Full text of "HUNTINGTON, Samuel. O Choque De Civilizacoes"
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Samuel P. Huntington O CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES E A RECOMPOSIÇÃO DA ORDEM MUNDIAL Tradução de M. H. C. Cortes SBD-FFLCH-USP 245806 OBJETIVA SUMÁRIO Prefácio 11 I UM MUNDO DE CIVILIZAÇÕES 1. A Nova Era da Política Mundial . . * .. 17 Bandeiras e Identidade Cultural. 17 Um Mundo Multipolar e Multicivilizacional. 19 Outros Mundos? . .. 29 A Comparação de Mundos: Realismo, Parcimônia e Previsões 38 2. As Civilizações na História e na Atualidade. 44 A Natureza das Civilizações. 44 As Relações entre as Civilizações . .. 55 3. Uma Civilização Universal? Modernização e Ocidentalização . 65 Civilização Universal: Significados .. 65 Civilização Universal: Fontes. 78 O Ocidente e a Modernização. 81 Reações ao Ocidente e à Modernização. 86 n A ALTERAÇÃO DO EQUILÍBRIO ENTRE AS CIVILIZAÇÕES 4.0 Desvanecimento do Ocidente: Poder, Cultura e Indigenização. 97 Poder Ocidental: Predomínio e Declínio . .. 97 Indigenização: o Ressurgimento das Culturas Não-ocidentais . 110 La Revanche de Dieu .115 5- Economia, Demografia e as Civilizações Desafiadoras . . 125 A Afirmação Asiática.126 O Ressurgimento Islâmico.134 Desafios em Mutação ..149 III A ORDEM EMERGENTE DAS CIVILIZAÇÕES 6. A Reconfiguração Cultural da Política Mundial. 153 Em Busca de Agrupamentos: a Política da Identificação . . . 153 A Cultura e a Cooperação Econômica.l60 A Estrutura das Civilizações.. . 166 Países Divididos: o Fracasso da Mudança de Civilização . . . 172 7. Estados-núcleos, Círculos Concêntricos e Ordem Civilizacional .. 193 Civilizações e Ordem.193 Demarcando o Ocidente ..195 >^sA Rússia e o seu Exterior Próximo ..204 A Grande China e sua Esfera de Co-prosperidade.. 210 O Islã: Percepção sem Coesão. 218 IV OS CHOQUES DAS CIVILIZAÇÕES 8.0 Ocidente e o Resto: Questões Intercivilizacionais . . . 227 Universalismo Ocidental. 227 Proliferação de Armas.231 Direitos Humanos e Democracia. 240 Imigração. 247 9- A Política Mundial das Civilizações . ..259 Estado-núcleo e Conflitos de Linha de Fratura.259 O Islã e o Ocidente.262 Ásia, China e Estados Unidos.273 Civilizações e Estados-núcleos: Alinhamentos que Surgem . . 302 10. Das Guerras de Transição às Guerras de linha de Fratura 312 Guerras de Transição: Afeganistão e o Golfo .312 Características das Guerras de Linha de Fratura ....... 320 Incidência: as Fronteiras Ensangüentadas do Islã .324 Causas: História, Demografia, Política .. 329 11. A Dinâmica das Guerras de linha de Fratura.338 Identidade: o Aumento da Consciência Civilizacional .... 338 Civilizações que se Congregam: Países Afins e Diãsporas . . . 346 Como se Param as Guerras de Linha de Fratura.371 V O FUTURO DAS CIVILIZAÇÕES 12. O Ocidente, as Civilizações e a Civilização.383 A Renovação do Ocidente?.383 O Ocidente e o Mundo.392 'XGuerra e Ordem Civilizacional.398 Civilização: os Aspectos em Comum..405 LISTA DE ILUSTRAÇÕES QUADROS 2.1 Uso dos Termos: “Mundo Livre” e “o Ocidente”, p. 63 3.1 Pessoas que Falam os Idiomas Principais, p. 71 3.2 Pessoas que Falam os Principais Idiomas Chineses e Ocidentais, p. 71 3.3 Proporção da População Mundial que Segue as Principais Tradições Religiosas, p. 76 4.1 Territórios sob o Controle Político das Civilizações / 1990-1993, p. 101 4.2 População dos Países Pertencentes às Principais Civilizações do Mundo / 1993, p. 102 4.3 Parcelas da População Mundial sob o Controle Político das Civilizações / 1900-2025, p. 103 4.4 Parcelas do Total da Produção Manufatureira Mundial por Civilização ou País / 1750-1980, p. 104 4.5 Parcelas por Civilização do Produto Econômico Bruto Mundial / 1950-1992, p. 105 4.6 Parcelas por Civilização do Total dos Efetivos Militares Mundiais, p. 106 5-1 Bolsão de Jovens nos Países Islâmicos, p. 147 8.1 Transferências de Armas pela China / 1980-1991 (dados selecionados), p. 236 8.2 População dos Estados Unidos por Raça e Etnia, p. 257 10.1 Conflitos Etnopolíticos / 1993-1994, p. 327 10.2 Conflitos Étnicos / 1993, p. 327 10.3 Militarismo em Países Muçulmanos e Cristãos, p. 328 10.4 Possíveis Causas da Propensão Muçulmana para o Conflito, p. 335 FIGURAS 2.1 Civilizações do Hemisfério Oriental, p. 57 3.1 Reações Alternativas ao Impacto do Ocidente, p. 90 3.2 Modernização e Ressurgimento Cultural, p. 91 5.1 O Desafio Econômico: a Ásia e o Ocidente, p. 127 5.2 O Desafio Demográfico: o Islã, a Rússia e o Ocidente, p. 146 5.3 Bolsões de Jovens Muçulmanos por Região, p. 148 9-1 A Política Mundial das Civilizações: Alinhamentos Emergentes, p. 310 10.1 Sri Lanka: Bolsões de Jovens Cingaleses e Tâmiles, p. 330 11.1 A Estrutura de uma Complexa Guerra de Linha de Fratura, p. 348 MAPAS 4.1 O Ocidente e o Resto: 1920, pp. 22-23 1.2 O Mundo da Guerra Fria: Anos 60, pp. 24-25 1.3 O Mundo das Civilizações: Pós-1990, pp. 26-27 7.1 A Fronteira Oriental da Civilização Ocidental, p. 198 7.2 Ucrânia: um País Rachado, p. 208 8.1 Os Estados Unidos em 2020: um País Rachado?, p. 258 Prefácio No verão de 1993, a revista Foreign Affairs publicou um artigo meu intitulado “O Choque de Civilizações?”, Segundo os editores da Foreign Affairs , nos últimos três anos esse artigo provocou mais debates do que qualquer outro por eles publicado desde a década de 40. Não há dúvida de que ele foi por três anos um motivo de discussão mais forte do que qualquer outro artigo que jã escrevi. As reações e os comentários sobre ele vieram de todos os continentes e de dezenas de países. As pessoas ficaram impressionadas, intrigadas, indignadas, amedrontadas ou perplexas por meu argumento de que a dimensão central e mais perigosa da política mundial que estava emergindo seria o conflito entre grupos de civilizações diferentes. À parte qualquer outro efeito, o artigo abalou os nervos de pessoas de todas as civilizações. Dados o interesse pelo artigo, sua deturpação e a controvérsia em torno dele, pareceu-me desejável explorar mais além as questões por ele suscitadas. Um modo construtivo de colocar uma questão é apresentá-la como uma hipótese. O artigo, que continha um ponto de interrogação que foi de forma geral ignorado, representava uma tentativa nesse sentido. Este livro é uma tentativa de proporcionar uma resposta mais ampla, mais profunda e mais minuciosamente documentada à questão proposta no artigo. Procuro aqui elaborar, refinar, suplementar e, oca¬ sionalmente, qualificar os temas expostos no artigo, bem como desen¬ volver muitas idéias e cobrir muitos tópicos que, no artigo, não foram tratados ou foram apenas citados. Dentre eles estão os seguintes: o conceito de civilizações; a questão de uma civilização universal; o relacionamento entre poder e cultura; o deslocamento do equilíbrio de poder entre civilizações; a indigenização cultural nas sociedades não-oci- dentais; a estrutura política das civilizações; os conflitos gerados pelo universalismo ocidental, a militância muçulmana e a disposição de afirmação chinesa; as reações de compensação e de adesão ao cresci¬ mento do poder chinês; as causas e a dinâmica das guerras de linhas de fratura e os futuros do Ocidente e de um mundo de civilizações. Um tema importante que não constava do artigo refere-se ao impacto crucial do crescimento populacional sobre a instabilidade e o equilíbrio de poder. Um segundo tema muito importante também ausente do artigo está sintetizado no título do livro e na frase final: “(...) os choques das civilizações são a maior ameaça à paz mundial, e uma ordem internacio¬ nal baseada nas civilizações é a melhor salvaguarda contra a guerra mundial.” Este livro não é, nem pretende ser, uma obra de ciência social. Ao contrário, ele visa ser uma interpretação da evolução da política mundial depois da Guerra Fria, Ele almeja apresentar uma moldura, um paradig¬ ma, para o exame da política mundial que tenha significado para os estudiosos e seja de utilidade para os formuladores de políticas. O teste de seu significado e de sua utilidade não está em se ele explica tudo que está acontecendo na política mundial. Evidentemente ele não faz isso. O teste está em se ele fornece uma lente significativa e útil através da qual se possa examinar os acontecimentos internacionais melhor do que através de qualquer outra lente paradigmática. Além disso, nenhum paradigma tem validade eterna. Conquanto um enfoque civilizacional possa ajudar a compreender a política mundial no final do século XX e no começo do século XXI, isso não significa que ele teria ajudado da mesma maneira em meados do século XX ou que será de ajuda em meados do século XXI. As idéias que se transformaram no artigo e depois neste livro foram expressas pela primeira vez numa conferência na série das Palestras Bradley, no American Enterprise Institute , em Washington, em outubro de 1992. Posteriormente, foram expostas numa monografia avulsa pre¬ parada para o projeto do Instituto Olin sobre “O Ambiente de Segurança em Mutação e os Interesses Nacipnais Norte-americanos”, tornada pos¬ sível pela Fundação Smith Richardson. Após a publicação do artigo, envolvi-me em inúmeros seminários e encontros centrados no “choque” com acadêmicos, autoridades governamentais, homens de negócios e outros grupos, através dos Estados Unidos. Além disso, tive a satisfação de poder participar de debates sobre o artigo e a tese nele apresentada em muitos outros países, incluindo a África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Bélgica, China, Coréia, 7 Espanha, Formosa, França, Grã-Bretanha, Japão, Luxemburgo, Rússia, Singapura, Suécia e Suíça. Esses debates me colocaram em contato com todas as principais civilizações, com exceção do Hinduísmo, e me beneficiei imensamente das percepções e perspectivas dos que participaram dos mesmos. Em 1994 e 1995, ministrei um seminário em Harvard sobre a natureza do pós-Guerra Fria e os comentários sempre vigorosos e às vezes bastante críticos que os alunos fizeram sobre minhas idéias constituíram um estímulo adicional. Meu trabalho neste livro também se beneficiou muito do ambiente de apoio e coleguismo no Instituto John M. Olin para Estudos Estratégicos e no Centro para Relações Internacionais, ambos em Harvard. O original foi lido na sua íntegra por Michael C. Desch, Robert O. Keohane, Fareed Zakaria e R. Scott Zimmerman, cujos comentários levaram a melhoramentos significativos tanto na sua substância como na sua organização. Durante todo o tempo de elaboração deste livro, Scott Zimmerman proporcionou-me também uma assistência indispensável em termos de pesquisa e, sem seu auxílio dedicado, entusiástico e calcado em amplas informações, este livro jamais poderia ter sido concluído com a mesma rapidez. Nossos assistentes universitários, Peter Jun e Christiana Briggs, também contribuíram de forma construtiva. Grace de Magistris datilografou as partes iniciais do manuscrito e Carol Edwards, com grande empenho e magnífica eficiência, refez o original tantas vezes que ela deve saber quase de cor grandes trechos do mesmo. Denise Shannon e Lynn Cox, na Georges Borchardt, e Robert Asahina, Robert Bender e Johanna Li, na Simon & Schuster, encaminharam o manuscrito original, de modo alegre e profissional, através do processo de publicação. Fico imensamente grato a todas essas pessoas por sua ajuda em tornar este livro uma realidade. Elas o fizeram muito melhor do que ele seria de outra forma; as deficiências que restaram são responsabilidade minha. Meu trabalho neste livro foi possibilitado pelo apoio financeiro da Fundação John M. Olin e da Fundação Smith. Richardson. Sem a assistência de ambas a conclusão deste livro teria sofrido alguns anos de atraso e fico-lhes muito agradecido pelo generoso endosso que deram aos meus esforços. Enquanto outras fundações têm-se concentrado cada vez mais em questões domésticas, a Olin e a Smith Richardson merecem aplausos por manterem seu interesse em trabalhos sobre a guerra, a paz e a segurança nacional e internacional e por darem seu apoio a eles. S. P. H. Capítulo 1 A Nova Era da Política Mundial Bandeiras e Identidade Cultural E m 3 de janeiro de 1992, realizou-se no auditório de um edifício público em Moscou um encontro de estudiosos russos e norte- americanos. Duas semanas antes a União Soviética tinha deixado de existir e a Federação Russa se tornara um país independente. Como resultado disso, tinha desaparecido a estátua de Lênin que anteriormente ornava o palco do auditório e, em vez dela, exibia-se agora a bandeira da Federação Russa na parede da frente. Um dos norte-americanos notou que o único problema estava em que a bandeira tinha sido pendurada de cabeça para baixo. Depois que isso foi mencionado aos anfitriões russos, eles rápida e discretamente retificaram o erro durante o primeiro intervalo. Nos anos que se seguiram à Guerra Fria, constatou-se o começo de mudanças espetaculares nas identidades dos povos, nos símbolos dessas identidades e, conseqüentemente, na política mundial. Bandeiras de cabeça para baixo foram um sinal da transição, mas as bandeiras estão sendo hasteadas cada vez mais alto e com autenticidade cada vez maior. Os russos e outros povos estão-se mobilizando e caminham sob esses e outros símbolos de suas novas identidades culturais. Em 18 de abril de 1994, duas mil pessoas se concentraram em Sarajevo, agitando as bandeiras da Arábia Saudita e da Turquia. Ao desfraldarem essas bandeiras, em vez das da ONU, da OTAN ou dos Estados Unidos, esses habitantes de Sarajevo se identificavam com seus companheiros muçulmanos e indicavam ao mundo quem eram seus verdadeiros amigos, bem como os não muito verdadeiros. Em 16 de outubro de 1994, em Los Angeles, 70 mil pessoas desfilaram debaixo de “um mar de bandeiras mexicanas”, em protesto contra a Proposta 187, uma disposição submetida a plebiscito que negaria muitos benefícios estaduais aos imigrantes ilegais e a seus filhos. Os observadores se perguntaram por que estavam “indo pela rua com a bandeira mexicana e exigindo que este país lhes dê ensino gratuito? Deviam estar agitando a bandeira norte-americana”. Duas semanas depois, mais manifestantes de fato desfilaram pela rua levando uma bandeira norte-americana — de cabeça para baixo. A exibição dessas bandeiras assegurou a vitória da Proposta 187, que foi aprovada por 59 por cento dos eleitores da Califórnia. No mundo pós-Guerra Fria, as bandeiras são importantes e o mesmo ocorre com outros símbolos de identidade cultural, incluindo cruzes, luas crescentes e até mesmo coberturas de cabeça, porque a cultura conta e a identidade cultural é o que há de mais significativo para a maioria das pessoas. As pessoas estão descobrindo identidades novas, e no entanto antigas, e desfilando sob bandeiras novas, mas freqüentemente antigas, que conduzem a guerras contra inimigos novos, mas freqüentemente antigos. Uma Weltanschauung sinistra dessa nova era foi muito bem expressada pelo demagogo nacionalista veneziano no romance de Michael Dibdin, Dead Lagoon : “Não é possível haver amigos verdadeiros sem inimigos verdadeiros. A menos que odiemos o que não somos, não podemos amar o que somos. Essas são as verdades antigas que estamos penosamente redescobrindo depois de mais de um século de cantilenas sentimentais. Aqueles que as negam, negam sua família, sua herança, sua cultura, seu direito inato, seus próprios seres! Eles não serão perdoados.” A lamentável verdade contida nessas verdades antigas não pode ser ignorada por estadistas e estudiosos. Os inimigos são essenciais para os povos que estão buscando sua identidade e reinventando sua etnia e as inimizades que têm um potencial mais perigoso estão situadas cruzando as linhas de fratura entre as principais civilizações. O tema central deste livro é o de que a cultura e as identidades culturais — que, em nível mais amplo, são as identidades das civilizações estão moldando os padrões de coesão, desintegração e conflito no mundo pós-Guerra Fria. Nas cinco partes deste livro elaboram-se os corolários dessa proposição principal. ParteI: Pela primeira vez na História, a política mundial é, ao mesmo tempo, multipolar e multicivilizacional. A modernização econômica e social não está produzindo nem uma civilização universal de qualquer modo significativo, nem a ocidentalização das sociedades não-ocidentais. Parte II: O equilíbrio de poder entre as civilizações está-se deslocan¬ do: a influência relativa do Ocidente está em declínio, com as civilizações asiáticas expandindo seu poderio econômico, militar e político; com o Islã explodindo demograficamente, o que gera conseqüências deses- tabilizadoras para os países islâmicos e seus vizinhos; e com as civiliza¬ ções não-ocidentais, de forma geral, reafirmando o valor de suas próprias culturas. Parte IIP Uma ordem mundial baseada na civilização está emergindo — as sociedades que compartilham afinidades culturais cooperam umas com as outras, os esforços para transferir sociedades de uma civilização para outra não têm êxito e os países se agrupam em torno de Estados líderes ou núcleos de suas civilizações. Parte IV: As pretensões universalistas do Ocidente o levam cada vez mais para o conflito com outras civilizações, de forma mais grave com o Islã e a China. Enquanto isso, em nível local, guerras de linha de fratura, precipuamente entre muçulmanos e não-muçulmanos, geram “o agrupa¬ mento de países afins”, a ameaça de uma escalada mais ampla e, por conseguinte, os esforços dos Estados-núcleos para deter essas guerras. Parte V: A sobrevivência do Ocidente depende de os norte-ameri¬ canos reafirmarem sua identidade ocidental e de os ocidentais aceitarem que sua civilização é singular e não universal, e se unirem para renová-la e preservá-la diante de desafios por parte das sociedades não-ocidentais. Evitar uma guerra global das civilizações depende de os líderes mundiais aceitarem a natureza multicivilizacional da política mundial e cooperarem para mantê-la. Um Mundo Multipolar e Multicivilizacional No mundo pós-Guerra Fria, pela primeira vez na História, a política mundial se tomou multipolar ^multicivilizacional. Durante a maior parte da existência da humanidade, os contatos entre as civilizações foram intermitentes ou inexistentes. Depois, com o começo da Idade Moderna, por volta de 1500 d.C, a política mundial assumiu duas dimensões. Durante mais de 400 anos, os Estados-nações do Ocidente — Grã-Bretanha, França, Espanha, Áustria, Prússia, Alemanha, Estados Unidos e outros — constituíram um sistema internacional multipolar dentro da civilização ocidental e intera¬ giram, competiram e travaram guerras uns com os outros. Ao mesmo tempo, as nações ocidentais também se expandiram, conquistaram, colonizaram outras civilizações ou nelas influíram de forma decisiva (Mapa 1.1). Durante a Guerra Fria, a política mundial tomou-se bipolar e o mundo foi dividido em três partes. Um grupo de sociedades em sua maioria ricas e democráticas, lideradas pelos Estados Unidos, engajou-se numa compe¬ tição ideológica, política, econômica e, às vezes, militar, com um grupo de sociedades comunistas um tanto mais pobres associadas com a União Soviética e por ela lideradas. Grande parte desse conflito ocorreu no Terceiro Mundo, fora daqueles dois campos, composto por países que, na maioria dos casos, eram pobres, careciam de estabilidade política, tinham recentemente se tornado independentes e se diziam não-ali- nhados (Mapa 1.2). No final da década de 80, o mundo comunista desmoronou e o sistema internacional da Guerra Fria virou história passada. No mundo pós-Guerra Fria, as distinções mais importantes entre os povos não são ideológicas, políticas ou econômicas. Elas são culturais. Os povos e as nações estão tentando responder à pergunta mais elementar que os seres humanos podem encarar: quem somos nós? E estão respondendo a essa pergunta da maneira pela qual tradicionalmente a responderam — fazendo referência às coisas que mais lhes importam. As pessoas se definem em termos de antepassados, religião, idioma, história, valores, costumes e instituições. Elas se identificam com grupos culturais: tribos, grupos étnicos, comunidades religiosas, nações e, em nível mais amplo, civilizações. As pessoas utilizam a política não só para servir aos seus interesses, mas também para definir suas identidades. Nós só sabemos quem somos quando sabemos quem não somos e, muitas vezes, quando sabemos contra quem estamos. Os Estados-nações continuam sendo os principais atores no rela¬ cionamento mundial. Seu comportamento é moldado, como no passado, pela busca de poder e riqueza, mas é moldado também por preferências culturais, aspectos comuns e diferenças. Os agrupamentos mais impor¬ tantes de Estados não são mais os três blocos da Guerra Fria, mas sim as sete ou oito civilizações principais do mundo (Mapa 1.3). As sociedades não-ocidentais, especialmente na Ásia Oriental, estão desenvolvendo sua riqueza econômica e criando as bases para um poder militar e uma influência política maiores. À medida que aumenta seu poder e autocon¬ fiança, as sociedades não-ocidentais cada vez mais afirmam seus próprios valores culturais e repudiam aqueles que lhes foram impostos pelo Ocidente. Henry Kissinger observou que “o sistema internacional do século XXI (...) conterá pelo menos seis potências principais — os Estados Unidos, a Europa, a China, o Japão, a Rússia e, provavelmente, a índia — bem como uma multiplicidade de países de tamanho médio e menor”. 1 Os seis países principais a que se refere Kissinger pertencem a cinco civilizações diferentes e, além disso, existem importantes Estados islâmicos cujas localização estratégica, grande população e/ou reservas de petróleo lhes conferem influência nos assuntos mundiais. Nesse mundo novo, a política local é a política da etnia e a política mundial é a política das civilizações. A rivalidade das superpotências é substituída pelo choque das civilizações. A política mundial está sendo reconfigurada seguindo linhas cultu¬ rais e civilizacionais. Nesse mundo, os conflitos mais abrangentes, importantes e perigosos não se darão entre classes sociais, ricos e pobres, ou entre outros grupos definidos em termos econômicos, mas sim entre povos pertencentes a diferentes entidades culturais. As guerras tribais e os conflitos étnicos irão ocorrer no seio das civilizações. Entretanto, a violência entre Estados e grupos de civilizações diferentes carrega consigo o potencial para uma escalada na medida em que outros Estados e grupos dessas civilizações acorrem em apoio a seus “países afins”. 2 O sangrento choque de clãs na Somália não apresenta nenhuma ameaça de um conflito mais amplo. O sangrento choque de tribos em Ruanda tem conseqüências para Uganda, Zaire e Burundi, mas não muito além desses países. Os sangrentos choques de civilizações na Bósnia, no Cáucaso, na Ásia Central e na Caxemira poderiam se transformar em guerras maiores. Nos conflitos iugoslavos, a Rússia proporcionou apoio diplomático aos sérvios, enquanto a Arábia Saudita, a Turquia, o Irã e a Líbia forneceram fundos e armas para os bósnios, não por motivos de ideologia, de política de poder ou de interesse econômico, mas devido à afinidade cultural. Václav Havei assinalou que “os conflitos culturais estão aumentando e são mais perigosos hoje em dia do que em qualquer momento da História”, e Jacques Delors concordou que “os futuros conflitos serão deflagrados mais por fatores culturais do que pela economia ou pela ideologia”. 3 E os conflitos culturais mais perigosos são aqueles que ocorrem ao longo das linhas de fratura entre as civilizações. O Ocidente e o Resto: 1920 O Mundo da Guerra Fria: 1960 Países não-alinhados O Mundo das Civilizações pós-1990 Ocidental Africana Islâmica Hindu
Sínica [China e países afins] Ortodoxa Latino-Americana Budista Japonesa
No mundo pós-Guerra Fria, a cultura é, ao mesmo tempo, uma força unificadora e divisiva. Os povos separados pela ideologia mas unidos pela cultura se juntam, como fizeram as duas Alemanhas, e como as duas Coréias e as diversas Chinas estão começando a fazer. As sociedades unidas pela ideologia ou por circunstâncias históricas, porém divididas pela civilização, ou se partem, como aconteceu na União Soviética, na Iugoslávia e na Bósnia, ou ficam sujeitas a fortes tensões, como é o caso da Ucrânia, Nigéria, Sudão, índia, Sri Lanka e muitos outros. Os países que têm afinidades culturais cooperam em termos econômicos e políticos. As organizações internacionais baseadas em Estados com aspectos culturais em comum, tais como os da União Européia, têm muito mais êxito do que aquelas que tentam transcender as culturas. Durante 45 anos, a Cortina de Ferro foi a linha divisória central na Europa. Essa linha se moveu varias centenas de quilômetros para o Leste. Ela é agora uma linha que separa os povos da Cristandade ocidental, de um lado, dos povos muçulmanos e ortodoxos, do outro. Embora culturalmente partes do Ocidente, a Áustria, a Suécia e a Finlândia tiveram que se manter neutras e ficar separadas do Ocidente na Guerra Fria. Na nova era, elas estão-se juntando a seus afins culturais na União Européia, e a Polônia, a Hungria e a República Checa as estão seguindo. Os pressupostos filosóficos, os valores subjacentes, as relações sociais, os costumes e as formas de ver a vida de forma geral se diferenciam de modo significativo entre as civilizações. A revitalização da religião em grande parte do mundo está reforçando essas diferenças culturais. As culturas podem se modificar e a natureza de seu impacto sobre a política e a economia pode variar de um período para outro. Contudo, as principais diferenças em desenvolvimento político e econômico entre as civilizações estão nitidamente enraizadas em suas culturas diferentes. O êxito econômico da Ásia Oriental tem sua origem na cultura asiática oriental, da mesma maneira que as sociedades asiáticas orientais têm tido dificuldades em estabelecer sistemas políticos democráticos estáveis. A cultura islâmica explica em grande parte por que a democracia deixou de emergir na maior parte do mundo muçulmano. A evolução dos acontecimentos nas socie¬ dades pós-comunistas da Europa Oriental e na ex-União Soviética é moldada por suas identidades civilizacionais. Aquelas que têm uma herança cristã ocidental estão fazendo progresso na direção do desen¬ volvimento econômico e da política democrática. Nos países ortodoxos as perspectivas de desenvolvimento econômico e político são incertas. Nas repúblicas muçulmanas, as perspectivas são sombrias. 28 O Ocidente é e continuará a ser por muitos anos a civilização mais poderosa. Contudo, seu poder em relação ao de outras civilizações está declinando. À medida que o Ocidente tenta impor seus valores e proteger seus interesses, as sociedades não-ocidentais se defrontam com uma escolha. Algumas tentam emular o Ocidente e a ele se juntar ou “atrelar-se” a ele. Outras sociedades confucianas e islâmicas tentam expandir seu próprio poder econômico e militar para resistir e para “contrabalançar” o Ocidente. Desse modo, um eixo central da política mundial pós-Guerra Fria é a interação do poder e da cultura ocidentais com o poder e a cultura de civilizações não-ocidentais. Em suma, o mundo pós-Guerra Fria é um mundo de sete ou oito civilizações principais. Os aspectos comuns e as diferenças moldam os interesses, os antagonismos e as associações dos Estados. Os países mais importantes do mundo provêm, em sua maioria, de civilizações diferen¬ tes. Os conflitos locais que têm maior probabilidade de se transformarem em guerras mais amplas são os que existem entre grupos e Estados de civilizações diferentes. Os padrões predominantes de desenvolvimento político e econômico diferem de uma civilização para outra. As questões- chave do cenário internacional envolvem diferenças entre civilizações. O poder está-se deslocando da civilização ocidental que há tanto tempo predomina para civilizações não-ocidentais. A política mundial tornou-se multipolar e multicivilizacional. OUTROS MUNDOS? Mapas e paradigmas . Esse quadro da política mundial do mundo pós-Guerra Fria, moldado por fatores culturais e envolvendo as interações entre Estados e grupos de civilizações diferentes , está altamente simpli¬ ficado. Ele omite muitas coisas, deturpa algumas e torna outras obscuras. No entanto, se formos pensar seriamente sobre o mundo e nele atuarmos de forma eficaz, faz-se necessário algum tipo de mapa simplificado da realidade, alguma teoria, conceito, modelo ou paradigma. Sem tal construção intelectual, existe apenas, como diz William James, “uma monumental e sonora confusão”. Thomas Kühn mostrou no seu clássico The Stmcture of Scientific Revolutions que o avanço intelectual e científico consiste no deslocamento de um paradigma, que se tomou cada vez mais incapaz de explicar fatos novos ou recém-descobertos, por um novo paradigma, que de fato trata desses fatos de um modo mais satisfatório. “Para ser aceita como um paradigma”, escreveu Kühn, “uma teoria precisa parecer melhor do que suas competidoras, mas não precisa — e, na 29 verdade, nunca o faz — explicar todos os fatos com os quais ela se defronta.” 4 John Lewis Gaddis também observou inteligentemente que “encontrar o seu próprio caminho num terreno pouco conhecido geral¬ mente requer algum tipo de mapa. A cartografia, como a própria cognição, é uma simplificação necessária que nos permite ver onde estamos e para onde podemos estar indo”. A imagem, durante a Guerra Fria, da competição entre as superpotências era, como ele assinala, um modelo desse tipo, articulado pela primeira vez por Harry Truman como “um exercício de cartografia geopolítica que representava o panorama internacional em termos que qualquer um podia compreender e, dessa forma, preparava o caminho para a sofisticada estratégia de contenção que logo iria se seguir”. As percepções do mundo e as teorias causais são guias indispensáveis da política internacional. 5 Durante 40 anos, os estudiosos e os profissionais das relações internacionais pensaram e atuaram nos termos desse quadro altamente simplificado, mas muito útil, dos assuntos mundiais — o paradigma da Guerra Fria. Esse paradigma não podia explicar tudo que se passava na política mundial. Havia muitas anomalias — para usar o termo de Kühn e, às vezes, o paradigma impedia que estudiosos e estadistas enxergas¬ sem os desdobramentos principais, como por exemplo a ruptura sino- soviética. Entretanto, como um modelo simples de política global, ele explicava uma quantidade maior de fenômenos do que seus rivais, chegou a ser aceito quase universalmente e moldou o pensamento sobre política mundial durante duas gerações. Os paradigmas ou mapas simplificados são indispensáveis para o pensamento e para a ação do Homem. Por um lado, podemos formular explicitamente tais teorias ou modelos e utilizá-los conscientemente para guiar nosso comportamento. Por outro lado, podemos negar a neces¬ sidade de tais guias e pressupor que agiremos apenas em termos de fatos “objetivos” específicos, lidando com cada caso “em função de seus méritos”. Contudo, se aceitarmos isso, estaremos nos enganando, pois, no fundo de nossas mentes, estão ocultas pressuposições, vieses e preconceitos que determinam a forma pela qual nós percebemos a realidade, para que fatos olhamos e como julgamos sua importância e seus méritos. Necessitamos de modelos explícitos ou implícitos a fim de sermos capazes de: 1. ordenar a realidade e sobre ela tecer generalizações; 2. compreender as relações causais entre os fenômenos; 3. antecipar e, se tivermos sorte, predizer desdobramentos futuros; 4. distinguir entre o que é importante e o que não é; e 5. ver os caminhos que devemos tomar para atingir nossos objetivos. Cada modelo ou mapa é uma abstração e será mais útil para determinadas finalidades do que para outras. Um mapa rodoviário nos mostra como ir de carro de A para B, mas não será muito útíl se estivermos pilotando um avião, caso em que necessitaremos de um mapa que destaque aeroportos, rádios-faróis, aerovias e a topografia. Entretanto, sem mapa algum estaremos perdidos. Quanto mais detalhado for o mapa, de forma mais completa refletirá a realidade. Porém, para muitos propósitos, um mapa extremamente detalhado não será útil. Se deseja¬ mos ir de uma cidade grande a outra numa auto-estrada principal, não é preciso e podemos mesmo achar confuso um mapa que inclua muitas informações não relacionadas com o transporte automotor e no qual as rodovias principais se percam numa massa complexa de estradas secun¬ dárias. Por outro lado, um mapa que só contivesse uma auto-estrada eliminaria muito da realidade e limitaria nossa capacidade de encontrar rotas alternativas se a auto-estrada estivesse bloqueada por um acidente grande. Em resumo, precisamos de um mapa que, ao mesmo tempo, reproduza a realidade e a simplifique de tal modo que melhor atenda aos nossos propósitos. No final da Guerra Fria foram apresentados vários mapas ou paradigmas da política mundial. Um Só Mundo: Euforia e Harmonia. Um paradigma amplamente articulado se baseava na pressuposição de que o fim da Guerra Fria representava o fim de conflitos significativos na política global e o surgimento de um mundo relativamente harmônico. A formulação mais amplamente debatida de tal modelo foi a tese do “fim da História apresentada por Francis Fukuyama.* “Podemos estar testemunhando , argumentava Fukuyama, “(...) o fim da História como tal, ou seja, o ponto final da evolução ideológica da Humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano.” Sem dúvida, dizia ele, podem ocorrer alguns conflitos em lugares do Terceiro Mundo, mas o conflito global está terminado e não apenas na * No Capítulo 3, examina-se uma linha paralela de argumentação, baseada não no fim da Guerra Fria mas nas tendências econômicas e sociais de longo prazo que venham a produzir uma “civilização universal”. 30 31 Europa. “Foi precisamente no mundo não-europeu” que ocorreram as grandes mudanças, especialmente na China e na União Soviética. A guerra de idéias chegou ao fim. Ainda podem existir os que acreditam no marxismo-leninismo “em lugares como Manágua, Pyongyang e Cam- bridge, estado de Massachusetts”, porém, de forma geral, a democracia liberal triunfou. O futuro será dedicado não a grandes lutas estimulantes sobre idéias mas sim à solução de mundanos problemas econômicos e técnicos. E, concluía ele com certa tristeza, vai ser tudo bastante enfadonho.^ A expectativa de harmonia era largamente partilhada. Líderes políticos e intelectuais elaboraram opiniões similares. O Muro de Berlim tinha caído, os regimes comunistas tinham desmoronado, as Nações Unidas iriam assumir uma nova importância, os antigos rivais da Guerra Fria se engajariam em “parceria” e numa “grande negocia¬ ção”, a ordem do dia seria a manutenção da paz e a imposição da paz. O presidente do país líder mundial proclamou a “nova ordem mundial”; o decano da que talvez se possa chamar a universidade mais importante do mundo vetou a nomeação de um professor de estudos de segurança porque sua necessidade havia desaparecido; “Aleluia! Não estudamos mais a guerra porque a guerra não existe mais.” O momento de euforia no fim da Guerra Fria gerou uma ilusão de harmonia, que logo se viu não passar disso. O mundo ficou diferente no início dos anos 90, mas não necessariamente mais pacífico. As mudanças eram inevitáveis, o progresso não. Ilusões semelhantes ocorreram, por breves períodos, ao final de cada um dos outros grandes conflitos do século XX. A I Guerra Mundial foi “a guerra para acabar com todas as guerras” e para tornar o mundo seguro para a democracia. A II Guerra Mundial, na colocação de Franklin Roosevelt, iria “pôr fim ao sistema de ações unilaterais, às alianças exclusivas, aos equilíbrios de poder e a todos os outros expedientes que tinham sido tentados durante séculos e tinham fracassado sempre”. Em vez disso, teríamos “uma organiza¬ ção universal” de “Nações amantes da paz” e o começo de uma “estrutura permanente de paz”.^ 7 No entanto, a I Guerra Mundial gerou o comunis¬ mo, o fascismo e a inversão de uma tendência de mais de um século rumo à democracia. A II Guerra Mundial produziu uma Guerra Fria que foi realmente global. A ilusão de harmonia no fim da Guerra Fria logo foi dissipada pela multiplicação de conflitos étnicos e de “limpeza étnica”, pela ruptura da lei e da ordem, pelo surgimento de novos padrões de alianças e conflitos entre os Estados, pelo ressurgimento de movimentos neocomunistas e neofascistas, pela intensificação do fundamentalismo religioso, pelo fim da “diplomacia de sorrisos” e da “política do sim” nas relações da Rússia com o Ocidente, pela incapacidade das Nações Unidas e dos Estados Unidos de acabarem com sangrentos conflitos locais e pela crescente disposição de afirmação de uma China emergente. Nos cinco anos seguintes à queda do Muro de Berlim, a palavra “genocídio foi ouvida muito mais vezes do que em quaisquer cinco anos durante a Guerra Fria. O paradigma de um só mundo harmônico está claramente divorciado demais da realidade para ser um guia útil no mundo pós- Guerra Fria. Dois Mundos: Nós e Eles. Enquanto as expectativas de um mundo único aparecem ao final de grandes conflitos, a tendência para pensar em termos de dois mundos se repete através da história da Humanidade. As pessoas ficam sempre tentadas a dividir as pessoas em nós e eles, o grupo que está na onda e o outro, nossa civilização e aqueles bárbaros. Os estudiosos analisaram o mundo em termos de Oriente e Ocidente, Norte e Sul, centro e periferia. Os muçulmanos tradicionalmente dividem o mundo em Dar al-Islam e Dar al-Harb , o reino da paz e o reino da guerra. Essa distinção se refletiu — e, num certo sentido, se inverteu — ao fim da Guerra Fria por estudiosos norte-americanos que dividiram o mundo em “zonas de paz” e “zonas de agitação”. As primeiras abrangiam o Ocidente e o Japão, com cerca de 15 por cento da população mundial, e as últimas compreendiam todos os demais. 8 Dependendo de como se definam as partes, um quadro de um mundo em duas partes pode, até certo ponto, corresponder à realidade. A divisão mais comum, que aparece sob diversos nomes, é entre os países ricos (modernos, desenvolvidos) e os países pobres (tradicionais, nâo- desenvolvidos ou em desenvolvimento). Numa correlação histórica com essa divisão econômica está a divisão cultural entre Leste e Oeste, na qual a ênfase incide menos sobre as diferenças em termos de bem-estar econômico e mais sobre as diferenças em filosofia subjacente, valores e estilo de vida. 9 Cada uma dessas imagens reflete alguns elementos da realidade, porém também padece de limitações. Os países ricos moder¬ nos compartilham características que os diferenciam dos países pobres tradicionalistas, que também compartilham características entre si. As diferenças em riqueza podem levar a conflitos entre as sociedades, porém os dados concretos, indicam que isso ocorre sobretudo quando socieda¬ des ricas e mais poderosas tentam conquistar e colonizar sociedades pobres e mais tradicionais. O Ocidente fez isso durante 400 anos e então algumas das colônias se rebelaram e travaram guerras de libertação contra as potências coloniais, que possivelmente tinham perdido o gosto pelo império. No mundo atual, já se deu a descolonização e as guerras coloniais de libertação foram substituídas por conflitos entre os povos libertados. Num nível mais geral, os conflitos entre ricos e pobres são impro¬ váveis porque, a não ser em circunstâncias especiais, os países pobres carecem da unidade política, do poder econômico e da capacidade militar para desafiar os países ricos. O desenvolvimento econômico na Ásia e na América Latina está tomando menos nítida a dicotomia simples dos que “têm” e dos que “não têm”. Os países ricos podem travar guerras de comércio uns com os outros, os Estados pobres podem travar guerras violentas uns com os outros, porém uma guerra internacional de classes entre o Sul pobre e o Norte rico está quase tão distante da realidade quanto um único mundo feliz e harmônico. A bifurcação cultural da divisão do mundo tem utilidade ainda menor. Em algum nível, o Ocidente é uma entidade. O que, entretanto, as sociedades não-ocidentais têm em comum além do fato de que são não-ocidentais? As civilizações japonesa, chinesa, hindu, muçulmana e africana pouco compartilham em termos de religião, estrutura social, instituições, valores predominantes. A unidade do não-Ocidente e a dicotomia Leste-Oeste são mitos criados pelo Ocidente. Esse mitos sofrem os defeitos do orientalismo, acertadamente criticado por Edward Said por promover “a diferença entre o conhecido (Europa, o Ocidente, ‘nós’) e o estranho (o Oriente, o Leste, ‘eles’)” e por pressupor a superioridade inerente do primeiro sobre o segundo. 