AS NOVAS CABEÇAS-DE-PONTE DO KREMLIN NA AMÉRICA LATINA
André F. Falleiro Garcia
Ano: 2008
Alguns leitores pediram mais dados com relação à
nota aqui publicada com o título 'A escalada da presença militar russa na
América Latina'. Oxalá se sintam plenamente atendidos com o panorama
histórico-político que agora será descortinado.
De fato, a Rússia solicitou sua admissão, na
qualidade de observadora, no Conselho de Defesa Sul-Americano da União de
Nações Sul-Americanas (Unasul), como informou o Ministério de Defesa da
Argentina em comunicado de imprensa divulgado em 14 de outubro de 2008. O pedido
foi feito pelo Secretário do Conselho de Segurança russo, Nikolay Patruscev,
durante uma reunião em Buenos Aires com a ministra da Defesa, Nilda Garré.
[1]Teme-se que o pedido seja aceito, o que agravaria muito a situação no
hemisfério sul.
A delegação russa também pediu a inclusão da
Rússia na Associação Latino-Americana de Centros de Treinamento para Operações
de Paz (Alcopaz). Especialistas em defesa russos e argentinos se encontrarão
previamente em 4 de novembro de 2008 e depois participarão da reunião da
Comissão Mista de Cooperação Técnico-Militar em 17 e 18 do mesmo mês. Estão em
andamento tratativas para a compra de helicópteros pesados russos especialmente
valiosos para missões antárticas, segundo o comunicado.
É extremamente grave a admissão da presença russa
em organismos de defesa sul-americana, bem como a intensificação do
fornecimento de material bélico. Para que os leitores avaliem melhor a nova
conjuntura sul-americana, será apresentado a seguir um quadro de conjunto.
UNASUL, novo instrumento para a propulsão da
revolução continental
A UNASUL (União de Nações Sul-Americanas) é uma
organização internacional criada formalmente em 23 de maio de 2008 em Brasília,
com o objetivo de realizar a coordenação política, econômica e social dessa
região. Possui 12 membros: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia,
Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai, Venezuela. Dois países
comparecem como observadores: México e Panamá.
China, Unasur e Partido Socialista Chileno: será
mera casualidade a semelhança de cores e símbolos nessas bandeiras?
Em matéria econômica, tem em vista estabelecer uma
zona de livre comércio continental abrangendo o Mercosul e a Comunidade Andina
de Nações, além do Chile, Guiana e Suriname. A orientação ideológica da maioria
dos governantes da região é contrária aos Estados Unidos e à ALCA (iniciativa
norte-americana de criação de uma Área de Livre Comércio das Américas que
exclui Cuba). Sob direção da esquerda, está em curso a construção de um amplo
bloco econômico socialista na América do Sul.
Sua sede será estabelecida em Quito, Equador; o
seu banco (Banco do Sul), em Caracas, Venezuela; o seu parlamento, em
Cochabamba, Bolívia. Exatamente as nações cujos governantes - Rafael Correa,
Hugo Chávez e Evo Morales - são considerados os maiores propulsores da
revolução comunista continental, juntamente com os dirigentes cubanos.
A presidência provisória da entidade no momento
cabe à presidente socialista do Chile, Michelle Bachelet. A reunião de cúpula
realizada no mês passado em Santiago - o primeiro teste de eficiência da nova
entidade - contou com a presença de 9 presidentes, que declararam apoio unânime
a Evo Morales no conflito político interno boliviano, que envolve os
departamentos que buscam maior autonomia em relação ao governo central. A
primeira atuação política da UNASUL, em sintonia com os interesses ideológicos
do Foro de São Paulo, fortaleceu Evo em detrimento de seus opositores. [2]
A idéia da criação do Conselho de Defesa da
América do Sul foi apresentada oficialmente pelo Brasil na reunião de fundação
da UNASUL em Brasília e rejeitada apenas pela Colômbia. O Conselho, que está em
formação, terá como função a elaboração de políticas de defesa conjunta,
intercâmbio de pessoal entre as diversas Forças Armadas continentais,
realização de exercícios militares conjuntos, participação em operações de paz
da ONU, troca de análises sobre os cenários mundiais e integração das
indústrias de material bélico. A primeira atuação do Conselho no campo da
defesa militar, poderá ser justamente a admissão da presença russa, em
detrimento da influência norte-americana na região.
