva e outros generais à qual compareci com Castello. Lá estavam Costa e Silva e outros generais, entre eles Peri Beviláqua, que aderiu à Revolução mas era muito ligado à esquerda. Costa e Silva, falando sobre a revolução, declarou: ‘Nossa revolução não vai se limitar a botar o Jango para fora! Temos que remontar aos ideais das revoluções de 22, de 24 e de 30!’ Ele queria fazer uma revolução mais profunda. Ficaram todos em silêncio”.

“Sobre a Revolução de 31 de Março de 1964, podemos listar causas tanto remotas quanto imediatas. As remotas retrocedem à década de 1920, quando irromperam os primeiros movimentos revolucionários militares, conduzidos por jovens oficiais idealistas, que não se conformavam com a situação de subdesenvolvimento do País. Achavam que o Exército – a maioria era do Exército – deveria fazer algo para mudar aquele panorama, caracterizado pela ‘política do café-com-leite’, que vigorava na época, a qual mantinha no Poder algumas oligarquias que nada faziam para conduzir o País, apesar de toda a sua potencialidade, ao nível de desenvolvimento das grandes nações do mundo, o que aqueles idealistas pretendiam.

Esses movimentos ficaram bem marcados pelo episódio heroico dos ’18 do Forte’, em 1922, tendo à frente o Capitão Siqueira Campos, e depois pela coluna revolucionária que percorreu o País, entre 1924 e 1926, erroneamente chamada de Coluna Prestes, pois ele era apenas um dos seus integrantes. Esses movimentos acabaram redundando na Revolução de 1930, cujos participantes acreditavam que iria redimir o País dos seus problemas.

Foi justamente nessa época, em que predominava tal pensamento em grande parte da oficialidade do Exército, sobretudo entre os oficiais jovens, que ingressou nas Forças Armadas a maior parte dos homens que fizeram a Revolução de 1964.

Então, imbuídos dos mesmos ideais daqueles jovens de 1922 – reformar o Brasil, alçá-lo rapidamente a uma posição de relevo mundial, acabar com o subdesenvolvimento – criou-se entre os oficiais do Exército uma corrente que pretendia lutar para alcançá-los. Dela originou-se o movimento de deposição de Getúlio Vargas e, depois, no segundo mandato de Getúlio, o movimento da Cruzada Democrática contra os comunistas, o Memorial dos Coronéis e o inquérito do Galeão, este determinante da queda e do suicídio do Presidente Vargas.

Essa corrente, que em 1930 imaginou poder atingir seus objetivos, foi traída por Getúlio, mais caudilho do que idealista. Novamente frustrou-se diante do comportamento do Marechal Lott (Henrique Baptista Duffles Teiseira Lott), em 1955, que afastou aqueles idealistas das posições onde poderiam fazer algo pelo qual almejavam. Mais tarde, no Governo João Goulart, passaram a conspirar no sentido de dar um basta ao caos que se implantava no País.

Esses homens, e outros que em face da situação a eles aderiram, foram os que fizeram a Revolução de 1964. Eis a razão por que fui buscar as causas remotas da Revolução de 1964 no idealismo que veio desde 1922, na corrente que se formou durante 40 anos, dentro do Exército, de homens que queriam fazer pelo Brasil mais do que simplesmente exercer as funções militares – queriam também mudar o País, a sua mentalidade política e transformá-lo numa potência” (Contra-Almirante Luiz Pragana da Frota, Tomo 14, pg 168-169).

“Existia, então, em algumas lideranças castrenses uma certa doutrina que vinha do passado, preconizando que os valores da elite militar seriam capazes de resolver os problemas brasileiros, sem a presença das elites civis. Foram refratários a essa doutrina nomes como Castello Branco e Eduardo Gomes, este sempre um militar civilista e democrático. Muitos coronéis daquela época e outros oficiais mais jovens queriam fazer algo em proveito do Brasil e, como entendo, a doutrina militarista tinha raízes nos chamados ‘jovens turcos’, que no princípio do século, durante o Governo Hermes da Fonseca, aperfeiçoaram-se na Alemanha.