10 Durante a Guerra Fria, o mundo estava, em grau considerável, polarizado de acordo com um espectro ideológico. Não existe, porém, nenhum espectro cultural. A polarização de “Leste” e “Oeste” em termos culturais é, em parte, uma outra porém infeliz conseqüência da prática universal de chamar a civilização européia de civilização ocidental. Em vez de “Leste e Oeste”, é mais apropriado falar-se de “o Ocidente e o resto”, que, pelo menos, implica a existência de muitos não-Ocidentes. O mundo é demasiado complexo para ser visualizado de forma útil, para a maioria dos propósitos, como simples¬ mente dividido, em termos econômicos, entre Norte e Sul ou, em termos culturais, entre Leste e Oeste. 184 Estados, Mais ou Menos. Um terceiro mapa do mundo pós-Guerra Fria se deriva da que é freqüentemente chamada teoria “realista” das relações internacionais. De acordo com essa teoria, os Estados são os atores principais — na verdade, os únicos atores impor¬ tantes — dos assuntos mundiais, o relacionamento entre os Estados é de anarquia e, por conseguinte, para assegurar sua sobrevivência e segu¬ rança, os Estados invariavelmente tentam maximizar seu poder. Quando um Estado vê outro Estado aumentando seu poder e, desse modo, se tornando uma ameaça em potencial, ele tenta proteger sua própria segurança fortalecendo seu poder e/ou aliando-se com outros Estados. Os interesses e as ações dos mais ou menos 184 Estados do mundo pós-Guerra Fria podem ser previstos a partir dessas pressuposições. 11 Esse quadro “realista” do mundo é um ponto de partida muito útil para se analisar as relações internacionais e explicar grande parte do comportamento dos Estados. Os Estados são e continuarão sendo as entidades predominantes nos assuntos mundiais. Eles mantêm exércitos, praticam diplomacia, negociam tratados, travam guerras, controlam os organismos internacionais, influenciam e, em grau considerável, moldam a produção e o comércio. Os governos dos Estados atribuem prioridade a garantir a segurança externa dos seus Estados (embora, muitas vezes, eles tenham que dar prioridade maior a garantir sua segurança como governo contra ameaças internas). De forma ampla, esse paradigma estatista de fato proporciona um quadro e um guia da política global mais realista do que os paradigmas de um só mundo e de dois mundos. Entretanto, também ele padece de sérias limitações. Ele pressupõe que todos os Estados percebem seus interesses da mesma maneira e agem do mesmo modo. Sua pressuposição simples de que o poder é tudo constitui um ponto de partida para compreender o comportamento dos Estados, mas não nos leva muito adiante. Os Estados definem os seus interesses em termos de poder, mas também em termos de muito mais. É claro que os Estados freqüentemente tentam conseguir o equilíbrio de poder, porém se isso fosse tudo o que fizessem, os países da Europa Ocidental teriam se coligado com a União Soviética contra os Estados Unidos no final da década de 40. Os Estados reagem precipua- mente às ameaças que percebem e os Estados da Europa Ocidental naquela época viam uma ameaça política, ideológica e militar vindo do Leste. Viam seus interesses de uma forma que não seria prevista pela teoria realista clássica. Os valores, a cultura e as instituições influenciam de forma ampla e profunda o modo pelo qual os Estados definem os seus interesses. Os interesses dos Estados também são moldados não apenas por seus valores e instituições domésticos, mas por normas e instituições internacionais. Acima e além da sua preocupação primária com a segurança, diferentes tipos de Estados definem seus interesses de maneiras diferentes. Os Estados com culturas e instituições semelhantes verão um interesse comum. Os Estados democráticos têm aspectos comuns com outros Estados democráticos e, por conseguinte, não lutam uns com os outros. O Canadá não precisa se aliar com outra potência para desestimular uma invasão pelos Estados Unidos. Num nível básico, as pressuposições do paradigma estatista têm-se confirmado através da História. Assim sendo, elas não nos ajudam a compreender como a política mundial após a Guerra Fria diferirá da política mundial durante a Guerra Fria e antes dela. No entanto, é evidente que há diferenças e os Estados perseguem os seus interesses de forma diferente de um período histórico para outro. No mundo pós-Guerra Fria, os Estados cada vez mais definem os seus interesses em termos civiliza- cionais. Eles cooperam e se aliam com Estados que têm culturas semelhantes ou em comum e entram em conflito com maior freqüência com países de culturas diferentes. Os Estados definem as ameaças em termos das intenções dos outros Estados, e essas intenções e o modo como elas são percebidas são profundamente moldados por considera¬ ções de ordem cultural. Há menor probabilidade de que o público e os estadistas vejam ameaças surgindo da parte de povos que eles acham que compreendem e nos quais podem confiar devido a idioma, religião, valores, instituições e cultura compartilhados. É muito mais provável que vejam ameaças provindo de Estados cujas sociedades têm culturas diferentes e que, por isso, não compreendem e nos quais sentem que não podem confiar. Agora que uma União Soviética marxista-leninista não mais representa uma ameaça para o Mundo Livre e que os Estados Unidos não mais representam para o mundo comunista uma ameaça contraposta, os países de ambos esses mundos cada vez mais vêem as ameaças provindo de sociedades que são culturalmente diferentes. Conquanto os Estados continuem sendo os atores principais nos assuntos mundiais, eles também estão sofrendo perdas de soberania, funções e poder. As instituições internacionais agora afirmam seu direito de julgar e de impor limitações ao que os Estados fazem em seus próprios territórios. Em alguns casos, sobretudo na Europa, as instituições inter¬ nacionais assumiram funções importantes que anteriormente eram desempenhadas pelos Estados, e foram criadas poderosas burocracias que operam diretamente sobre os cidadãos num plano individual. De forma global, vem se verificando uma tendência para que os governos dos Estados também percam poder através da devolução de poder para entidades políticas abaixo do nível de Estado e nos âmbitos regionais, provinciais e locais. Em muitos Estados, inclusive nos do mundo desen¬ volvido, há movimentos regionais que estão promovendo uma autono¬ mia substancial ou a secessão. Em grau considerável, os governos dos Estados perderam a capacidade de controlar o fluxo de dinheiro que entra em seus países e deles sai, e estão tendo dificuldade cada vez maior para controlar o fluxo de idéias, de tecnologia, de bens e de pessoas. Em resumo, as fronteiras dos Estados se tomaram cada vez mais permeáveis. Todos esses desdobramentos levaram muitos a ver o fim progressivo do Estado sólido, tipo “bola de bilhar”, que supostamente foi a regra desde o Tratado de Westfália de 1648 12 , e o surgimento de uma ordem internacional complexa, de múltiplos níveis, que se parece mais com a da Idade Média. Puro Caos. O enfraquecimento dos Estados e a aparição de “Estados fracassados” contribuem para uma quarta imagem de um mundo em anarquia. Esse paradigma ressalta a quebra da autoridade governamental, o esfacelamento dos Estados, a intensificação dos conflitos tribais, étnicos e religiosos, o surgimento de máfias criminosas internacionais, o aumento do número de refugiados para dezenas de milhões, a proliferação das armas nucleares e outras de destruição em massa, a expansão do terrorismo, a prevalência de massacres e de limpezas étnicas. Esse quadro de um mundo caótico foi exposto de forma convincente e resumida nos títulos de dois trabalhos penetrantes publicados em 1993: Out of Controls de Zbigniew Brzezinski, e Pandaemonium, de Daniel Patrick Moynihan. 1 ^ Tal como o paradigma estatista, o paradigma do caos está próximo da realidade. Ele fornece um quadro gráfico e preciso de muito do que está acontecendo no mundo e, ao contrário do paradigma estatista, realça as mudanças significativas que ocorreram na política mundial com o fim da Guerra Fria. Assim, por exemplo, já em 1993 estimava-se que havia cerca de 48 guerras étnicas em andamento pelo mundo afora e que havia 164 “reivindicações e conflitos étnico-territoriais a respeito de fronteiras” na ex-União Soviética, dos quais 30 envolviam alguma forma de conflito armado. 14 Entretanto, o paradigma do caos é prejudicado ainda mais do que o paradigma estatista por estar demasiado próximo da realidade. O mundo pode ser caótico, mas não está inteiramente desprovido de ordem. Uma imagem de anarquia universal e sem diferenciações propor¬ ciona poucas indicações para se compreender o mundo, para se ordenar os acontecimentos e avaliar sua importância, para predizer tendências na anarquia, para distinguir entre tipos de caos e suas causas e conseqüên- cias possivelmente diferentes e, finalmente, para desenvolver linhas de orientação para os elaboradores de diretrizes governamentais. í de diretrizes. Ela também amplia e incorpora elementos dos outros paradigmas. Ela é mais compatível com eles do que eles o são uns com os outros. Por exemplo, um enfoque civilizacional sustenta que: A Comparação de Mundos: Realismo, Parcimônia e Previsões Cada um desses quatro paradigmas oferece uma combinação um tanto diferente de realismo e parcimônia. No entanto, cada um tem suas deficiências e limitações. É possível que elas pudessem ser neutralizadas combinando-se paradigmas e pressupondo-se, por exemplo, que o mundo está engajado em processos simultâneos de fragmentação e integração. 15 Ambas essas tendências de fato existem e um modelo mais complexo se aproximará mais da realidade do que um modelo mais simples. Contudo, isso sacrifica a parcimônia em troca do realismo e, se levado muito longe, conduz à rejeição de todos os paradigmas ou teorias. Além disso, ao abraçar simultaneamente duas tendências opostas, o modelo de fragmentação-integração deixa de estabelecer sob que cir¬ cunstâncias uma tendência prevalecerá e sob quais a outra é que prevalecerá. O desafio está em desenvolver um paradigma que dê conta de maior número de acontecimentos cruciais e forneça uma melhor compreensão de tendências do que outros paradigmas num nível equi¬ valente de abstração intelectual. Esses quatro paradigmas também são incompatíveis uns com os outros. O mundo não pode ser, ao mesmo tempo, um só e dividido de maneira fundamental entre Leste e Oeste ou entre Norte e Sul. Nem o Estado-nação pode ser a base sólida dos assuntos internacionais se estiver se fragmentando e sendo dilacerado por lutas civis em proliferação. O mundo é um ou dois ou 184 Estados, ou um número teoricamente infinito de tribos, grupos étnicos e nacionalidades. Visualizar o mundo em termos de sete ou oito civilizações evita muitas dessas dificuldades. Com isso não se sacrifica a realidade em favor da parcimônia, como ocorre com os paradigmas de um só mundo e de dois mundos e, por outro lado, também não se sacrifica a parcimônia em favor da realidade, como o fazem os paradigmas estatista e do caos. Essa visualização proporciona uma moldura de apreensão fácil e facilmente inteligível para se compreender o mundo, distinguindo dentre os confli¬ tos os que são importantes dos que não o são, predizendo desdobra¬ mentos futuros e fornecendo linhas de orientação para os elaboradores • As forças de integração no mundo são reais e são precisamente o que está gerando forças contrárias de afirmação cultural e consciência civilizacional. • O mundo é, em certo sentido, duplo, mas a distinção fun¬ damental se dá entre o Ocidente, como a civilização até aqui dominante, e todas as demais, as quais, entretanto, têm pouco ou nada em comum entre si. Em suma, o mundo está dividido entre um ocidental e muitos não-ocidentais. • Os Estados-nações são e continuarão a ser os atores mais importantes nos assuntos mundiais, porém seus interesses, as¬ sociações e conflitos são cada vez mais moldados por fatores culturais e civilizacionais. • O mundo é, de fato, anárquico, pleno de conflitos tribais e de nacionalidade, porém os conflitos que representam os maiores perigos para a estabilidade são aqueles entre Estados ou grupos de diferentes civilizações. Desse modo, um enfoque civilizacional apresenta um mapa relati¬ vamente simples, mas não demasiado simples, para se compreender o que está acontecendo no mundo. Ele fornece alguma base para se distinguir entre o que é mais importante e o que é menos importante. Pouco menos da metade dos 48 conflitos étnicos do mundo no início de 1993, por exemplo, era entre grupos de civilizações diferentes. A perspectiva civilizacional levaria o secretário-geral da ONU e o secretário de Estado dos Estados Unidos a concentrarem seus esforços pacificadores em relação àqueles dentre esses conflitos que tivessem um potencial muito maior do que outros de evoluírem para guerras mais amplas. Os paradigmas também geram previsões, e um teste crucial da validade e utilidade de um paradigma é o grau em que as previsões dele derivadas se revelam mais corretas do que as de paradigmas alternativos. Um paradigma estatista, por exemplo, leva John Mearsheimer a prever que “a situação entre a Ucrânia e a Rússia está madura para o surto de uma competição de segurança entre elas. Grandes potências que comparti¬ lham uma fronteira comum longa e desprotegida, como a que corre entre a Rússia e a Ucrânia, freqüentemente descambam para uma competição movida por receios de segurança. A Rússia e a Ucrânia poderiam superar essa dinâmica e aprender a conviver em harmonia, mas seria surpreen¬ dente se o fizessem”.*6 Por outro lado, um enfoque civilizacional enfatiza os estreitos laços culturais, pessoais e históricos entre a Rússia e a Ucrânia e a miscigenação de russos e ucranianos em ambos os países, concentran¬ do-se na linha de fratura civilizacional que divide a Ucrânia oriental ortodoxa da Ucrânia ocidental uniata, um fato histórico central, que vem de longa data, e que Mearsheimer despreza inteiramente, em conformi¬ dade com o conceito “realista” dos Estados como entidades unificadas e com uma só identidade. Enquanto um enfoque estatista ressalta a possibilidade de uma guerra russo : ucraniana, um enfoque civilizacional a minimiza e, em vez disso, ressalta a possibilidade de a Ucrânia se partir ao meio numa separação que fatores culturais levariam a que se predissesse ser mais violenta do que a da Checoslováquia e muito menos sangrenta do que a da Iugoslávia. Essas previsões diferentes, por seu turno, suscitam diferentes prioridades de diretrizes. A previsão de Mears¬ heimer de uma possível guerra e da conquista da Ucrânia pela Rússia leva-o a apoiar a opção de que a Ucrânia tenha armas nucleares. Um enfoque civilizacional encorajaria a cooperação entre a Rússia e a Ucrânia, instaria a Ucrânia a abandonar suas armas nucleares, promoveria uma substanciosa assistência econômica e outras medidas para ajudar a manter a unidade e a independência da Ucrânia, e endossaria um planejamento de contingência para a possível desagregação da Ucrânia. Muitos acontecimentos posteriores ao fim da Guerra Fria foram compatíveis com o paradigma civilizacional e poderiam ter sido previstos por ele. Dentre eles estão os seguintes: a desagregação da União Soviética e da Iugoslávia, as guerras que prosseguiram em seus antigos territórios, o crescimento do fundamentalismo pelo mundo afora, as lutas dentro da Rússia, da Turquia e do México por questões de identidade, a intensidade dos conflitos por comércio entre os Estados Unidos e o Japão, os esforços de Estados islâmicos e confucianos para adquirir armas nucleares e os meios para lançá-las, a continuação do papel da China como uma grande potência de fora”, a consolidação dos novos regimes democráticos em alguns países e não em outros e a crescente corrida armamentista na Ásia Oriental. A relevância do paradigma civilizacional para o mundo que está surgindo é ilustrada pelos acontecimentos que se encaixam nesse paradigma e que ocorreram durante um período de seis meses em 1993: a continuação e a intensificação dos combates entre croatas, muçulmanos e sérvios na antiga Iugoslávia; a omissão do Ocidente em proporcionar apoio significativo aos muçulmanos da Bósnia ou em denunciar as atrocidades croatas do mesmo modo como as atrocidades sérvias foram denunciadas; a falta de disposição da Rússia para se juntar a outros membros do Conselho de Segurança da ONU a fim de fazer com que os sérvios da Croácia estabelecessem a paz com o governo croata e o oferecimento do Irã e de outras nações muçulmanas de fornecer 18 mil soldados para proteger os muçulmanos da Bósnia; a intensificação da guerra entre os armênios e os azeris, as exigências turcas e iranianas de que os armênios abandonassem as áreas conquistadas, o deslocamento de tropas turcas para a fronteira com o Azerbaijão e de tropas iranianas através da fronteira para o território do Azerbaijão e a advertência da Rússia de que a ação iraniana contribuía para “a escalada do conflito” e de que ela “o impelia para os limites perigosos da internacio¬ nalização”; a continuação dos combates na Ásia Central entre tropas russas e guerrilheiros mujahedins\ a confrontação, na Conferência de Direitos Humanos em Viena, entre o Ocidente, liderado pelo secretário de Estado Warren Christopher, denunciando o “relativismo cultural”, e uma coliga¬ ção de Estados islâmicos e confucianos rejeitando o “universalis¬ mo ocidental”; o redirecionamento, de modo paralelo, dos planejadores milita¬ res da Rússia e da OTAN para “a ameaça do Sul”; a votação, aparentemente seguindo quase que inteiramente linhas civilizacionais, que designou Sydney em vez de Pequim para sede das Olimpíadas do ano 2000; a venda de componentes de mísseis pela China para o Paquistão, a resultante imposição de sanções pelos Estados Unidos contra a China e a confrontação entre a China e os Estados Unidos por causa da alegada transferência de tecnologia nuclear para o Irã; o rompimento da moratória e a realização de prova com um artefato nuclear pela China, a despeito dos enérgicos protestos dos Estados Unidos, e a recusa da Coréia do Norte de continuar participando de conversações sobre o seu próprio programa de armas nucleares; • a revelação de que o Departamento de Defesa dos Estados Unidos estava seguindo uma política de “contenção dupla” dirigida contra o Irã e o Iraque; • o anúncio pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos de uma nova estratégia de se preparar para dois “conflitos regionais principais”, um contra a Coréia do Norte e o outro contra o Irã ou o Iraque; • o apelo do presidente do Irã para que fossem feitas alianças com a China e a índia, a fim de que “nós possamos ter a última palavra em acontecimentos internacionais”; • a nova legislação alemã que reduziu drasticamente a admissão de refugiados; • o acordo entre o presidente russo Boris Yeltsin e o presidente ucraniano Leonid Kravchuk sobre o destino a ser dado à esquadra do Mar Negro e outras questões; • o bombardeio de Bagdá pelos Estados Unidos, o apoio virtual¬ mente unânime dado pelos governos ocidentais e a condenação do mesmo por quase todos os governos muçulmanos, como mais um exemplo de “dois pesos e duas medidas” do Ocidente; • a qualificação do Sudão pelos Estados Unidos como um país terrorista e o julgamento do xeque Ornar Abdel Rahman e seus seguidores por conspirarem para “empreender uma guerra de terrorismo urbano contra os Estados Unidos”; • as maiores perspectivas para o futuro ingresso da Polônia, Hungria, República Checa e Eslováquia na OTAN; • a eleição parlamentar russa, que demonstrou que a Rússia era, de fato, um país “dividido”, com o povo e as elites incertas quanto a se deviam juntar-se ao Ocidente ou desafiá-lo. Poder-se-ia compilar uma lista comparável de acontecimentos que demonstrariam a relevância do paradigma civilizacional para praticamen¬ te qualquer período de seis meses no início da década de 90. Nos primeiros anos da Guerra Fria, o estadista canadense Lester Pearson, de modo presciente, destacou o ressurgimento e vitalidade das sociedades não-ocidentais. Ele alertou que “seria absurdo imaginar-se que essas novas sociedades políticas que estão vindo à luz no Oriente serão réplicas daquelas que conhecemos bem no Ocidente. O renasci¬ mento dessas antigas civilizações assumirá novas formas”. Assinalando que as relações internacionais “durante muitos séculos” tinham sido as relações entre os Estados da Europa, ele argumentou que “os problemas de maior alcance surgem não mais entre nações no seio de uma única civilização, mas sim entre as próprias civilizações”. 17 A prolongada bipolaridade da Guerra Fria retardou os desdobramentos que Pearson via a caminho. O fim da Guerra Fria liberou as forças culturais e civilizacionais que ele identificou na década de 50, e uma ampla gama de estudiosos e observadores identificou e ressaltou o novo papel desses fatores na política mundial. 18 Femand Braudel fez a sábia advertência de que, “no que se refere a qualquer pessoa interessada no mundo contemporâneo e, mais ainda, qualquer pessoa que queira nele atuar, Vale a pena 1 saber como identificar, num mapa do mundo, quais são as civilizações que existem hoje em dia, ser capaz de definir seus limites, seus centros e periferias, suas províncias e o tipo de ar que nelas se respira, os formatos’ gerais e particulares que existem e que se associam em seu âmbito. Do contrário, nem pensar nos equívocos catastróficos que se poderiam produzir!”. 19 Capítulo 2 As Civilizações na História e na Atualidade 1 A NATUREZA DAS CIVILIZAÇÕES A História da humanidade é a História das civilizações. É impossível pensar-se no desenvolvimento da Humanidade em quaisquer outros termos. A narrativa se estende através de gerações de civilizações, desde as antigas civilizações sumeriana e egípcia, passando pela clássica e mesoamericana, até a ocidental e islâmica e através de sucessivas manifestações de civilizações sínicas e hindus. Através da História, as civilizações proporcionaram as identificações mais amplas para os povos. Como resultado, as causas, o aparecimento, o crescimento, as interações, as realizações, o declínio e a queda das civilizações foram extensamente explorados por destacados historiadores, sociólogos e antropólogos, incluindo, dentre outros, Max Weber, Emile Durkheim, Oswald Spengler, Pitrim Sorokin , Arnold Toynbee, Alfred Weber, A. L. Kroeber, Philip Bagby, Carroll Quigley, Rushton Coulborn, Christopher Dawson, S. N. Eisenstadt, Fernand Braudel, William H. McNeill, Adda Bozeman, Immanuel Wallerstein e Felipe Fernández-Armesto. 1 Esses e outros escritores produziram uma literatura volumosa, culta e sofisticada, dedicada à análise comparativa das civilizações. Essa literatura está cheia de diferenças de perspectiva, metodologia, enfoque e conceitos. No entanto, existe também uma concordância generalizada sobre as propo¬ sições fundamentais a respeito de natureza, identidade e dinâmica das civilizações. Em primeiro lugar, há uma distinção entre civilização, no singular, e civilizações, no plural. A idéia de civilização foi desenvolvida pelos pensadores franceses do século XVIII, em oposição ao conceito de “barbarismo”. A sociedade civilizada diferia da sociedade primitiva porque era estabelecida, urbana e alfabetizada. Ser civilizado era bom, não ser civilizado era ruim. O conceito de civilização fornecia um padrão pelo qual as sociedades podiam ser julgadas, e durante o século XIX os europeus dedicaram muita energia intelectual, diplomática e política à elaboração dos critérios pelos quais as sociedades não-européias pode¬ riam ser julgadas suficientemente “civilizadas” para serem aceitas como membros do sistema internacional dominado pelos europeus. Ao mesmo tempo, porém, as pessoas cada vez mais falavam de civilizações, no plural. Isso significava “renunciar à civilização definida como um ideal, ou melhor, como o ideal”, e um afastamento da pressuposição de que havia um único padrão para o que era civilizado, “confinado a umas poucas pessoas ou grupos privilegiados, a ‘elite’ da humanidade”, na frase de Braudel. Em vez disso, havia muitas civilizações, cada uma das quais era civilizada à sua própria maneira. Em suma, a civilização, no singular, “perdeu um pouco do seu encanto”, e uma civilização no sentido plural podia na realidade ser bastante não-civilizada no sentido singular. 2 Este livro se ocupa das civilizações no plural. Contudo, a distinção entre o sentido singular e o plural continua sendo relevante e a idéia de civilização no singular reapareceu no argumento de que existe uma civilização mundial universal. Esse argumento não pode ser sustentado, e é útil examinar, como será feito no último capítulo deste livro, se as civilizações estão ou não ficando mais civilizadas. Em segundo lugar, uma civilização é uma entidade cultural, com exceção do que se pensa na Alemanha. Os pensadores alemães do século XIX traçaram uma nítida distinção entre civilização, que envolvia mec⬠nica, tecnologia e fatores materiais, e cultura, que envolvia valores, ideais e as qualidades intelectuais, artísticas e morais de uma sociedade, consideradas mais elevadas. Essa distinção persistiu no pensamento alemão, mas não foi aceita em outros lugares. Alguns antropólogos chegaram até a inverter a relação e conceberam as culturas como características de sociedades primitivas, estáticas e não-urbanas, enquan¬ to que as sociedades mais complexas, desenvolvidas, urbanas e dinâmi¬ cas são civilizações. Entretanto, essas tentativas para distinguir entre cultura e civilização não tiveram aceitação e, fora da Alemanha, existe uma concordância generalizada com a colocação de Braudel de que é “ilusório desejar, à maneira alemã, separar a cultura de seus alicerces, a civilização ”3 Civilização e cultura se referem, ambas, ao estilo de vida em geral de um povo, e uma civilização é uma cultura em escrita maior. As duas envolvem “os valores, as normas, as instituições e os modos de pensar aos quais sucessivas gerações numa determinada sociedade atribuíram uma importância fundamental”. 4 Para Braudel, uma civilização é “um espaço, uma ‘área cultural', (...) uma coletânea de características e fenômenos culturais”. Wallerstein a define como “uma concatenação especial de visão do mundo, de costumes, de estruturas e de cultura (tanto a cultura material como a alta cultura), que forma alguma espécie de totalidade histórica e que coexiste (ainda que nem sempre de forma simultânea) com outras variedades desse fenômeno”. Segundo Dawson, uma civilização é o produto de “um processo especialmente original de criatividade cultural que é o trabalho de um povo em particular”, enquanto que para Durkheim e Mauss ela é “uma espécie de ambiente moral que abrange um certo número de nações, sendo cada cultura nacional apenas uma forma especial do todo”. Para Spengler, uma civilização é “o destino inevitável da cultura (...) os estados mais exteriores e artificiais dos quais é capaz uma espécie de humanidade desenvolvida (...) uma conclusão, a coisa-que-é se sucedendo à coisa- que-está-sendo”. A cultura é o tema comum em praticamente todas as definições de civilização.^ Os elementos culturais chave que definem uma civilização foram expostos de forma clássica pelos atenienses, quando tranqüilizaram os espartanos no sentido de que não os trairiam com os persas: Pois há muitas e poderosas considerações que nos proíbem de assim fazer, mesmo que a tanto estivéssemos inclinados. Primeiro e mais importante que tudo, as imagens e as moradas dos deuses, queimadas e deixadas em ruínas: isso requer de nós vingança no mais alto grau, em vez de chegar a acordo com o homem que perpetrou tais atos. Em segundo lugar, a raça grega, tendo o mesmo sangue e a mesma língua, e em comum os templos dos deuses e os sacrifícios, e sendo nossos costumes semelhantes, não estaria bem que os atenienses se tomassem traidores disso. Sangue, língua, religião, estilo de vida era o que os gregos tinham em comum e o que os distinguia dos persas e dos outros não-gregos. 6 Entretanto, de todos os elementos objetivos que definem as civilizações, Á& o mais importante geralmente é a religião, como enfatizaram os atenien¬ ses. Em larga medida, as principais civilizações na História da Humani¬ dade se identificaram intimamente com as grandes religiões do mundo, e povos que compartilham etnia e idioma podem, como no Líbano, na antiga Iugoslávia e no Subcontinente indiano, massacrar-se uns aos outros porque acreditam em deuses diferentes. 7 Existe uma correspondência significativa entre a divisão dos povos por características culturais em civilizações e sua divisão por caracterís¬ ticas físicas em raças. No entanto, civilização e raça não são a mesma coisa. Povos da mesma raça podem estar profundamente divididos pela civilização e povos de raças diferentes podem estar unidos pela civiliza¬ ção. Em especial as grandes religiões missionárias, o Cristianismo e o Islã, abrangem sociedades com variedade de raças. As distinções cruciais entre os grupos humanos se referem a seus valores, crenças, instituições e estruturas sociais, não a seu tamanho físico, formato da cabeça e cor da pele. Em terceiro lugar, as civilizações são abrangentes, isto é, nenhuma de suas unidades constituintes pode ser plenamente compreendida sem alguma referência à civilização que a abrange. Toynbee argumentou que as civilizações “compreendem sem serem compreendidas por outras”. Uma civilização é uma “totalidade”. Melko prossegue dizendo que as civilizações têm um certo grau de integração. Suas partes são definidas por seu relacionamento umas com as outras e com o conjunto delas. Se a civilização se compõe de Estados, esses Estados guardarão mais relação uns com os outros do que com Estados fora da sua civilização. Eles podem lutar mais e se engajar com maior freqüência num relacionamen¬ to diplomático. Eles terão maior interdependência econômica. Haverá correntes estéticas e filosóficas profundas . 8 Uma civilização é a entidade cultural mais ampla. As aldeias, as regiões, os grupos étnicos, as nacionalidades, os grupos religiosos, todos têm culturas distintas em diferentes níveis de heterogeneidade cultural. A cultura de um vilarejo no sul da Itália pode ser diferente da de um vilarejo no norte da Itália, mas ambos compartilharão uma cultura italiana comum, que os distingue de vilarejos alemães. As comunidades euro¬ péias, por sua vez, compartilharão aspectos culturais que as distinguem de comunidades chinesas ou hindus. Os chineses, os hindus e os ocidentais, entretanto, não são parte de nenhuma entidade cultural mais ampla. Eles constituem civilizações. Uma civilização é assim o mais alto A-J agrupamento cultural de pessoas e o mais amplo nível de identidade cultural que as pessoas têm aquém daquilo que distingue os seres humanos das demais espécies. Ela é definida por elementos objetivos comuns, tais como língua, história, religião, costumes, instituições e pela auto-identificação subjetiva das pessoas. As pessoas têm níveis de identidade: um morador de Roma pode se definir em graus variáveis de intensidade como um romano, um italiano, um católico, um cristão, um europeu, um ocidental. A civilização à qual ele pertence é o nível mais amplo de identificação com o qual ele se identifica de forma intensa. As civilizações são o maior “nós” dentro do qual nos sentimos culturalmente à vontade, em contraste com todos os outros “eles” por aí afora. As civilizações podem envolver um grande número de pessoas, tal como a civilização chinesa, ou um número muito pequeno de pessoas, tal como os caribenhos anglófonos. Através da História, existiram muitos grupos pequenos de pessoas que possuíam uma cultura distinta e que careciam de qualquer identificação cultural mais ampla. Têm-se feito distinções em termos de tamanho e importância entre civilizações principais e periféricas (Bagby), ou civilizações principais e paradas no tempo ou abortivas (Toynbee). Este livro se ocupa das que são geralmente consi¬ deradas como as principais civilizações da História humana. As civilizações não têm fronteiras nitidamente definidas nem come¬ ços e fins precisos. Os povos podem redefinir — e de fato o fazem — suas identidades e, em conseqüência, a composição e as formas das civilizações mudam com o tempo. As culturas dos povos interagem e se superpõem. Também varia muito o grau em que as culturas das civiliza¬ ções se assemelham ou diferem umas das oütras. Não obstante, as civilizações são entidades que têm um sentido e, conquanto as linhas entre elas raramente sejam nítidas, elas são reais. Em quarto lugar, as civilizações são mortais, porém duram muito tempo. Elas evoluem, se adaptam e são as mais duradouras dentre as associações humanas, “realidades de uma extrema longue duréé\ Sua “essência única e particular” é “a sua longa continuidade histórica. A civilização é, na verdade, a história mais comprida de todas.” Os impérios ascendem e caem, os governos vêm e vão, as civilizações perduram e sobrevivem às convulsões políticas, sociais, econômicas, até mesmo ideológicas”. 9 Bozeman conclui que “a história internacional documenta com acerto a tese de que os sistemas políticos são expedientes transitórios na superfície da civilização e de que o destino de cada comunidade unificada lingüística e moralmente depende, em última análise, da sobrevivência de certas idéias fundamentais de estruturação, em tomo das quais gerações sucessivas se congregaram e que assim simbolizam a continuidade da sociedade”. 10 Praticamente todas as principais civili¬ zações do mundo no século XX ou já existem há um milênio ou, como ocorre na América Latina, são o fruto imediato de uma outra civilização de longa duração. Ao mesmo tempo em que as civilizações perduram, elas também evoluem. Elas são dinâmicas, ascendem e caem, se fundem e se dividem e, como todo aluno de História sabe, elas também desaparecem e são enterradas nas areias do tempo. As fases de sua evolução podem ser especificadas de diversas maneiras. Quigley vê as civilizações passando por sete estágios: mescla, gestação, expansão, era de conflito, império universal, decadência e invasão. Melko generaliza um modelo de mudanças a partir de um sistema feudal cristalizado para um sistema feudal em transição, para um sistema de Estado cristalizado, para um sistema de Estado em transição, para um sistema imperial cristalizado. Toynbee vê uma civilização surgindo como uma resposta a desafios e passando então por um período de crescimento que envolve um crescente controle sobre seu ambiente produzido por uma minoria criativa, seguido por um tempo de dificuldades, a ascensão de um Estado universal e depois a desintegração. Conquanto existam diferenças signi¬ ficativas, todas essas teorias vêem as civilizações evoluindo através de um tempo de dificuldades ou conflito para um Estado universal e daí para a decadência e a desintegração. 11 Em quinto lugar, como as civilizações são entidades culturais e não políticas, elas, como tal, não mantêm a ordem, não estabelecem a justiça, não arrecadam impostos, não travam guerras, não negociam tratados nem fazem quaisquer das coisas que fazem os governos. A composição política das civilizações varia entre elas e, dentro de uma mesma civilização, varia com o tempo. Uma civilização pode assim conter uma ou mais unidades políticas. Essas unidades podem ser cidades-Estados, impérios, federações, confederações, Estados-nações, Estados multina¬ cionais, todos eles podendo ter formas várias de governo. À medida que uma civilização evolui, normalmente ocorrem mudanças na quantidade e na natureza das unidades políticas que a constituem. Num extremo, pode haver coincidência entre uma civilização e uma entidade política. Lucian Pye comentou que a China é “uma civilização que pretende ser um Estado”. 12 O Japão é uma civilização que éum Estado. Entretanto, a maioria das civilizações contém mais de um Estado ou outra entidade política. No mundo moderno, as civilizações ocidental, ortodoxa, latino- americana, islâmica, hindu e até a chinesa contêm dois ou mais Estados, embora em várias delas haja um Estado-núcleo ou líder: China, índia, Rússia. Historicamente, o Ocidente conteve um número grande de Estados, mas também um número reduzido de Estados-núcleos (por exemplo, França, Grã-Bretanha, Alemanha e Estados Unidos) cuja in¬ fluência variou com o tempo. Nos seus grandes dias, o Império Otomano era o Estado-núcleo da civilização islâmica; nos tempos modernos, porém, não houve um Estado-núcleo islâmico, situação que também ocorre na América Latina e na África. Por último, de forma geral os estudiosos estão de acordo quanto à identificação que fazem das principais civilizações da História e quanto às que existem no mundo moderno. Entretanto, eles freqüentemente discordam quanto ao número total de civilizações que existiram na História. Quigley sustenta 16 nítidos casos históricos e muito provavel¬ mente oito adicionais. Toynbee primeiramente colocou a cifra em 21, depois em 23- Spengler especifica oito culturas principais. McNeill examina nove civilizações na História toda. Bagby também vê nove civilizações principais, ou 11, caso o Japão e a Ortodoxia sejam dis¬ tinguidas da China e do Ocidente. Braudel identifica nove e Rostovanyi, sete civilizações principais contemporâneas. 13 Essas diferenças depen¬ dem em parte de se grupos culturais como os chineses e os indianos são considerados como tendo tido uma única civilização ao longo da História ou duas ou mais civilizações intimamente relacionadas, uma das quais é fruto da outra. Apesar dessas diferenças, a identidade das civilizações principais não é contestada. Após examinar trabalhos sobre o assunto, Melko concluiu que existe uma “concordância razoável” a respeito de pelo menos 12 civilizações principais, sete das quais não mais existem (mesopotâmica, egípcia, cretense, clássica, bizantina, mesoamericana e andina) e cinco ainda existentes (chinesa, japonesa, indiana, islâmica e ocidental). ^ Para nossos propósitos, no mundo contemporâneo é útil acrescentar a essas seis civilizações a latino-americana e, possivelmente, a africana. Assim, as principais civilizações contemporâneas são as seguintes: Sínica. Todos os estudiosos reconhecem a existência ou de uma única e distinta civilização chinesa que vem pelo menos de 1500 a.C., e talvez de mil anos antes, ou de duas civilizações chinesas, uma sucedendo à outra nos primeiros séculos da era cristã. No meu artigo na Foreign Affdirs, rotulei essa civilização de confuciana. Entretanto, é mais correto usar o termo “sínica”. Conquanto o Confucionismo seja um dos compo¬ nentes principais da civilização chinesa, ela é mais do que o Confucio¬ nismo e também transcende a China como entidade política. O termo “sínica”, que foi usado por muitos estudiosos, descreve de forma apropriada a cultura comum da China e das comunidades chinesas do Sudeste Asiático e em outros lugares fora da China, bem como as culturas com ela relacionadas do Vietnã e da Coréia. Japonesa . Alguns estudiosos combinam as culturas japonesa e chinesa sob o título de uma única civilização extremo-oriental. A maioria, porém, não o faz e, ao contrário, reconhece o Japão como uma civilização distinta que foi fruto da civilização chinesa, emergindo durante o período entre 100 e 400 d.C. Hindu . Reconhece-se de forma universal que existiram uma ou mais civilizações sucessivas no Subcontinente desde pelo menos 1500 a.C. De modo geral, elas são chamadas de indiana, índica ou hindu, sendo este último termo preferido para se referir à civilização mais recente. De uma ou de outra forma, o Hinduísmo foi fundamental para a cultura do Subcontinente desde o segundo milênio antes da era Cristã. “Mais do que uma religião ou um sistema social, ele é o núcleo da civilização indiana.” 