A cabeça-de-ponte russa na Venezuela
Novas compras de armamentos: Nicolay Patrushev
(esq.) e o General venezuelano Francisco Carmago Duque
O relacionamento na área militar entre o governo
venezuelano e o russo já é um fato consumado. Hugo Chávez já gastou US$ 4
bilhões para a compra de 24 jatos Sukhoi, 50 helicópteros e 100.000 fuzis
russos. Pretende adquirir também cerca de dez a vinte sistemas antiaéreos
Tor-M1, novos mísseis, de 100 a 500 tanques e submarinos.
Em sua recente viagem à Rússia, Hugo Chavez
defendeu a formação de uma aliança estratégica para defender seu país
supostamente ameaçado pelos Estados Unidos. Nessa ocasião, o presidente russo,
Dmitri Medvedev, declarou a Hugo Chávez que a ativa cooperação entre Moscou e
Caracas 'se transformou em um dos fatores fundamentais da segurança regional'
na América Latina. [3]
A tentativa russa durante a Guerra das Malvinas
Agora, a Rússia estreita relações
político-militares com a Argentina e, por meio dela, com a UNASUL.
Manifesta-se, mais uma vez, o seu interesse em se servir desse país para
intervir na América do Sul. Nos últimos anos, a política russa justifica
temores crescentes de que estamos assistindo à consolidação de um poder
coletivista, totalitário e imperialista.
Coluna britânica avança nas Malvinas
Sua tentativa anterior fracassou, por ocasião da
Guerra das Malvinas em 1982, quando ensaiou sem sucesso a intervenção militar,
numa aliança com a Junta Militar argentina que foi abortada e não se efetivou.
Nessa ocasião, tentou se aproveitar da necessidade argentina de ajuda militar
para enfrentar a armada britânica.
Documentos secretos já revelados e depoimentos
expressivos comprovam o envolvimento russo. Durante o conflito, foram
freqüentes as visitas do embaixador russo à Chancelaria argentina e cresceu a
atuação do serviço secreto russo em Buenos Aires. Os radares espaciais russos
forneceram informes sobre a movimentação britânica e submarinos nucleares
soviéticos se moviam em águas próximas. Fidel Castro ofereceu tropas cubanas e
até contingentes internacionais para a luta contra os ingleses.
Conforme publicou o jornal O Estado de São Paulo,
'o governo brasileiro monitorou com preocupação a ajuda militar soviética
prestada à Argentina em 1982'. Na ocasião, houve da parte das autoridades
brasileiras intranqüilidade 'com a aproximação da Argentina com os países de
regime comunista ou próximos politicamente da União Soviética, especialmente
por causa do abastecimento de armas, disponibilidade de bases aéreas e entrega
de urânio enriquecido'. Por via indireta, através da Líbia dirigida por
Khadafi, a Argentina recebeu 120 mísseis soviéticos Sam-7. [4]
Além disso, mais de 170 documentos secretos do
Departamento de Estado norte-americano vieram recentemente a público, a pedido
do diário argentino La Nación.[5] Comprovam que o então presidente Ronald
Reagan e o Departamento de Estado temiam o expansionismo russo a propósito das
Malvinas, que poderia resultar numa conflagração mundial. Por isso, os Estados
Unidos não formalizaram apoio à Inglaterra, para não dar pretexto à intervenção
russa.
O general russo Nikolai Sergeievitch Leonov, 79
anos, que à época do conflito nas Malvinas era o diretor do Departamento
Analítico-Informativo da KGB e principal especialista em América Latina,
confirmou à Folha de São Paulo os contatos entre o adido soviético e a
Chancelaria argentina.
Confessou o general Leonov, que também fez
declarações análogas ao diário Russian Mirror, de Londres: 'Inicialmente,
queríamos fornecer armamentos diretamente, mas os argentinos se recusavam a
algo entre governos diretamente. Queriam algo no nível de empresas'. 'Estávamos
dispostos a ir muito longe, muito mais do que se pensa. Eles precisavam de
mísseis terra-ar, ar-mar e mar-mar, mas não se atreveram a comprar armamento
soviético. Então fornecemos imagens de satélite da movimentação da Força
Expedicionária Britânica no Atlântico, mas acho que eles desconfiaram dos dados
que nós enviamos e os contatos morreram'. [6]
O contexto sul-americano e a articulação comunista
na Guerra Fria
Carter e Brejnev assinam em 1979 o acordo Salt II.