A segunda questão está ligada às características da formação do militar, preparados para dirigir, comandar e dar ordens pressupostamente capazes de resolver os problemas que as pessoas estavam vendo nas ruas. Tudo seria fácil mediante a intervenção militar.

Quando o Movimento de 1964 foi vitorioso, indiscutivelmente quase 95% do País bateram palmas. Mas, à medida que o processo revolucionário de 1964 vai se implantando, ao mesmo tempo vai provocando discórdias e conflitos. Daí, a contestação que começava a surgir. No processo revolucionário, o Poder é arbitrário e provoca contestação. Cresciam dois tipos de oposição: os adeptos do marxismo, bem fortes, naquela época, ligados a Cuba e à União Soviética; e algumas lideranças liberais democratas que não estavam concordando com a execução do processo implantado no País. Eis a terceira causa: essas duas forças vão se unir, a de esquerda e a liberal, ambas antimilitaristas. Esta forma de oposição não sabia distinguir entre o militar de tendências civilistas e o de tendências militaristas. Tudo para eles era militarista” (Deputado Federal Bonifácio de Andrada, Tomo 15, pg. 96-97).

Havia, nas Forças Armadas, três grupos de oficiais, a saber: a corrente originada em 1922, que pretendia fazer algo para eliminar o quadro de subdesenvolvimento e a mentalidade política que tanto prejuízo trazia ao País; outro grupo que não achava necessária a intervenção das Forças Armadas, mas às vésperas do Movimento aderiu ao mesmo; e um terceiro grupo, menor, que apoiava a escalada marxista.

Depois da Revolução, este último grupo foi praticamente extinto: seus integrantes foram afastados, cassados ou demitidos e outros passaram para a reserva. Deste modo, permaneceram dois grupos dentro do sistema revolucionário militar: o grupo que defendia a transformação do Movimento numa Revolução, isto é, que queria aproveitar a intervenção militar de grande porte – afastou o Presidente da República – para conquistar os objetivos, de muitos anos antes, de transformar as estruturas política e administrativa do País, saneá-lo moralmente, afastar os políticos corruptos e criar novos quadros, redimir a economia abalada, resolver os problemas das desigualdades sociais e afastar definitivamente do cenário nacional a subversão, que era bem forte. Para tal, a Revolução deveria demorar tempo maior no Poder. O maior expoente desse grupo era o Marechal Costa e Silva.

Já o outro grupo, a outra corrente de pensamento, defendia a opinião de que a intervenção militar deveria apenas neutralizar aquela escalada comunista, afastando os homens do Governo ligados diretamente à subversão marxista e, logo que possível, dever-se-ia restabelecer o sistema político vigente antes da Revolução. Essa corrente, ligada ao Marechal Castello Branco, não queria o prosseguimento da Revolução por muito tempo.

Essa divergência resolveu-se com a ascensão à Presidência da República do Marechal Costa e Silva. Durante todo o seu Governo predominou a linha revolucionária, ou seja, aquela que queria transformar o Movimento de 31 de Março em uma Revolução, entendendo-se que uma revolução vem para mudar as estruturas existentes, para estabelecer uma nova ordem e não somente para restabelecer a antiga, como queria a outra corrente” (Contra-Almirante Luiz Pragana da Frota, Tomo 14, pg. 170-171).

 

Ob.:

O Contra-Almirante Frota é filho do General-de-Exército Sylvio Couto Coelho da Frota, Ministro do Exército no Governo Geisel.  O Ministro Frota é autor do livro “Ideais traídos: A mais grave crise dos governos militares narrada por um de seus protagonistas”.

As ações do Tenentismo (“Jovens Turcos”) que levaram ao Movimento de 1964 podem ser vistas em https://felixmaier1950.blogspot.com/2020/06/o-tenentismo-e-as-acoes-dos-jovens.html.

F. M.

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