15 Ele continuou a desempenhar esse papel através dos tempos modernos, embora a própria índia tenha uma substanciosa comunidade muçulmana, bem como várias minorias culturais mais reduzidas. Tal como sínica, o termo “hindu” também separa o nome da civilização do nome do seu Estado-núcleo, o que é desejável quando, como nesses casos, a cultura da civilização se estende para além do Estado. Islâmica. Todos os principais estudiosos reconhecem a existência de uma civilização islâmica distinta. Originando-se na Península Arábica no século VII d.C., o Islã se espalhou rapidamente através do norte da África e da Península Ibérica, bem como, na direção do leste, pela Ásia Central, pelo Subcontinente e pelo Sudeste Asiático. Em conseqüência, existem dentro do Islã muitas culturas distintas, inclusive árabe, turca, persa e malaia. Ortodoxa. Alguns estudiosos distinguem uma civilização Ortodoxa, centrada na Rússia e separada da Cristandade Ocidental, como resultado de sua ascendência Bizantina, religião distinta, 200 anos de leis Tártaras, despotismo burocrático e exposição limitada ao Renascimento, Iluminis- mo e outras experiências fundamentais do Ocidente Ocidental A civilização ocidental é geralmente dada como tendo surgido por volta de 700 ou 800 d.C. De forma geral, ela é vista pelos estudiosos como tendo três componentes principais na Europa, América do Norte e América Latina. Latino-americana. A América Latina, entretanto, evoluiu por um caminho bastante diferente dos da Europa e da América do Norte. Um produto da civilização européia, ela também incorpora, em graus varia¬ dos, elementos de civilizações indígenas americanas que não se encon¬ tram na América do Norte e na Europa. Ela teve uma cultura corporativis- ta, autoritária, que existiu em muito menor grau na Europa e não existiu em absoluto na América do Norte. A Europa e a América do Norte sentiram, ambas, os efeitos da Reforma e combinaram as culturas católica e protestante. Historicamente, embora isso possa estar mudando, a América Latina sempre foi católica. A civilização latino-americana incor¬ pora culturas indígenas, que não existiram na Europa, foram efetivamente eliminadas na América do Norte e que variam de importância no México, América Central, Peru e Bolívia, de um lado, até a Argentina e o Chile, de outro. A evolução política e o desenvolvimento econômico latino- americanos se diferenciaram muito dos padrões que prevaleceram nos países do Atlântico Norte. Do ponto de vista subjetivo, os próprios latino-americanos se encontram divididos no que se refere à sua auto- identificação. Alguns dizem: “É, fazemos parte do Ocidente.” Outros afirmam: “Não, temos nossa própria cultura singular.” E uma vasta literatura de autores latino-americanos e norte-americanos desenvolve suas diferenças culturais. 1 ^ A América Latina poderia ser considerada ou uma subcivilização dentro da civilização ocidental ou uma civilização separada, intimamente afiliada ao Ocidente e dividida quanto a se seu lugar é ou não no Ocidente. Esta última é a designação mais apropriada e útil para uma análise que se concentre nas implicações políticas internacionais das civilizações, inclusive as relações entre a América Latina, de um lado, e a América do Norte e a Europa, do outro. Dessa forma, o Ocidente inclui a Europa e a América do Norte, e também outros países de colonização européia como a Austrália e a Nova Zelândia. Contudo, a relação entre os dois componentes principais do Ocidente se modificou com o tempo. Durante grande parte de sua História, os norte-americanos definiram sua sociedade em oposição à Europa. A América do Norte era a terra da liberdade, da igualdade, da oportunidade, do futuro; a Europa representava a opressão, os conflitos de classe, a hierarquia, o atraso. Dizia-se até que a América do Norte era uma civilização distinta. Essa postulação de uma oposição entre a América do Norte e a Europa era, em larga medida, resultante do fato de que, pelo menos até o final do século XIX, a América do Norte tinha apenas contatos limitados com civilizações não-ocidentais. Porém, depois que os Estados Unidos saíram para o cenário mundial, desenvolveu-se uma sensação de uma identidade mais ampla com a Europa. 17 Enquanto a América do Norte do século XIX definia a si própria como diferente da Europa e oposta a ela, a América do Norte do século XX se definiu como parte e, na verdade, líder de uma entidade mais ampla, o Ocidente, que inclui a Europa. O termo “o Ocidente” é agora usado universalmente para se referir ao que se costumava chamar de Cristandade Ocidental. O Ocidente é assim a única civilização identificada por uma direção da bússola e não pelo nome de um povo, religião ou área geográfica em particular.* Essa identificação retira a civilização do seu contexto histórico, geográfico e cultural. Historicamente, a civilização ocidental é a civilização européia. Na era moderna, a civilização ocidental é a civilização euro-americana ou do AÜântico Norte. A Europa, a América do Norte e o Atlântico Norte podem ser localizados num mapa; o Ocidente não. O termo “o Ocidente” também deu lugar ao conceito de “ocidentalização” e promoveu uma fusão de ocidentalização e modernização: é mais fácil pensar no Japão “ocidentalizando-se” do que “se euro-americanizando”. Entretanto, a civilização européia-americana é universalmente mencionada como civi¬ lização ocidental e esta expressão, apesar de suas sérias deficiências, será utilizada aqui. Africana (possivelmente). Os principais estudiosos de civilização, com exceção de Braudel, não reconhecem uma civilização africana distinta. O norte do continente africano e sua costa leste pertencem à civilização islâmica. Historicamente, a Etiópia, com suas instituições distintas, igreja monofisista e língua escrita, constituiu uma civilização * O uso de “Leste” e “Oeste” para identificar áreas geográficas causa confusão e é etnocêntrico. “Norte” e “Sul” têm pontos de referência fixos, aceitos universalmente, nos pólos. “Leste” e “Oeste” não dispõem de tais pontos de referência. A questão é: a leste e a oeste de quê? Tudo depende de onde se está. Pode-se presumir que, origina riamente, “Oeste” e “Leste” se referiam às partes ocidental e oriental da Eurásía. Entretanto, de um ponto de vista norte-americano, o Extremo Oriente é, na realidade, o Extremo Ocidente. Durante a maior parte da história chinesa, o Ocidente significava a índia, enquanto que, “no Japão, ‘o Ocidente’ geralmente significava a China”. William E. Naff, “Reflections on the Question of ‘East and West’ from the Point of View of Japan” [Reflexões sobre a Questão de ‘Leste e Oeste’ do Ponto de Vista do Japão], Comparativo Civilizations Review, 13-14 {Outono de 1985 e Primavera de 1986), 228. própria. Em outros pontos, o imperialismo e os colonizadores europeus trouxeram elementos da civilização ocidental. Na África do Sul, coloni¬ zadores holandeses, franceses e, depois, ingleses, criaram uma cultura européia multifragmentada. 18 Mais importante ainda, o imperialismo europeu levou o Cristianismo para a maior parte do continente ao sul do Saara. Contudo, pela África afora, as identidades tribais são profundas e intensas, embora os africanos estejam também desenvolvendo cada vez mais uma noção de identidade africana, sendo possível que a África subsaárica se junte numa civilização distinta, sendo possivelmente a África do Sul seu Estado-núcleo. A religião é uma característica central definidora das civilizações e, como disse Christopher Dawson, “as grandes religiões são os alicerces sobre os quais repousam as civilizações”. 1 ^ Das cinco “religiões mundiais” de Weber, quatro — Cristianismo, Islamismo, Hinduísmo e Confucionis- mo — estão associadas com civilizações principais. A quinta, o Budismo, não está. Por quê? Tal como o Islamismo e o Cristianismo, o Budismo cedo se separou em duas subdivisões principais e, como o Cristianismo, não sobreviveu na sua terra natal. A partir do século I d.C., o Budismo maaiano foi exportado para a China e subseqüentemente para a Coréia, Vietnã e Japão. Nessas sociedades, o Budismo foi adaptado de formas diversas, assimilado à cultura indígena (na China, por exemplo, ao Confucionismo e ao Taoísmo) e eliminado. Em conseqüência, embora o Budismo continue sendo um componente importante de suas culturas, essas sociedades não constituem parte de uma civilização budista nem como tal se identificariam. Entretanto, o que pode ser descrito legitima¬ mente como uma civilização budista therevada de fato existe em Sri Lanka, Birmânia, Tailândia, Laos e Cambódia. Além disso, as populações do Tibete, Mongólia e Butào historicamente se filiaram à variante lamaísta do Budismo maaiano, e essas sociedades constituem uma segunda área da civilização budista. De forma geral, porém, a virtual extinção do Budismo na índia e sua adaptação e incorporação às culturas existentes na China e no Japão significam que o Budismo, embora sendo uma religião importante, não foi a base de uma civilização importante.* 20 E a civilização judaica? A maioria dos estudiosos de civilização mal a mencionam. Em termos de quantidade de pessoas, obviamente o Judaísmo não é uma civilização importante. Toynbee a descreve como uma civilização parada no tempo, que evoluiu a partir da anterior civilização siríaca. Historicamente ela está associada tanto com o Cristianismo como com o Islã, e durante séculos os judeus preservaram sua identidade cultural no seio das civilizações ocidental, ortodoxa e islâmica. Com a criação de Israel, os judeus têm todos os atributos de uma As Relações Entre as Civilizações ; Encontros: as Civilizações antes de 1500 d.C. As relações entre as civilizações evoluíram através de duas fases e estão agora numa terceira. Durante mais de três mil anos depois que as civilizações emergiram pela primeira vez, com algumas exceções, não houve contatos entre elas ou os contatos foram limitados ou intermitentes e intensos. A natureza desses contatos está bem expressa pela palavra que os historiadores utilizam para descrevê-los : “encontros”. 21 As civilizações estiveram separadas pelo tempo e pelo espaço. Apenas um pequeno número delas existiu a um mesmo tempo determinado e há uma distinção significativa, como apontaram Benjamin Schwartz e Shmuel Eisenstadt, entre as civilizações da Era Axial e da Era Pré-axial em termos de se elas reconheciam ou não uma distinção entre as “ordens mundanas e transcendentais”. As civiliza¬ ções da Era Axial, ao contrário das suas predecessoras, tinham mitos transcendentais propagados por uma classe intelectual definida: “os profetas e sacerdotes judeus, os filósofos e sofistas gregos, os literatos chineses, os brâmanes hindus, os sangha budistas e os ulemás islâmi¬ cos”. 22 Algumas regiões testemunharam duas ou três gerações de civili¬ zações afins, com o desaparecimento de uma civilização e um interregno seguido pela ascensão de outra geração sucessora. A Figura 2.1 é uma tabela simplificada (reproduzida de obra de Carroll Quigley) das relações entre as principais civilizações eurasianas através dos tempos. As civilizações também estavam separadas geograficamente. Até 1500 d.C., as civilizações andina e mesoamericana não tinham contato algum com outras civilizações ou uma com a outra. As primeiras civilizações nos vales dos rios Nilo, Tigre-Eufrates, Indus e Amarelo também não interagiram. Os contatos acabaram de fato por se multiplicar no Mediterrâneo oriental, no Sudoeste Asiático e na índia setentrional. Entretanto as comunicações e as relações comerciais eram restringidas pelas distâncias que separavam as civilizações e pelos limitados meios de transporte disponíveis para superar as distâncias. Conquanto houvesse civilização: religião, idioma, costumes, literatura, instituições e um lar territorial e político. Mas e no que se refere à identificação subjetiva? Os judeus que vivem em outras culturas se distribuíram ao longo de uma continuidade que se estende desde a identificação total com o Judaísmo e Israel até um Judaísmo nominal e plena identificação com a civilização dentro da qual residem, estes últimos, contudo, ocorrendo precipuamente dentre os que vivem no Ocidente. Ver Mordechai M. Kaplan, Judaism as a Civilization [O Judaísmo como uma Civilização] (Filadélfia: Reconstructionist Press, 1981; originalmente publicado em 1934), especialmente pp. 173-208. algum comércio por mar no Mediterrâneo e no Oceano índico, “os cavalos que atravessavam as estepes, não os navios à vela que cruzavam oceanos, foram os meios de locomoção pelos quais as civilizações isoladas do mundo de antes de 1500 d.C. se ligaram entre si — na escassa medida em que efetivamente mantiveram contatos umas com as outras”. 25 As idéias e a tecnologia passaram de civilização para civilização, mas isso freqüentemente demandou séculos. Talvez a difusão cultural mais importante que não resultou de conquista tenha sido a disseminação do Budismo para a China, que ocorreu cerca de 600 anos após sua origem na índia setentrional. A imprensa foi inventada na China no século VIII d.C. e os tipos móveis no século XI, porém essa tecnologia só chegou à Europa no século XV. O papel foi introduzido na China no século II d.C., chegou ao Japão no século VII e se difundiu, na direção oeste, para a Ásia Central no século VIII, para o Norte da África no X, para a Espanha no XI e para a Europa Setentrional no XIII. Outra invenção chinesa, a pólvora, que ocorreu no século IX, dis¬ seminou-se para os árabes algumas centenas de anos depois e atingiu a Europa no século XIV. 24 Os contatos mais espetaculares e significativos entre as civilizações se deram quando povos de uma civilização conquistaram e eliminaram ou subjugaram os povos de outra. Normalmente, esses contatos foram não só violentos como breves, e ocorreram apenas de modo intermitente. A partir do século XVII d.C., contatos intercivilizacionais relativamente continuados e às vezes intensos se desenvolveram entre o Islã e o Ocidente e entre o Islã e a índia. Entretanto, a maioria das interações comerciais, culturais e militares se deram dentro de uma mesma civiliza¬ ção. Embora a índia e a China, por exemplo, tenham sido, ocasional¬ mente, invadidas e subjugadas por outços povos (mogóis, mongóis), ambas as civilizações também tiveram longos períodos de “Estados em guerra” dentro de cada civilização. Analogamente, os gregos guerrearam e comercializaram uns com os outros muito mais do que o fizeram com os persas ou outros não-gregos. Impacto : a Ascensão do Ocidente . A Cristandade européia começou a emergir como uma civilização distinta nos séculos VIII e IX. Entretanto, por várias centenas de anos, ela ficou atrás de muitas outras civilizações no que se refere ao seu nível de civilização. A China sob as dinastias Tang, Sung e Ming, o mundo islâmico do século VIII ao XII e Bizâncio do século VIII ao XI ultrapassavam de muito a Europa em riqueza, território, poder militar e realizações artísticas, literárias e científicas. 25 Figura 2.1 Civilizações do Hemisfério Oriental [Culturas Neolíticas de Cultivo] Fonte: Carroll Quigley, The Evolution of Civilizations: An Introduction to HistóricaI Analysis [A Evolução das Civilizações: Uma Introdução à Análise Histórica] (Indianápolis: Liberty Press, 2 § ed., 1979), p. 83. Entre os séculos XI e XIII, a cultura européia começou a se desenvolver, num processo facilitado pela “apropriação sequiosa e sistemática dos elementos adequados de civilizações mais elevadas do Islã e de Bizâncio, junto com a adaptação dessa herança às condições e interesses especiais do Ocidente”. Durante esse mesmo período, a Hungria, a Polônia, a Escandinávia e a costa do Báltico foram convertidas ao Cristianismo ocidental, com o Direito Romano e outros aspectos da civilização ocidental vindo atrás, e os limites orientais da civilização ocidental foram estabilizados onde iriam permanecer daí por diante, sem modificações significativas. Durante os séculos XII e XIII, os ocidentais porfiaram por expandir seu controle na Espanha e lograram estabelecer o efetivo domínio do Mediterrâneo. Posteriormente, porém, a ascensão do poder turco causou o colapso do “primeiro império ultramarino ocidental”. 26 E, no entanto, por volta de 1500, o Renascimento da cultura européia estava bem adiantado e o pluralismo social, a expansão do comércio e as realizações tecnológicas proporcionavam a base para uma nova era na política mundial. Encontros intermitentes ou limitados entre as civilizações cederam lugar ao impacto continuado, avassalador e unidirecional do Ocidente sobre todas as outras civilizações. O final do século XV testemunhou a reconquista final da Península Ibérica aos mouros, os primórdios da penetração portuguesa na Ásia e a penetração espanhola nas Américas. Durante os 250 anos subseqüentes, todo o Hemisfério Ocidental e porções significativas da Ásia foram postas sob o governo ou a domina¬ ção européia. O fim do século XVIII viu uma retração do controle direto europeu, quando primeiro os Estados Unidos, logo o Haiti e depois a maior parte da América Latina se rebelaram contra o domínio europeu e conseguiram a independência. Contudo, na última parte do século XIX, um renovado imperialismo ocidental estendeu o domínio ocidental por quase toda a África, consolidou o controle ocidental no Subcontinente e em outras partes da Ásia e, no início do século XX, submeteu virtualmente todo o Oriente Médio, com exceção da Turquia, ao controle ocidental direto ou indireto. Países europeus ou ex-colônias européias (nas Américas) controlavam 35 por cento da superfície terrestre do planeta em 1800, 67 por cento em 1878 e 84 por cento em 1914. Ao se chegar a 1920, a porcentagem era ainda maior, quando o Império Otomano foi dividido entre a Grã-Bretanha, a França e a Itália. Em 1800, o Império Britânico consistia de 3,9 milhões de quilômetros quadrados e de 20 milhões de pessoas. Em 1900, o Império Vitoriano, sobre o qual o sol nunca se punha, abrangia 28,5 milhões de quilômetros quadrados e 390 milhões de pessoas. 27 Durante a expansão européia, as civilizações andina e mesoamericana foram eliminadas, as civilizações indiana e islâmica, juntamente com a África, foram subjugadas, e a China foi invadida e subordinada à influência ocidental. Somente as civilizações russa, japonesa e etíope, todas três governadas por autoridades imperiais altamente centralizadas, foram capazes de resistir ao ataque do Ocidente e manter uma autêntica existência independente. Durante 400 anos, as relações intercivilizacionais consistiram na subordinação de outras socie¬ dades à civilização ocidental. As causas desse desdobramento único e espetacular abrangeram a estrutura social e as relações de classes do Ocidente; a ascensão das cidades e do comércio; a relativa dispersão do poder nas sociedades ocidentais entre assembléias, monarcas e autoridades seculares e religio¬ sas; a nascente noção de consciência nacional entre os povos ocidentais e o desenvolvimento de burocracias de Estado. Entretanto, a fonte imediata da expansão ocidental foi tecnológica: a invenção dos meios de navegação oceânica para atingir povos distantes e o desenvolvimento da capacidade militar para conquistar esses povos. Como Geoffrey Parker rn assinalou, “numa larga medida ‘a ascensão do Ocidente’ dependeu do uso da força, do fato de que o equilíbrio militar entre os europeus e seus adversários no ultramar estava se inclinando de forma constante em favor dos europeus; (...) a chave para o êxito dos ocidentais para criarem, entre 1500 e 1750, os primeiros impérios verdadeiramente globais dependeu precisamente daqueles avanços na capacidade de empreender a guerra que foram denominados ‘a revolução militar’”. A expansão do Ocidente também foi facilitada pela superioridade de suas tropas em organização, disciplina e treinamento e, posteriormente, por armas, meios de transporte, logística e serviços médicos superiores como conseqüência de sua liderança na Revolução Industrial. 28 O Ocidente conquistou o mundo não pela superioridade de suas idéias, valores ou religião (para a qual poucos membros das outras civilizações se conver¬ teram), mas sim por sua superioridade em aplicar a violência organizada. Os ocidentais freqüentemente se esquecem desse fato, mas os não-oci¬ dentais nunca. Ao se chegar a 1910, o mundo era mais integrado política e economicamente do que em qualquer outro momento da História da Humanidade. O comércio internacional correspondia a 33 por cento do produto mundial bruto, mais do que jamais fora ou veio a ser desde então, não se chegando sequer perto desse nível até as décadas de 70 e 80. Os investimentos internacionais foram, como porcentagem do total de investimentos, mais elevados do que em qualquer outra época. 29 Civilização queria dizer civilização ocidental, e o Ocidente controlava ou dominava a maior parte do mundo. O Direito Internacional era o Direito Internacional ocidental, oriundo da tradição de Grotius. O sistema internacional era o sistema ocidental westfaliano de Estados-nações soberanos porém “civilizados” e dos territórios coloniais por eles contro¬ lados. O surgimento desse sistema internacional definido pelo Ocidente foi o segundo desdobramento principal na política mundial nos séculos a contar de 1500. Além de interagirem numa modalidade de dominação- subordinação com as sociedades não-ocidentais, as sociedades ocidentais também interagiam entre si numa base mais eqüitativa. Essas interações entre entidades políticas dentro de uma única civilização se pareciam muito com as que ocorreram no seio das civilizações chinesa, indiana e grega. Elas estavam baseadas numa homogeneidade cultural que envol¬ via “idioma, leis, religião, práticas administrativas, agricultura, proprieda¬ de da terra, bem como, talvez, relacionamento familiar”. Os povos <;q europeus “partilhavam de uma cultura comum e mantinham amplos contatos através de uma rede de comércio, um movimento constante de pessoas e um notável entrelaçamento das famílias dominantes”. Eles também lutavam uns com os outros praticamente de forma incessante. Entre os Estados europeus, a paz era a exceção, não a regra. 30 Embora durante grande parte desse período o Império Otomano controlasse até um quarto do que freqüentemente se considerava como sendo a Europa, ele não era considerado um membro do sistema internacional europeu. Durante 150 anos, a política intracivilizacional do Ocidente foi dominada pelo grande cisma religioso e por guerras religiosas e dinás¬ ticas. Durante outro século e meio, após o Tratado de Westfália, os conflitos do mundo ocidental se deram sobretudo entre príncipes — imperadores, monarcas absolutos e monarcas constitucionais que tenta¬ vam expandir suas burocracias, seus exércitos, sua força econômica mercantilista e, o mais importante, o território sobre o qual reinavam. Nesse processo criaram os Estados-nações, e a partir da Revolução Francesa, as principais linhas de conflito passaram a ocorrer entre nações em vez de entre príncipes. No dizer de R. R. Palmer, em 1793 “as guerras dos reis tinham terminado e as guerras dos povos tinham começado”. 31 Esse padrão do século XIX durou até a I Guerra Mundial. Em 1917, como resultado da Revolução Russa, o conflito de Estados-nações foi substituído pelo conflito de ideologias, primeiro entre o fascismo, o comunismo e a democracia liberal, e depois entre estes dois últimos. Na Guerra Fria, essas ideologias foram personificadas pelas duas superpotências, cada uma das quais definia a sua identidade por sua ideologia e nenhuma das quais era um Estado-nação no sentido europeu tradicional. A chegada do marxismo ao poder, primeiro na Rússia e depois na China e no Vietnã, representou uma fase de transição do sistema internacional europeu para um sistema multicivilizacional pós-europeu. O marasmo foi um produto da civilização européia, mas ele nem assentou raízes nem teve êxito nela. Em vez disso, elites modernizadoras e revolucionárias importaram-no para a Rússia, China e Vietnã: Lênin, Mao e Ho o adaptaram aos seus propósitos e o utilizaram para desafiar o poderio ocidental, para mobilizar seus povos e para afirmar a identidade e a autonomia nacionais de seus países contra o Ocidente. Contudo, o desmoronamento dessa ideologia na União Sovié¬ tica e a sua substanciosa adaptação na China e no Vietnã não significa necessariamente que essas sociedades irão importar a outra ideologia ocidental, a da democracia liberal. Os ocidentais que pressupõem que assim será provavelmente serão surpreendidos pela criatividade, resiliên- cia e individualismo das culturas não-ocidentais. Interações: um Sistema Multicivilizacional No século XX, as rela¬ ções entre as civilizações passaram, portanto, de uma fase dominada pelo impacto unidirecional de uma civilização sobre todas as demais para outra, de interações intensas, continuadas e multidirecionais entre todas as civilizações. Ambas as características centrais da era anterior de relações intercivilizacionais começaram a desaparecer. Em primeiro lugar, para usar as expressões favoritas dos his¬ toriadores, “a expansão do Ocidente” terminou e começou “a revolta contra o Ocidente”. De forma irregular e com pausas e inversões, o poder ocidental declinou em relação ao poder de outras civilizações. O mapa do mundo em 1990 guardava pouca semelhança com o mapa do mundo em 1920. O equilíbrio de poder militar e econômico e de influência política se deslocou (como será examinado em maior detalhe num capítulo mais adiante). O Ocidente continuou a produzir impactos significativos em outras sociedades, porém cada vez mais as relações entre o Ocidente e as outras civilizações ficaram dominadas pelas reações do Ocidente aos desdobramentos nessas civilizações. Longe de serem simplesmente os objetos da História feita pelo Ocidente, as sociedades não-ocidentais passaram cada vez mais a ser agentes de sua própria História e da História do Ocidente. Em segundo lugar, como resultado desses desdobramentos, o sistema internacional se expandiu para além do Ocidente e se tornou multicivilizacional. Simultaneamente, o conflito entre os Estados ociden¬ tais — que dominara esse sistema durante séculos — foi desaparecendo. Ao se chegar à parte final do século XX, o Ocidente tinha saído de sua fase de “Estados em guerra” de seu desenvolvimento como uma civiliza¬ ção e passado para sua fase de “Estado universal”. No final do século, essa fase ainda estava inconclusa, enquanto os Estados-nações do Ocidente se congregavam em dois Estados se mi-universais na Europa e na América do Norte. Essas duas entidades e as unidades que as constituem estão, contudo, ligadas por uma rede extraordinariamente complexa de vínculos institucionais formais e informais. Os Estados universais das civilizações anteriores eram impérios. Porém, como a democracia é o formato político da civilização ocidental, o Estado universal que está emergindo na civilização ocidental não é um império mas sim uma composição de federações, confederações e regimes e organismos internacionais. 61 As grandes ideologias políticas do século XX incluem o liberalismo, o socialismo, o anarquismo, o corporativismo, o marxismo, o comunismo, a social-democracia, o conservadorismo, o nacionalismo, o fascismo, a democracia cristã. Todos eles partilham de um ponto comum: são pro¬ duto da civilização ocidental. Nenhuma outra civilização gerou uma ideologia política importante. O Ocidente, contudo, nunca gerou uma re¬ ligião importante. As grandes religiões do mundo são todas produto de civilizações não-ocidentais e, na maioria dos casos, antecedem a civili¬ zação ocidental. À medida que o mundo sai da sua fase ocidental, as ideologias que tipificaram a etapa final da civilização ocidental entram em declínio, e seu lugar é tomado por religiões e outras formas de base cultural de identidade e engajamento. A separação westfaliana da religião e da política internacional, produto idiossincrático da civilização ociden¬ tal, está chegando ao fim, e a religião, como sugere Edward Mortimer, “tem probabilidade cada vez maior de se imiscuir nos assuntos interna¬ cionais”. 32 O choque intracivilizacional de idéias políticas gerado pelo Ocidente está sendo substituído por um choque intracivilizacional de cultura e religião. Desse modo, um sistema multipolar ocidental de relações interna¬ cionais cedeu lugar a um sistema bipolar semi-ocidental e, depois, a um sistema multipolar e multicivilizacional. A geografia política mundial deslocou-se do mundo único de 1920 para os três mundos dos anos 60 e para a meia dúzia de mundos dos anos 90. Concomitantemente, os impérios mundiais ocidentais de 1920 se encolheram para o muito mais limitado “Mundo Livre” dos anos 60 (que abrangia muitos Estados não-ocidentais que se opunham ao comunismo) e depois para o ainda mais restrito “Ocidente” dos anos 90. Esse deslocamento refletiu-se semanticamente, entre 1988 e 1993, no declínio do uso do termo ideológico “Mundo Livre” e no aumento do uso do termo civilizacional “o Ocidente” (ver Quadro 2.1). Ele também é visível no aumento das referências ao Islã como um fenômeno político-cultural, à “China Maior”, à Rússia e seu “exterior próximo” e à União Européia, todos termos com um conteúdo civilizacional. As relações intercivilizacionais nessa terceira fase são muito mais freqüentes e intensas do que na primeira fase e muito mais equivalentes e recíprocas do que na segunda fase. Além disso, ao contrário do que houve durante a Guerra Fria, não há uma dissensão única que predomine, e existem múltiplas dissensões entre o Ocidente e outras civilizações, bem como entre muitas das civilizações não-oci¬ dentais. 62 Quadro 2.1 Uso dos T ermos “Mundo Livre” e“o Ocidente" ____ Número de referências % de alteração nas 1988 1993 referências New York Times Mundo Livre 71 44 -38 o Ocidente 46 144 + 213 Washington Post Mundo Livre 112 67 -40 o Ocidente 36 87 + 142 Congressional Record Mundo Livre 356 114 -68 o Ocidente 7 10 + 43 Fonte: Lexis/Nexte. 0 número de referências é o número de matérias que contêm os termos “Mundo Livre” e “o Ocidente” ou deles tratam. As referências a “ocidente” foram examinadas quanto à sua aplicação contextuai a fim de garantir que o termo se referia a “ocidente” como uma civilização ou entidade política. Hedley Buli sustentou que um sistema internacional existe “quando dois ou mais Estados têm suficiente contato entre si e produzem suficiente impacto um nas decisões do outro para levá-los a se comportarem — pelo menos até certo ponto — como partes de um todo”. Entretanto, uma sociedade internacional só existe quando os Estados de um sistema internacional têm “interesses comuns e valores comuns”, “se consideram obrigados por um conjunto comum de normas”, “partilham do funciona¬ mento de instituições comuns” e possuem “uma cultura ou civilização comum”. 33 Como seus predecessores sumeriano, grego, helénico, chinês, indiano e islâmico, o sistema internacional europeu do século XVII até o século XIX era também uma sociedade internacional. Durante os séculos XIX e XX, o sistema internacional europeu se expandiu e passou a abranger praticamente todas as sociedades de outras civilizações. Algumas instituições e práticas européias também foram exportadas para esses países. Não obstante, essas sociedades ainda carecem da cultura comum que é subjacente à sociedade internacional européia. Nos termos da teoria britânica das relações internacionais, o mundo é, portanto, um sistema internacional bem desenvolvido, porém, na melhor das hipóte¬ ses, não passa de uma sociedade internacional muito primitiva. Toda civilização se considera o centro do mundo e escreve sua História como a peça central da História da Humanidade. Isso talvez se aplique ainda mais ao Ocidente do que a outras culturas. Entretanto, esses pontos de vista monocivilizacionais têm relevância e utilidade decrescentes num mundo multicivilizacional. Os estudiosos das civiliza- 63 ções há muito tempo reconheceram esse truísmo. Em 1918, Spengler condenou a visão míope da História que prevalecia no Ocidente, com sua cômoda divisão em fases antiga, medieval e moderna, que só eram relevantes para o Ocidente. É necessário, disse ele, substituir esse “enfoque ptolemaico da História” por um enfoque copérnico e substituir “a ficção vazia de uma história linear pelo enredo espetacular de uma quantidade de culturas poderosas”. 34 Algumas décadas depois, Toynbee criticou o “provincianismo e a impertinência” do Ocidente, manifestados nas “ilusões egocêntricas” de que o mundo girava ao seu redor, de que havia um “Oriente estagnado” e de que “o progresso” era inevitável. Tal' como Spengler, ele não encontrava lugar para a pressuposição da unidade da História, a pressuposição de que “só existe um rio de civilização, o nosso próprio, e de que todos os demais são tributários dele ou se perdem nas areias do deserto”. 35 Cinco anos depois de Toynbee, Braudel insistiu, de forma análoga, na necessidade de se buscar uma perspectiva mais ampla e de se compreenderem “os grandes conflitos culturais do mundo e a multiplicidade de suas civilizações”. 3(5 Entretanto, as ilusões e os preconceitos contra os quais esses estudiosos alertaram continuam vigentes e, na parte final do século XX, desabrocha¬ ram na pretensão provinciana e muito difundida de que a civilização européia do Ocidente é agora a civilização universal do mundo. 64 Capítulo 3 Uma Civilização Universal? Modernização e Ocidentalização Civilização Universal: Significados A lgumas pessoas sustentam que esta era está testemunhando o surgimento do que V. S. Naipaul chamou de uma “civilização universal”. 1 O que se quer dizer com esse termo? Em geral, a idéia implica a conjunção cultural da Humanidade e a crescente aceitação de valores, crenças, orientações, práticas e instituições comuns por povos pelo mundo afora. Mais especificamente, a idéia pode significar algumas coisas que são profundas, porém irrelevantes, algumas que são relevantes mas não profundas e algumas que são irrelevantes e superficiais. Em primeiro lugar, os seres humanos em praticamente todas as sociedades compartilham certos valores básicos, tais como o assassinato ser uma perversidade, e certas instituições básicas, tais como alguma forma de família. A maioria das pessoas na maioria das sociedades tem um “sentido moral” parecido, uma “tênue” moralidade mínima de conceitos básicos do que é certo e errado. 2 Se é isso que se quer dizer com civilização universal, é ao mesmo tempo profundo e profundamente importante, mas também não é nem novo nem relevante. Se as pessoas partilharam de uns poucos valores e instituições fundamentais através da História, isso pode explicar algumas constantes do comportamento humano, porém não pode iluminar ou explicar a História, que consiste de mudanças do comportamento humano. Além disso, se existe uma civilização universal comum a toda a humanidade, então que termo vamos usar para identificar os principais agrupamentos culturais de seres humanos que ficam aquém da raça humana toda? A Humanidade está dividida em subgrupos — tribos, nações e entidades culturais mais amplas normalmente chamadas de civilizações. Se o termo “civilização” for elevado e restringido àquilo que for comum à Humanidade como um todo, ou ter-se-á que inventar um novo termo para fazer referência aos maiores agrupamentos culturais de pessoas aquém da Humanidade como um todo ou ter-se-á que pressupor que esses agrupamentos grandes, mas que não compreendem toda a Humanidade, se evaporarão. Václav Havei, por exemplo, argumentou que “nós agora vivemos numa única civiliza¬ ção global”, a qual, entretanto, “não é mais do que um fino verniz” que “cobre ou esconde a imensa variedade de culturas, de povos, de mundos religiosos, de tradições históricas e de atitudes formadas historicamente, tudo isso que, num certo sentido, está ‘por debaixo’ dele”. 3 Entretanto, só se consegue uma confusão semântica ao se restringir “civilização” a um nível global e ao se designarem como “culturas” ou “subcivilizações” aquelas entidades culturais maiores que historicamente sempre foram chamadas de civilizações.* Em segundo lugar, o termo “civilização universal” poderia ser empregado para se fazer referência àquilo que as sociedades civilizadas têm em comum, como as cidades e a alfabetização, e que as distingue das sociedades primitivas e dos bárbaros. Obviamente, este é o signifi¬ cado singular do termo no século XVIII e, neste sentido, uma civilização universal está emergindo, para grande horror de diversos antropólogos e outros que encaram com lástima o desaparecimento dos povos primitivos. A civilização, neste sentido, vem se expandindo gradativa¬ mente através da História da Humanidade, e a disseminação da civiliza¬ ção, no singular, tem sido perfeitamente compatível com a existência de muitas civilizações, no plural. Em terceiro lugar, o termo “civilização universal” pode se referir aos pressupostos, valores e doutrinas atualmente mantidos por muitos povos * Hayward Alker assinalou com exatidão que, no meu artigo na Foreign Affairs ; foi “descartada em termos de definição” a idéia de uma civilização mundial, ao se definir civilização como “o mais elevado agrupamento cultural de pessoas e o mais amplo nível de identidade cultural que as pessoas têm aquém daquilo que distingue os seres humanos das outras espécies”. Isso é, claro está, o modo pelo qual o termo tem sido usado pela maioria dos estudiosos das civilizações. Neste capítulo, entretanto, eu flexiono essa definição para permitir a possibilidade de povos que se identificam, através da História, com uma cultura global distinta, que substitui ou suplanta as civilizações no sentido ocidental, islâmico ou sínico. 66 I da civilização ocidental e por alguns povos de outras civilizações. Isso poderia ser chamado de a Cultura de Da vos. Todos os anos, cerca de mil homens de negócios, banqueiros, funcionários de governos, intelectuais e jornalistas, de dezenas de países, se encontram no Foro Econômico Mundial em Davos, na Suíça. Quase todas essas pessoas têm diplomas universitários em ciências exatas, em ciências sociais, em administração ou em ciências jurídicas, trabalham com palavras e/ou números, são razoavelmente fluentes em inglês, são empregadas por governos, empre¬ sas e instituições acadêmicas com extenso envolvimento internacional e viajam com freqüência para fora de seus próprios países. De forma geral, partilham de crenças no individualismo, na economia de mercado e na democracia política, que também são comuns entre os povos da civilização ocidental. As pessoas de Davos controlam virtualmente todas as instituições internacionais, muitos dos governos do mundo e o grosso da capacidade econômica e militar do mundo. A Cultura de Davos tem, portanto, uma tremenda importância. Entretanto, em escala mundial, quantas pessoas partilham dessa cultura? Fora do Ocidente, provavelmente ela é comparti¬ lhada por menos de 50 milhões de pessoas, ou seja, um por cento da população mundial e, talvez, por não mais de um décimo de um por cento da população mundial. Ela está longe de ser uma cultura universal, e os líderes que partilham da Cultura de Davos não têm, necessariamente, um controle firme do poder em suas próprias sociedades. Como aponta Hedley Buli, “essa cultura intelectual comum existe somente no nível da elite: suas raízes são, em muitas sociedades, superficiais (...) [e] é duvidoso se, mesmo no nível diplomático, ela abarca o que era chamado de uma cultura moral comum ou de um conjunto de valores comuns, diferente de uma cultura intelectual comum”. 4 Em quarto lugar, propõe-se a noção de que a disseminação dos padrões de consumo e da cultura popular ocidentais pelo mundo afora está criando uma civilização universal. Essa argumentação não é nem profunda nem relevante. Através da História, modas culturais foram transmitidas de uma civilização a outra. As inovações de uma civilização são regularmente adotadas por outras civilizações. Trata-se, porém, ou de técnicas que carecem de quaisquer conseqüências culturais importan¬ tes ou de modas que vêm e vão sem alterar a cultura subjacente da civilização recipiente. Essas importações “pegam” na civilização recipien¬ te, quer porque são exóticas quer porque lhes são impostas. Em séculos anteriores, o mundo ocidental foi periodicamente varrido por entusias¬ mos por diversos itens da cultura chinesa ou hindu. No século XIX, as importações culturais do Ocidente tornaram-se populares na China e na índia porque pareciam refletir o poderio ocidental. A argumentação feita agora de que a disseminação da cultura pop e dos bens de consumo ao redor do mundo representa o triunfo da civilização ocidental trivializa a cultura ocidental. A essência da civilização ocidental é a Magna Carta e não o Magno Mac. O fato de que não-ocidentais possam abocanhar este último não tem quaisquer implicações de que possam aceitar a primeira. Isso tampouco tem implicações nas suas atitudes em relação ao Ocidente. Em algum ponto do Oriente Médio, uma meia dúzia de rapazes bem poderia estar vestindo calças jeans, bebendo Coca-Cola, escutando rap e, entre suas reverências na direção de Meca, estar montando uma bomba para explodir um avião comercial norte-americano. Durante os anos 70 e 80, os norte-americanos consumiram milhões de carros, aparelhos de TV, máquinas fotográficas e aparelhos eletrônicos japoneses sem ficarem “japanizados”; na verdade, nesse período se tornaram consideravelmente mais antagônicos em relação ao Japão. Somente a arrogância ingênua pode levar os ocidentais a pressupor que os não-oci- dentais ficaram “ocidentalizados” por adquirirem artigos ocidentais. Na realidade, o que é que se diz ao mundo sobre o Ocidente quando os ocidentais estabelecem uma identidade entre a sua civilização e as bebidas gasosas, as calças desbotadas e as comidas gordurosas? Uma versão ligeiramente mais sofisticada da argumentação da cultura popular universal se concentra não nos bens de consumo em geral, mas na mídia, em Hollywood mais do que na Coca-Cola. O controle norte-americano em escala mundial das indústrias de cinema, televisão e vídeo excede até seu predomínio na indústria aeronáutica. Oitenta e oito dos 100 filmes mais vistos em todo o mundo em 1993 eram norte-americanos, e duas organizações norte-americanas e duas euro¬ péias dominam a coleta e a disseminação de notícias em bases globais. 