Durante a Guerra Fria, a 'distensão' foi entremeada de aventuras russas como a
das Malvinas
Durante o longo período da Guerra Fria houve o
embate entre o bloco comunista liderado pela União Soviética e o bloco
ocidental encabeçado pelos Estados Unidos. Ao descontentamento interno no mundo
soviético e seus satélites se somava o impasse em que estava mergulhado o
movimento comunista internacional, pressagiando a crise que resultou na queda
do Muro de Berlim e na mudança de regime. Tal impasse se devia ao fracasso da
estratégia comunista clássica, seja o recurso à ação subversiva violenta, seja
a disputa eleitoral democrática, ou ainda, o proselitismo doutrinário.
A saída encontrada foi a intensificação da guerra
psicológica revolucionária, na qual teve grande papel a aplicação da doutrina
de Gramsci. A 'psy war' tinha em vista tirar do adversário a vontade de lutar,
desestimulando, neutralizando ou desmoralizando aqueles que mais estavam em
atitude de resistência e luta no Ocidente. A estratégia gramscista objetivava a
conquista da sociedade e não apenas do poder político. Para alcançar o domínio
sócio-cultural e modificar as mentalidades, era preciso primordialmente
neutralizar o maior bastião de luta anticomunista, a Igreja Católica, e depois
transformá-lo em propulsor dos objetivos revolucionários. Durante longa parte
do século XX, as nações do Ocidente e a Igreja Católica foram vítimas da
aplicação dessas táticas.
A América do Sul se revelou uma 'praça de guerra'
oportuna para o movimento comunista internacional. De fato, no início dos anos
70, a ascensão do socialista Salvador Allende pela via eleitoral, com a
cumplicidade do Partido Democrata Cristão e o apoio do Cardeal Silva Henríquez,
reacendeu as esperanças comunistas. Mas a queda de Allende e a proliferação de
ditaduras militares sul-americanas de sentido anticomunista representaram um
duro golpe nesse sinistro projeto.
Surgiu para o regime soviético, no início dos anos
80, a possibilidade de expansão na América Latina, a partir da Guerra das
Malvinas. De um lado, a entrada dos comunistas russos no conflito abriria as
portas da nação argentina. Uma vez ali estabelecidos, dificilmente sairiam;
estaria instalado um foco de 'vietnamização' atraindo a intervenção
norte-americana. De outro lado, a constatada presença de uma força naval
soviética na área, incluindo submarinos atômicos, transformaria a região num
possível epicentro de uma conflagração nuclear de proporções mundiais; esse
fator de intimidação teria grande peso para a fixação da 'cabeça-de-ponte'.
O patriotismo argentino vibrou com a possibilidade
de recuperar uma parte do país perdida para os ingleses no século XIX. Mas em
certo momento esse ânimo arrefeceu. A divulgação pública dessa maquinação
soviética provocou o desgaste da Junta Militar e jogou por terra a
possibilidade de aliança com os comunistas.
Um manifesto, publicado em importantes jornais de
Buenos Aires e nas principais capitais do mundo, inclusive Londres e Washington
colocou para a opinião pública argentina, majoritariamente católica e
conservadora, a questão crucial:
- 'Se nos atrevemos a enfrentar a Inglaterra por
amor às Malvinas, não nos atreveremos a recusar as solicitações da Rússia
comunista por amor de Deus?'.
- 'se a Argentina vier a se aliar com a Rússia ou
a aceitar o apoio militar russo, teremos perdido muito mais do que ganho, pois
a intenção óbvia da Rússia consiste em impor, cedo ou tarde, um governo títere
em nossa Pátria'. [7]
O efeito dessa ação de esclarecimento público das
então pujantes associações Tradição, Família, Propriedade, mediante campanhas
de ruas, faixas, publicações nos jornais, envio de cartas públicas às mais
altas autoridades sul-americanas, foi reconhecido pelo general Leonov em sua
entrevista à Folha de São Paulo: 'Efetivamente, à época da guerra os britânicos
localizaram barcos e submarinos soviéticos perto das águas do conflito, e bastou
essa insinuação de apoio, que nada teve a ver com as negociações secretas em
Buenos Aires, para que grupos - como a Tradição, Família e Propriedade -
argentinos fossem às ruas para criticar o até então popular governo em guerra.'
Também deve ser lembrada e ressaltada a ação
corajosa de Plinio Corrêa de Oliveira, aconselhando a entidade TFP da
Argentina, publicando artigos na Folha de São Paulo, enviando carta pública às
autoridades brasileiras e dirigindo campanha pública de esclarecimento que marcou
na época o centro de São Paulo.