5 Esta situação reflete dois fenômenos. O primeiro é a universalidade do interesse humano por amor, sexo, violência, mistério, heroísmo e riqueza, e a capacidade das companhias motivadas pelo lucro, basicamente norte-americanas, de explorar esses interesses em proveito próprio. Entretanto, há pouca ou nenhuma prova que apoie a pressuposição de que o surgimento das comunicações abrangentes em escala global está produzindo uma convergência significativa de atitudes e crenças. Como disse Michael Vlahos, “o entretenimento não equivale à conversão cultural”. O segundo é que as pessoas interpretam as comunicações em termos de seus próprios valores e perspectivas preexistentes. Kishore Mahbubani observou que “as mesmas imagens visuais transmitidas simultaneamente às salas de estar pelo mundo afora desencadeiam percepções opostas. As salas de estar ocidentais aplaudem quando mísseis cruzeiro atingem Bagdá. A maioria dos que vivem fora dessas salas vêem que o Ocidente aplicará castigo rápido a iraquianos e somalis não-brancos, porém não a sérvios brancos, um sinal perigoso por qualquer critério”. 6 As comunicações globais são uma das mais importantes manifes¬ tações contemporâneas do poderio ocidental. Contudo, essa hegemonia ocidental estimula políticos populistas em sociedades não-ocidentais a condenar o imperialismo cultural ocidental e a convocar seus públicos a preservarem a sobrevivência e integridade de suas culturas autóctones. Desse modo, o grau em que as comunicações globais são dominadas pelo Ocidente é uma das principais fontes de ressentimento e hostilidade dos povos não-ocidentais contra o Ocidente. Além disso, no início da década de 90, a modernização e o desenvolvimento econômico das sociedades não-ocidentais estavam levando ao surgimento de indústrias de mídia locais e regionais que se dirigiam aos gostos diferentes dessas sociedades. 7 Em 1994, por exemplo, a CNN International estimava que tinha uma audiência de 55 milhões de espectadores em potencial, ou seja, cerca de um por cento da população mundial (notavelmente equivalente em número e indubitavelmente idêntico, em larga escala, às pessoas da Cultura de Davos), e seu presidente predizia que suas transmissões em inglês poderiam eventualmente atrair de dois a quatro por cento do mercado. Em conseqüência, iriam surgir redes regionais (isto é, civilizacionais) transmitindo em espanhol, japonês, árabe, francês (para a África Ocidental) e outros idiomas. Três estudiosos concluíram que “a Sala de Notícias Global ainda se defronta com uma Torre de Babel”. 8 Ronald Dore desenvolve uma argumentação impressionante para apontar o surgimento de uma cultura intelectual mundial entre diplomatas e funcionários públicos. Mesmo ele, entretanto, chega a uma conclusão profundamente condicionada a respeito do impacto das comunicações intensificadas: 11 tudo o mais sendo igual [grifo dele], uma densidade crescente de comunicações deveria assegurar uma base crescente de sentimento de camaradagem entre as nações ou, pelo menos, entre as classes médias, ou ainda, na pior das hipóteses, entre os diplomatas do mundo”, porém, acrescenta ele, “algumas das coisas que podem não ser iguais podem de fato ser muito importantes”. 9 Idioma . Os elementos centrais de qualquer cultura ou civilização são o idioma e a religião. Se uma civilização universal está emergindo, deveria haver tendências em direção ao surgimento de um idioma universal e de uma religião universal. Essa alegação é freqüentemente feita com relação ao idioma. Como colocou o editor do Wall Street Journal, “o idioma do mundo é o inglês”. 10 Isso pode significar duas coisas, das quais só uma daria apoio à tese de uma civilização universal. Poderia significar que uma proporção crescente da população mundial fala inglês. Não há prova alguma que endosse esta proposição e as indicações mais confiáveis que de fato existem, que reconhecidamente não podem ser muito precisas, mostram exatamente o contrário. Os dados disponíveis cobrindo mais de três décadas (1958-1992) sugerem que o padrão geral de utilização de idiomas no mundo não mudou drasticamente, que ocorreram diminuições significativas na proporção de pessoas que falam inglês, francês, alemão, russo e japonês, que uma diminuição menor ocorreu na proporção dos que falam mandarim, e que houve aumentos na proporção de pessoas que falam hindi, malaio-in- donésio, árabe, bengalês, espanhol, português e outros idiomas. Os anglófonos do mundo caíram de 9,8 por cento do total de pessoas que, em 1958, falavam idiomas que eram falados por pelo menos um milhão de pessoas, para 7,6 por cento em 1992 (ver Quadro 3-1). A proporção da população mundial que fala os cinco idiomas principais (inglês, francês, alemão, português, espanhol) declinou de 24,1 por cento em 1958 para 20,8 por cento em 1992. Em 1992, o número de pessoas que falavam mandarim, 15,2 por cento da população mundial, era aproxima¬ damente o dobro das que falavam inglês, e mais 3,6 por cento falavam outras versões de chinês (ver Quadro 3.2). Em certo sentido, um idioma que é estranho a 92 por cento das pessoas do mundo não pode ser o idioma mundial. Entretanto, num outro sentido, ele poderá ser descrito assim se for o idioma empregado por pessoas de grupos lingüísticos e culturas diferentes para se comunicarem entre si, se for a língua franca do mundo ou, em termos lingüísticos, a Língua de Comunicação Mais Ampla (LCMA) principal do mundo. 11 As pessoas que precisam se comunicar umas com as outras têm que encontrar o meio de fazê-lo. Em certo nível, elas podem confiar em profissionais especialmente treinados, que se tornaram fluentes em dois ou mais idiomas a fim de servir como intérpretes e tradutores. Isso, porém, é incômodo, toma tempo e custa caro. Por isso, através da História, emergiu sempre uma língua franca: o latim nos mundos clássico Quadro 3.1 Pessoas que Falam os Idiomas Principais (Porcentagens da População Mundial*) Idioma 1958 1970 1980 1992 Árabe 2,7 2,9 3,3 3,5 Bengalês 2,7 2,9 3,2 3,2 Espanhol 5,0 5,2 5,5 6,1 Hindi 5,2 5,3 5,3 6,4 inglês 9,8 9,1 8,7 7,6 Mandarim 15,6 16,6 15,8 15,2 Russo 5,5 5,6 6,0 4,9 * Número total de pessoas que falam idiomas falados por um milhão ou mais de pessoas. Fonte: Porcentagens calculadas a partir de dados compilados pelo professor Sidney S. Culbert, Departamento de Psicologia, Universidade de Washington, Seattle, sobre o número de pessoas que falam idiomas falados por um milhão ou mais de pessoas e constantes anualmente do World Almanac and Book ofFacts [Almanaque e Livro de Fatos do Mundo]. Suas estimativas incluem tanto os que falam o Idioma materno" como os que falam o “idioma não-materno" e foram derivadas de recenseamentos nacionais, levantamentos por amostragem de população, levantamentos de transmissões de rádio e de televisão, dados sobre crescimento populacional, estudos secundários e outras fontes. Quadro 3.2 Pessoas que Falam os Principais Idiomas Chineses e Ocidentais Idioma Número de Pessoas (em milhões) 1958 Porcentagem da Pop. Mundial Número de Pessoas (em milhões) 1992 Porcentagem da Pop. Mundial Mandarim 444 15,6 907 15,2 Cantonês 43 1,5 65 1.1 Wu 39 1,4 64 1,1 Min 36 1,3 50 0,8 Hakka 19 0,7 33 0,6 Idiomas chineses 581 20,5 1.119 18,8 Inglês 278 9,8 456 7,6 Espanhol 142 5,0 362 6,1 Português 74 2,6 177 3,0 Alemão 120 4,2 119 2,0 Francês 70 2,5 123 2,1 Idiomas ocidentais 684 24,1 1.237 20,8 Total mundial 2.845 44,5 5.979 39,4 Fonte: Porcentagens calculadas a partir de dados sobre idiomas compilados pelo professor Sidney S. Culbert, Departamento de Psicologia, Universidade de Washington, Seattle, e constantes anuaímente do World Almanac and Book ofFacts [Almanaque e Livro de Fatos do Mundo] dos anos de 1959 e 1993. e medieval; o francês, durante séculos, no Ocidente; o suaíle em muitas partes da África e o inglês em grande parte do mundo na segunda metade do século XX. Os diplomatas, os homens de negócios, os cientistas, os turistas e os serviços que os atendem, os pilotos comerciais e os controladores de tráfego aéreo precisam de algum meio de comunicações eficientes entre si e atualmente usam sobretudo o inglês. Nesse sentido, o inglês é o meio mundial de comunicação intercul- tural, do mesmo modo que o calendário cristão é o meio mundial de acompanhar o tempo, os algarismos arábicos são o meio mundial de contar e o sistema métrico é, para a maior parte, o meio mundial de medir. Entretanto, o uso do inglês dessa maneira é a comunicação intercultuml e pressupõe a existência de culturas separadas. Uma língua franca é um modo de lidar com as diferenças lingüísticas e culturais, não um modo de eliminá-las. É uma ferramenta para comunicações, não uma fonte de identidade e comunidade. Só porque um banqueiro japonês e um homem de negócios indonésio falam um com o outro em inglês não quer dizer que qualquer dos dois esteja inglesado ou ocidentalizado. O mesmo pode ser dito de suíços que falam alemão e francês e que têm tanta proba¬ bilidade de se comunicar entre si em inglês como em qualquer dos seus idiomas nacionais. Analogamente, a manutenção do inglês como um idioma nacional suplementar da índia, apesar dos planos em contrário de Nehru, demonstra o forte desejo dos povos da índia que não falam hindi de preservar seus próprios idiomas e culturas nacionais, e a necessidade de a índia continuar sendo uma sociedade multilíngüe. Como observou o destacado filólogo Joshua Fishman, um idioma tem maior probabilidade de ser aceito como língua franca ou LCMA se não for identificado com nenhum grupo étnico, religião ou ideologia em particular. No passado, o inglês padecia de muitas dessas identificações. Mais recentemente, o inglês foi “desetnicizado” (ou ficou minimamente “etnicizado”), como ocorreu no passado histórico com o acadiano, o aramaico, o grego e o latim. “Faz parte da relativa sorte que tem o inglês como uma segunda língua que suas fontes originais britânica ou norte- americana, durante mais ou menos o último quartel de século, não tenham sido consideradas de forma ampla ou profunda num contexto étnico ou ideológico.” 1 ^ Assim sendo, o uso do inglês para a comunicação inter- cultural ajuda a manter — e, na verdade, reforça — as distintas identida¬ des culturais dos povos. Precisamente porque as pessoas querem preser¬ var sua própria identidade cultural, elas utilizam o inglês para se comunicar com povos de outras culturas. ■70 Além disso, as pessoas que falam inglês pelo mundo afora estão cada vez mais falando diferentes “ingleses”. O inglês fica indigenizado e assume colorações locais que o distinguem do inglês britânico ou norte-americano e que, em casos extremos, tornam esses “ingleses” quase ininteligíveis entre si, como também ocorre com variantes do chinês. O inglês pidgin nigeriano, o inglês indiano e outras formas de inglês estão sendo incorporados em suas respectivas culturas anfitriãs, e é de se presumir que continuarão a se diferenciar de modo a se tornarem idiomas aparentados mas distintos, do mesmo modo que as línguas latinas evoluíram a partir do latim. Contudo, ao contrário do italiano, do francês e do espanhol, esses idiomas derivados do inglês serão falados apenas por uma pequena porção das pessoas de uma sociedade ou serão usados precipuamente para a comunicação entre grupos lingüísticos especiais. Todos esses processos podem ser vistos em funcionamento na índia. Por exemplo, consta que, em 1983, havia 18 milhões de pessoas que falavam inglês numa população de 733 milhões e, em 1991, havia 20 milhões numa população de 867 milhões. Por conseguinte, a propor¬ ção de pessoas que falam inglês no total da população indiana se manteve relativamente estável em cerca de dois a quatro por cento. 13 Afora uma elite relativamente reduzida, o inglês não serve sequer como língua franca. Dois professores de inglês na Universidade de Nova Delhi alegam que “a realidade prática é que, quando se viaja de Caxemira até a ponta meridional do país, em Kanyakumari, o elo de comunicação se mantém melhor através de uma forma de hindi do que através do inglês”. Além disso, o inglês indiano está assumindo muitas características diferentes próprias: está sendo indianizado, ou melhor, está ficando localizado à medida que se desenvolvem diferenças entre as diversas pessoas que falam inglês e que têm idiomas locais diferentes. 14 O inglês está sendo absorvido na cultura indiana do mesmo modo como o foram anterior¬ mente o sânscrito e o persa. Através da História, a distribuição dos idiomas pelo mundo refletiu a distribuição do poder no mundo. Os idiomas mais falados — inglês, mandarim, espanhol, francês, árabe, russo — são ou foram os idiomas de Estados imperiais, que promoveram ativamente o uso de seus idiomas por outros povos. Mudanças na distribuição do poder produziram mudanças no uso de idiomas. “Dois séculos de poder britânico e norte-americano em termos coloniais, comerciais, industriais, científicos e financeiros deixaram um legado substancioso no ensino superior, na administração pública, no comércio internacional e na tecnologia” pelo 7a mundo afora. 15 A Grã-Bretanha e a França insistiam no uso de seus idiomas nas suas colônias. Entretanto, após a independência, a maioria das ex-colônias tentou, com graus diferentes de empenho e de êxito, substituir o idioma imperial por idiomas autóctones. Durante o apogeu da União Soviética, o russo era a língua franca de Praga a Hanói. O declínio do poder russo foi acompanhado por um declínio paralelo no uso do russo como segunda língua. Como acontece com outras formas de cultura, o poder maior gera tanto uma maior afirmação lingüística por parte dos que têm o idioma como língua materna, como mais incentivos para aprender esse idioma por parte de outros. Nos dias inebriantes logo após a queda do Muro de Berlim e quando parecia que uma Alemanha unida era o novo gigante, registrou-se uma tendência perceptível para que alemães que eram fluentes em inglês falassem em alemão em reuniões internacionais. O poder econômico japonês estimulou o apren¬ dizado do japonês por não-japoneses, e o desenvolvimento econômico da China está produzindo um surto semelhante em relação ao chinês. Este idioma está rapidamente superando o inglês como a língua predo¬ minante em Hong Kong 16 e, dado o papel dos chineses de ultramar no Sudeste Asiático, o chinês tomou-se o idioma no qual é conduzida grande parte dos negócios internacionais nessa área. À medida que vai gradual¬ mente declinando o poder do Ocidente em relação ao de outras civilizações, o uso do inglês e de outros idiomas ocidentais em outras sociedades e para a comunicação entre sociedades também irá se erodindo lentamente. Se, em algum ponto do futuro distante, a China substituir o Ocidente como a civilização predominante no mundo, o inglês cederá lugar ao mandarim como língua franca mundial. A medida que as antigas colônias se moviam no rumo da indepen¬ dência e se tornavam independentes, a promoção ou o uso dos idiomas nativos e a supressão dos idiomas imperiais eram uma forma pela qual as elites nacionalistas se distinguiam dos colonizadores ocidentais e definiam sua própria identidade. Entretanto, após a independência, as elites dessas sociedades precisavam se distinguir das pessoas comuns das mesmas sociedades. Isso era conseguido pela fluência em inglês, francês ou outro idioma ocidental. Em conseqüência, as elites das sociedades não-ocidentais freqüentemente têm maior capacidade para se comunica¬ rem com os ocidentais e entre si do que com as pessoas de suas próprias sociedades (numa situação semelhante à que se deu no Ocidente nos séculos XVII e XVIII, quando os aristocratas de diferentes países podiam se comunicar facilmente entre si em francês, mas não conseguiam falar o vernáculo de seus próprios países). Duas tendências opostas parecem estar em andamento nas sociedades não-ocidentais. Por um lado, o inglês está sendo cada vez mais utilizado no nível universitário para habilitar os diplomados a atuarem de modo eficiente na competição global por capitais e fregueses. Por outro lado, as pressões sociais e políticas levam cada vez mais ao uso mais generalizado dos idiomas autóctones, com o árabe substituindo o francês no norte da África, o urdu substituindo o inglês como o idioma do governo e do ensino no Paquistão, e a mídia no idioma nativo substituindo a mídia em inglês na índia. Esse desdo¬ bramento foi previsto pela Comissão de Educação indiana em 1948, quando ela sustentou que “o uso do inglês (...) divide o povo em duas nações, os poucos que governam e os muitos que são governados, uns incapazes de falar o idioma dos outros e sem se compreenderem mutuamente”. Quarenta anos depois, a persistência do inglês como o idioma da elite confirmou essa previsão e criou “uma situação antinatural numa democracia em funcionamento, baseada no sufrágio adulto (...). A índia que fala inglês e a índia politicamente consciente divergem cada vez mais”, estimulando “tensões entre a minoria no topo, que sabe inglês, e os muitos milhões — armados com o voto —, que não o sabem”. 17 Na medida em que as sociedades não-ocidentais implantem instituições democráticas e as pessoas dessas sociedades participem de forma mais ampla do governo, o uso de idiomas ocidentais declinará e os idiomas autóctones irão predominar. O fim do império soviético e da Guerra Fria promoveu a proliferação e o rejuvenescimento de idiomas que tinham sido suprimidos ou esquecidos. Na maioria das ex-repúblicas soviéticas, vêm sendo envida¬ dos grandes esforços por ressuscitar os idiomas tradicionais. O estoniano, o letão, o lituano, o ucraniano, o georgiano e o armênio são atualmente os idiomas nacionais de Estados independentes. Entre as repúblicas muçulmanas ocorreu uma afirmação lingüística análoga e o azerbaijano, o quirguízio, o turcomano e o uzbeque passaram dos caracteres cirílicos dos seus antigos senhores russos para os caracteres ocidentais de seus parentes turcos, enquanto que no Tadjiquistão, onde se fala persa, adotaram-se os caracteres árabes. Os sérvios, por outro lado, agora denominam seu idioma de sérvio em vez de servo-croata, e passaram dos caracteres ocidentais de seus inimigos católicos para os caracteres cirílicos de seus parentes russos. Em ações paralelas, os croatas agora chamam seu idioma de croata e estão tentando expurgá-lo das palavras turcas e de outras palavras estrangeiras, enquanto que “os mesmos empréstimos turcos e árabes, um sedimento lingüístico deixado pela presença de 450 anos do Império Otomano nos Bálcãs, voltaram a ser moda” na Bósnia. 18 O idioma é realinhado e reconstruído a fim de ficar de acordo com as identidades e os perfis das civilizações. À medida que o poder se difunde, o mesmo ocorre com a Babelização. Religião . O surgimento de uma religião universal tem uma proba¬ bilidade apenas ligeiramente maior do que o de um idioma universal Na parte final do século XX constatou-se um ressurgimento global de religiões em todo o mundo (ver pp. 115-124). Esse ressurgimento implicou a intensificação da consciência religiosa e a ascensão de movimentos fundamentalistas. Reforçaram-se assim as diferenças entre as religiões. Isso não envolve, necessariamente, mudanças significativas nas propor¬ ções da população mundial que seguem as diferentes religiões. Os dados disponíveis sobre os seguidores das religiões são ainda mais fragmentᬠrios e menos confiáveis do que os dados disponíveis sobre os que falam determinados idiomas. O Quadro 3-3 apresenta cifras extraídas de uma fonte amplamente usada. Esses e outros dados sugerem que a força numérica relativa das religiões ao redor do mundo não mudou de forma espetacular neste século. A maior mudança registrada por essa fonte foi o aumento da proporção de pessoas classificadas como “sem religião” e ateus , de 0,2 por cento em 1900 para 20,9 por cento em 1980. Pode-se supor que isso reflete um afastamento importante da religião e o fato de Quadro 3.3 Proporção da População Mundial que Segue as Principais Tradições Religiosas (em porcentagens) Religião 1900 1970 1980 1985(e$t.) 2000(est.) Cristã ocidental Cristã ortodoxa Muçulmana Sem religião Hindu Budista Chinesa popular Tribal Ateus 26,9 7.5 12.4 0,2 12.5 7,8 23.5 6.6 0,0 30.6 3,1 15,3 15,0 12,8 6.4 5,9 2.4 4.6 30,0 2,8 16.5 16,4 13,3 6,3 4.5 2,1 4,5 29,7 2,7 17,1 16.9 13,5 6,2 3.9 19 4,4 29,9 2.4 19.2 17,1 13,7 5,7 2.5 1.6 4.2 j.Z%^n hrt f' ían /^ yd ? P ?? ía; A com P ara,ive slud y ofchurchesandreligions in the modem world /A.D. 1900 ?ooo 1 ' oped . ia í nsla ^ und ! al: um es,ud0 comparativo de igrejas e religiões no mundo moderno / 1900 2000 d.C.J, organizado por David B. Barret (Oxford: Oxford University Press, 1982). que, em 1980, o ressurgimento religioso estava apenas começando a tomar ímpeto. No entanto, esse aumento de 20,7 por cento de não-crentes é acompanhado de perto por um decréscimo de 19 por cento daqueles classificados como seguidores de “religiões populares chinesas , de 23,5 por cento em 1900 para 4,5 por cento em 1980. Esse aumento e esse decréscimo, praticamente iguais, sugerem que, com o advento do comunismo, o grosso da população da China foi simplesmente reclas- sificado de seguidores de religiões populares para não-crentes. Os dados mostram aumentos nas proporções da população mundial dos que seguem as duas maiores religiões proselitistas, o Islamismo e o Cristianismo, durante 80 anos. Estimava-se que os cristãos ocidentais eram 26,9 por cento da população mundial em 1900 e 30 por cento em 1980. Os muçulmanos aumentaram de forma mais notável, de 12,4 por cento em 1900 para 16,5 por cento — ou, segundo outras estimativas, 18 por cento — em 1980. Durante as últimas décadas do século XX, tanto o Islã como o Cristianismo expandiram de modo significativo o número de fiéis na África, e na Coréia do Sul ocorreu um grande deslocamento na direção do Cristianismo. Nas sociedades que se estão modernizando rapidamente, nas quais a religião tradicional não foi capaz de se adaptar às exigências da modernização, há um potencial para a disseminação do Cristianismo ocidental e do Islã. Nessas sociedades, os protagonistas da cultura ocidental mais bem-sucedidos não são os economistas neoclás¬ sicos, nem os pregadores democratas, nem os dirigentes de empresas multinacionais. São, e muito provavelmente continuarão sendo, os missionários cristãos. Nem Adam Smith nem Thomas Jefferson satisfarão as necessidades psicológicas, emocionais, morais e sociais dos migrantes urbanos e da primeira geração de formados do 2 S Grau. É possível que Jesus Cristo tampouco as satisfaça, mas Ele tenderá a ter maiores possibilidades. A longo prazo, entretanto, Maomé sai ganhando. O Cristianismo se difunde precipuamente pela conversão, o Islamismo pela conversão e pela reprodução. A porcentagem de cristãos no mundo chegou ao seu auge — em tomo de 30 por cento — na década de 80, se estabilizou e agora está declinando, devendo provavelmente se aproximar de uns 25 por cento da população mundial ao se chegar a 2025- Em conseqüência de suas elevadíssimas taxas de crescimento populacional (ver Capítulo 9), a proporção de muçulmanos no mundo continuará a aumentar de forma notável, devendo totalizar 20 por cento da população mundial perto da virada do século, ultrapassando o número de cristãos alguns anos depois e provavelmente respondendo por cerca de 30 por cento da população mundial por volta de 2025. 19 Civilização Universal: Fontes O conceito de uma civilização universal é um nítido produto da civiliza¬ ção ocidental. No século XIX, a idéia do “fardo do homem branco” ajudou a justificar a expansão do domínio político e econômico ocidental sobre as sociedades não-ocidentais. No final do século XX, o conceito de uma civilização universal ajuda a justificar o predomínio cultural do Ocidente sobre outras sociedades e a necessidade para essas sociedades de imitar as práticas e as instituições ocidentais. O universalismo é a ideologia do Ocidente para confrontações com culturas não-ocidentais. Como cos¬ tuma acontecer com elementos fronteiriços e convertidos, dentre os proponentes mais entusiásticos da idéia de uma civilização única estão os imigrantes intelectuais do Ocidente, tais como Naipaul e Fouad Ajami, para quem o conceito proporciona uma resposta altamente satisfatória para a pergunta central: quem sou eu? Entretanto, um intelectual que não abandonou seu legado não-ocidental denominou aqueles que o fizeram de “o tipo de negro predileto do homem branco”. 20 Além disso, a noção de uma civilização universal encontra pouco apoio em outras civilizações. Os não-ocidentais vêem como ocidental o que ó Ocidente vê como universal. Aquilo que os ocidentais alardeiam como uma benfazeja integração global, tal como a proliferação da mídia em escala mundial, os não-ocidentais condenam como pernicioso imperialismo ocidental. Na medida em que não-ocidentais vêem o mundo como um só, eles o consideram uma ameaça. Os argumentos de que algum tipo de civilização universal está emergindo se baseiam em uma ou mais pressuposições sobre por que deve ser assim. Inicialmente, existe a pressuposição, examinada no Capítulo 1, de que o desmoronamento do comunismo soviético significou o fim da História e a vitória universal da democracia liberal no mundo todo. Esta colocação padece da Falácia da Alternativa Única. Ela tem suas raízes na perspectiva da Guerra Fria de que a única alternativa para o comunismo é a democracia liberal, e que o fracasso do primeiro produz a universalidade da segunda. Obviamente, porém, há muitas formas de autoritarismo, de nacionalismo, de corporativismo e de comunismo de mercado (como na China) que estão indo muito bem no mundo atual. Mais importante ainda, há todas aquelas alternativas religiosas que se situam fora do mundo que é percebido em termos de ideologias seculares. No mundo moderno, a religião é uma força central, talvez a força central, que motiva e mobiliza as pessoas. É pura arrogância pensar que, porque o comunismo soviético desmoronou, o Ocidente ganhou o mundo para sempre e que os muçulmanos, os chineses, os indianos e outros vão se precipitar para abraçar o liberalismo ocidental como a única alternativa. A divisão da Humanidade em termos de Guerra Fria acabou. As divisões mais fundamentais da Humanidade em termos de etnias, religiões e civilizações permanecem e geram novos conflitos. Em segundo lugar, existe a pressuposição de que uma maior interação entre os povos — de forma geral, o comércio exterior, os investimentos, o turismo, a mídia, as comunicações eletrônicas está gerando uma cultura mundial comum. Os avanços na tecnologia de transportes e comunicações de fato tomaram mais fácil e mais barato movimentar dinheiro, bens, pessoas, conhecimento, idéias e imagens ao redor do mundo. Não há dúvida alguma quanto ao aumento do tráfego internacional desses itens. Entretanto, existem muitas dúvidas quanto ao impacto desse tráfego mais intenso. O comércio exterior aumenta ou diminui a probabilidade de conflito? A pressuposição de que ele reduz a probabilidade de guerra, no mínimo, ainda não está provada, e existem muitos indícios no sentido contrário. O comércio internacional se expan¬ diu de forma significativa nos anos 60 e 70 e, ao se chegar a 1980, representava 15 por cento do produto bruto internacional. Na década seguinte, a Guerra Fria acabou. Em 1913, porém, o comércio internacional representava 33 por cento do produto bruto internacional, e, nos anos imediatamente posteriores, as nações cometeram carnificinas umas con¬ tra as outras, atingindo cifras sem precedentes. 21 Se o comércio interna¬ cional nesse nível de intensidade não pode impedir a guerra, então quando poderá? As provas simplesmente não confirmam a pressuposição liberal, intemacionalista, de que o comércio promove a paz. Análises realizadas nos anos 90 ainda aumentam as dúvidas quanto a essa pressuposição. Um estudo concluiu que “o aumento dos níveis de comércio exterior pode constituir uma força altamente divisionista (...) para a política internacional” e que “o aumento do comércio no sistema internacional tem, por si só, pouca probabilidade de aliviar as tensões internacionais ou promover maior estabilidade internacional”. 22 Um outro estudo sustenta que níveis elevados de interdependência econô¬ mica “tanto podem induzir à paz como podem induzir à guerra, depen¬ dendo das expectativas do comércio futuro”. A interdependência econô- mica só propicia a paz “quando os Estados esperam que os altos níveis de comércio exterior sejam mantidos no futuro previsível”. Se os Estados não esperam que elevados níveis de interdependência sejam mantidos, é provável que se termine numa guerra. 23 O fato de que o comércio exterior e as comunicações não foram capazes de produzir a paz ou um sentimento comum está acorde com as constatações a que chegaram as ciências sociais. Na psicologia social, a teoria da diferenciação sustenta que as pessoas se definem por aquilo que as torna diferentes das demais num contexto em especial: “Uma pessoa tem uma percepção de si mesma em termos das características que a distinguem de outros seres humanos, principalmente dos demais no círculo social habitual dessa pessoa (...) uma psicóloga, na companhia de uma dezena de mulheres que trabalham em outros ramos de atividade, pensará em si mesma como uma psicóloga; se estiver junto com uma dezena de psicólogos (todos do sexo masculino), ela pensará em si como uma mulher”. 24 As pessoas definem sua identidade pelo que não são. À medida que uma maior intensificação das comunicações, do comércio exterior e das viagens internacionais multiplicam as interações entre as civilizações, as pessoas atribuem uma importância cada vez maior à sua identidade civilizacional. Dois europeus — um alemão e um francês —, interagindo um com o outro, identificarão um ao outro como alemão e francês. Dois europeus — um alemão e um francês —, interagindo com dois árabes — um saudita e um egípcio —, se definirão como europeus e árabes. A emigração de pessoas do Norte da África para a França gera hostilidade dos franceses e, ao mesmo tempo, uma maior receptividade à imigração de europeus poloneses católicos. Os norte-americanos reagem de forma muito mais negativa aos investimentos japoneses do que aos investimentos maiores do Canadá e de países europeus. Analo¬ gamente, como ressaltou Donald Horowitz, “um Ibo pode ser (...) um Ibo Owerri ou um Ibo Onitsha no que era a região oriental da Nigéria. Em Lagos, ele é simplesmente um Ibo. Em Londres, ele é um nigeriano. Em Nova York, ele é um africano”. 25 Na sociologia, a teoria da globali¬ zação chega a uma conclusão semelhante: “num mundo crescentemente globalizado — caracterizado por graus historicamente excepcionais de interdependência civilizacional, societária e de outras modalidades, e de uma ampla percepção delas —, há uma exacerbação da autoconsciência civilizacional, societária e étnica”. O renascimento religioso em escala mundial, “a volta ao que é sagrado”, é uma resposta à percepção popular do mundo como “um único lugar”. 26 O Ocidente e a Modernização O terceiro e mais generalizado argumento em apoio da tese do surgi¬ mento de uma civilização universal a vê como resultante dos amplos processos de modernização que estão se desenvolvendo desde o século XVIII. A modernização envolve industrialização, urbanização, níveis crescentes de alfabetização, educação, riqueza e mobilidade social e estruturas ocupacionais mais complexas e diversificadas. A modernização é um produto da tremenda expansão do conhecimento científico e de engenharia que começou no século XVIII e que habilitou os seres humanos a controlar e moldar seu meio ambiente de modos inteiramente sem precedentes. A modernização é um processo revolucionário somente comparável à mudança das sociedades primitivas para as civilizadas, ou seja, o surgimento da civilização (no singular), que começou nos vales do Tigre e do Eufrates, do Nilo e do Indus por volta de 5000 a.C. 27 As atitudes, os valores, o conhecimento e a cultura das pessoas numa sociedade moderna diferem enormemente dos de uma sociedade tradi¬ cional. Na condição de primeira civilização a se modernizar, o Ocidente lidera a aquisição da cultura da modernidade. À medida que outras sociedades adquirirem padrões semelhantes de educação, trabalho, riqueza e estrutura de classes, prossegue a argumentação, essa moderna cultura ocidental se transformará na cultura universal do mundo. É indiscutível que existem diferenças significativas entre as culturas modernas e tradicionais. Isso, entretanto, não quer necessariamente dizer que as sociedades com culturas modernas se parecem mais umas com as outras do que com as sociedades tradicionais. Obviamente, um mundo em que algumas sociedades sejam altamente modernas e outras ainda sejam tradicionais será um mundo menos homogêneo do que um mundo no qual todas as sociedades se encontrem em níveis de modernidade comparativamente altos. Porém, o que dizer de um mundo no qual todas as sociedades fossem tradicionais? Esse mundo existiu há algumas centenas de anos. Seria ele algo menos homogêneo do que poderá ser um futuro mundo de modernidade universal? Possivelmente não. Braudel sustenta que “a China da dinastia Ming (...) certamente estava mais perto da França dos reis Valois do que a China de Mao Tsé-tung está da França da Quinta República”. 28 No entanto, as sociedades modernas poderiam se parecer umas com as outras mais do que as sociedades tradicionais, por duas razões. A primeira é que uma maior interação entre sociedades modernas pode não gerar uma cultura comum, porém ela de fato facilita a transferência de técnicas, invenções e práticas de uma sociedade para outra com uma velocidade e num grau impossíveis num mundo tradicional. A segunda é que a sociedade tradicional estava baseada na agricultura, enquanto que a sociedade moderna está baseada na indústria, a qual pode evoluir de manufaturas para a indústria pesada clássica e, depois, para a indústria baseada no conhecimento. Os padrões da agricultura e a estrutura social que os acompanha dependem muito mais do ambiente natural do que os padrões da indústria. Eles variam com o solo e o clima e podem assim dar origem a formas diferentes de propriedade da terra, de estrutura social e de governo. Quaisquer que sejam os méritos gerais da tese de Wittfogel da civilização hidráulica, a agricultura dependente da construção e operação de extensos sistemas de irrigação de fato propicia o surgimento de autoridades burocráticas e centralizadas. Dificilmente poderia ser de outro modo. Solos férteis e clima bom têm a probabilidade de estimular o desenvolvimento da agricultura de plantio em larga escala e uma conseqüente estrutüra social que envolva uma pequena classe de ricos proprietários de terras e uma grande classe de camponeses, escravos ou servos que trabalham nas plantações. Condições adversas para a agricul¬ tura em larga escala podem estimular o surgimento de uma sociedade de fazendeiros independentes. Em suma, nas sociedades agrícolas, a estrutura social é moldada pela geografia. A indústria, aò contrário, depende muito menos do meio ambiente natural do lugar. As diferenças da organização industrial provavelmente decorrerão das diferenças de cultura e de estrutura social em vez da geografia, sendo que as primeiras têm a possibilidade de convergir, enquanto que a segunda não. As sociedades modernas têm portanto muito em comum. Mas será que elas necessariamente se fundem na homogeneidade? O argumento de que assim é se apoia na pressuposição de que a sociedade moderna deve se aproximar de um tipo único, o tipo ocidental, de que a civilização moderna é a civilização ocidental e de que a civilização ocidental é a sociedade moderna. Isso, porém, é uma identificação totalmente falsa. A civilização ocidental emergiu nos séculos VIII e IX e desenvolveu suas características diferencia- doras nos séculos que se seguiram. Ela só começou a se modernizar nos séculos XVII e XVIII. O Ocidente era o Ocidente muito antes de ser moderno. As características fundamentais do Ocidente, aquelas que o distinguem das demais civilizações, antecedem a modernização do Ocidente. Quais eram essas características diferenciadoras da sociedade oci¬ dental durante as centenas de anos anteriores à sua modernização? Diversos estudiosos apresentaram a essa pergunta respostas que diferem em alguns pontos específicos, mas coincidem a respeito de umas quantas instituições, práticas e crenças que podem legitimamente ser identificadas como o cerne da civilização ocidental. Dentre elas estão as expostas a seguir. 29 O legado clássico . Na condição de uma civilização de terceira geração, o Ocidente herdou muito de civilizações anteriores, dentre elas sobretudo da civilização clássica. São muitos os legados recebidos pelo Ocidente da civilização clássica, inclusive a filosofia e o racionalismo gregos, o Direito Romano, o latim e o Cristianismo. As civilizações islâmica e ortodoxa também herdaram da civilização clássica, porém longe do grau herdado pelo Ocidente. Catolicismo e Protestantismo. O Cristianismo ocidental, primeiro Catolicismo e depois Catolicismo e Protestantismo, é, do ponto de vista histórico, a característica isolada mais importante da civilização ocidental. De fato, durante a maior parte do primeiro milênio, o que é atualmente conhecido como civilização ocidental era chamado de Cristandade ocidental. Nela havia um sentimento bem desenvolvido de comunidade entre os povos cristãos ocidentais, de que eram diferentes dos turcos, mouros, bizantinos e outros, e foi tanto por Deus como pelo ouro que os ocidentais partiram para conquistar o mundo no século XVI. A Reforma e a Contra-Reforma, bem como a divisão da Cristandade ocidental num norte protestante e num sul católico, são também aspectos característicos da história ocidental, inteiramente inexistentes na Ortodoxia oriental e em larga margem distanciados da experiência latino-americana. Idiomas europeus. O idioma só fica em segundo lugar para a religião como um fator que distingue as pessoas de uma cultura das de outra. O Ocidente se diferencia da maioria das outras civilizações por sua multi¬ plicidade de idiomas. O japonês, o hindi, o mandarim, o russo e até mesmo o árabe são reconhecidos como os idiomas-núcleos de suas civilizações. O Ocidente herdou o latim, porém surgiu uma variedade de nações e com elas os idiomas nacionais, agrupados de forma ampla nas grandes categorias de línguas latinas e línguas germânicas. Ao se chegar ao século XVI, esses idiomas haviam, de maneira geral, assumido sua forma contemporânea. Na qualidade de idioma internacional comum ao Ocidente, o latim cedeu lugar ao francês, o qual, por sua vez, foi no século XX superado pelo inglês. Separação da autoridade espiritual e temporal. Através de toda a História ocidental, primeiro a Igreja e depois as muitas igrejas viveram oo separadas do Estado. Deus e César, Igreja e Estado, autoridade espiritual e autoridade temporal foram um dualismo que prevaleceu na cultura ocidental. Somente na civilização hindu a religião e a política estavam também separadas de forma tão nítida. No Islã, Deus é César; na China e no Japão, César é Deus; na Ortodoxia, Deus é o sócio menor de César. A separação e os repetidos choques entre Igreja e Estado, que tipificaram a civilização ocidental, jamais ocorreram em qualquer outra civilização. Essa divisão da autoridade contribuiu de forma incomensurável para o desenvolvimento da liberdade no Ocidente. Império da lei. A noção de que a lei é um elemento essencial da existência civilizada foi herdada dos romanos. Os pensadores medievais elaboraram a idéia do direito natural, segundo o qual os monarcas deviam exercer seu poder, e uma tradição de direito comum se desenvolveu na Inglaterra. Durante a fase do Absolutismo, nos séculos XVI e XVII, o império da lei foi mais violado do que respeitado, porém persistiu a idéia da subordinação do poder dos homens a algum controle externo: “ Non sub homine sed sub Deo et lege" A tradição do império da lei assentou as bases para o constitucionalismo e a proteção dos direitos humanos, inclusive os direitos de propriedade, e também contra o exercício do poder arbitrário. Na maioria das civilizações, a lei foi um fator muito menos importante na formação do pensamento e do comportamento. Pluralismo social Historicamente, a sociedade ocidental tem sido altamente pluralista. Como observa Deutsch, o que é específico do Ocidente “é a ascensão e persistência de diversos grupos autônomos não baseados em relações de sangue ou casamento”. 30 A partir dos séculos VI e VIII, esses grupos inicialmente incluíam mosteiros, ordens monás¬ ticas e ligas, porém depois se expandiram para incluir, em muitas áreas da Europa, uma variedade de outras associações e sociedades. 31 O pluralismo associativo foi suplementado pelo pluralismo de classes. A maioria das sociedades européias ocidentais incluiu uma aristocracia relativamente forte e autônoma, um campesinato substancioso e uma classe pequena porém importante de mercadores e comerciantes. A força da aristocracia feudal foi especialmente importante para a limitação do grau com que o Absolutismo conseguiu firmar raízes na maioria das nações européias. Esse pluralismo europeu contrasta de forma aguda com a pobreza da sociedade civil, a debilidade da aristocracia e a força dos impérios burocráticos centralizados que existiram simultaneamente na Rússia, na China, em terras otomanas e em outras sociedades não-ocidentais. QÀ Corpos representativos . O pluralismo social logo levou ao surgimen¬ to de assembléias, parlamentos e outras instituições para representar os interesses da aristocracia, do clero, dos comerciantes e outros grupos. Esses órgãos proporcionavam formas de representação que, no curso do processo de modernização, evoluíram para as instituições da democracia moderna. Em alguns casos, esses órgãos foram abolidos ou seus poderes ficaram muito limitados durante o período do Absolutismo. Contudo, mesmo quando isso aconteceu, eles puderam, como na França, ser ressuscitados para proporcionar o meio para uma participação política ampliada. Nenhuma outra civilização contempor⬠nea tem um legado comparável de corpos representativos que exista há um milênio. Também em nível local, a partir do século IX, nas cidades italianas desenvolveram-se movimentos no sentido do estabelecimento de governo próprio, que depois se estenderam para o norte, “forçando bispos, barões locais e outros grandes nobres a partilhar o poder com os burgueses e, no final, muitas vezes acabaram por entregá-lo por comple¬ to”. 32 A representação em nível nacional foi assim suplementada por uma dose de autonomia em nível local que não se repetiu em outras partes do mundo. Individualismo. Muitos dos aspectos da civilização ocidental men¬ cionados acima contribuíram para o surgimento de uma noção de individualismo e uma tradição de direitos e liberdades individuais únicos dentre as sociedades civilizadas. O individualismo se desenvolveu nos séculos X3V e XV e a aceitação do direito de escolha individual — aquilo que Deutsch denomina de “a revolução de Romeu e Julieta” — se impôs no Ocidente ao se chegar ao século XVII. Até mesmo as reivindicações de direitos iguais para todos os indivíduos — “o homem mais pobre da Inglaterra tem uma vida a viver tanto quanto o homem mais rico” — foram enunciadas, ainda que não aceitas universalmente. O indivi¬ dualismo continua sendo uma marca típica do Ocidente dentre as civilizações do século XX. Numa análise que envolve amostragens semelhantes em 50 países, os 20 primeiros em que se registrou o índice de individualismo mais alto incluíram todos os países ocidentais, com exceção de Portugal e o acréscimo de Israel. 33 O autor de outro levantamento, em diferentes culturas, de individualismo e coletivismo também sublinhou, de modo análogo, o predomínio do individualismo no Ocidente, em comparação com a prevalência do coletivismo em outras áreas, e chegou à conclusão de que “os valores que são mais importantes no Ocidente são menos importantes no resto do mundo”. De forma nr reiterada, tanto os ocidentais como os não-ocidentais apontam o in¬ dividualismo como a principal marca típica do Ocidente. 34 A listagem feita acima não pretende ser uma enumeração exaustiva das características próprias da civilização ocidental. Nem pretende impli¬ car que essas características estejam presentes sempre e de modo universal na sociedade ocidental. É evidente que não estão: os muitos déspotas da História ocidental ignoraram sistematicamente o império da lei e suspenderam o funcionamento de órgãos representativos. Nem pretende ela sugerir que nenhuma dessas características apareceu em outras civilizações. É claro que aparecem: o Corão e a shari’a constituem a lei básica nas sociedades islâmicas; o Japão e a índia têm sistemas de classes paralelos aos do Ocidente (e talvez, como resultado disso, sejam as duas únicas grandes sociedades não-ocidentais que mantiveram governos democráticos por algum tempo). Individualmente, quase ne¬ nhum desses fatores foi exclusivo do Ocidente. Entretanto, a combinação deles, sim, e foi isso que atribuiu ao Ocidente sua condição singular. Essas concepções, práticas e instituições simplesmente foram mais pre¬ dominantes no Ocidente do que em outras civilizações. Elas formam pelo menos parte do núcleo ininterrupto essencial da civilização ocidental. Elas são o que é ocidental porém não moderno no Ocidente. Elas são também, em grande medida, os fatores que habilitaram o Ocidente a assumir a liderança no processo de modernizar a si próprio e ao mundo. Reações ao Ocidente e à Modernização A expansão do Ocidente promoveu ao mesmo tempo a modernização e a ocidentalização das sociedades não-ocidentais. Os líderes políticos e intelectuais dessas sociedades reagiram ao impacto ocidental de uma dessas três formas: rejeitando tanto a modernização como a ocidentali¬ zação, abraçando ambas ou abraçando a primeira e rejeitando a segun¬ da. 35 Rejeicionismo. O Japão seguiu um curso substancialmente rejei- cionista desde os seus primeiros contatos com o Ocidente, em 1542, até meados do século XIX. Só foram permitidas formas limitadas de moder¬ nização, tais como a aquisição de armas de fogo, e foi severamente restringida a importação da cultura ocidental, inclusive e principalmente o Cristianismo. Os ocidentais foram todos expulsos em meados do século XVII. Essa postura rejeicionista chegou ao fim com a abertura forçada do Japão pelo comodoro Perry em 1854 e com os notáveis esforços para RA f I aprender com o Ocidente após a Restauração Meiji em 1868. Durante vários séculos, também a China tentou barrar qualquer modernização ou ocidentalização de monta. Embora tivesse sido permitido o ingresso na China de emissários cristãos em 1601, eles foram depois excluídos de forma efetiva em 1722. Ao contrário do Japão, a política rejeicionista da China estava em grande parte fundada na imagem que a China fazia de si própria como o Reino do Meio e na firme crença da superioridade da cultura chinesa em relação à de todos os outros povos. O isolamento chinês, tal como o isolamento japonês, foi encerrado pelas armas ocidentais, usadas na China pelos britânicos durante a Guerra do Ópio de 1839-1842. Como esses casos indicam, durante o século XEX, o poderio ocidental tornou cada vez mais difícil e acabou por tornar impossível para as sociedades não-ocidentais manter estratégias puramente exclu- sionistas. No século XX, os avanços em transportes e comunicações e a interdependência global aumentaram tremendamente o custo da exclu¬ são. Com exceção de comunidades rurais pequenas e isoladas, dispostas a viver num nível de subsistência, a rejeição total da modernização, bem como da ocidentalização, mal chega a ser possível num mundo que se está tomando predominantemente moderno e profundamente interliga¬ do. Daniel Pipes escreve, referindo-se ao Islã, que “somente os fun- damentalistas mais extremados rejeitam a modernização, bem como a ocidentalização. Eles atiram aparelhos de televisão nos rios, proíbem relógios de pulso e rejeitam o motor de combustão interna. Entretanto, a impraticabilidade de seu programa limita enormemente a capacidade de atração desses grupos e, em vários casos — tais como os Yen Izala de Kano, os assassinos de Sadat, os atacantes da mesquita em Meca e alguns grupos dakwah na Malásia —, suas derrotas em confrontos violentos com as autoridades fizeram com que eles desaparecessem deixando poucos vestígios”. 36 O desaparecimento com poucos vestígios resume, de forma geral, o destino das políticas puramente rejeicionistas ao se chegar ao final do século XX. O fanatismo, para usar o termo de Toynbee, simplesmente não é uma opção viável. Kemalismo . Uma segunda possível reação ao Ocidente é o hero- dianismo a que se refere Toynbee, ou seja, abraçar tanto a modernização como a ocidentalização. Essa reação está baseada nas pressuposições de que a modernização é desejável e necessária, de que a cultura autóctone deve ser abandonada ou abolida e de que a sociedade deve se ociden- 0*1 talizar por completo, a fim de ter êxito na sua modernização. A moderni¬ zação e a ocidentalização se reforçam mutuamente e têm que ir juntas. Esse enfoque foi sintetizado na argumentação de alguns intelectuais japoneses e chineses do final do século XIX no sentido de que, a fim de se modernizarem, suas sociedades deviam abandonar seus idiomas históricos e adotar o inglês como idioma nacional. Não é de surpreender que esse ponto de vista tenha sido mais popular entre as elites ocidentais do que entre as não-ocidentais. Sua mensagem é; ‘Tara serem bem-su¬ cedidos, vocês têm que ser como nós; nosso modo é o único modo.” O argumento é de que “os valores religiosos, os pressupostos morais e as estruturas sociais dessas sociedades [não-ocidentais] são, na melhor das hipóteses, estranhas, e por vezes hostis, aos valores e às práticas do industrialismo.” Por conseguinte, o desenvolvimento econômico irá “exigir uma reformulação radical e destrutiva da vida e da sociedade e, muitas vezes, uma reinterpretação do significado da própria existência tal como foi entendida pelas pessoas que vivem nessas civilizações”. 57 Pipes faz o mesmo raciocínio referindo-se explicitamente ao Islã: Para escapar à anomia, os muçulmanos só têm uma escolha, pois a modernização requer a ocidentalização (...). O Islamismo não oferece um meio alternativo para se modernizar (...). O secularismo não pode ser evitado. A ciência e a tecnologia modernas exigem uma absorção dos processos de raciocínio que as devem acompanhar; o mesmo se dá com as instituições políticas. Como é preciso emular o conteúdo tanto quanto a forma, o predomínio da civilização ocidental deve ser reco¬ nhecido para que se possa aprender com ela. Os idiomas europeus e os estabelecimentos de ensino ocidentais não podem ser evitados, mesmo que esses últimos encorajem o livre pensamento e a vida fácil. Só quando os muçulmanos aceitarem explicitamente o modelo ocidental, estarão em posição de se tecnicalizar e, então, se desenvolver .^ 8 i Sessenta anos antes de que essas palavras fossem escritas, Mustafá Kemal Ataturk chegou a conclusões semelhantes, criou uma nova Turquia das ruínas do Império Otomano e desencadeou um esforço maciço tanto para ocidentalizá-la como para modernizá-la. Ao embarcar nessa rota e rejeitar o passado islâmico, Ataturk fez da Turquia um “país dividido”, uma sociedade que era muçulmana na sua religião, na sua herança, nos seus costumes e nas suas instituições, porém com uma elite dirigente decidida a torná-la moderna, ocidental e em sintonia com o Ocidente. No final do século XX, vários países estão perseguindo a opção kemalista e tentando substituir uma identidade não-ocidental por uma ocidental. Seus esforços serão examinados no Capítulo 6. OQ Reformismo. A rejeição envolve a tarefa impossível de isolar uma sociedade do mundo moderno que está encolhendo. O kemalismo envolve a tarefa difícil e traumática de destruir uma cultura que existira durante séculos e colocar em seu lugar uma cultura inteiramente nova, importada de outra civilização. Uma terceira opção é tentar combinar a modernização com a preservação dos valores, práticas e instituições centrais da cultura autóctone dessa sociedade. Essa opção, como se pode compreender, tem sido a mais popular entre as elites não-ocidentais. Na China, nas últimas etapas da dinastia Ching, o slogan era Ti-Yong : “Ensino chinês para os princípios fundamentais, ensino ocidental para uso prático.” No Japão era Wakon, Yosei : “Espírito japonês, técnica ocidental.” No Egito, na década de 1830, Muhammad Ali “tentou a modernização técnica sem uma ocidentalização cultural excessiva”. Entretanto, essa tentativa fracassou quando os britânicos o forçaram a abandonar a maioria de suas reformas modernizadoras. Em conseqüência, observa Ali Mazrui, “o destino do Egito não foi um destino japonês de modernização sem a ocidentalização cultural, nem foi um destino tipo Ataturk de modernização técnica através da ocidentalização cultural”. 59 Na parte final do século XIX, porém, Jamal al-Din al-Afghani, Muhammad AJbduh e outros reformadores tentaram uma nova reconciliação do Islã com a modernidade, sustentando “a compatibilidade do Islã com a ciência moderna e o que há de melhor no pensamento ocidental”, e oferecendo as “razões do Islã para aceitar idéias e instituições modernas, sejam científicas, tecnológicas ou políticas (constitucionalismo e governo repre¬ sentativo)”. 40 Tratava-se de um reformismo de grande amplitude, tenden¬ do para o kemalismo, que aceitava não só a modernidade, como também algumas das instituições ocidentais. O reformismo desse tipo foi a reação ao Ocidente que predominou entre as elites muçulmanas durante 50 anos, da década de 1870 até a de 1920, quando ela foi contestada pela ascensão do kemalismo e, posteriormente, a de um reformismo muito mais puro, sob a forma do fundamentalismo. O rejeicionismo, o kemalismo e o reformismo se baseiam em pressupostos diferentes quanto ao que é possível e o que é desejável. Para o rejeicionismo, tanto a modernização quanto a ocidentalização são indesejáveis, e é possível rejeitar ambas. Para o kemalismo, tanto a modernização quanto a ocidentalização são desejáveis, a segunda porque é indispensável para lograr a primeira, e ambas são possíveis. Para o reformismo, a modernização é desejável e possível sem uma ocidentali¬ zação substancial, que é indesejável. Existem portanto conflitos entre o GQ rejeicionismo e o kemalismo quanto à desejabilidade da modernização e da ocidentalização, e entre o kemalismo e o reformismo quanto a se a modernização pode ocorrer sem a ocidentalização. A Figura 3-1 apresenta um diagrama desses três cursos de ação. O rejeicionista permaneceria no Ponto A; o kemalista se deslocaria ao longo da diagonal para o Ponto B; o reformista se moveria horizontalmente para o Ponto C. Entretanto, ao longo de que caminho as 'sociedades de fato se moveram? Obviamente, cada sociedade não-ocidental seguiu o seu próprio curso, que pode diferir de modo substancial desses três caminhos prototípicos. Mazrui chega até a sustentar que o Egito e a África se moveram em direção ao Ponto D através de um “penoso processo de ocidentalização cultural sem a modernização técnica”. Na medida em que exista qualquer padrão generalizado de modernização e ocidentalização nas reações das sociedades não-ocidentais ao Ocidente, ele pareceria estar ao longo da curva A — E. No princípio, a ocidentalização e a Figura 3.1 Reações Alternativas ao Impacto do Ocidente O A modernização estão intimamente ligadas, com a sociedade não-ocidental absorvendo elementos substanciais da cultura ocidental e progredindo lentamente rumo à modernização. Entretanto, à medida que o ritmo de modernização aumenta, a taxa de ocidentalização diminui e a cultura autóctone passa por um período de renascimento. Modernização adicio¬ nal então altera o equilíbrio de poder civilizacional entre o Ocidente e a sociedade não-ocidental, revigora o poder e a autoconfiança dessa sociedade e reforça o compromisso com a cultura autóctone. Assim sendo, nas fases iniciais da mudança, a ocidentalização promove a modernização. Nas fases posteriores, a modernização promo¬ ve a desocidentalização e o ressurgimento da cultura autóctone de duas maneiras. No nível societário, a modernização amplia o poder econômi¬ co, militar e político da sociedade como um todo e incentiva as pessoas dessa sociedade a terem confiança na sua cultura e se tornarem cultural¬ mente afirmativas. No nível individual, a modernização gera sentimentos de alienação e anomia, à medida que laços tradicionais e relações sociais são rompidos, e conduz a crises de identidade, para as quais a religião dá uma resposta. Esse fluxo causal está apresentado de uma forma simples na Figura 3-2. Esse modelo geral hipotético é congruente tanto com as teorias das ciências sociais como com a experiência histórica. Examinando em profundidade as indicações disponíveis relativas à “hipótese da invaria- bilidade”, Rainer Baum chega à conclusão de que “a contínua busca pelo Homem de uma autoridade efetiva e de uma autonomia pessoal efetiva se dá de maneiras culturalmente distintas. Nessas matérias não há convergência na direção de um mundo homogeneizante das culturas. Em vez disso, parece haver uma invariabilidade nos padrões que foram desenvolvidos em formas distintas durante a etapa histórica e o início da etapa moderna do desenvolvimento”. 41 Tal como comentaram Frobenius, Figura 3.2 Modernização e Ressurgimento Cultural Ressurgimento cultural e religioso Spengler e Bozeman, entre outros, o tomar emprestada uma teoria acentua o grau em que as civilizações recipientes tomam emprestados, de forma seletiva, elementos de outras civilizações e os adaptam, transformam e assimilam, de modo a reforçar e assegurar a sobrevivência dos valores-núcleos ou “paideuma” de sua cultura. 42 Quase todas as civilizações não-ocidentais do mundo existem há pelo menos um milênio e, em alguns casos, há vários milênios. Elas demonstraram um índice de empréstimos tomados de outras civilizações cujo objetivo é melhorar suas próprias condições de sobrevivência. Os estudiosos concordam em que a absorção pela China do Budismo vindo da índia não produziu a “indianização” da China. Os chineses adaptaram o Budismo aos propó¬ sitos e necessidades chineses. A cultura chinesa continua chinesa. Até hoje os chineses derrotaram de modo consistente os intensos esforços ocidentais para cristianizá-los. Se, em algum momento, eles de fato importarem o Cristianismo, é de se esperar que ele será adaptado e absorvido de uma maneira que reforce o ininterrupto paideuma chinês. Analogamente, os árabes muçulmanos receberam seu “legado helénico, a ele deram valor e dele se serviram por motivos essencialmente utilitários. Estando sobretudo interessados em tomar emprestadas certas formas exteriores ou aspectos técnicos, eles sabiam como descartar todos os elementos no corpo do pensamento grego que entrariam em conflito com ‘a verdade 1 tal como estabelecida pelas normas e preceitos fun¬ damentais corânicos”. 45 O Japão seguiu o mesmo padrão. No século VII, o Japão importou a cultura chinesa e promoveu a “transformação por sua própria iniciativa, isenta de pressões econômicas e militares”, para uma alta civilização. “Durante os séculos que se seguiram, houve uma alternância entre períodos de relativo isolamento das influências conti¬ nentais, durante os quais o que havia sido tomado de empréstimo era processado e assimilado ao que era útil, e períodos de novos contatos e novos empréstimos culturais.” 44 Através de todas essas fases, a cultura japonesa permaneceu nitidamente japonesa. A forma moderada da argumentação kemalista de que as sociedades não-ocidentais podem se modernizar ao se ocidentalizar continua sem ter sido provada. A argumentação extremada de que as sociedades não-ocidentais têm que se ocidentalizar a fim de se modernizar não se sustenta como uma proposição de alcance universal. Contudo, ela de fato suscita a indagação: existem algumas sociedades não-ocidentais nas quais os obstáculos que a cultura autóctone opõe à modernização são tão grandes que é preciso substituir essa cultura de forma significativa pela cultura ocidental para que a modernização possa se dar? Em teoria, isso deveria ser mais provável em culturas consumistas do que em culturas instrumentais. As culturas instrumentais são caracterizadas por um grande setor de fins intermediários, separada e independentemente dos fins últimos”. Esses sistemas “inovam com facilidade estendendo o manto da tradição por cima da própria mudança. (...) Esses sistemas podem inovar sem parecer que estejam alterando de maneira fun¬ damental suas instituições sociais. Na verdade, faz-se com que a inovação sirva à imemorialidade”. Os sistemas consumistas, ao contrário, “se caracterizam por uma estreita relação entre fins intermediários e últimos. (...) a sociedade, o Estado, a autoridade e coisas semelhantes são todos parte de um sistema de alta solidariedade, mantida de forma elaborada, no qual é profunda a função da religião como guia cognitivo. Esses sistemas têm sido infensos à inovação”. 45 Apter emprega essas categorias para analisar as mudanças em tribos africanas. Eisenstadt aplica uma análise paralela às grandes civilizações asiáticas e chega a conclusão semelhante. As transformações internas são “grandemente facilitadas pela autonomia das instituições sociais, culturais e políticas”. 46 Por essa razão, as sociedades japonesa e hindu moveram-se mais cedo e com maior facilidade para a modernização do que as sociedades confuciana e islâmica. Elas tiveram mais capacidade para importar a tecnologia moderna e utilizá-la para aprimorar sua cultura preexistente. Isso quer dizer que as sociedades chinesa e islâmica têm que abandonar tanto a modernização como a ocidentalização ou abraçar ambas? Não parece que as opções sejam assim tão limitadas, Além do Japão, também Singapura, Taiwan, Arábia Saudita e, em menor grau, o Irã se tomaram sociedades modernas sem se tomar ocidentais. Na realidade, os esforços do xá por seguir um curso kemalista e fazer ambas as coisas gerou uma reação intensamente antiocidental mas não antimoderna. A China está visivelmente engajada num caminho reformador. As sociedades islâmicas têm tido dificuldades com a modernização, e Pipes, em apoio à sua afirmação de que a ocidentalização é um pré-requisito, aponta para os conflitos entre o Islã e a modernidade em questões econômicas como os juros, o jejum, as leis sobre herança e a participação da mulher na força de trabalho. Contudo, mesmo ele cita de forma aprobatória Maxine Rodinson no sentido de que “não há nada que indique, de forma convincente, que a religião muçulmana impediu que o mundo muçulmano se desenvolvesse pela estrada do capitalismo moderno”, e argumenta que, na maioria das questões fora do campo econômico, o klã e a modernidade não se chocam. Muçulmanos praticantes podem cultivar as ciências, trabalhar com eficiência em fábricas ou empregar armas sofisticadas. A modernização não exige nenhuma ideologia polinca específica nem um conjunto de instituições determinadas. Eleições, fronteiras nacionais, associações cívicas e outras marcas regis¬ tradas da vida ocidental nâo são necessárias para o crescimento econô¬ mico. Na condição de um credo, o Islã satisfaz tanto os consultores de gerenciamento quanto os camponeses. A shari’a nada tem a dizer quanto as mudanças que acompanham a modernização, tais como a mudança da agricultura para a indústria, do campo para a cidade ou da estabilidade social para a mobilidade social, nem ela interfere em assuntos como educaçao de massa comunicações rápidas, novas formas de transporte ou saude publica . 47 K Analogamente, até mesmo proponentes extremados do antiocidentalis- mo e da revitalização das culturas autóctones não hesitam em utilizar técnicas modernas de correio eletrônico, cassetes e televisão para pro- mover sua causa. K Em resumo, modernização não quer necessariamente dizer ocidenta- ízaçao. As sociedades não-ocidentais podem se modernizar, e têm se modernizado, sem abandonar suas próprias culturas e sem adotar de fornia generalizada os valores, as instituições e as práticas ocidentais. Na verdade oStánT Pr0p0S1Ça0 P° de ser ^ uase impossível: quaisquer que sejam os ^culos que as culturas não-ocidentais opõem à modernização, são za Jn r Se k COmparados com 05 obstáculos que opõem à oddentali- zaçao. Como observa Braudel, seria quase “infantil” pensar-se que a emizaçao ou o “tnunfo da civilização (no singular)” levaria ao fim da pluralidade das culturas históricas corporificadas durante séculos nas grandes civilizações do mundo.^ Ao contrário, a modernização reforça essas culturas e reduz o poder relativo do Ocidente. De modos fun¬ damentais, o mundo está ficando mais moderno e menos ocidental 94 A Alteração do Equilíbrio Entre as Civilizações Capítulo 4 O Desvanecimento do Ocidente: Poder, Cultura e Indigenização O PODER OCIDENTAL: PREDOMÍNIO E DECLÍNIO H á duas imagens do poderio do Ocidente em relação às outras civilizações. A primeira é a de um predomínio ocidental avas¬ salador, triunfante, quase total. A desintegração da União Sovié¬ tica afastou o único desafiante sério do Ocidente e, como conseqüência, o mundo está . sendo e será moldado pelos objetivos, prioridades e I interesses das principais nações ocidentais, com talvez uma participação ocasional do Japão. Na condição da única superpotência que restou, os Estados Unidos, junto com a Grã-Bretanha e a França, tomam as decisões * cruciais sobre questões políticas e de segurança, os Estados Unidos junto com a Alemanha e o Japão tomam as decisões cruciais sobre questões econômicas. O Ocidente é a única civilização que tem interesses subs¬ tanciais em todas as outras civilizações ou regiões e tem a capacidade de afetar a política, a economia e a segurança de todas as outras civilizações ou regiões. As sociedades das outras civilizações geralmente precisam de ajuda ocidéntal para atingir os seus objetivos e proteger os seus interesses. Como foi resumido por um autor, as nações ocidentais: São donas e operadoras do sistema bancário internacional. • Controlam todas as moedas fortes. • São o principal cliente do mundo. 97 • Fornecem a maioria dos bens acabados do mundo. • Dominam os mercados internacionais de capitais. • Exercem considerável liderança moral dentro de muitas so¬ ciedades. • São capazes de maciça intervenção militar. • Controlam as rotas marítimas. • Realizam a maior parte da pesquisa e desenvolvimento de tecnologia de ponta. • Controlam o ensino técnico de ponta. • Dominam o acesso ao espaço. • Dominam a indústria aeroespacial. • Dominam as comunicações internacionais. • Dominam a indústria de armamentos de alta tecnologia. 1 A segunda imagem do Ocidente é muito diferente. É a de uma civilização em declínio, com sua parcela de poder político, econômico e militar mundial baixando em relação ao de outras civilizações. A vitória do Ocidente na Guerra Fria produziu não o triunfo, mas a exaustão.J3 Ocidente está cada vez mais preocupado com seus problemas e neces¬ sidades internos, ao mesmo tempo em que enfrenta um lento crescimento econômico, o desemprego, enormes déficits públicos, uma ética de trabalho em declínio, baixas taxas de poupança e, em muitos países, inclusive nos Estados Unidos, desintegração social, drogas e criminalidade. Q poder Wonômico está se deslocando rapidamente para a Ásia Oriental e o poder militar e a influência política estão começando a ir pelo mesmo caminho. A índia está na iminência de uma decolagem econômica e o mundo islâmico está cada vez mais hostil para com o Ocidente. Está se evaporando rapidamente a disposição de outras sociedades de aceitar os ditames do Ocidente ou de acatar seus sermões, bem como a autocon¬ fiança e a vontade de dominar do Ocidente. O final da década de 80 viu muitos debates sobre a tese do declínio no que se refere aos Estados Unidos e, em meados da década de 90, Aaron Fridberg concluiu que, em muitos aspectos importantes, seu [dos Estados Unidos] poder relativo irá declinar num ritmo crescente. Em termos de sua capacidade econô¬ mica pura, a posição dos Estados Unidos em relação ao Japão e, finalmente, à China provavelmente irá se deteriorar ainda mais. No campo militar, o equilíbrio da capacidade real entre os Estados Unidos e um número cada vez maior de potências regionais (incluindo, talvez, o Irã, a índia e a China) se deslocará do centro para a periferia. Uma parcela do poder estrutural dos Estados Unidos fluirá para outras nações; 98 outra (bem como uma parcela do seu poder aparente) passará para as mãos de agentes não-estatais, como as empresas multinacionais. 2 Qual dessas duas imagens contrastantes do lugar que o Ocidente ocupa no mundo corresponde à realidade? É claro que a resposta é: ambas. Atualmente, o Ocidente tem um predomínio absoluto e continua¬ rá a ser o número um em termos de poder e de influência até bem adiante no século XXI. Entretanto, mudanças graduais, inexoráveis e fundamen¬ tais também estão ocorrendo nos equilíbrios de poder entre as civiliza¬ ções, e o poder do Ocidente em relação ao das outras civilizações continuará a declinar. À medida que a primazia do Ocidente se deteriora, muito do seu poder irá simplesmente se evaporar e o resto dele será difundido numa base regional entre as várias civilizações principais e seus Estados-núcleos. Os aumentos de poder mais significativos estão se dando e continuarão a se dar nas civilizações asiáticas, com a China emergindo gradualmente como a sociedade com maior probabilidade de desafiar o Ocidente pela influência mundial. Esses deslocamentos de poder entre as civilizações estão levando e irão levar à revitalização e a uma maior afirmação cultural das sociedades não-ocidentais e à sua rejeição cada vez maior da cultura ocidental. O declínio do Ocid ent e tem três car acterísticas prin cipais. A primeira é que se trata de um processo lento. A ascensão do poderio ocidental levou 400 anos. Sua retroversão poderia levar o mesmo tempo. Na década de 80, o insigne estudioso britânico Hedley Buli sustentou que “pode-se dizer que o predomínio europeu ou ocidental da sociedade internacional universal atingiu seu apogeu por volta de 1900”. 5 o primeiro volume da obra de Spengler apareceu em 1918 e o “declínio do Ocidente” constituiu um tema central da História do século XX. O próprio processo se estendeu durante a maior parte deste século. Entretanto, é concebível que ele possa se acelerar. O crescimento econômico e outros aumentos da capacidade de um país freqüentemente seguem uma curva em S: um começo lento, depois uma aceleração rápida, seguida por taxas reduzidas de expansão, e se estabilizando. O declínio dos países pode também seguir uma curva em S no sentido inverso, como aconteceu com a União Soviética: moderado a princípio, depois se acelerando rapidamente, antes de se nivelar no fundo. O declínio do Ocidente ainda está na lenta primeira fase, porém ele poderia, em algum momento, acelerar de forma dramática. |f A^segunda é que o declínio não segue uma linha reta. Ele é altamente irregular, com pausas, inversões e reafirmações do poderio oo ocidental, depois de manifestações de fraqueza ocidental. As sociedades democráticas abertas do Ocidente têm uma grande capacidade de renovação. Além disso, ao contrário de muitas civilizações, o Ocidente teve dois centros principais de poder. O declínio que Buli viu começando por volta de 1900 era essencialmente o declínio do componente europeu da civilização ocidental. De 1910 a 1945, a Europa ficou dividida contra si mesma e preocupada com os seus problemas econômicos, sociais e políticos internos. Na década de 40, contudo, os Estados Unidos, por um curto período, quase dominaram o mundo num grau comparável ao domínio conjunto das Potências Aliadas em 1918. A descolonização no pós-guerra reduziu ainda mais a influência européia, mas não a dos Estados Unidos, que substituíram o tradicional império territorial por um novo imperialismo transnacional. Durante a Guerra Fria, entretanto, o poder militar norte-americano ficou equiparado ao dos soviéticos e o poder econômico norte-americano declinou em relação ao do Japão. Contudo, verificaram-se esforços periódicos de renovação militar e econômica. De fato, em 1991, um outro destacado estudioso britânico, Barry Buzan, sustentou que “a realidade mais profunda é a de que o centro é atualmente mais predominante e a periferia mais subordinada do que em qualquer momento desde que começou a descolonização”. 4 Entretanto, a exatidão dessa percepção se desvanece na medida em que a vitória militar que lhe deu lugar também se desvanece na História. A terceira é a capacidade de uma pessoa ou de um grupo de mudar o comportamento de outra pessoa ou de outro grupo. O comportamento pode ser mudado por meio de indução, coerção ou exortação, que exige que quem detém o poder possua recursos econômicos, institucionais, demográficos, políticos, tecnológicos, sociais ou de outro tipo. O poder de um Estado ou de um grupo é, por conseguinte, normalmente avaliado medindo-se os recursos de que dispõe contra os de que dispõem os outros Estados ou grupos que ele está tentando influenciar. A parcela que o Ocidente detém da maioria, porém não de todos, os recursos de poder importantes, chegou ao seu ápice no século XX e então começou a declinar em relação aos de outras civilizações. Território epopulação. Em 1490, as sociedades ocidentais controla¬ vam a maior parte da península européia, com exceção dos Bálcãs, ou cerca de 3,8 milhões de quilômetros quadrados de uma área terrestre global (afora a Antártica) de 136 milhões de quilômetros quadrados. No auge de sua expansão territorial, em 1920, o Ocidente governava de forma direta cerca de 66 milhões de quilômetros quadrados, ou quase metade de todas as terras da Terra. Ao se chegar a 1993, esse controle territorial tinha sido reduzido à metade, para cerca de 32,8 milhões de quilômetros quadrados. O Ocidente tinha revertido ao seu núcleo europeu original, mais suas vastas terras povoadas por colonizadores na América do Norte, Austrália e Nova Zelândia. Em contraste, o território das sociedades islâmicas independentes elevou-se de 4,6 milhões de quilômetros quadrados em 1920 para mais de 28,5 milhões de quilôme¬ tros quadrados em 1933- Mudanças semelhantes ocorreram no controle de populações. Em 1900, os ocidentais representavam aproximadamente 30 por cento da população mundial e os governos ocidentais exerciam sua autoridade sobre quase 45 por cento dessa mesma população então e sobre 48 por cento em 1920. Em 1993, com exceção de uns poucos e pequenos remanescentes imperiais, como Hong Kong, os governos ocidentais não exerciam sua autoridade sobre ninguém além dos próprios ocidentais. Estes somavam pouco mais de 13 por cento da Humanidade, total que deve cair para cerca de 11 por cento no princípio do próximo século e para 10 por cento em 2025. 5 Em termos de população total, em 1993 o Ocidente estava em quarto lugar, atrás das civilizações sínica, islâmica e hindu. Assim sendo, quantitativamente os ocidentais constituem uma minoria, em decréscimo constante, da população mundial. Também Quadro 4.1 Territórios sob o Controle Político das Civilizações / 1900-1993 Estimativa de Territórios Agregados das Civilizações em Milhares de Quilômetros Quadrados Ano Ocidental Africana Sínica Hindu Islâmica Japonesa Latino- americana Ortodoxa Outras 1900 52.551,10 424,76 11.181,03 139,86 9.303,28 416,99 19.997,39 22.618,47 19.342,12 1920 65.907,73 1.036,00 10.134,67 139,86 4.690,49 675,99 20.973,82 26.568,22 5.848,22 1971 33.167,54 12.007,24 5.014,24 3.408,44 23.783,97 367,78 20.287,47 26.796,14 5.962,18 1993 32.921,49 14.716,38 10.160,57 3.312,61 28.629,86 375,55 20.251,21 18.567,71 7.039,62 Estimativa de Porcentagens do Território Mundial* 1900 38,7 0,3 8,2 0,1 6,8 0,3 14,7 16,6 16,6 1920 48,5 0,8 7,5 0,1 3,5 0,5 15,4 19,5 4,3 1971 24,4 8,8 7,5 2,5 17,5 0,3 14,9 19,7 4,4 1993 24,2 10,8 7,5 2,4 21,1 0,3 14,9 13,7 5,2 Nota: As parcelas do território mundial foram baseadas nas fronteiras internacionais vigentes no ano indicado. * 0 território mundial foi estimado em 164,68 km 2 e não inclui a Antártica. Fontes: Statesman’$ Year-Book( Nova York: St. Martin s Press, 1901-1927); World Book Atlas (Chicago: Field Enterprises Educational Corp., 1970); Britannica Book of the Year (Chicago: Encyclopaedía Britannica Inc., 1992-1994). Quadro 4.2 População dos Países Pertencentes às Principais Civilizações do Mundo /1993 (em milhares de pessoas)_ qualitativamente está mudando o equilíbrio entre os ocidentais e outras populações. Os povos não-ocidentais estão ficando mais saudáveis, mais urbanizados, mais alfabetizados, mais instruídos. No início da década de 90, as taxas de mortalidade infantil na América Latina, África, Oriente Médio, Ásia Meridional, Ásia Oriental e Sudeste Asiático tinham caído para um terço ou um quarto do que eram 30 anos antes. A expectativa de vida nessas regiões tinha aumentado de modo significativo, com ganhos que variavam de 11 anos na África para 23 na Ásia Oriental. No princípio da década .de 60, na maior parte do Terceiro Mundo, menos de um terço da população adulta era alfabetizada. No começo da década de 90, em poucos países, com exceção da África, o número de alfabeti¬ zados era inferior à metade da população. Cinqüenta por cento dos indianos e quase 75 por cento dos chineses sabiam ler e escrever. Em 1970, as taxas de alfabetização nos países em desenvolvimento eram, em média, 41 por cento das taxas dos países desenvolvidos; em 1992, essa média era de 71 por cento. No começo dos anos 90, em todas as regiões, salvo na África, praticamente todo o grupo etário correspondente estava matriculado no ensino primário. Mais importante ainda, no começo dos anos 60, na Ásia, América Latina, Oriente Médio e África, menos de um terço do grupo etário correspondente estava matriculado no ensino secundário; ao se chegar ao início da década de 90, metade desse grupo etário estava matriculado, exceto na África. Em 1960, os moradores urbanos compunham menos de um quarto da população do mundo menos desenvolvido. Entre 1960 e 1992, entretanto, a porcentagem urbana da população cresceu de 49 por cento para 73 por cento na América Latina, de 34 para 55 por cento nos países árabes, de 14 para 29 por cento na África, de 18 para 27 por cento na China e de 19 para 26 por cento na índia. 6 Essas alterações em alfabetização, ensino e urbanização criaram populações socialmente mobilizadas, com capacidade aumentada e maiores expectativas, que podiam ser mobilizadas para fins políticos de i no Quadro 4.3 Parcelas da População Mundial sob o Controle Político das Civilizações /1900-2025* (em porcentagens) __ Ano Total Ocidental Africana Sínica Hindu Islâmica Japo- Latino- Ortodoxa Outras Nota: As estimativas da população mundial relativa estão baseadas nas fronteiras internacionais vigentes no ano indicado. As estimativas para os anos de 1995 a 2025 pressupõem as fronteiras de 1994. * Estimativa da população mundial em bilhões de pessoas. t — As estimativas não incluem os membros da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) nem a Bósnia. t — As estimativas incluem a Comunidade dos Estados Independentes (CEI), a Geórgia e a antiga Iugoslávia. Fontes: Nações Unidas, Divisão de População, Departamento de Informação Econômica e Social e de Análise de Políticas. World Population Prospects. The 1992 Revision (Nova York: United Nations, 1992). Statesman’$ Year-Book( Nova York: St. Martin’s Press, 1901-1927); World Aimanac and Book of Facts (Nova York: Press Pub. Co., 1970-1993). modos em que não era possível mobilizar camponeses analfabetos. Sociedades socialmente mobilizadas são sociedades mais poderosas. Em 1953, quando menos de 15 por cento dos iranianos eram alfabetizados e menos de 17 por cento urbanizados, Kermit Roosevelt e uns poucos operadores da CIA acabaram com uma insurreição com relativa facilidade e restauraram o xá no trono. Em 1979, quando 50 por cento dos iranianos eram alfabetizados e 47 por cento viviam nas cidades, não havia dose de poder militar norte-americano que pudesse ter mantido o xá no trono. Ainda existe um hiato significativo que separa chineses, indianos, árabes e africanos dos ocidentais, japoneses e russos. Porém esse hiato está diminuindo rapidamente. Ao mesmo tempo, um hiato diferente está se abrindo. A média de idade de ocidentais, japoneses e russos está aumentando sistematicamente e a proporção maior da população que não mais trabalha impõe uma carga crescente sobre aqueles que ainda estão empregados produtivamente. Outras civilizações têm a carga de grande número de crianças, mas as crianças são futuros trabalhadores e soldados. Produto econômico. A parcela ocidental do produto econômico mundial também pode ter atingido seu ápice na década de 20 e vem declinando visivelmente desde a II Guerra Mundial. Em 1750, a China respondia por quase um terço da produção manufatureira do mundo, a índia por quase um quarto e o Ocidente por menos de um quinto. Ao 1 AO Quadro 4.4 Parcelas do Total da Produção Manufatureira Mundial por Civilização ou País /1750-1980 (em porcentagens. Mundo = 100%) Região ou País(es) 1750 1800 1830 1860 1880 1900 1913 1928 1938 1953 1963 1973 1980 Ocidente 18,2 23,3 31,1 53,7 68,8 77,4 81,6 84,2 78,6 74,6 65,4 61,2 57,8 China 32,8 33,3 29,8 19,7 12,5 6,2 3,6 3,4 3,1 2,3 3,5 3,9 5,0 Japão 3,8 3,5 2,8 2,6 2,4 2,4 2,7 3,3 5,2 2,9 5,1 8,8 9,1 índia / Paquistão 24,5 19,7 17,6 8,6 2,8 1.7 1,4 1,9 2,4 1,7 1,8 2,1 2,3 Rússia/URSS* 5,0 5,6 5,6 7,0 7,6 8,8 8,2 5,3 9,0 16,0 20,9 20,1 21,1 Brasil & México - - - 0,8 0,6 0,7 0,8 0,8 0,8 0,9 1,2 1,6 2,2 Outros 15,7 14,6 13,1 7.6 5,3 2,8 1,7 1,1 0,9 1,6 2,1 2,3 2,5 * Inclui os países do Pacto de Varsóvia durante os anos da Guerra Fria. Fonte: Paul Bairoch, “International Industrialization Leveis from 1750 to 1980”, Journal of European Economic History , 11 (Outono de 1982), pp. 269-334. se chegar a 1830, o Ocidente tinha passado ligeiramente à frente da China. Nas décadas seguintes, como assinala Paul Bairoch, a industrialização do Ocidente levou à desindustrialização do resto do mundo. Em 1913, a produção manufatureira de países não-ocidentais representava aproxi¬ madamente dois terços do que fora em 1800. A partir de meados do século XIX, a participação do Ocidente cresceu de forma espetacular, chegando ao seu ápice em 1928, com 84,2 por cento da produção manufatureira mundial. Daí por diante, a parcela do Ocidente declinou, na medida em que sua taxa de crescimento permaneceu modesta, e países menos industrializados expandiram rapidamente sua produção depois da II Guerra Mundial. Ao se chegar a 1980, o ocidental respondia por 57,8 por cento da produção manufatureira mundial, aproximadamen¬ te a parcela que tivera 120 anos antes, na década de 18Ó0. 