Renascem as esperanças russas no atual contexto
sul-americano
Em vista do crescente perigo representado pela
nova política russa, essas ações de rua foram aqui lembradas para destacar a
dramática situação em que estamos neste momento: a grande ausência de
movimentos anticomunistas organizados e capazes de galvanizar a opinião pública
sul-americana em manifestações de rua, e também o estado de apatia generalizado
da população. Por exceção, no início do ano houve o caso colombiano, em que
milhões de pessoas foram espontaneamente às ruas para protestar contra as
Farcs. Mas não há mais, na indolente Argentina atual, a reatividade
anticomunista que houve na época da Guerra das Malvinas. No caso das
resistências populares nos departamentos que reivindicam maior autonomia na
Bolívia, ou dos ruralistas que protestaram contra o governo Kirchner, tem-se a
impressão de que as sadias reações foram prejudicadas por uma inábil tática de
luta que enfrentou o caos usando as mesmas armas do caos, e não as que são
conformes à ordem.
Evo Morales e o gestual comunista
Passados 25 anos do fim da Guerra das Malvinas,
verificamos que nesse período não cessou o desenvolvimento da guerra
psicológica revolucionária nem a aplicação prática do gramscismo.
Intensificou-se a quebra psicológica das resistências ao comunismo e ao
socialismo.
Após os acontecimentos do início da década de 90
no mundo soviético, que deram a impressão de uma desmontagem do comunismo,
formou-se na América Latina o famigerado Foro de São Paulo, com a intenção de
recuperar aqui o que foi perdido no Leste Europeu. Em menos de 20 anos,
conseguiu que seus membros chegassem ao poder em mais de uma dezena de nações
sul-americanas. A recente criação da UNASUL, na medida em que sirva aos
desígnios desse Foro, representa um crescimento sem precedentes do perigo
vermelho para o continente.
As novas cabeças-de-ponte do Kremlin na América
Latina pressagiam um futuro conturbado e repleto de graves interrogações. Com
certeza a presença russa produzirá grande impacto na linha de desestimular as
reações ao comunismo e ao socialismo. Haverá um reacender dos anseios
nacionalistas com a nova aproximação político-militar entre a Rússia e a
Argentina? Estaria sendo preparado um novo foco de conflito internacional na
Argentina, concretizando as ameaças de Hugo Chávez com relação à formação de
'vários Vietnãs' sul-americanos? A transformação da América do Sul num teatro
de operações para as forças militares norte-americanas, inglesas e russas é uma
hipótese tormentosa, que não favorece a idéia de que à distância assistiremos
com tranqüilidade às conflagrações do novo milênio.
NOTAS
1 - Conforme despacho da agência France Press, de
14 de outubro de 2008.
2 - Sobre o Foro de São Paulo, ver o carta de
Alejandro Peña Esclusa:
3 - Despacho da agência EFE, Moscou, 22 de julho
de 2008.
4 - O Estado de São Paulo, 12 de novembro de 2006.
5 - Cfr. El Mercurio, Santiago do Chile, 2-4-2002.
6 - FolhaOnline, domingo, 13 de janeiro de 2008,
'Russo fala sobre como financiou comunistas na América do Sul', por Igor Gielow.
7 - O manifesto da TFP argentina, La independencia
de la Argentina católica ante la efectividad de la soberania en un territorio
insular, publicado originalmente no diário 'La Nación', em 13-4-1982, e depois
em 'Clarín', ambos de Buenos Aires, foi ainda reproduzido em jornais de
Washington e Nova York (EUA), Londres, São Paulo, Caracas, Bogotá e Cartagena
(Colômbia), Quito e Guayaquil (Equador) e Santiago do Chile, sendo também
difundido na Espanha. Foi retransmitido pela BBC de Londres. São dados
extraídos da revista Catolicismo, outubro de 2002.
[8] Nota postada em 05/03/2009: Informações recentes fornecidas pelas companhias petrolíferas que exploram as águas em volta das ilhas Malvinas, estimam em 18 bilhões de barris as reservas de petróleo ali localizadas. Representam 4 bilhões de barris a mais que as do pré-sal brasileiro. É o que noticiou no dia 29/01/2009 um extenso artigo do diário britânico The Guardian, informando que as empresas que operam na zona planejam iniciar as perfurações ainda este ano. É claro que a descoberta do "ouro negro", também noticiada pelo jornal Clarín, não arrefece a disputa em torno da soberania das Malvinas.
Fonte:
http://www.sacralidade.com/mundo2008/0029.cabeca_de_ponte.html
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