7 Não se dispõe de dados confiáveis sobre o produto econômico bruto para o período anterior à II Guerra Mundial. Entretanto, em 1950, o Ocidente respondia por aproximadamente 64 por cento do produto bruto mundial; nos anos 80, essa proporção tinha caído para 49 por cento (ver Quadro 4.5). Em 1991, segundo uma estimativa, quatro das sete maiores economias do mundo eram de nações não-ocidentais: Japão (em segundo lugar), China (terceiro), Rússia (sexto) e índia (sétimo). Em 1992, os Estados Unidos tinham a maior economia do mundo e as maiores economias incluíam as de cinco países ocidentais, mais os Estados mais adiantados de cinco outras civilizações: China, Japão, índia, Rússia e Brasil. Projeções plausíveis indicam que a China, em 2020, terá a maior economia do mundo, as cinco maiores economias estarão em cinco i na Quadro 4.5 Parcelas por Civilização do Produto Econômico Bruto Mundial /1950-1992 (em porcentagens) __ Ano Ocidental Africana Sínica Hindu Islâmica Japonesa Latino- americana Ortodoxa* Outrast 1950 64,1 0,2 3,3 3,8 2,9 3,1 5,6 16,0 1,0 1970 53,4 17 4,8 3,0 4,6 7,8 6,2 17,4 1,1 1980 48,6 2,0 6,4 27 6,3 8,5 77 16,4 1,4 1992 48,9 2,1 10,0 3,5 11,0 8,0 8,3 6,2 2,0 * As estimativas para a civilização ortodoxa no ano de 1992 incluem a antiga União Soviética e a antiga Iugoslávia, t Em Outras estão incluídas outras civilizações e arredondamento de cifras. Fontes: As percentagens para 1950,1970 e 1980 foram calculadas a partir de dados de valor constante do dólar por Herbert Block. The Píanetary Product in 1980: A Creative Pause? [ 0 Produto Planetário em 1980: Uma Pausa Criadora? ] (Washington, D.C.: Bureau of Public Affairs, U.S. Dept. of State, 1981), pp. 30-45. As percentagens para 1992 foram calculadas pelas estimativas do Banco Mundial da paridade do poder aquisitivo, no Quadro 30 do World Development Report 1994 (Nova York: Oxford University Press, 1994). civilizações diferentes e as 10 maiores economias incluirão três socieda¬ des sínicas (China, Coréia do Sul e Taiwan), três sociedades ocidentais (Estados Unidos, Alemanha e França) e mais Japão, índia, Indonésia e Tailândia. Sete das maiores economias do mundo estarão na Ásia, seis delas na Ásia Oriental. Em 1960, a Ásia Oriental respondia por quatro por cento e a América do Norte por 37 por cento do produto bruto mundial; em 1995, cada uma delas respondia por cerca de 24 por cento. Segundo uma estimativa, ao se chegar a 2013 o Ocidente responderá por 30 por cento e as sociedades asiáticas por 40 por cento do produto econômico global. 8 As cifras brutas sobre produção econômica ocultam parcialmente a vantagem qualitativa do Ocidente. O Ocidente e o Japão dominam quase por completo as indústrias de tecnologia de ponta. Entretanto, as' tecnologias estão sendo disseminadas e, se o Ocidente deseja manter sua j superioridade, fará o que puder para minimizar essa disseminação. Graças ao mundo interconectado que o Ocidente criou, porém, é cada vez mais difícil retardar a difusão de tecnologias para outras civilizações. y Isso é complicado ainda mais pela ausência de uma ameaça única, absoluta e aceita por todos, como existia durante a Guerra Fria, o que dava às medidas de controle de tecnologias uma modesta eficácia. Parece provável que, durante a maior parte da História, a China tenha tido a maior economia do mundo. A difusão de tecnologias e o desenvolvimento econômico das sociedades não-ocidentais na segunda inç metade do século XX estão produzindo atualmente uma volta ao padrão histórico. Esse processo será lento; porém, por volta de meados do século XXI, se não antes, a distribuição do produto econômico e da produção manufatureira pelas principais civilizações provavelmente lembrará a de 1800. O blip ocidental de 200 anos na economia mundial terá terminado. Capacidade militar. O poder militar tem quatro dimensçies^ji-' quantitativa — a quantidade de homens, armas, equipamentos e recursos; a tecnológica — a eficácia e sofisticação de armas e equipamentos; a organizacional — a coerência, disciplina, treinamento e moral da tropa, e a eficácia dos relacionamentos de comando e controle; e a societária — a capacidade e disposição da sociedade de empregar a força militar de modo efetivo. Na década de 20, o Ocidente estava muito à frente de todos os demais em todas essas dimensões. Nos anos subseqüentes, o poder militar do Ocidente declinou em relação ao de outras civilizações, declínio esse que se reflete na mudança do equilíbrio em termos de efetivos militares, uma das medidas, embora obviamente não a mais importante, da capaci¬ dade militar.^ modernização e o desenvolvimento econômico geram os recursos e o desejo para que os Estados desenvolvam sua capacidade militar, e poucos são os Estados que deixam de fazê-lo.Wos anos 30, o Japão e a União Soviética criaram forças armadas muito poderosas, como ficou demonstrado na II Guerra Mundial. Durante a Guerra Fria, a União Soviética possuía uma das duas forças armadas mais poderosas do mundo. Atual¬ mente, o Ocidente monopoliza a capacidade de dispor de quantidade considerável de forças convencionais em qualquer parte do mundo. Não há certeza se ele continuará tendo essa capacidade. O que parece certo, Quadro 4.6 Parcelas por Civilização do Total dos Efetivos Militares Mundiais (em porcentagens) Ano [Total Ocidental Africana Sínica Hindu Islâmica Japonesa Latino- Ortodoxa Outras _>■ ,, — -- —rwv-v. i-wiiMv wiwvjyAa i/uuao mundia| 1 __ americana _ 1900 [10.086] 43,7 1,6 10,0 0,4 16,7 1,8 9,4 16,6 0,1 1920 [ 8.645) 48,5 3,8 17,4 0,4 3,6 2,9 10,2 12,8* 0 5 1970 [23.991] 26,8 2,1 24,7 6,6 10,4 0,3 4,0 25,1 2 ’ 3 —I 991 _ 125.7971 21,1 3,4 25 ,7 4,8 20,0 1,0 6,3 14,3 3 ' 5 Notas: As estimativas foram baseadas nas fronteiras nacionais vigentes no ano indicado. £“2 c 5? é uma es,ima,iva P ara ° ano de 1924 feita por J. M. Mackintosh, em B.H. RedAmy: ^ RedArm y 1918 >01945, TheSovietArmy 1946topresent( Nova York: Harcourt, and Disarmament Agency, World Military Expenditures and Arms Transfers (Washington, D.C.: The Agency, 1971-1994); Statesman's Tear-fiookfNovaYork: St. Martirfs Press, 1901-1927). contudo, é que nenhum Estado ou grupo de Estados ocidentais criará uma capacidade comparável durante as próximas décadas. De forma geral, os anos depois da Guerra Fria foram dominados p or cinco tendências principais na evol ução da capa cidade militar nomundo. ^Primeira: as forças armadas da União Soviética deixaram de existir pouco depois que a União Soviética deixou de existir. Afora a Rússia, somente a Ucrânia herdou capacidade milita r significat i va. As forças russas foram muito reduzidas em tamanho e foram retiradas da Europa Central e dos países bálticos. O Pacto de Varsóvia acabou. A meta de desafiar a marinha dos Estados Unidos foi abandonada. O equipamento militar foi vendido ou deixou-se que se deteriorasse e se tomasse não-operacional. As verbas orçamentárias para as forças armadas foram reduzidas drasticamente. A desmoralização se espalhou pelas fileiras, tanto no nível de oficiais como no de graduados e soldados. Ao mesmo tempo, os militares russos estavam tratando de redefinir suas missões e doutrina, bem como se reestruturando para seu novo papel de proteger os russos e lidar com conflitos regionais no “exterior próximo”. Segunda: a redução vertiginosa da capacidade militar.jussa l es¬ timulou um declínio mais Iéritã^ré m s ignifica tivo, do s gastos milita res, das forças armadas e da capacidade militar do Oc i dente . De acordo com os planos dos governos Bush e Clinton. os gastos militar ei dos Estados Unidos deviam cair em 35 por cento, de US$ 342.3 b ilhões (dólares com valor constante de 1994) em 1990 para US$ 222,3 bilhões em 1998^C estrutura das forças nesse ano seria a metadé õú' dõlsterços do que era no fim da Guerra Fria. O total de efetivos militares desceria de 2,1 milhões para 1,4 milhão. Muitos programas im portantes de armamentos foram ou estão sendo cancelados. (^ntrê~T985 e 1993^ as compras anuais de armamentos principais caíram de 29^pãra seis navios, de 943 para 127 aviões, de 720 tanques para zero e de 48 para 18 mísseis estratégicos. A partir do final dos anos 80, a Grã-Bretanha, a Alemanha e, em menor grau, a França passaram por reduções análogas em gastos com forças armadas e capacidade militar. Em meados da década de 90, estava programado que as forças armadas alemãs diminuiriam de 370 mil para 340 mil e, provavelmente, para 320 mil homens; o exército francês devia reduzir seus efetivos de 290 mil em 1990 para 225 mil em 1997. O pessoal militar britânico caiu de 377.100 em 1985 para 274.800 em 1993. Além disso, países membros da OTAN no continente europeu encurtaram o tempo de serviço militar obrigatório e examinaram a possibilidade de aboli-lo por completo. Terceira: as tendências na Ásia Oriental foram significativamente diferentes das observadas na Rússia e no Ocidente. Maiores gastos militares e melhoramentos nas forças estavam na ordem do dia. A China marcou o compasso, concentrando-se na criação da capacidade de projeção de poder, de acordo com sua nova doutrina militar que acentua a probabilidade de instabilidade regional e guerras limitadas. Estimuladas tanto por sua crescente riqueza econômica como pelo rearmamento chinês, outras nações da Ásia Oriental estão modernizando e expandindo suas forças armadas. Taiwan, Coréia do Sul, Tailândia, Malásia, Singapura e Indonésia estão todas despendendo mais com seus militares e adquirin¬ do aviões, tanques e navios na Rússia, Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Alemanha e outros paíseslEnquanto os gastos militares da OTAN diminuíram em cerca de 10 por cènto entre 1985 e 1993 (de US$ 539,6 bilhões para US$ 485,0 bilhões) (dólares com valor constante de 1993), os gastos na Ásia Oriental aumentaram em 50 por cento, de US$ 89,8 bilhões para US$ 134,8 bilhões durante o mesmo período.^i '^Quarta: a capacidade militar, inclusive no tocante a armas de destruição em massa, está-se espalhando de forma ampla pelo mundo. ÍA medida que os países se desenvolvem economicamente, eles geram a ^capacidade de produzir armamentos. Entre os anos 60 e os anos 80, por exemplo, o número de países do Terceiro Mundo que produziam aviões de caça aumentou de um para oito; tanques, de um para seis; helicóp¬ teros, de um para seis; e mísseis táticos, de nenhum para sete. Os anos 90 viram, no rumo da globalização da indústria de equipamento militar, uma tendência importante, que deverá provavelmente reduzir ainda mais as vantagens militares do O cidente.10 Muitas sociedades não-ocidentais possuem armas nucleares (Rússia, China, Israel, índia, Paquistão e, possivelmente, Coréia do Norte), vêm desenvolvendo grandes esforços para obtê-las (Irã, Iraque, Líbia e, possivelmente, Argélia) ou estão-se colocando em posição para obtê-las rapidamente caso vejam necessidade disso ^JapãoyÁrmas nucleares e os sistemas para lançá-las, bem como armas químicas e biológicas, são os meios pelos quais os Estados que sa° muito inferiores aos Estados Unidos e ao Ocidente em termós~"dé poder militar convencionai podem, a custos relatívamenté bãíxõs, ficar em i gualdade de condições. ..~ - Por último: todos esses desdobramentos fazem da regionalização a tendência central no que se rèfere~âisrratégia e ao poder militar na mundo pós-Guerra Fria. A regionalização dá a justificativa pai? a s reduções das forças armadas russas e ocidentais e para os aumentos das forças armadas de outros Estados. A Rússia já não dispõe de uma capacidade "militar global, mas está concentrando sua estratégia e suas forças no exterior próximo. A China redirecionou sua estratégia e suas forças para enfatizar a projeção de poder local e a defesa dos interesses chineses na Asia Orientâl—Os países europeus estão, de forma analoga, redirecionando suas forças, tanto através da OTAN como da União Européia Ocidental, a fim de lidar com a instabilidade na periferia da Europa Ocidental., Os Estados Unidos explicitamente alteraram sua diretriz militar de conter e combater a União Soviética em termos globais para se preparar a fim de lidar simultaneamente com contingências regionais no Golfo Pérsico e no Noroeste Asiático. Entretanto, não é provável que os Estados Unidos consigam ter a capacidade de atingir essa meta. Para derrotar o Iraque, os Estados Unidos dispuseram no Golfo Pérsico de 75 por cento de seus aviões táticos em serviço, 42 por cento de seus tanques pesados modernos, 46 por cento de seus porta-aviões, 37 por cento dos efetivos do exército e 46 por cento dos de fuzileiros navais. No futuro, com forças significativamente reduzidas, os Estados Unidos terão muita dificuldade para levar a cabo uma intervenção, muito menos duas, contra potências regionais de peso fora do Hemisfério Ocidental.^ segurança militar em todo o mundo depende cada vez mais não da distribuição mundial de poder e das ações de superpotências, mas sim da distribuição de poder dentro de cada região do mun do e das ações dos Estados-núcleos das civilizações./ %m resumo, de forma geral, o Ocidente continuará sendo a civili¬ zação mais poderosa até bem adiante nas primeiras décadas do século XXI. Além de então, é provável que ele continue a ter uma dianteira substancial em talento, pesquisa e capacidade de desenvolvimento científicos, bem como na inovação tecnológica civil e militar. Entretanto, o controle de outros meios de poder está ficando cada vez mais difundido entre Estados-núcleos e países avançados de civilizações nãp-pçidentais. O controle desses meios pelo Ocidente chegou ao auge na década de 20 e desde então vem declinando de forma irregular, porém significativa. Na década de 2020, 100 anos depois daquele apogeu, o Ocidente provavelmente controlará cerca de 24 por cento do território do mundo (baixando de um auge de 49 por cento), 10 por cento do total da população mundial (baixando de 48 por cento) e talvez 15 a 20 por cento da população mobilizada socialmente, cerca de 30 por cento do produto econômico mundial (baixando de um auge de provavelmente 70 por 108 mo cento), talvez 25 por cento da produção manufatureira (baixando de um apogeu de 84 por cento) e menos de 10 por cento dos efetivos militares mundiais (baixando de 45 por cento). Em 1919, Woodrow Wilson, Lloyd George e Georges Clemenceau juntos praticamente controlavam o mundo. Sentados em Paris, eles determinaram quais países iriam existir e quais não, quais novos países seriam criados, quais iriam ser suas fronteiras e quem os governaria, e como o Oriente Médio e outras partes do mundo seriam divididos entre as potências vitoriosas. Eles também decidiram sobre a intervenção militar na Rússia e as concessões econômicas a serem extraídas da China. Cem anos depois, nenhum pequeno grupo de estadistas será capaz de exercer poder comparável e, na medida em que algum grupo o consiga, ele não será composto por três ocidentais, mas sim pelos líderes dos Estados-nú- cleos das sete ou oito civilizações principais do mundo. Os sucessores de Reagan, Thatcher, Mitterrand e Kohl serão rivalizados pelos de Deng Xiaoping, Nakasone, Gandhi, Yeltsin, Khomeini e Suharto.|k era do predomínio do Ocidente terá acabado. Nesse meio tempo, o declínio do Ocidente e a ascensão de outros centros de poder está promovendo os processos globais de indigenização e do ressurgimento das culturas não-ocidentaisy) INDIGENIZAÇÃO: O RESSURGIMENTO DAS CULTURAS NÃO-OCIDENTAIS A distribuição das culturas pelo mundo reflete a distribuição do poder. O comércio pode ou não seguir a bandeira, mas a cultura quase sempre segue o poder. Através da História, a expansão do poder de uma civilização geralmente ocorreu ao mesmo tempo que o florescimento de sua cultura e quase sempre requereu dela usar seu poder para estender seus valores, práticas e instituições a outras sociedades. Uma civilização universal requer um poder universal. O poder romano criou uma civilização quase universal dentro dos espaços limitados do mundo clássico. O poder ocidental, sob a forma do colonialismo europeu do século XIX e da hegemonia norte-americana do século XX, estendeu a cultura ocidental por grande parte do mundo contemporâneo. O colo¬ nialismo europeu terminou; a hegemonia norte-americana está retro¬ cedendo. Segue-se a erosão da cultura ocidental, enquanto se reafirmam costumes, idiomas, crenças e instituições indígenas com raízes históricas. O crescente poder das sociedades não-ocidentais produzido pela moder¬ nização está gerando um renascimento das culturas não-ocidentais pelo mundo afora.* Joseph Nye sustentou que existe uma distinção entre “poder duro”, que é o poder de comandar apoiado na força econômica e militar, e o “poder suave”, que é a capacidade de um Estado de conseguir com que “outros países queiram o que ele quer” através de um apelo à sua cultura e ideologia. Como reconhece Nye, está ocorrendo no mundo uma ampla difusão de poder duro, e as principais nações “têm atualmente menos capacidade do que no passado para empregar seus meios de poder tradicionais a fim de atingir seus objetivos”. Nye prossegue dizendo que, se “a cultura e a ideologia [de um Estado] são atraentes, outros estarão mais do que dispostos a seguir” sua liderança e, assim sendo, o poder suave é “exatamente tão importante quanto o poder duro de comando”. 11 Mas o que toma uma cultura e uma ideologia atraentes? Elas ficam atraentes quando são vistas como fundamentadas no sucesso material e na influência. O poder suave só é poder quando se apóia numa base de poder duro. Aumentos no poder duro econômico e militar produzem maior autoconfiança, arrogância e crença na superioridade da cultura própria ou do poder suave próprio, em comparação com os de outros povos, e aumentam grandemente a atração que exerce sobre outros povos. Decréscimos de poder econômico e militar conduzem à dúvida sobre si mesmo, a crises de identidade e a tentativas de encontrar em outras culturas as chaves para o êxito econômico, militar e político. À medida que sociedades não-ocidentais aumentam sua capacidade eco¬ nômica, militar e política, elas cada vez mais trombeteiam as virtudes de seus próprios valores, instituições e cultura. A ideologia comunista atraiu pessoas em todo o mundo nas décadas de 50 e 60, quando estava associada com o êxito econômico e o poderio militar da União Soviética. Essa atração se evaporou quando a economia soviética estagnou e se tornou incapaz de sustentar o poderio militar soviético. Os valores e as instituições ocidentais atraíram pessoas de * O vínculo entre poder e cultura é ignorado de modo quase universal por aqueles que sustentam que uma civilização universal está emergindo, como devia ser, e também por aqueles que sustentam que a ocidentalização é um pré-requisito para a modernização. Eles se recusam a admitir que a lógica de sua argumentação exige que eles apoiem a expansão e a consolidação do domínio ocidental do mundo, bem como que, se outras sociedades forem deixadas em liberdade para traçar seus próprios destinos, elas revigorarão seus velhos credos, hábitos e práticas, os quais, segundo os universalistas, são avessos ao progresso. Entretanto, as pessoas que defendem as virtudes de uma civilização universal geralmente não defendem as virtudes de um império universal. outras culturas porque eram vistos como a fonte do poder e da riqueza ocidentais. Esse processo vem se repetindo há séculos. Como assinala William McNeill, entre os anos 1000 e 1300, o Cristianismo, o Direito Romano e outros elementos da cultura ocidental foram adotados por húngaros, poloneses e lituanos, e essa “aceitação da civilização ocidental foi estimulada por um misto de medo e admiração da eficiência militar dos príncipes ocidentais”. 12 À medida que for declinando o poder ocidental, também irá declinando a capacidade do Ocidente de impor a outras civilizações as concepções ocidentais de direitos humanos, libe¬ ralismo e democracia, bem como declinará o poder de atração desses valores para outras civilizações. Isso já aconteceu. Durante vários séculos, os povos não-ocidentais invejaram a prosperidade econômica, a sofisticação tecnológica, o pode¬ rio militar e a coesão política das sociedades ocidentais. Eles buscaram o segredo desse sucesso nos valores e instituições ocidentais e, quando identificaram o que acharam que seria a chave, tentaram aplicá-lo em suas próprias sociedades. Para ficar ricos e poderosos, teriam que ficar como o Ocidente. Atualmente, porém, essas atitudes kemalistas desapa¬ receram na Ásia Oriental. Os asiáticos orientais atribuem seu estupendo desenvolvimento econômico não à importação por eles da cultura ocidental, mas sim à fidelidade à sua própria cultura. Eles argumentam que estão tendo êxito porque são diferentes do Ocidente. Analogamente, quando as sociedades não-ocidentais se sentiam fracas em relação ao Ocidente, invocavam os valores ocidentais de autodeterminação, de liberalismo, de democracia e de independência para justificar sua oposi¬ ção à dominação ocidental. Agora que não mais são fracos e sim cada vez mais poderosos, não hesitam em atacar esses mesmos valores que anteriormente usavam para promover seus interesses. A revolta contra o Ocidente era inicialmente legitimada através da afirmação da universali¬ dade dos valores ocidentais, mas agora ela é legitimada pela afirmação da superioridade dos valores não-ocidentais. O surgimento dessas atitudes é uma manifestação daquilo que Ronald Dore denominou de “o fenômeno da indigenização da segunda geração”. Tanto nas ex-colônias ocidentais como em países indepen¬ dentes como a China e o Japão, “a primeira geração ‘modernizadora’ ou ‘pós-independência’ muitas vezes foi treinada em universidades es¬ trangeiras (ocidentais), num idioma ocidental cosmopolita. Em parte porque eles foram pela primeira vez ao exterior como adolescentes muito impressionáveis, sua absorção de valores e estilos de vida ocidentais pode » ser profunda”. A segunda geração, muito maior do que a primeira, ao contrário dessa, em sua maioria recebe sua educação em seus países de origem, em universidades criadas pela primeira geração, e o idioma local em vez do idioma colonial é cada vez mais utilizado no ensino. Essas universidades “proporcionam um contato muito mais diluído com a cultura mundial metropolitana” e “o conhecimento é indigenizado por meio de traduções — geralmente de amplitude limitada e de baixa qualidade”. Os formados por essas universidades têm ressentimento do predomínio da geração anterior, de formação ocidental e, em conseqüên- cia, freqüentemente “sucumbem aos chamamentos de movimentos de oposição nativistas”. 1 ^ À medida que a influência ocidental se reduz, jovens líderes com aspirações não podem voltar-se para o Ocidente em busca de poder e riqueza. Eles têm que encontrar os meios de ter êxito dentro de sua própria sociedade e, por conseguinte, têm que se acomodar aos valores e à cultura dessa sociedade. O processo de indigenização não precisa esperar pela segunda geração. Líderes da primeira geração que sejam capazes, com dons de percepção e de adaptação, se indigenizam por iniciativa própria. Três exemplos notáveis são Mohammad Ali Jinnah, Harry Lee e Solomon Bandaranaike. Eles se formaram com brilho em Oxford, Cambridge e Lincoln’s Inn, respectivamente, foram excelentes advogados e membros completamente ocidentalizados das elites de suas sociedades. Jinnah era um secularista convicto. Lee era, nas palavras de um ministro de um Gabinete britânico, “o melhor danado dum inglês a leste de Suez”. Bandaranaike foi criado como cristão. No entanto, para liderar suas nações rumo à independência e depois dela, eles tinham que se indigenizar. Eles reverteram para suas culturas ancestrais e, nesse proces¬ so, em algumas ocasiões mudaram de identidades, nomes, forma de vestir e crenças. O advogado inglês M. A. Jinnah tomou-se Quaid-i-Azam do Paquistão, Harry Lee passou a ser Lee Kuan Yew. O secularista Jinnah tomou-se o apóstolo fervoroso do Islã como a base para o Estado paquistanês. O anglicizado Lee aprendeu mandarim e tomou-se um propagandista articulado do Confucionismo. O cristão Bandaranaike se converteu ao Budismo e invocou o nacionalismo cingalês. A indigenização passou a ser a ordem do dia em todo o mundo não-ocidental nas décadas de 80 e 90. O ressurgimento do Islã e a “reislamização” são os temas centrais das sociedades muçulmanas. Na índia, prevalece a tendência à rejeição das formas e valores ocidentais e à “hinduização” da política e da sociedade. Na Ásia Oriental, os governos estão promovendo o Confucionismo, e líderes políticos e intelectuais falam da “asianização” de seus países. Em meados da década de 80, o Japão ficou obcecado com a “Nihonjinron, ou a teoria do Japão e os japoneses”. Posteriormente, um intelectual japonês argumentou que, historicamente, o Japão passou por "ciclos de importação de culturas externas” e "de ‘indigenização’ dessas culturas através da reprodução e do refinamento, com um inevitável tumulto resultante da exaustão do impulso importado e criativo, e acabando por reabrir-se para o mundo exterior”. Atualmente, o Japão está “embarcando na segunda fase desse ciclo”. 14 Com o fim da Guerra Fria, a Rússia tornou-se novamente um país "dividido”, com o ressurgimento da clássica luta entre os ocidentalizado- res e o eslavófilos. Durante uma década, porém, a tendência foi dos primeiros para os últimos, com o ocidentalizado Gorbachev cedendo lugar para Yeltsin, russo pelo estilo, ocidental nas suas crenças articuladas e que, por sua vez, era ameaçado por Zhirinovsky e outros nacionalistas, que personificavam a síntese da indigenização russa ortodoxa. A indigenização é beneficiada pelo paradoxo da democracia: a adoção pelas sociedades não-ocidentais das instituições democráticas incentiva e dá acesso ao poder a movimentos nativistas e antiocidentais. Nas décadas de 60 e 70, governos ocidentalizados e pró-Ocidente em países em desenvolvimento foram ameaçados por golpes e revoluções; nas décadas de 80 e 90, o perigo cada vez maior para eles é o de serem afastados através de eleições. A democratização entra em conflito com a ocidentalização e a democracia é, de forma inerente, um processo de provincianização e não de cosmopolitização. Nas sociedades não-oci¬ dentais, os políticos não ganham eleições demonstrando o quanto são ocidentais. Pelo contrário, a competição eleitoral os incentiva a compor sua plataforma com os elementos que eles acham que serão mais populares, e estes geralmente são de natureza étnica, nacionalista e religiosa. O resultado disso é uma mobilização popular contra as elites de formação e orientação ocidentais. Os grupos fundamentalistas islâmicos saíram-se bem nas poucas eleições que foram realizadas em países muçulmanos e teriam chegado ao poder na Argélia se os militares não tivessem cancelado as eleições de 1992. Na índia, pode-se considerar que a disputa pelo apoio eleitoral estimulou apelos comunitários e violência comunitária. 15 Em Sri Lanka, a democracia possibilitou ao Partido da Liberdade de Sri Lanka afastar, em 1956, o Partido Nacional i Unido, elitista e de orientação ocidental, e criou a oportunidade para a ascensão, na década de 80, do movimento nacionalista cingalês Pathika Chintanaya. Antes de 1949, as elites tanto sul-africanas como ocidentais viam a África do Sul como um Estado ocidental. Depois da implantação do regime do apartheid , as elites ocidentais passaram, pouco a pouco, a enxergar a África do Sul como estando fora do campo ocidental, enquanto que os sul-africanos brancos continuaram a se considerar como ocidentais. Entretanto, para reassumirem seu lugar na ordem internacio¬ nal ocidental, tiveram que introduzir instituições democráticas ocidentais, que resultaram na chegada ao poder de uma elite negra altamente ocidentalizada. Contudo, se funcionar o fator da indigenização da segunda geração, seus sucessores terão uma visão muito mais xossa, zulu e africana, e a África do Sul irá cada vez mais definir-se como um Estado africano. Em diversas épocas antes do século XIX, os bizantinos, os árabes, os chineses, os mogóis e os russos tinham enorme confiança no seu poderio e nas suas realizações em comparação com o Ocidente. Nessas épocas, eles também sentiam desprezo pela inferioridade cultural, atraso institucional, corrupção e decadência do Ocidente. À medida que os êxitos do Ocidente se desvanecerem em termos relativos, essas atitudes tenderão a aparecer. O aumento de poder traz o aumento da confiança cultural. As pessoas sentem que “não precisam mais agüentar isso”. O Irã é um caso extremo, porém, como assinalou um observador, “os valores ocidentais são rejeitados de maneiras diferentes, mas com a mesma firmeza, na Malásia, Indonésia, Singapura, China e Japão”.^ Nós estamos testemunhando “o fim da era progressista”, dominada pelas ideologias ocidentais, e estamos ingressando numa era na qual civiliza¬ ções múltiplas e diversas irão interagir, competir, coexistir e se acomodar umas com as outras. 17 Esse processo global de indigenização se manifesta de forma ampla no renascimento de religiões que está ocorrendo em tantas partes do mundo e, de modo mais específico, no ressurgimento cultural nos países asiáticos e islâmicos, gerado em parte por seu dinamismo econômico e demográfico. La Revanche de Dieu Na primeira metade do século XX, as elites intelectuais pressupunham, de forma geral, que a modernização econômica e social estava levando ao fenecimento da religião como elemento importante da existência humana. Essa pressuposição era partilhada pelos que viam essa tendência com agrado e pelos que a deploravam. Os secularistas modernizadores aplaudiam o grau com que a ciência, o racionalismo e o pragmatismo estavam eliminando as superstições, os mitos, as irracionalidades e os rituais que constituíam o cerne das religiões existentes. A sociedade que estava emergindo iria ser tolerante, racional, pragmática, progressista, humanística e secular. Os conservadores preocupados, por seu lado, alertavam sobre as graves conseqüências do desaparecimento das cren¬ ças religiosas, das instituições religiosas e da orientação moral que a religião dava para o comportamento humano individual e coletivo. O resultado final seria a anarquia, a depravação e o solapamento da vida civilizada. T. S. Elliot disse: “Se você não quiser ter Deus (e Ele é um Deus ciumento); você terá de render homenagens a Hitler ou a Stalin.” 18 A segunda metade do século XX provou que essas esperanças e esses receios não tinham fundamento. A modernização econômica e social assumiu uma amplitude global e, ao mesmo tempo, produziu-se uma revitalização global da religião. Essa revitalização, que Gilles Kepel chamou de la revanche de Dieu , espalhou-se por todos os continentes, todas as civilizações e praticamente todos os países. Em meados da década de 70, como observa Kepel, a tendência à secularização e a um direcionamento rumo à acomodação da religião com o secularismo “passou a andar de marcha à ré. Formou-se um novo enfoque religioso, que visava não mais a se adaptar aos valores seculares, mas sim a recompor alicerces sagrados para a organização da sociedade — mudan¬ do ela própria se fosse preciso. Expresso numa variedade de formas, esse enfoque advogava o afastamento de um modernismo que tinha fracas¬ sado, atribuindo seus reveses e becos sem saída ao distanciamento de Deus. O tema não era mais o aggiomamento , mas sim uma ‘segunda evangelização da Europa’, a meta não era mais modernizar o Islã, mas sim ‘islamizar a modernidade’”. 19 Essa revitalização religiosa envolveu em parte a expansão de algumas religiões, que conquistaram novos recrutas em sociedades nas quais não os tinham tido anteriormente. Entretanto, num grau muito maior, o ressurgimento religioso redundou em que as pessoas voltassem para as religiões tradicionais de suas comunidades, revigorando e dando novo significado a essas mesmas religiões. O Cristianismo, o Islamismo, o Judaísmo, o Hinduísmo, o Budismo, a Ortodoxia, todos tiveram novos surtos de engajamento, de relevância e de prática por fiéis que, até então, eram apenas praticantes ocasionais. Em todas essas religiões, surgiram i movimentos fundamentalistas dedicados à purificação militante das doutrinas e das instituições religiosas, bem como à reformulação do comportamento pessoal, social e governamental de acordo com os preceitos religiosos. Os movimentos fundamentalistas são espetaculares e podem ter um impacto político significativo. Não obstante, eles são apenas ondas da maré religiosa, muito mais ampla e mais fundamental, que está dando um formato diferente à vida humana no final do século XX. A renovação da religião pelo mundo afora transcende em muito as atividades dos extremistas fundamentalistas. Ela se manifesta, em todas as sociedades, na vida e no trabalho quotidiano das pessoas e nas preocupações e projetos dos governos. O ressurgimento cultural, que na cultura secular confuciana assume a forma da afirmação dos valores asiáticos, no resto do mundo se manifesta pela afirmação dos valores religiosos. Como observou George Weigel, a “dessecularização do mun¬ do é um dos fatores sociais preponderantes na parte final do século XX”. 20 A ubiqüidade e relevância da religião ficaram evidenciadas de forma impressionante nos ex-Estados comunistas. Esses países, da Albânia ao Vietnã, foram varridos por uma revitalização religiosa, que preencheu o vácuo deixado pelo desmoronamento da ideologia. Na Rússia, a Orto¬ doxia passou por um grande ressurgimento. Em 1994, 30 por cento dos russos com menos de 25 anos de idade disseram que tinham passado do ateísmo para a fé em Deus. O número de igrejas em funcionamento na área de Moscou aumentou de 50 em 1988 para 250 em 1993. Os líderes políticos passaram, de modo uniforme, a demonstrar respeito pela religião, e o governo passou a dar-lhe apoio. Como um observador arguto relatou em 1993, nas cidades russas “o som dos sinos das igrejas voltou a encher o ar. Cúpulas recém-pintadas de dourado brilham sob a luz do sol. Igrejas que até há pouco tempo estavam em ruínas voltam a reverberar com cânticos magníficos. As igrejas são os locais mais movi¬ mentados da cidade”. 21 Simultaneamente com a revitalização da Ortodo¬ xia nas repúblicas eslavas, uma revitalização islâmica varreu a Ásia Central. Em 1989, havia na Ásia Central 160 mesquitas e um medressah (seminário islâmico); ao começar o ano de 1993, havia cerca de 10 mil mesquitas e 10 medressahs. Embora essa revitalização envolvesse alguns movimentos políticos fundamentalistas e fosse estimulada de fora pela Arábia Saudita, Irã e Paquistão, ela consistiu essencialmente de um movimento cultural de maiorias, com uma base extremamente ampla. 22 Como se pode explicar esse ressurgimento religioso mundial? Obviamente, houve causas especiais em países e civilizações considera- dos individualmente. Entretanto, é esperar demais achar que um número elevado de causas diferentes tivesse produzido desdobramentos simul¬ tâneos e análogos na maioria das partes do mundo. Um fenômeno global exige uma explicação global. Por mais que os acontecimentos em países determinados possam ter sido influenciados por fatores únicos, deve ter havido algumas causas gerais. Quais foram elas? A causa mais óbvia, mais visível e mais poderosa do ressurgimento religioso global é precisamente aquilo que deveria ter causado a morte da religião: os processos de modernização social, econômica e cultural que cobriram o mundo na segunda metade do século XX. Antigas fontes de identidade e antigos sistemas de autoridade foram destroçados. As pessoas se transferiram do campo para a cidade, ficaram separadas de suas raízes e assumiram novos empregos ou ficaram desempregadas. Elas interagiram com grande número de estranhos e ficaram expostas a novos conjuntos de relacionamentos. Precisaram de novas fontes de identidade, novas formas de comunidade estável e novos conjuntos de preceitos morais para dar-lhes alguma sensação de relevância e de propósitos. A religião, tanto a da corrente principal como a fundamentalista, atende a essas necessidades. Como explicou Lee Kuan Yew referindo-se à Ásia Central: Nós somos sociedades agrícolas que se industrializaram no espaço de uma ou duas gerações. O que aconteceu no Ocidente no curso de 200 anos ou mais, está acontecendo aqui em cerca de 50 anos ou menos. Está tudo apertado e comprimido numa moldura cronológica muito estreita, de modo que se tenderá a ter perturbações e disfunções. Quando se olha para os países que estão crescendo rapidamente — Coréia, Tailândia, Hong Kong e Singapura —, constata-se que houve um único fenômeno notável: a ascensão da religião. (...) Os antigos costumes e religiões — adoração dos antepassados, xamanismo — já não satisfazem completamente. Há uma busca por certas explicações mais elevadas sobre os propósitos do Homem, sobre por que estamos aqui. Isso está ligado a períodos de grande tensão na sociedade. 2 ^ As pessoas não vivem apenas em função da razão. Elas não podem fazer cálculos e agir de forma racional na busca de seus próprios interesses até que definam suas próprias personalidades. A política de interesses pressupõe a identidade. Em épocas de mudanças sociais rápidas, as identidades estabelecidas se desfazem, a personalidade precisa ser redefinida e novas identidades precisam ser criadas. As questões de identidade têm precedência sobre questões de interesse. As pessoas se defrontam com a necessidade de determinar: quem sou eu? Onde me encaixo? A religião fornece respostas atraentes e os grupos religiosos oferecem pequenas comunidades sociais para substituir as que se perderam em função da urbanização. Hassan Al-Turabi comentou que todas as religiões dão “às pessoas uma sensação de identidade e de rumo na vida”. Nesse processo, elas também redescobrem ou criam novas identidades históricas. Quaisquer que sejam as metas universalistas que possam ter as pessoas, as religiões lhes dão uma identidade ao es¬ tabelecer uma distinção básica entre crentes e não-crentes, entre um grupo “de dentro”, superior, e um grupo “de fora”, diferente e inferior. 24 Bemard Lewis sustenta que, no mundo muçulmano, tem havido, “em períodos de emergência, uma repetida tendência entre os muçulma¬ nos de encontrar sua identidade e lealdade básicas na comunidade religiosa — ou seja, numa entidade definida mais pelo Islamismo do que por critérios técnicos ou territoriais”. Gilles Kepel ressalta, de modo análogo, a centralidade da busca de uma identidade: “A reislamização ‘de baixo para cima’ é, antes de mais nada, um meio de reconstruir uma identidade num mundo que perdeu seu sentido e se tornou amorfo e alienante.” 25 Na índia, “uma nova identidade hindu está sendo cons¬ truída” em resposta às tensões e alienações geradas pela modernização. 2 ^ Na Rússia, a revitalização religiosa é o resultado de “um desejo apaixo¬ nado por uma identidade que somente a Igreja Ortodoxa, o único vínculo ininterrupto com o passado de mil anos dos russos, é capaz de propor¬ cionar”, enquanto que, nas repúblicas islâmicas, a revitalização provém “da mais forte aspiração dos centro-asiáticos: a afirmação de suas identidades, suprimidas por Moscou durante décadas”. 27 Os movimentos fundamentalistas, em especial, são “uma maneira de lidar com a expe¬ riência do caos, da perda de identidade, de sentido e de estruturas sociais seguras, criadas pela introdução rápida de políticas e padrões sociais modernos, secularismo, cultura científica e desenvolvimento econômi¬ co”. William H. McNeill concorda com que “os movimentos funda¬ mentalistas que têm importância (...) são aqueles que fazem seu recru¬ tamento na sociedade em geral e que se espalham porque respondem, ou parecem responder, às necessidades humanas recém-percebidas. (...) Não é por acaso que esses movimentos estão todos baseados em países nos quais a pressão populacional sobre a terra está tomando impossível para a maioria da população manter a continuidade dos antigos hábitos das cidadezinhas, e nos quais os meios de comunicação de massa, ao penetrar nas cidadezinhas, começaram a corroer uma estrutura muito antiga da vida do campo”. 28 11 Q 119 De modo mais amplo, o ressurgimento religioso em todo o mundo é uma reação contra o secularismo, o relativismo moral e a auto-in¬ dulgência, bem como uma reafirmação dos valores de ordem, disciplina, trabalho, auxílio mútuo e solidariedade humana. Os grupos religiosos satisfazem necessidades sociais deixadas carentes pelas burocracias do Estado. Dentre elas se incluem a prestação de serviços médico-hos¬ pitalares, jardins de infância e escolas, assistência aos idosos, socorro imediato em terremotos e outras catástrofes e assistência social durante períodos de privação econômica. O colapso da ordem e da sociedade civil cria vácuos que são às vezes preenchidos por grupos religiosos, freqüentemente fundamentalistas. 29 Quando as religiões tradicionalmente dominantes não satisfazem as necessidades emocionais e sociais dos desarraigados, outros grupos religiosos se apresentam para fazê-lo e, nesse processo, aumentam muito a quantidade de seguidores e a proeminência da religião na vida social e política. A Coréia do Sul foi, historicamente, um país predominante¬ mente budista, com os cristãos totalizando, em 1950, talvez de um a três por cento da população. À medida que a Coréia do Sul deslanchou num desenvolvimento econômico acelerado, com uma urbanização maciça e grande diferenciação ocupacional, o Budismo passou a deixar a desejar. “Para os milhões de pessoas que se despejaram nas cidades e para muitas que permaneceram onde estavam, na zona rural alterada, o Budismo quiescente do período agrário coreano perdeu sua capacidade de atração. O Cristianismo, com sua mensagem de salvação pessoal e destino individual, oferecia maior conforto e segurança numa época de confusão e mudanças.” 30 Ao se chegar aos anos 80, os cristãos, na sua maioria presbiterianos e católicos, constituíam pelo menos 30 por cento da população sul-coreana. Uma alteração semelhante e paralela ocorreu na América Latina. O número de protestantes na América Latina aumentou de aproximadamen¬ te sete milhões em 1960 para cerca de 50 milhões em 1990. Os bispos católicos latino-americanos reconheceram em 1989 que, dentre as razões para tal êxito, estavam a “lentidão com que ta Igreja Católica] está se adaptando às tecnicalidades da vida urbana” e “sua estrutura, que às vezes a toma incapaz de responder às necessidades psicológicas das pessoas dos dias atuais”. Um sacerdote brasileiro observou que, ao contrário da Igreja Católica, as igrejas protestantes atendem “às neces¬ sidades básicas da pessoa — calor humano, cura espiritual, uma profunda experiência espiritual”. A disseminação do Protestantismo no meio dos 120 pobres na América Latina não consiste, basicamente, na substituição de uma religião por outra, mas sim num aumento líquido importante de engajamento e participação religiosos à medida que católicos passivos, católicos só no nome, se tornam evangélicos ativos e fervorosos. Assim, por exemplo, no Brasil, no início dos anos 90, 20 por cento da população se identificavam como protestantes e 73 por cento como católicos. No entanto, aos domingos, 20 milhões de pessoas estavam em igrejas protestantes e cerca de 12 milhões estavam em igrejas católicas. 31 Tal como as demais religiões mundiais, o Cristianismo está passando por um ressurgimento ligado à modernização e, na América Latina, ele assumiu mais a feição protestante do que a católica. Essas mudanças na Coréia do Sul e na América Latina refletem a incapacidade do Budismo e do Catolicismo tradicionais de atender às necessidades psicológicas, emocionais e sociais das pessoas colhidas pelos traumas da modernização. Se vão ocorrer em outros lugares alterações importantes em termos de observância religiosa, isso depen¬ derá do grau com que a religião predominante seja capaz de satisfazer a essas necessidades. Dada sua aridez emocional, o Confucionismo poderia ser especialmente vulnerável. Nos países confucianos, o Protes¬ tantismo e o Catolicismo poderíam exercer uma atração semelhante à que tem o Protestantismo evangélico para os latino-americanos, o Cristianismo para os sul-coreanos e o fundamentalismo para os muçul¬ manos e hindus. Na China, no final dos anos 80, enquanto o crescimento econômico estava a pleno vapor, o Cristianismo também se espalhou, “especialmente entre os jovens”. Talvez 50 milhões de chineses sejam cristãos. O governo tentou impedir que esse número crescesse, pondo na prisão pastores, missionários e evangelizadores, proibindo e reprimin¬ do cerimônias e atividades religiosas, e aprovando, em 1994, uma lei que proíbe os estrangeiros de fazerem proselitismo ou de criarem escolas religiosas ou outras organizações religiosas, e proíbe que grupos religio¬ sos se dediquem a atividades independentes ou financiadas do exterior. Em Singapura, como na China, cerca de cinco por cento da população são cristãos. No final da década de 80 e no início da de 90, ministros do governo singapuriano advertiram os evangelizadores para que não perturbassem “o delicado equilíbrio religioso” do país, detiveram ativistas religiosos, inclusive funcionários de organizações católicas, e hostilizaram de diversas maneiras grupos e indivíduos cristãos. 32 Com o término da Guerra Fria e as aberturas que se seguiram, as igrejas ocidentais também ingressaram nas ex-repúblicas soviéticas ortodoxas, competindo com as 101 igrejas ortodoxas revitalizadas. Nesses lugares, tal como na China, também foi feita uma tentativa de se cercear seu proselitismo. Em 1993, por insistência da Igreja Ortodoxa, o Parlamento russo aprovou legislação que exige que grupos religiosos estrangeiros sejam credenciados pelo Estado ou se filiem a uma organização religiosa russa a fim de poderem se dedicar a atividades missionárias ou de ensino. Entretanto, o presiden¬ te Yeltsin recusou-se a sancionar o projeto, que assim não se transformou em lei. 33 De forma geral, constata-se que, sempre que houve um conflito, la revanche de Dieu ganhou da indigenização: caso as necessidades religiosas da modernização não possam ser satisfeitas por suas crenças tradicionais, as pessoas se voltam para importações religiosas que proporcionem satisfação emocional. Além dos traumas psicológicos, emocionais e sociais da moderni¬ zação, dentre outros fatores que estimulam a revitalização religiosa encontram-se o recuo do Ocidente e o fim da Guerra Fria. A partir do século XIX, de forma geral, as reações das civilizações não-ocidentais ao Ocidente foram passando por uma série de ideologias importadas do Ocidente. No século XIX, as elites não-ocidentais absorveram os valores liberais ocidentais, e suas primeiras manifestações de oposição ao Ocidente assumiram a forma de nacionalismo liberal. No século XX, o socialismo e o marxismo foram importados, adaptados às condições e finalidades locais e combinados com o nacionalismo em oposição ao imperialismo ocidental. Na Rússia, na China e no Vietnã, o marxismo-leninismo foi desenvolvido, adaptado e utilizado para desafiar o Ocidente. O colapso do comunismo na União Soviética, sua profunda modificação na China e o fracasso das economias socialistas que não conseguiram atingir um desenvolvimento sustentado criaram o atual vácuo ideológico. Governos ocidentais, grupos e instituições interna¬ cionais, como o FMI e o Banco Mundial, tentaram preencher esse vácuo com as doutrinas da economia neo-ortodoxa e da política democrática. É incerto o grau em que essas doutrinas produzirão um impacto duradouro nas culturas não-ocidentais. Enquanto isso, porém, as pessoas vêem o comunismo como apenas o mais recente deus secular que fracassou e, na ausência de novas divindades seculares atraentes, voltam-se com alívio e paixão para o que é religião de verdade. A religião toma o lugar da ideologia e o nacionalismo religioso substitui o nacionalismo secular. 34 Os movimentos de revitalização religiosa são anti-seculares, anti- universais e, com exceção de suas manifestações cristãs, antiocidentais. Além disso, se opõem ao relativismo, ao egoísmo e ao consumismo, associados com o que Bruce B. Lawrence denominou de “modernismo” em contraste com “modernidade”. De forma geral, eles não rejeitam a urbanização, a industrialização, o desenvolvimento, o capitalismo, a ciência e a tecnologia, e o que isso implica para a organização da sociedade. Nesse sentido, eles não são antimodemos. Como observa Lee Kuan Yew, eles aceitam a modernização e a “inevitabilidade da ciência e da tecnologia e as mudanças que elas trazem para os estilos de vida”, porém não são “receptivos à idéia de serem ocidentalizados”. Al-Turabi sustenta que nem o nacionalismo nem o socialismo produziram desen¬ volvimento no mundo islâmico. Entretanto, “a religião é o motor do desenvolvimento”, e um Islã purificado desempenhará, na idade contem¬ porânea, um papel comparável ao da ética protestante na História do Ocidente. Tampouco a religião é incompatível com o desenvolvimento de um Estado moderno. 35 Os movimentos fundamentalistas islâmicos têm se mostrado vigorosos nas sociedades muçulmanas mais avançadas e aparentemente mais seculares, como Argélia, Irã, Egito, Líbano e Tunísia. 3é Os movimentos religiosos, inclusive os que são particularmen¬ te fundamentalistas, são altamente competentes na utilização das comu¬ nicações e técnicas organizacionais modernas para difundir sua mensa¬ gem, o que é ilustrado de modo muito espetacular pelo êxito do televangelismo protestante na América Central. Os participantes do ressurgimento religioso provêm de todos os níveis sociais, porém, de forma majoritária, vêm de duas clientelas, ambas urbanas e móveis. Os que migraram há pouco tempo para as cidades geralmente necessitam de apoio e orientação emocional, social e material, que os grupos religiosos têm mais condições de proporcionar do que qualquer outra fonte. Como diz Régis Debray, para eles a religião não é “o ópio do povo, mas sim a vitamina dos fracos”. 37 A outra clientela principal é a nova classe média, que personifica o “fenômeno da indigenização da segunda geração” de que fala Dore. Como Kepel assinala, os ativistas dos grupos fundamentalistas islâmicos não são “conservadores idosos nem camponeses analfabetos”. Eles são predomi¬ nantemente jovens, com bom nível de instrução, freqüentemente da primeira geração de suas famílias a cursar universidade ou escola técnica, e trabalham como médicos, advogados, engenheiros, técnicos, cientistas, professores, funcionários públicos e militares 38 Entre os muçulmanos, os jovens são religiosos e seus pais seculares. Muito disso acontece com o Hinduísmo, no qual os líderes de movimentos de revitalização também 19* provêm da segunda geração indigenizada e freqüentemente são “homens de negócios e administradores bem-sucedidos”, rotulados pela imprensa indiana como “ scuppies f — yuppies com mantos cor de laranja. No início dos anos 90, os que apoiavam esses movimentos eram, cada vez mais, “hindus da sólida classe média indiana — comerciantes e contadores, advogados e engenheiros” — e “funcionários públicos, intelectuais e jornalistas experientes”. 39 Na Coréia do Sul, os mesmos tipos de pessoas encheram progressivamente as igrejas católicas e presbiterianas durante os anos 60 e 70. A religião, autóctone ou importada, proporciona os meios e o rumo para as elites emergentes nas sociedades que se estão modernizando. Ronald Dore observou que “a atribuição de valor a uma religião tradicional é uma reivindicação de paridade de respeito afirmada contra outras nações ‘dominantes’ e, muitas vezes, de modo simultâneo e mais imediato, contra a classe dominante local, que abraçou os valores e estilos de vida dessas outras nações dominantes”. William McNeill observa que, “mais do que nada, a reafirmação do Islã, independentemente da forma sectária, representa o repúdio à influência européia e norte-americana sobre a sociedade, a política e a moral locais”. 40 Nesse sentido, a revitalização das religiões não-ocidentais é a mais forte manifestação de antiocidentalismo nas sociedades não-ocidentais. Essa revitalização não é uma rejeição da modernidade, mas sim uma rejeição do Ocidente e da cultura secular, relativista e degenerada, associada com o Ocidente. É uma rejeição do que se denominou a “ocidentalização” das sociedades não-ocidentais. É uma declaração de independência cultural em relação ao Ocidente, uma declaração altiva de que “nós seremos modernos, mas não seremos vocês”. 124 Capítulo 5 Economia, Demografia e as Civilizações Desafiadoras A indigenização e a revitalização da religião são fenômenos globais. Entretanto, eles são mais nítidos na afirmação cultural e nos desafios ao Ocidente que têm vindo da Ásia e do Islã. Em ambos estão as civilizações mais dinâmicas do último quarto do século XX. O desafio islâmico se evidencia no amplo ressurgimento cultural, social e político do Islamismo no mundo muçulmano e na rejeição paralela dos valores e instituições ocidentais. O desafio asiático se manifesta em todas as civilizações da Ásia Oriental — sínica, japonesa, budista e muçul¬ mana — > enfatiza suas diferenças culturais do Ocidente e, às vezes, os aspectos em comum que elas compartilham, freqüentemente identifica¬ dos com o Confucionismo. Tanto os asiáticos como os muçulmanos ressaltam a superioridade de suas culturas em relação à cultura ocidental. Por contraste, os povos de outras civilizações não-ocidentais — hindu, ortodoxa, latino-americana, africana — podem afirmar o caráter próprio de suas culturas, porém, ao se chegar a meados dos anos 90, hesitavam em proclamar sua superioridade sobre a cultura ocidental. A Ásia e o Islã, às vezes juntos, ficam isolados nos desafios que contrapõem ao Ocidente. Por trás desses desafios, existem causas relacionadas entre si, porém diferentes. A disposição afirmativa da Ásia se fundamenta no crescimento econômico, enquanto que a do Islã provém, em grande parte, da mobilização social e do crescimento populacional. Cada um desses 125 desafio s, ao se entrar no século XXI, está tendo e continuará a ter um impacto altamente desestabilizador sobre a política mundial. Entretanto, a natureza desses impactos difere de maneira significativa. O desenvol¬ vimento econômico da China e de outras sociedades asiáticas dá aos respectivos governos tanto os estímulos como os recursos para serem mais exigentes em seus relacionamentos com outros países. O crescimen¬ to populacional nos países muçulmanos, e em especial a expansão das coortes de 15 a 25 anos de idade, proporcionam a massa de recrutamento para o fundamentalismo, o terrorismo, a subversão e a migração. O crescimento econômico fortalece os governos asiáticos; o crescimento populacional cria uma ameaça para os governos muçulmanos e para as sociedades não-muçulmanas. T i A Afirmação Asiática O desenvolvimento econômico da Ásia Oriental é um dos desdobramen¬ tos mais importantes do mundo na segunda metade do século XX. Esse processo começou no Japão, na década de 50, e durante algum tempo pensou-se que o Japão era uma grande exceção: um país não-ocidental, que tinha tido êxito em se modernizar e em se tomar economicamente desenvolvido. Entretanto, o processo de desenvolvimento econômico se estendeu aos Quatro Tigres (Hong Kong, Taiwan, Coréia do Sul, Singa¬ pura) e depois para a China, Malásia, Tailândia e Indonésia, e está se firmando nas Filipinas, na índia e no Vietnã. Muitas vezes, esses países mantiveram, durante uma década ou mais, taxas médias de crescimento anual de oito a 10 por cento, ou mais. Verificou-se uma expansão igualmente espetacular do comércio internacional entre a Ásia e o resto do mundo primeiro e, depois, dentro da Ásia. Esse desempenho econô¬ mico asiático contrasta de maneira impressionante com o modesto crescimento das economias européia e norte-americana, bem como com a estagnação que se espalhou por grande parte do resto do mundo. Portanto, a exceção não é mais apenas o Japão e sim, cada vez mais, toda a Ásia. A identificação da riqueza com o Ocidente e do subdesenvolvimento com o não-Ocidente não sobreviverá ao século XX. A velocidade dessa transformação tem sido avassaladora. Como assinalou Kishore Mahbubani, a Grã-Bretanha levou 58 anos e os Estados Unidos 47 para dobrarem sua produção per capita, porém o Japão o fez em 33 anos, a Indonésia, em 17, a Coréia do Sul, em 11 e a China, em 10. No momento atual, como vimos, a segunda e a terceira maiores economias 126 Figura 5.1 0 Desafio Econômico: a Ásia e o Ocidente 1970 1975 1980 1985 1990 1993 —•— USA —*— Tigres Japão —-f— China —o— Europa Fonte: Banco Mundial, World Tables 1995, 1991 (Balftnore: Johns Hopkins University Press, 1995, 1991); Diretoria-geral de Orçamento, Contabilidade e Estatísticas, República da China, Statistical Abstract of National Income, Taiwan Area, Republic of Orna, 1991-1995 (1995). Nota: As representações dos dados são as médias ponderadas de três anos. do mundo são asiáticas. A economia chinesa cresceu a taxas anuais que ficaram, em média, em oito por cento durante a década de 80 e a primeira metade da de 90, com os Tigres logo atrás (ver Figura 5.1). Segundo declarou o Banco Mundial em 1993, a “Área Econômica Chinesa” tinha se transformado no “quarto pólo de crescimento” do mundo, juntamente com os Estados Unidos, o Japão e a Alemanha. Com a segunda e a terceira maiores economias do mundo nos anos 90, é provável que, ao se chegar a 2020, a Ásia tenha quatro das cinco maiores economias do mundo e sete se tomarmos as 10 maiores. Provavelmente também será asiática a maioria das economias mais competitivas. 1 Mesmo que os níveis asiáticos de crescimento econômico se estabilizem antes e de forma mais abrupta do que o esperado, as conseqüências do crescimento que já ocorreu são imensas tanto para a Ásia como para o resto do mundo. O desenvolvimento econômico da Ásia Oriental está alterando o equilíbrio de poder entre ela e o Ocidente, mais especificamente entre ela e os Estados Unidos. O desenvolvimento econômico bem-sucedido gera autoconfiança e disposição afirmativa por parte daqueles que o 127 geram e dele se beneficiam. A riqueza, como o poder, é vista como prova de virtude, como demonstração de superioridade moral e cultural. À medida que se tornaram mais bem-sucedidos economicamente, os asiáticos orientais não hesitaram em realçar o caráter próprio da sua cultura e alardear a superioridade dos seus valores e do seu estilo de vida em comparação com os do Ocidente e de outras sociedades. As sociedades asiáticas estão cada vez menos receptivas às exigências e aos interesses dos Estados Unidos e com capacidade cada vez maior para resistir às pressões dos Estados Unidos e de outros países ocidentais. O embaixador Tommy Koh observou, em 1993, que um “renasci¬ mento cultural está varrendo” a Ásia. Ele abrange uma “crescente autoconfiança”, que significa que os asiáticos “não mais consideram que tudo o que é ocidental ou norte-americano é necessariamente o melhor”. 2 Esse renascimento, propulsionado pelo êxito econômico asiático, se manifesta com cada vez maior ênfase tanto nas identidades culturais próprias de cada país asiático como nos aspectos comuns às culturas M asiáticas, que as distinguem da cultura ocidental. O significado dessa revitalização cultural está marcado na interação em processo de mutação das duas principais sociedades da Ásia Oriental com a cultura ocidental. Quando o Ocidente se impôs à China e ao Japão, em meados do século XIX, depois de um pequeno namoro com o kemalismo, as elites predominantes optaram por uma estratégia reformadora. Com a Res¬ tauração Meiji, um dinâmico grupo de reformadores chegou ao poder no Japão, estudou e tomou emprestadas técnicas, práticas e instituições ocidentais, e iniciou o processo de modernização do Japão. Porém, fizeram isso de modo a preservar os aspectos essenciais da cultura japonesa tradicional, o que, em muitos pontos, contribuiu para a modernização e possibilitou ao Japão invocar e reformular elementos dessa cultura, baseando-se neles para despertar apoio e montar jus¬ tificativas para seu imperialismo nos anos 30 e 40. Na China, por outro lado, a decadente dinastia Ching não foi capaz de se adaptar com êxito ao impacto do Ocidente. A China foi derrotada, espoliada e humilhada pelo Japão e pelas potências européias. O colapso da dinastia em 1910 foi seguido pela divisão, pela guerra civil e pela invocação de concepções rivais pelos líderes políticos e intelectuais rivais: os três princípios de “Nacionalismo, Democracia e Vida das Pessoas” de Sun Yat Sen, o liberalismo de Liang Ch’i-ch’ao e o marxismo-leninismo de Mao Tsé-tung. No final da década de 40, a concepção que fora importada da União Soviética venceu as importadas do Ocidente — nacionalismo, liberalismo, 128 democracia, Cristianismo — e a China foi definida como uma sociedade socialista. No Japão, a derrota completa na II Guerra Mundial produziu uma confusão completa. Um ocidental, profundamente envolvido com o Japão, comentou em 1994 que, “atualmente, é muito difícil para nós avaliarmos o grau em que tudo — religião, cultura, todos os aspectos da estrutura mental desse país — foi posto a serviço da guerra. A perda da guerra produziu um choque total para o sistema. Nas suas mentes, tudo aquilo se revelou inútil e foi alijado”. 3 Em seu lugar, tudo que estivesse ligado com o Ocidente e especialmente com os Estados Unidos vitoriosos passou a ser visto como bom e desejável. Desse modo, o Japão tentou emular os Estados Unidos como a China emulou a União Soviética. No final da década de 70, o fracasso do comunismo ao não gerar o desenvolvimento econômico e o êxito do capitalismo no Japão e, cada vez mais, nas outras sociedades asiáticas, levou a nova liderança chinesa a se afastar do modelo soviético. O desmoronamento da União Soviética i uma década depois acentuou ainda mais os fracassos dessa concepção importada. Assim sendo, os chineses se defrontaram com a questão de se deviam voltar-se para o Ocidente ou para dentro de si mesmos. Muitos intelectuais e algumas outras pessoas advogaram uma completa ociden¬ talização, uma tendência que atingiu seus ápices culturais e populares na telenovela A elegia do rio e na estátua da Deusa da Democracia erigida na Praça de Tiananmen. Entretanto, essa orientação ocidental não conquistou o apoio nem das poucas centenas de pessoas que contavam em Pequim nem dos 800 milhões de camponeses que viviam nas áreas rurais. A plena ocidentalização era tão inviável no final do século XX como o fora no final do século XIX. A liderança do país escolheu uma nova versão do Ti-Yong: por um lado, capitalismo e envolvimento com a economia mundial, combinados; por outro lado, com o autoritarismo político e a rededicação à cultura chinesa tradicional. Em vez da legitimidade revolucionária do marxismo-leninismo, o regime adotou a legitimidade do desempenho proporcionado pelo desenvolvimento eco¬ nômico em ascensão e a legitimidade nacionalista proporcionada pela invocação das características próprias da cultura chinesa. Um comentaris¬ ta observou que “o regime pós-Tiananmen abraçou sofregamente o nacionalismo chinês como uma nova fonte de legitimidade”, e conscien¬ temente incitou o antiamericanismo para justificar o seu poder e o seu comportamento.^ Nessas circunstâncias, está emergindo um nacionalis¬ mo cultural chinês, sintetizado nas palavras de um líder de Hong Kong 129 em 1994: “Nós, chineses, nos sentimos nacionalistas como jamais nos sentíramos antes. Somos chineses e temos orgulho disso.” Na própria China, no início dos anos 90, desenvolveu-se um “desejo popular de retornar ao que era autenticamente chinês, que muitas vezes é patriarcal, nativista e autoritário. Nesse ressurgimento histórico, a democracia está desacreditada, tal como o leninismo, na condição de apenas mais uma imposição estrangeira ”. 5 No início do século XX, intelectuais chineses, seguindo paralela¬ mente a Weber, cada um por si, identificaram o Confucionismo como a fonte do atraso chinês. No final do século XX, os líderes políticos chineses, seguindo paralelamente aos cientistas sociais ocidentais, lou¬ varam o Confucionismo como a fonte do progresso chinês. Nos anos 80, o governo chinês começou a promover interesse pelo Confucionismo, com os dirigentes partidários proclamando-o “a corrente principal” da cultura chinesa. 6 É claro que o Confucionismo passou também a ser motivo de entusiasmo para Lee Kuan Yew, que o viu como uma fonte do êxito de Singapura, e ele se tomou um missionário dos valores confucianos para o resto do mundo. Nos anos 90, o governo de Taiwan se proclamou “o herdeiro do pensamento confuciano” e o presidente Lee Teng-hui identificou as raízes na democratização de Taiwan no seu “legado cultural” chinês, recuando no tempo até Kao Yao (século XXI a.C.), Confucio (século V a.C.) e Mêncio (século III a.C.)7 Os líderes chineses, queiram eles justificar quer o autoritarismo quer a democracia, procuram a legitimação na sua cultura chinesa em comum e não em concepções ocidentais importadas. O nacionalismo promovido pelo regime é o nacionalismo Han, que ajuda a neutralizar as diferenças lingüísticas, regionais e econômicas em 90 por cento da população chinesa. Ao mesmo tempo, ele sublinha as diferenças com as minorias étnicas não-chinesas, que constituem menos de 10 por cento da população da China, mas ocupam 60 por cento do seu território. Ele também fornece a base para a oposição do regime ao Cristianismo, às organizações cristãs e ao proselitismo cristão, que atrai talvez cinco por cento da população e oferece uma fé ocidental alternativa para preencher o vazio deixado pelo colapso do maoísmo-leninismo. Enquanto isso, no Japão dos anos 80 o desenvolvimento econômico contrastou com o que se percebia como fracassos e “declínio da economia e do sistema social norte-americanos, e levou os japoneses a ficarem cada vez mais desencantados com os modelos ocidentais e cada vez mais convencidos de que as fontes de seu êxito tinham que estar em 130 sua própria cultura. A cultura japonesa, que produziu o desastre militar em 1945 e, em consequência, teve que ser rejeitada, tinha produzido o triunfo econômico ao se chegar a 1985 e, por conseguinte, podia ser abraçada. A crescente familiaridade dos japoneses com a sociedade ocidental os levara a “se dar conta de que ser ocidental não é magica¬ mente maravilhoso em si e por si mesmo. Eles se livraram disso”. Durante o auge do êxito econômico japonês, no final dos anos 80, as virtudes japonesas eram louvadas em comparação com os vícios norte-america¬ nos. Enquanto os japoneses da Restauração Meiji tinham adotado uma política de desengajar-se da Ásia e juntar-se à Europa”, os japoneses da revitalização cultural do final do século XX endossaram uma política de se distanciar dos Estados Unidos e se engajar na Ásia". 1- ’ Essa tendência envolveu, em primeiro lugar, uma reidentificação com as tradições culturais japonesas e uma renovada afirmação dos valores dessas tradi¬ ções e, em segundo lugar e de modo mais problemático, um esforço para “asiamzar” o Japão e identificá-lo, apesar de sua civilização própria, com uma cultura asiática geral. Dado o grau em que, depois da II Guerra Mundial, o Japão, ao contrário da China, se identificou com o Ocidente, e dado o grau em que o Ocidente, quaisquer que sejam suas deficiências, não desmoronou por completo, como aconteceu com a União Soviética, os estímulos para que o Japão rejeitasse por completo o Ocidente não foram, de forma alguma, tão fortes quanto os estímulos para que a China se distanciasse dos modelos tanto soviéticos quanto ocidentais. Por outro lado, a peculiaridade da civilização japonesa, as recordações em outros países do imperialismo japonês e a enorme importância econômica dos chineses na maioria dos demais países asiáticos também significam que será mais fácil para o Japão se distanciar do Ocidente do que se misturar com a Ásia.9 Ao reafirmar sua identidade cultural própria, o Japão enfatiza sua peculiaridade e suas diferenças, tanto da cultura ocidental quanto das demais culturas asiáticas. Enquanto chineses e japoneses encontraram um novo valor em suas culturas, eles também partilharam de uma reafirmação mais ampla do valor da cultura asiática em geral, por comparação com a do Ocidente. A industrialização e o crescimento que acompanharam esse fenômeno produziram nos anos 80 e 90 uma articulação entre os asiáticos orientais do que pode ser adequadamente denominado de “afirmação asiática”. Esse complexo de atitudes tem quatro componentes principais. Primeiro: os asiáticos acreditam que a Ásia Oriental está se desen¬ volvendo economicamente depressa, logo superará o Ocidente em 131 produto econômico e, por conseguinte, será cada vez mais poderosa nos assuntos mundiais em comparação com o Ocidente. O crescimento econômico estimula no meio das sociedades asiáticas uma sensação de poder e uma afirmação de sua capacidade de enfrentar o Ocidente. Em 1993, um destacado jornalista japonês declarou que “acabaram-se os dias em que os Estados Unidos espirravam e a Ásia ficava resfriada”. Um funcionário público malásio acrescentou à metáfora médica que “mesmo uma febre alta nos Estados Unidos não fará a Ásia tossir”. Um líder asiático disse que os asiáticos, no seu relacionamento com os Estados Unidos, “estão no final da era de ficarem assombrados e no início da era de retrucar”. O vice-primeiro-ministro da Malásia afirmou que “a crescente prosperidade da Ásia significa que ela está agora em posição de oferecer alternativas sérias aos arranjos mundiais predominantes nos campos político, social e econômico”. 10 Isso também quer dizer, sustentam os asiáticos orientais, que o Ocidente está perdendo rapidamente sua capacidade de fazer as sociedades asiáticas se ajustarem aos padrões ocidentais no que se refere a direitos humanos e outros valores. Segundo: os asiáticos consideram que esse êxito econômico é, em grande parte, um produto da cultura asiática, que é superior à do Ocidente, o qual está decadente cultural e socialmente. Nos tempos inebriantes da década de 80, quando, no Japão, a economia, as expor¬ tações, a balança comercial e as reservas em moedas estrangeiras estavam a pleno vapor, os japoneses, como os sauditas antes deles, se vangloria¬ vam de seu novo poderio econômico, falavam com desprezo do declínio do Ocidente e atribuíam o seu êxito e o insucesso ocidentais à supe¬ rioridade de sua cultura e à decadência da cultura ocidental. No começo dos anos 90, o triunfalismo asiático foi novamente articulado no que só pode ser descrito como a “ofensiva cultural singapuriana”. Os líderes singapurianos, de Lee Kuan Yew para baixo, alardeavam a ascensão da Ásia em relação ao Ocidente e contrastavam as virtudes da cultura asiática, basicamente confuciana, responsáveis por esse êxito — ordem, disciplina, família, responsabilidade, trabalho duro, coletivismo, abs¬ tinência —, com a auto-indulgência, indolência, individualismo, crimina¬ lidade, educação de qualidade inferior, desrespeito pela autoridade e “calcificação mental” responsáveis pelo declínio do Ocidente. Argumen- tava-se que, para competir com o Oriente, os Estados Unidos “precisam questionar suas pressuposições fundamentais sobre as disposições so¬ ciais e políticas e, nesse processo, aprender algumas coisas com as sociedades da Ásia Oriental”. 11 Para os asiáticos orientais, seu êxito é resultado em especial da ênfase atribuída pela cultura asiática oriental à coletividade em vez de ao indivíduo. Lee Kuan Yew sustenta que “os valores e práticas mais comunitários dos asiáticos orientais — os japoneses, os sul-coreanos, os taiwanenses, os de Hong Kong e os singapurianos — se revelaram nítidos trunfos no processo de alcançar [o Ocidente]. Os valores que a cultura asiática oriental defende, tais como a primazia dos interesses do grupo sobre os do indivíduo, dão sustentação ao esforço total de grupo necessário para o rápido desenvol¬ vimento”. O primeiro-ministro da Malásia concorda: “A ética de trabalho dos japoneses e dos sul-coreanos, que consiste em disciplina, lealdade e diligência, serviu como força motriz para o desenvolvimento econômico e social de seus respectivos países. Essa ética de trabalho nasce da filosofia de que o grupo e o país são mais importantes do que o indivíduo.” 12 Terceiro: conquanto reconheçam as diferenças entre as sociedades e as civilizações asiáticas, os asiáticos orientais sustentam que também existem importantes aspectos em comum. Um dissidente chinês assinalou que numa posição central dentre eles se encontra “o sistema de valores do Confucionismo — consagrado pela História e compartilhado pela maioria dos países da região”, em especial a ênfase que atribui à parcimônia, à família, ao trabalho e à disciplina. Igualmente importante é o repúdio ao individualismo e o predomínio de um autoritarismo “suave” ou formas muito limitadas de democracia, que compartilham esses países. As sociedades asiáticas têm interesses em comum em relação ao Ocidente na defesa desses valores próprios e na promoção de seus próprios interesses econômicos. Os asiáticos argumentam que isso exige o desenvolvimento de novas formas de cooperação intra-asiá- tica, tais como a expansão da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) e a criação do Foro Econômico Asiático Oriental (EAEC). Embora o interesse econômico imediato das sociedades asiáticas orientais seja manter o acesso aos mercados ocidentais, a longo prazo o regiona¬ lismo econômico provavelmente prevalecerá e, em conseqüência, a Ásia Oriental precisa promover cada vez mais o comércio e os investimentos intra-asiáticos. 13 Em especial, é preciso que o Japão, como líder do desenvolvimento asiático, se afaste da sua histórica “política de desasianização e pró-ocidentalização” e passe a buscar “um caminho de reasianização” ou, de forma mais ampla, a promover “a asianização da Ásia , um caminho que é apoiado pelos dirigentes singapurianos. 1 ^ Quarto: os asiáticos orientais sustentam que o desenvolvimento asiático e os valores asiáticos são modelos que outras sociedades não-ocidentais deveriam emular em seus esforços por alcançar o Ociden¬ te, e que o próprio Ocidente deveria adotar a fim de se renovar. Os asiáticos orientais alegam que “o modelo anglo-saxão de desenvolvimen¬ to, tão reverenciado durante as quatro últimas décadas como o melhor meio de modernização das economias dos países em desenvolvimento e de construção de um sistema político viável, não está funcionando”. O modelo asiático oriental está assumindo seu lugar na medida em que países como o México e o Chile, até o Irã e a Turquia, e mais recentemente as ex-repúblicas soviéticas, tentam aprender com aquele êxito, da mesma maneira que gerações anteriores tentaram aprender com o êxito ociden¬ tal. A Ásia deve “transmitir para o resto do mundo os valores asiáticos que têm uma utilidade universal. (...) a transmissão desse ideal significa exportar o sistema social da Ásia, em especial da Ásia Oriental”. É necessário que o Japão e outros países asiáticos promovam o “globalismo do Pacífico” a fim de “globalizar a Ásia” e, a partir disso, “moldar de forma decisiva a feição da nova ordem mundial”. 15 As sociedades poderosas são universalistas; as sociedades fracas são particularistas. A crescente autoconfiança da Ásia Oriental deu lugar a um emergente universalismo asiático comparável ao que caracterizou o Ocidente. O primeiro-ministro Mahatir proclamou para os chefes de governo europeus em 1996 que “os valores asiáticos são valores univer¬ sais. Os valores europeus são valores europeus”. 16 Junto com isso vem também um “ocidentalismo” asiático, retratando o Ocidente pratica¬ mente da mesma maneira uniforme e negativa com que o orientalismo ocidental alegadamente retratava o Oriente. Para os asiáticos orientais, a prosperidade econômica é prova de superioridade moral. Se, em algum momento, a índia superar a Ásia Oriental como a área que se está desenvolvendo mais rapidamente no mundo, o mundo deve estar preparado para longas exposições sobre a superioridade da cultura hindu, as contribuições do sistema de castas para o desenvolvimento econômico e como, revertendo às suas raízes e superando o mortífero legado ocidental deixado pelo imperialismo britânico, a índia finalmente alcançou o lugar que lhe era devido na primeira linha das civilizações. A afirmação cultural se segue ao êxito material; o poder duro gera o poder suave. O Ressurgimento islâmico Enquanto os asiáticos ficavam cada vez mais afirmativos como resultado do desenvolvimento econômico, os muçulmanos, em números maciços, estavam simultaneamente se voltando para o Islamismo como uma fonte de identidade, sentido, estabilidade, legitimidade, desenvolvimento, po¬ der e esperança — esperança sintetizada no slogan “O Islamismo é a solução”. Esse Ressurgimento Islâmico* é, na sua amplitude e profun¬ didade, a ultima fase do ajuste da civilização islâmica ao Ocidente, um esforço por encontrar a “solução” não nas ideologias ocidentais mas no Islamismo. Ele personifica a aceitação da modernidade, a rejeição da cultura ocidental e o reengajamento no Islamismo como um guia cultural, religioso, social e político para a vida no mundo moderno. Como um alto funcionário saudita explicou em 1994, “as ‘importações estrangeiras’ sao boas na condição de ‘coisas’ reluzentes e de alta tecnologia. Porém, as instituições sociais e políticas intangíveis importadas de outros lugares podem ser mortais — basta perguntar ao xá do Irã. (...) Para nós, o Islamismo nao é apenas uma religião, mas um estilo de vida. Nós, sauditas, queremos nos modernizar, mas não necessariamente nos ocidentalizar”. 17 o Ressurgimento Islâmico é o esforço dos muçulmanos por chegar a essa meta. É um amplo movimento intelectual, cultural, social e político que predomina em todo o mundo islâmico. O “fundamentalismo” islâmico, comumente concebido como o Islamismo político, é apenas um dos componentes numa revitalização muito mais extensa das idéias, praticas e retórica islâmicas e no reengajamento no Islamismo pelas populações muçulmanas. O Ressurgimento pertence à corrente principal e não à extremista, é generalizado e não isolado. O Ressurgimento afetou os muçulmanos em todos os países e a maioria dos aspectos da sociedade e da política na maioria dos países muçulmanos. Julio L. Esposito escreveu que “são muitos os indícios de um despertar islâmico na vida pessoal”: maior atençao para com as observâncias religiosas (comparecimento à mesquita, prece, jejum), proliferação de programas e publicações reli¬ giosos, maior ênfase no modo de vestir e nos valores islâmicos a revitalização do Sufismo (misticismo). Essa renovação de base mais , x o .* «GMuigiiuenio e Kessurgimento Islâmico estão com letras maiusculas. A razão é que esses termos se referem a um acontecimento hTstSco e remamente importante, que afeta um quinto ou mais da Humanidade, que é pelo menos 1 ‘«r*, ■ te,o,uti ‘ > zí JOS erres sao geralmente escritos com maiusculas, e que é semelhante e comparável à 135 134 ampla foi acompanhada também pela reafirmação do Islamismo na vida pública: um aumento de governos, organizações, legislação, bancos, serviços de assistência social e instituições de ensino de orientação islâmica. Tanto os governos quanto os movimentos de oposição se voltaram para o Islamismo a fim de acentuar sua autoridade e obter apoio popular. (...) A maioria dos dirigentes e dos governos, inclusive em Estados mais seculares como a Turquia e a Tunísia, tomando consciência da força potencial do Islamismo, têm demonstrado maior sensibilidade e preocupação em relação a questões islâmicas. Um outro destacado estudioso do Islã, Ali E. Hillal Dessouki, vê em termos análogos o Ressurgimento como implicando esforços para reins¬ tituir a legislação islâmica em vez da legislação ocidental, a maior utilização de linguagem e simbolismo religiosos, a expansão do ensino islâmico (manifestada na multiplicação de escolas islâmicas e na islami- zação dos currículos em escolas públicas comuns), maior observância dos códigos islâmicos de comportamento social (por exemplo, as vestes cobrindo as mulheres, a abstinência do álcool) e uma maior participação em cerimônias religiosas, o domínio por grupos islâmicos da oposição aos governos seculares em sociedades muçulmanas, e expansão dos esforços por desenvolver uma solidariedade internacional entre os Estados e as sociedades islâmicas. 18 La revanche deDieu é um fenômeno global, porém Deus, ou melhor, Alá tornou Sua vingança muito ampla e satisfatória na ummah , a comunidade do Islã. Nas suas manifestações políticas, o Ressurgimento Islâmico guarda certa semelhança com o marxismo, com os textos bíblicos, uma visão da sociedade perfeita, um compromisso com as mudanças fundamentais, a rejeição dos poderes existentes e do Estado-nação e uma diversidade doutrinária que vai do reformador moderado ao revolucionário violento. Entretanto, a melhor analogia é com a Reforma protestante. Ambos são reações à estagnação e corrupção das instituições existentes, advogam uma volta para uma forma mais pura e mais exigente de sua religião, pregam o trabalho, a ordem e a disciplina e atraem as pessoas da classe média emergente e dinâmica. Ambos são também movimentos comple¬ xos, com variantes diversas, porém duas principais — Luteranismo e Calvinismo, fundamentalismo sunita e xiita —, podendo mesmo ser traçados paralelos entre Jean Calvin e o Aiatolá Khomeini e a disciplina monástica que tentaram impor às suas respectivas sociedades. O espírito central tanto da Reforma como do Ressurgimento é a reforma fun¬ damental. Um pastor puritano declarou que “a Reforma tem que ser universal, (...) reformar todos os lugares, todas as pessoas e vocações, reformar as bancas de julgamento, os magistrados subalternos. (...) Reformar as universidades, reformar as cidades, reformar os países, reformar as escolas de ensino básico, reformar o Sabbath, reformar as ordenanças, o culto de Deus”. Em termos análogos, Al-Turabi afirma que “esse despertar é abrangente — não se trata apenas de devoção in¬ dividual, ele não é apenas intelectual e cultural, nem é apenas político. Ele é tudo isso, uma reconstrução abrangente da sociedade de alto a baixo”. 19 Ignorar o impacto do Ressurgimento Islâmico sobre a política no Hemisfério Oriental no final do século XX equivale a ignorar o impacto da Reforma protestante na política européia no final do século XVI. O Ressurgimento difere da Reforma num aspecto-chave. O impacto desta última ficou essencialmente limitado à Europa Setentrional, tendo, de forma geral, avançado pouco na Espanha, na Itália, na Europa Oriental e nas terras dos Habsburgo. O Ressurgimento, ao contrário, atingiu quase todas as sociedades muçulmanas. A partir dos anos 70, os símbolos, as crenças, as práticas, as instituições, as políticas e as organizações islâmicas conquistaram um engajamento e um apoio crescentes por todo o mundo de um bilhão de muçulmanos, que se estende do Marrocos à Indonésia e da Nigéria ao Casaquistão. A islamização tende a ocorrer primeiro no âmbito cultural, deslocando-se depois para as esferas social e política. Os líderes intelectuais e políticos, quer fossem ou não a seu favor, não podiam ignorá-la nem deixar de se adaptar a ela de uma ou de outra forma. As generalizações amplas são sempre perigosas e muitas vezes erradas. Uma, entretanto, parece justificada. Em 1995, todos os países com uma população predominantemente muçulmana, à exceção do Irã, eram mais islâmicos e mais fundamentalistas cultural, social e politica¬ mente do que 15 ános antes. 20 Na maioria dos países, um elemento central da islamização foi o desenvolvimento de uma organização social islâmica e a captura de organizações preexistentes por grupos islâmicos. Os fundamentalistas islâmicos dedicaram uma atenção especial tanto à abertura de escolas islâmicas quanto à expansão da influência islâmica nas escolas públicas. De fato, os grupos islâmicos trouxeram à realidade uma “sociedade civil” islâmica que seguia paralelamente, ultrapassava e muitas vezes suplan¬ tava, em amplitude e em atuação, as instituições freqüentemente débeis da sociedade civil secular. No Egito, no início dos anos 90, as organiza¬ ções islâmicas tinham desenvolvido uma extensa rede de entidades que, preenchendo o vazio deixado pelo governo, prestavam serviços de saúde, assistência, educacionais e outros, para um grande número dos pobres do país. Depois do terremoto de 1992 no Cairo, essas organiza¬ ções “estavam nas ruas em poucas horas, distribuindo alimentos e mantas, enquanto que os esforços de socorro do governo demoraram”. Na Jordânia, a Fraternidade Muçulmana seguiu conscientemente uma polí¬ tica de desenvolvimento da “infra-estrutura social e cultural de uma república islâmica” e, no começo dos anos 90, nesse pequeno país de quatro milhões de habitantes, ela estava operando um grande hospital, 20 clínicas, 40 escolas islâmicas e 120 centros de estudos corânicos. Ao lado, na Margem Ocidental e na Faixa de Gaza, as organizações islâmicas instalaram e operaram “sindicatos de estudantes, organizações de jovens e associações religiosas, sociais e educativas”, inclusive estabelecimentos de ensino que iam de jardins de infância até uma universidade islâmica, clínicas, orfanatos, um asilo para idosos e um sistema de juízes e árbitros islâmicos. As organizações islâmicas se espalharam por toda a Indonésia nas décadas de 70 e 80. No começo dos anos 80, a maior delas, a Muhhammadijah , contava com seis milhões de membros, constituía um “Estado-religioso-paternalista-dentro-de-um-Estado-secular”, e prestava serviços “do-berço-à-sepultura” para todo o país através de uma complexa rede de escolas, clínicas, hospitais e instituições de nível universitário. Nessas e em outras sociedades muçulmanas, as organizações fun- damentalistas islâmicas, proibidas de exercer atividades políticas, mesmo assim estavam prestando serviços sociais comparáveis aos dos mecanis¬ mos políticos nos Estados Unidos no começo do século XX. 21 As manifestações políticas do Ressurgimento têm sido menos amplas do que as suas manifestações sociais e culturais, porém, mesmo assim, ainda são, isoladamente, o mais importante desdobramento político nas sociedades muçulmanas no último quartel do século XX. A extensão e a feição do apoio político aos movimentos fundamentalistas islâmicos variou de um país para outro. Contudo, existem certas tendências amplas. De forma geral, esses movimentos não recebem muito apoio das elites rurais, dos camponeses e dos idosos. Seus adeptos são, de forma majoritária, participantes e produto dos processos de modernização. São pessoas mais jovens, com grande mobilidade e orientadas para a modernidade, provenientes em grande parte de três grupos. Como ocorre com a maioria dos movimentos revolucionários, seu núcleo consiste de estudantes e intelectuais. Na maioria dos países, a conquista do controle dos sindicatos de estudantes e organizações semelhantes foi a primeira fase no processo de islamização política, com o surto” de fundamentalismo islâmico ocorrendo nos anos 70 no Egito, 138 Paquistão e Afeganistão, movendo-se depois para outros países muçul¬ manos. A atração pelo fundamentalismo islâmico foi especialmente intensa entre os alunos de escolas técnicas, faculdades de Engenharia e departa¬ mentos científicos. Nos anos 90, na Arábia Saudita, na Argélia e em outros lugares, a “indigenização da segunda geração” se manifesta na proporção crescente de estudantes universitários estudando em seus idiomas nativos e, desse modo, expostos cada vez mais às influências fundamentalistas. 22 Freqüentemente, os fundamentalistas também desenvolveram considerável atração para as mulheres e, na Turquia, constatou-se uma profunda luta entre a geração mais velha de mulheres secularistas e suas filhas e netas, orientadas para o fundamentalismo islâmico. 25 Um estudo feito sobre os líderes militantes dos grupos fundamentalistas egípcios revelou que eles possuíam cinco características principais, que parecem ser típicas dos fundamentalistas islâmicos em outros países. Eles eram jovens, predomi¬ nantemente na faixa de 20 a 30 anos de idade. Oitenta por cento deles eram alunos ou diplomados universitários. Mais da metade veio de colégios de elite ou das áreas intelectualmente mais exigentes de especialização técnica, como Medicina e Engenharia. Mais de 70 por cento provinham da classe média baixa, “de meios modestos, mas não pobres”, e eram a primeira geração de suas famílias a receber educação superior. Tinham passado suas infâncias em cidades pequenas ou em zonas rurais, mas tinham passado a viver em cidades grandes. 24 Enquanto os estudantes e os intelectuais formavam os quadros militantes e as tropas de choque dos movimentos fundamentalistas, as pessoas da classe média urbana compunham o grosso dos seus membros ativos. Até certo ponto, elas provinham do que é freqüentemente denominado de grupos “tradicionais” de classe média: comerciantes, importadores-exportadores, proprietários de pequenas empresas, ba- zaaris. Eles desempenharam um papel crucial na Revolução Iraniana e deram importante apoio aos movimentos fundamentalistas na Argélia, Turquia e Indonésia. Entretanto, em grau ainda maior, os fundamentalis¬ tas pertenciam aos setores mais “modernos” da classe média. Os ativistas fundamentalistas islâmicos “provavelmente incluem um número des¬ proporcionalmente elevado dos jovens mais instruídos e mais inteligentes das suas respectivas populações”, inclusive médicos, advogados, enge¬ nheiros, professores e funcionários públicos. 25 O terceiro elemento-chave da clientela fundamentalista islâmica está nos contingentes que migraram recentemente para as cidades. Em todo o mundo islâmico, nos anos 70 e 80, as populações urbanas cresceram a taxas 13Q espetaculares. Comprimidos em áreas faveladas em decadência e muitas vezes primitivas, esses migrantes urbanos precisavam e se beneficiavam dos serviços sociais prestados pelas organizações fundamentalistas isl⬠micas. Além disso, assinala Ernest Gellner, o Islamismo ofereceu “uma identidade condigna” a essas “massas desenraizadas recentemente”. Em Istambul e Ancara, no Cairo e Asyut, em Argel e Fez, e na Faixa de Gaza, os partidos fundamentalistas islâmicos tiveram êxito em organizar e atrair “os pobres e miseráveis”. Oliver Roy comentou que “a massa do Islã revolucionário é um produto da sociedade moderna (...), os recém-che¬ gados urbanos, os milhões de camponeses que triplicaram a população das grandes metrópoles muçulmanas”. 2 ^ ■ Ao se chegar a meados dos anos 90, só no Irã e no Sudão tinham chegado ao poder governos explicitamente fundamentalistas islâmicos. Num pequeno número de países muçulmanos, como a Turquia e o Paquistão, havia regimes que podiam de algum modo invocar legitimi¬ dade democrática. Os governos em cerca de 40 outros países muçulma¬ nos eram amplamente não-democráticos: monarquias, sistemas de parti¬ do único, regimes militares, ditaduras pessoais ou algumas combinações desses tipos, geralmente apoiados numa base limitada de família, clã ou tribo e, em alguns casos, profundamente dependentes de apoio do exterior. Dois regimes, no Marrocos e na Arábia Saudita, tentaram invocar alguma forma de legitimidade islâmica. A maioria desses governos, porém, carecia de qualquer base para justificar estar no poder em termos de valores islâmicos, democráticos ou nacionalistas. Eram “regimes de bunker para usar a expressão de Clement Henry Moore, repressores, corruptos, divorciados das necessidades e aspirações de suas sociedades. Esses regimes podem se manter por longos períodos de tempo e não estão necessariamente fadados ao fracasso. No mundo moderno, contu¬ do, é alta a probabilidade de que eles mudarão ou desmoronarão. Conseqüentemente, em meados da década de 90, uma questão central se refere às alternativas prováveis: quem ou o que os irá suceder? Em quase todos os países, em meados dos anos 90, o regime que mais provavelmente os substituirá será fundamentalista islâmico. Durante as décadas de 70 e 80, uma onda de democratização varreu o mundo, abrangendo várias dezenas de países. Essa onda teve um impacto nas sociedades muçulmanas, porém de proporções limitadas. Enquanto movimentos democráticos estavam ganhando força e chegan¬ do ao poder na Europa Meridional, na América Latina, na periferia da Asia Oriental e na Europa Central, os movimentos fundamentalistas islâmicos estavam simultaneamente ganhando força nos países muçul¬ manos. O Islamismo foi o substituto funcional da oposição democrática ao autoritarismo nas sociedades cristãs e, em grande parte, foi o resultado de causas análogas: mobilização social, perda de legitimidade de de¬ sempenho por regimes autoritários e um ambiente internacional em mutação, inclusive com aumentos dos preços de petróleo, o que, no mundo islâmico, incentivou tendências fundamentalistas islâmicas em vez de tendências democráticas. Nas sociedades cristãs, padres, pastores e grupos religiosos leigos desempenharam papéis importantes na oposição a regimes autoritários e, nos países muçulmanos, os ulemás, os grupos baseados nas mesquitas e os fundamentalistas islâmicos tiveram papéis semelhantes. O Papa foi uma figura central para acabar com o regime comunista na Polônia, e os aiatolás, para derrubar o regime do xá no Irã. Nos anos 80 e 90, os movimentos fundamentalistas islâmicos estavam influindo na política não por controlarem governos, mas sim por dominarem — e muitas vezes monopolizarem — a oposição aos gover¬ nos. A força dos movimentos fundamentalistas islâmicos era, em parte, função da debilidade das fontes alternativas de oposição. Os movimentos esquerdistas e comunistas tinham ficado desacreditados e depois seria¬ mente solapados pelo colapso da União Soviética e do comunismo internacional. Os grupos de oposição liberais e democráticos tinham existido na maioria das sociedades muçulmanas, mas geralmente estavam confinados a números restritos de intelectuais e outras pessoas com raízes ou ligações ocidentais. Com apenas algumas exceções ocasionais, os democratas liberais foram incapazes de conseguir apoio popular conti¬ nuado nas sociedades muçulmanas, e até mesmo o liberalismo islâmico não conseguiu firmar raízes. Fouad Ajami observa que “nas sociedades muçulmanas, uma após outra, escrever sobre liberalismo e sobre uma tradição burguesa nacional é escrever os necrológios de homens que aceitaram probabilidades impossíveis e depois fracassaram”. 27 O fato de que a democracia liberal, de forma geral, não conseguiu se firmar nas sociedades muçulmanas é um fenômeno contínuo e repetido durante todo um século a partir do final de 1800. Esse insucesso tem sua origem, pelo menos em parte, na natureza inóspita da cultura e da sociedade islâmica para as concepções liberais ocidentais. O êxito que tiveram os movimentos fundamentalistas islâmicos para dominar a oposição e se implantar como a única alternativa viável aos regimes em exercício também foi muito ajudado pelas políticas desses regimes. Em uma ou em outra ocasião durante a Guerra Fria, muitos TÂ1 governos — inclusive os da Argélia, Turquia, Jordânia, Egito e Israel — incentivaram e apoiaram os fundamentalistas islâmicos como contrapo¬ sição aos movimentos comunistas ou nacionalistas hostis. Pelo menos até a Guerra do Golfo, a Arábia Saudita e outros Estados do Golfo proviam fundos em grande quantidade para a Fraternidade Muçulmana e grupos fundamentalistas islâmicos em vários países. A capacidade dos grupos fundamentalistas islâmicos de dominarem a oposição também foi aumen¬ tada com a eliminação pelos governos das oposições seculares. De forma geral, a força do fundamentalismo islâmico variou na razão inversa da dos partidos seculares democráticos ou nacionalistas e era menor em países como Marrocos e Turquia, que permitiam certo grau de competi¬ ção multipartidária, do que nos que eliminavam toda e qualquer oposi¬ ção. 28 Entretanto, a oposição secular é mais vulnerável à repressão do que a oposição religiosa. Esta última pode operar dentro e por detrás de uma rede de mesquitas, organizações de assistência, fundações e outras instituições muçulmanas que o governo considera que não pode eliminar. Os democratas liberais não dispõem desse tipo de cobertura e, por conseguinte, são mais fáceis de controlar ou de serem eliminados pelo governo. Num esforço para esvaziar o crescimento das tendências fun¬ damentalistas islâmicas, os governos expandiram o ensino religioso nas escolas controladas pelo Estado, que freqüentemente passaram a ser dominadas por professores e idéias fundamentalistas islâmicos, e amplia¬ ram seu apoio à religião e às instituições educacionais religiosas. Essas ações eram, em parte, prova da dedicação dos governos ao Islã e, através da provisão de fundos, elas estenderam o controle governamental de instituições islâmicas e do ensino islâmico. Não obstante, elas também levaram grande número de estudantes e de pessoas a aprenderem os valores islâmicos, fazendo-os mais abertos aos chamamentos fundamentalis¬ tas islâmicos, e formaram militantes que se lançaram ao trabalho em favor dos objetivos fundamentalistas islâmicos. A força do Ressurgimento e a atração dos movimentos funda¬ mentalistas islâmicos induziu os governos a promoverem as instituições e práticas islâmicas, bem como a incorporarem os símbolos e as práticas islâmicas aos seus regimes. No nível mais amplo, isso significou afirmar ou reafirmar o caráter islâmico de seus Estados e sociedades. Nos anos 70 e 80, os líderes políticos se apressaram em identificar seus regimes e a si próprios com o Islã. O rei Hussein, da Jordânia, convencido de que os governos seculares tinham pouco futuro no mundo árabe, falou da 147 necessidade de se criar uma “democracia islâmica” e um “Islã moderni- zador”. O rei Hassan, do Marrocos, enfatizou sua descendência do Profeta e seu papel como “Comandante da Fé”. O rei de Brunei, que não se notabilizara anteriormente por práticas islâmicas, tornou-se “cada vez mais devoto” e definiu seu regime como uma “monarquia muçulmana malaia”. Na Tunísia, Ben Ali começou a invocar Alá regularmente nos seus discursos e “enrolou-se no manto do Islã” para conter a crescente atração exercida por grupos fundamentalistas islâmicos. 29 No começo dos anos 90, Suharto adotou explicitamente uma política de se tornar “mais muçulmano.” Em Bangladesh, o princípio do “secularismo” foi retirado da Constituição em meados da década de 70 e, ao se chegar ao início da de 90, a identidade kemalista, secular, da Turquia estava, pela primeira vez, sendo alvo de uma contestação séria. 30 A fim de sublinhar sua devoção islâmica, dirigentes governamentais — Õzal, Suharto, Karimov — se apressaram em fazer sua hajh . Os governos dos países muçulmanos também tomaram providên¬ cias para islamizar sua legislação. Na Indonésia, concepções e práticas legais islâmicas foram incorporadas ao sistema legal secular. A Malásia, pelo contrário, refletindo sua considerável população não-muçulmana, moveu-se na direção do desenvolvimento de dois sistemas legais sepa¬ rados, um islâmico e outro secular. 31 No Paquistão, durante o regime do general Zia ul-Haq, foram feitos grandes esforços para islamizar a legislação e a economia. Foram introduzidas penas islâmicas, foi implan¬ tado um sistema de tribunais shari } a e a shari’a foi declarada a lei suprema do país. O Ressurgimento Islâmico é, ao mesmo tempo, um produto da modernização e um esforço para lidar com ela. Suas causas subjacentes são as mesmas que, de forma geral, são responsáveis, nas sociedades não-ocidentais, pelas tendências à indigenização: urbanização, mobiliza¬ ção social, níveis mais elevados de alfabetização e educação, comunica¬ ções e consumo da mídia intensificados e uma interação expandida com a cultura ocidental e outras culturas. Esses desdobramentos solapam os laços tradicionais de aldeias e clãs e criam uma alienação e uma crise de identidade. Os símbolos, compromissos e crenças islâmicos satisfazem essas necessidades psicológicas, enquanto que as organizações de assistência islâmicas satisfazem as necessidades sociais, culturais e eco¬ nômicas dos muçulmanos colhidos pelo processo de modernização. O Ressurgimento é também uma resposta ao impacto do Ocidente. Como as soluções ocidentais fracassaram para os muçulmanos, eles sentiram a i4a necessidade de voltar para suas raízes e confiar nas idéias, práticas e instituições islâmicas, para delas auferirem a bússola e o motor da modernização. Esse afastamento do Ocidente foi mais acentuado pela interação intensificada com o Ocidente, que tomou ainda mais reais as diferenças de valores e instituições entre as duas civilizações. O Res¬ surgimento é uma reação contra a ocidentalização, não contra a moderni¬ zação. 32 Argumentou-se que a revitalização islâmica foi também “um produ¬ to do declínio do poder e prestígio do Ocidente. (...) À medida que o Ocidente deixou de ter plena ascendência, seus ideais e instituições perderam o brilho”. Mais especificamente, o Ressurgimento foi es¬ timulado e alimentado pelo surto do petróleo dos anos 70, que aumentou enormemente a riqueza e o poder de muitas nações muçulmanas e habilitou-as a fazer retroceder as relações de dominação e subordinação que tinham existido com o Ocidente. Como John B. Kelly observou nessa ocasião, “para os sauditas, há indubitavelmente uma dupla satisfação a ser extraída de infligir aos ocidentais castigos humilhantes, pois estes não só são uma expressão do poder e da independência da Arábia Saudita, como também demonstram, como se deseja, o desprezo pelo Cris¬ tianismo e a preeminência do Islã”. As ações dos Estados muçulmanos ricos em petróleo, “se colocadas no seu contexto histórico, religioso, racial e cultural, não são nada mais do que tentativas ousadas de submeter o Ocidente cristão a pagar tributo ao Oriente muçulmano”. 33 Os governos saudita, líbio e outros utilizaram sua riqueza em petróleo para estimular e financiar a revitalização muçulmana, e a riqueza muçulmana levou os muçulmanos a passarem do fascínio pela cultura ocidental para um profundo envolvimento na sua própria cultura e para uma disposição de asseverar o lugar e a importância do Islã em sociedades não-islâmicas. Da mesma forma que a riqueza ocidental tinha anteriormente sido vista como prova da superioridade da cultura ocidental, a riqueza do petróleo foi vista como prova da superioridade do Islã. O ímpeto proporcionado pelos aumentos dos preços do petróleo nos anos 80 se desfez, mas o crescimento populacional continuou provendo uma força motriz. Enquanto a ascensão na Ásia Oriental foi alimentada por espetaculares taxas de crescimento econômico, o Res¬ surgimento Islâmico foi alimentado por taxas igualmente espetaculares de crescimento populacional. A expansão populacional nos países islâmicos, especialmente nos Bálcãs, no Norte da África e na Ásia Central foi significativamente maior do que a dos países vizinhos e do mundo em geral. Entre 1965 e 1990, a população total da Terra subiu de 3,3 bilhões para 5,3 bilhões de pessoas, ou seja, uma taxa de crescimento anual de 1,85 por cento. Nas sociedades muçulmanas, as taxas de crescimento quase sempre estiveram acima de dois por cento, passando freqüentemente de 2,5 por cento e, às vezes, ficando acima de três por cento. Entre 1965 e 1990, por exemplo, a população do Maghreb aumentou a uma taxa de 2,65 por cento ao ano, passando de 29,8 milhões para 59 milhões, com os argelinos se multiplicando a uma taxa anual de três por cento. Durante esses mesmos anos, o número de egípcios subiu a uma taxa de 2,3 por cento, de 29,4 milhões para 52,4 milhões de pessoas. Na Ásia Central, entre 1970 e 1993, as populações cresceram a taxas de 2,9 por cento no Tadjiquistão, 2,6 por cento no Uzbequistão, 2,5 por cento no Turcomemistão, 1,9 por cento na Quirguízia, porém apenas 1,1 por cento no Casaquistão, onde quase metade da população é russa. O Paquistão e Bangladesh tiveram taxas de crescimento popu¬ lacional excedendo 2,5 por cento ao ano, enquanto a da Indonésia ficou acima de dois por cento ao ano. De forma geral, os muçulmanos, como mencionamos, constituíam talvez 18 por cento da população mundial em 1980 e provavelmente representarão 23 por cento no ano 2000 e 31 por cento em 2025. 34 As taxas de crescimento populacional no Maghreb e em outras regiões chegaram ao seu ápice e estão começando a declinar, porém o crescimento, em números absolutos, continuará sendo grande e o impacto desse crescimento se fará sentir durante toda a primeira parte do século XXI. Por muitos anos ainda, as populações muçulmanas serão compostas de modo desproporcional por pessoas jovens, com um bolsão demográfico notável de adolescentes e pessoas na faixa etária dos 20 anos (Figura 5.2). Além disso, as pessoas nessas coortes etárias serão predominantemente urbanas e terão, em sua grande maioria, pelo menos educação secundária. Essa combinação de tamanho e mobilidade social tem três conseqüências políticas significativas. Em primeiro lugar, as pessoas jovens são os protagonistas dos protestos, da instabilidade, da reforma e da revolução. Historicamente, a existência de grandes coortes de jovens tendeu a coincidir com movi¬ mentos dessa natureza. Já foi dito que “a Reforma protestante é um exemplo de um dos mais destacados movimentos de jovens da História”. Jack Goldstone sustentou, de forma convincente, que o crescimento demográfico foi um fator fundamental nas duas ondas de revoluções que ocorreram na Eurãsia em meados do século XVII e no final do século 144 I Figura 5.2 0 Desafio Demográfico: o Islã, a Rússia e o Ocidente —■— USA —*— Países muçulmanos Europa Federação Russa Fonte: Nações Unidas, Divisão de População, Departamento de Informação Econômica e Social e Análise de Políticas, World Population Prospects, The 1994 Revision [Perspectivas para a População Mundial, a Revisão de 1994] (Nova York: Nações Unidas, 1995); Nações Unidas, Divisão de População, Departamento de Informação Econômica e Social e Análise de Políticas, Sex and Age Distribution oi the World Populations , The 1994 Revision [Distribuição das Populações do Mundo por Sexo e Idade, a Revisão de 1994] (Nova York: Nações Unidas, 1994). XVIII. 35 Uma expansão notável da proporção de jovens nos países ocidentais coincidiu com a “Idade da Revolução Democrática” nas duas últimas décadas do século XVIII. No século XIX, o êxito da indus¬ trialização e a emigração reduziram o impacto político das populações jovens das sociedades européias. Contudo, a proporção de jovens subiu de novo na década de 20, provendo recrutas para o fascismo e outros movimentos extremistas. 36 Quatro décadas depois, a geração do surto de bebês após a II Guerra Mundial deixou sua marca, do ponto de vista político, nas manifestações de rua e protestos dos anos 60. A juventude do Islã está deixando sua marca no Ressurgimento Islâmico. Quando o Ressurgimento se iniciou, nos anos 70, e tomou velocidade nos anos 80, a proporção de jovens (isto é, pessoas entre 15 e 24 anos de idade) cresceu de modo significativo nos principais países muçulmanos e começou a ultrapassar os 20 por cento do total da população. Em muitos países muçulmanos, o bolsão de jovens chegou ao ápice nas décadas de 70 e 80 e, em outros, irá atingir seu ápice no início do próximo século (ver Quadro 5.1). Os ápices atingidos ou ;0i prognosticados em todos esses países estão acima de 20 por cento, com uma única exceção. O ápice prognosticado para a Arábia Saudita na primeira década do século XXI fica pouco aquém desse nível. Esses jovens fornecem os recrutas para as organizações e os movimentos políticos fundamentalistas islâmicos. Talvez não seja intei¬ ramente por coincidência que a proporção de jovens na população iraniana subiu de forma espetacular nos anos 70, atingindo 20 por cento na última metade daquela década, e que a Revolução Iraniana ocorreu em 1979, ou que essa proporção foi atingida na Argélia no início dos anos 90, justamente quando a FIS fundamentalista islâmica estava conquistando o apoio popular e logrando vitórias eleitorais. Também ocorrem algumas variações regionais no bolsão de jovens, que podem ter algum significado (ver Figura 5.3). Embora esses dados tenham que ser tratados com cautela, as projeções sugerem que as proporções de jovens bósnios e albaneses vão declinar de forma abrupta na virada do século, o que poderia facilitar a paz com a antiga Iugoslávia ou encorajar mais violências sérvias e croatas contra os muçulmanos. O bolsão de jovens irá, por outro lado, permanecer grande nos Estados do Golfo. Em 1988, o príncipe herdeiro Abdullah, da Arábia Saudita, disse que a maior ameaça para o seu país era o crescimento do fun- damentalismo islâmico entre a juventude. 37 Segundo essas projeções, essa ameaça persistirá até bem adiante no século XXL Quadro 5.1 Bolsão de Jovens nos Países Islâmicos 1970 1980 1990 2000 2010 Bahrein Azerbaijão Bangladesh Arábia Saudita Afeganistão Bósnia Quirguízia Indonésia Kuwait Líbia Casaquistão Tadjiquistão Iraque Tadjiquistão Omã EAU Turcomenistão Jordânia Turcomenistão Quirguízia Egito Malásia Marrocos Egito Malásia Irã Paquistão Argélia Irã Paquistão Turquia Sudão Síria lêmen lêmen Albânia Jordânia Síria Iraque Tunísia Décadas nas quais o número de jovens de 15 a 24 anos de idade chegou ou deve chegar ao ápice em relação ao total da população. Fonte; Ver Figura 5.2. ”* /~m Porcentagem sobre o Total da População / Faixa Etária 15-24 Figura 5.3 BoisõES de Jovens Muçulmanos por Região 1965 1970 1980 1990 2000 2010 2020 2025 —■—Bálcãs Países do Golfo Norte da África -o-* Sudeste Asiático —& Ásia Central - + - Oriente Médio —Ásia Meridional Fonte*. Nações Unidas, Divisão de População, Departamento de Informação Econômica e Social e Análise de Políticas, World Population Prospects, The 1994 Revision [Perspectivas para a População Mundial, A Revisão de 1994] (Nova York: Nações Unidas, 1995); Nações Unidas, Divisão de População, Departamento de Informação Econômica e Social e Análise de Políticas, SexandAge Distribution of the World Populations, The 1994 Revision [Distribuição das Populações do Mundo por Sexo e Idade, a Revisão de 1994] (Nova York: Nações Unidas, 1994). As taxas de crescimento populacional natural nos principais países muçulmanos (Argélia, Egito, Marrocos, Síria, Tunísia) chegaram ao ápice entre 1970 e 1990 e, por conseguinte, a quantidade de pessoas no começo da faixa dos 20 anos de idade à procura de emprego irá se expandir até 2010. Por comparação com 1990, os que ingressam no mercado de trabalho aumentarão em 30 por cento na Tunísia, em cerca de 50 por cento na Argélia, Egito e Marrocos e em mais de 100 por cento na Síria. A rápida expansão da alfabetização nas sociedades árabes também cria um hiato entre a geração mais moça alfabetizada e uma geração mais velha em grande parte analfabeta e, desse modo, produz "uma dis¬ sociação entre conhecimento e poder” capaz de “gerar pressão sobre o sistema político”. 38 Populações maiores necessitam de mais recursos e, por conseguin¬ te, as pessoas em sociedades com populações densas ou em rápido crescimento tendem a um movimento centrífugo, a ocupar territórios e a exercer pressão sobre outros povos menos dinâmicos demograficamen- te. Desse modo, o crescimento populacional islâmico é um importante fator, que contribui para os conflitos ao longo das fronteiras do mundo islâmico, entre muçulmanos e outros povos. A pressão populacional, combinada com a estagnação econômica, promove a migração muçul¬ mana para a sociedade ocidental e outras sociedades não-ocidentais, elevando a imigração à condição de um problema nas mesmas. A justaposição de um povo em rápido crescimento de uma cultura e um povo crescendo pouco ou estagnado de outra cultura gera pressões por ajustes econômicos e/ou políticos em ambas as sociedades. Nos anos 70, por exemplo, o equilíbrio demográfico na ex-Uniào Soviética alterou-se de forma espetacular com os muçulmanos aumentando em 24 por cento, enquanto os russos aumentaram em 6,5 por cento, o que causou grande preocupação nos dirigentes comunistas centro-asiáticos, e o aumento de 26 por cento dos chechenos durante a década de 80 não facilitou seu relacionamento com os russos. 39 De forma análoga, o rápido crescimento da quantidade de albaneses não tranqüiliza os sérvios, gregos ou italianos. Os israelenses estão preocupados com as altas taxas de crescimento dos palestinos. A Espanha, com uma população que cresce a menos de um quinto de um por cento ao ano, está inquieta ao se ver confrontada pelos vizinhos do Maghreb, com populações que estão crescendo mais de 10 vezes mais rápido e com PNBs per capita crescendo a apenas um décimo da taxa de aumento do PNB espanhol. Desafios em Mutação Nenhuma sociedade pode manter indefinidamente um crescimento econômico de dois dígitos, e o surto econômico asiático irá se estabilizar em algum momento no começo do século XXI. As taxas de crescimento econômico japonês caíram substancialmente em meados dos anos 70 e, daí por diante, não foram significativamente mais elevadas do que as dos Estados Unidos e países europeus. Um por um, os Estados asiáticos com “milagres econômicos” verão suas taxas de crescimento declinarem e se aproximarem dos níveis “normais” mantidos em economias complexas. Analogamente, nenhuma revitalização religiosa ou movimento cultural dura indefinidamente e, em algum momento, o Ressurgimento Islâmico irá diminuir e desaparecer na História. A maior probabilidade é a de que isso aconteça quando o impulso demográfico que o está movendo se enfraquecer na segunda e terceira décadas do século XXI. Nessa ocasião, as fileiras de militantes, guerreiros e migrantes diminuirão e os altos níveis de conflito no seio do Islã e entre muçulmanos e outros povos (ver Capítulo 10) provavelmente declinarão. O relacionamento entre o Islã e o Ocidente não se estreitará, mas ficará menos conflituoso, e uma situação de quase guerra (ver Capítulo 9) provavelmente cederá lugar a uma guerra fria ou, talvez, a uma paz fria. Entretanto, durante as próximas décadas, o crescimento econômico asiático e a pressão populacional muçulmana terão efeitos profun¬ damente desestabilizadores sobre a ordem internacional existente, de predomínio ocidental. O aumento mais significativo de recursos de poder e de influência nas questões mundiais irá para as sociedades asiático- orientais, que estão passando por um rápido crescimento econômico. Se isso continuar por cerca de mais outra década, o desenvolvimento da China produzirá uma alteração imensa do poder entre as civilizações. Além disso, nessa ocasião a índia poderia estar em meio a um rápido desenvolvimento econômico e emergindo como um ator principal no cenário mundial. Enquanto isso, o crescimento populacional muçulmano também terá efeitos desestabilizadores significativos sobre o equilíbrio de poder mundial. As grandes quantidades de jovens com educação secundária continuarão a impelir o Ressurgimento Islâmico e a promover maior militância, militarismo e migração muçulmanos. Como resultado, as décadas vindouras verão o continuado ressurgimento de poder e cultura não-ocidentais e o choque de povos de civilizações não-ociden¬ tais com o Ocidente e entre si. A Ordem Emergente das Civilizações Capítulo 6 A Reconfiguração Cultural da Política Mundial Em Busca de Agrupamentos: a Política da Identificação E sporeada pela modernização, a política mundial está sendo recon¬ figurada segundo linhas culturais. Os povos e os países com cul¬ turas parecidas estão se juntando. Os povos e países com culturas diferentes estão se afastando. Os alinhamentos definidos pela ideologia e pelos relacionamentos de superpotências estão dando lugar aos alinhamentos definidos pela cultura e pela civilização. As fronteiras políticas estão cada vez mais sendo redesenhadas para coincidir com as fronteiras culturais: étnicas, religiosas e civilizacionais. As comunidades culturais estão substituindo os blocos da Guerra Fria, e as linhas de fratura entre as civilizações estão se tomando as linhas fundamentais de conflito na política mundial. Durante a Guerra Fria, um país podia ser não-alinhado, como muitos eram, ou, como faziam alguns, podia mudar seu alinhamento de um lado para outro. Os dirigentes de um país podiam fazer essas opções em função das suas percepções dos seus interesses de segurança, suas avaliações do equilíbrio de poder e suas preferências ideológicas. No mundo novo, entretanto, a identidade cultural é o fator essencial para moldar as associações e os antagonismos de um país. Enquanto que um país podia evitar se alinhar no contexto da Guerra Fria, ele não pode prescindir de identidade. A pergunta “De que lado você está?” foi substituída pela pergunta muito mais fundamental “Quem você é?”. Todos os Estados precisam ter uma resposta para essa pergunta. A resposta — sua identidade cultural — define o lugar desse Estado na política mundial, seus amigos e seus inimigos. Os anos 90 viram a erupção de uma crise mundial de identidade. Praticamente, para onde quer que se olhe, depara-se com as pessoas se perguntando “Quem somos?”, “Qual o nosso lugar?” e “Quem não é como nós?”. Essas indagações são essenciais não apenas para os povos que estão tentando forjar novos Estados-nações, como na antiga Iugoslávia, mas também de forma muito mais genérica. Em meados dos anos 90, os países nos quais as questões referentes à identidade nacional eram debatidas de forma ativa incluíam, entre outros, os seguintes: Argélia, Canadá, China, Alemanha, Grã-Bretanha, índia, Irã, Japão, México, Marrocos, Rússia, África do Sul, Síria, Tunísia, Turquia, Ucrânia e Estados Unidos. As questões de identidade são, é claro, particularmente impor¬ tantes em países fendidos, que contam com grupos consideráveis de pessoas de civilizações diferentes. Ao lidar com uma crise de identidade, o que conta para as pessoas é sangue e crença, fé e família. As pessoas se congregam com as que têm semelhanças de ascendência, religião, idioma, valores e instituições, e se distanciam daquelas com diferenças nesses aspectos. Na Europa, a Áustria, a Finlândia e a Suécia, culturalmente parte do Ocidente, tiveram que se manter divorciadas do Ocidente e neutras durante a Guerra Fria, e atualmente estão em condições de se juntar a seus semelhantes culturais na União Européia. Os países católicos e protestantes do antigo Pacto de Varsóvia — Polônia, Hungria, República Checa e Eslováquia — estão se encaminhando para ingressarem na União Européia e na OTAN, e os Estados bálticos estão entrando na fila atrás deles. As potências européias deixam claro que não querem um Estado muçulmano, a Turquia, na União Européia, e não vêem com agrado a existência de um segundo Estado muçulmano, a Bósnia, no continente europeu. Ao norte, o fim da União Soviética estimulou o surgimento de novos (e antigos) padrões de associação entre as repúblicas do Báltico e também entre estas, a Suécia e a Finlândia. O primeiro-ministro sueco recordou expressamente à Rússia que as repúblicas do Báltico fazem parte do “exterior próximo” da Suécia e que esta não poderia permanecer neutra na eventualidade de uma agressão russa contra elas. Nos Bálcãs, ocorrem realinhamentos semelhantes. Durante a Guerra Fria, a Grécia e a Turquia pertenciam à OTAN, a Bulgária e a Romênia 1C Á pertenciam ao Pacto de Varsóvia, a Iugoslávia era não-alinhada e a Albânia era um país isolado em algum momento associado à China comunista. Atualmente, esses alinhamentos da época da Guerra Fria estão cedendo lugar a alinhamentos civilizacionais baseados no Islamismo e na Ortodoxia. Os líderes balcânicos falam de concretizar uma aliança ortodoxa greco-sérvio-búlgara. O primeiro-ministro grego alega que as “guerras balcânicas (...) trouxeram à tona a reverberação dos laços ortodoxos. (...) isso constitui um vínculo. Ele estava latente, porém, com os acontecimentos nos Bálcãs, está assumindo substância concreta. Num mundo muito fluido, as pessoas estão em busca de identidade e de segurança. As pessoas estão procurando raízes e ligações para se defenderem do desconhecido”. Essas opiniões são repetidas pelo líder do principal partido de oposição na Sérvia: “A situação no sudeste europeu logo exigirá a formação de uma nova aliança balcânica de países ortodoxos, inclusive a Sérvia, a Bulgária e a Grécia, a fim de resistir aos avanços do Islã.” Olhando para o norte, a Sérvia e a Romênia ortodoxas cooperam intimamente com a Hungria católica. Com o desaparecimento da ameaça soviética, a aliança “antinatural” entre Grécia e Turquia fica sem sentido, à medida que se intensificam os conflitos entre elas por causa do Mar Egeu, de Chipre, do seu equilíbrio militar, seus papéis na OTAN e na União Européia, e seus respectivos relacionamentos com os Estados Unidos. A Turquia reafirma seu papel de protetora dos muçul¬ manos balcânicos e proporciona apoio à Bósnia. Na antiga Iugoslávia, a Rússia apoia a Sérvia ortodoxa, a Alemanha promove a Croácia católica, os países muçulmanos acorrem em apoio do governo da Bósnia e os sérvios combatem os croatas, os muçulmanos bósnios e os muçulmanos albaneses. De modo generalizado, os Bálcãs voltaram a ficar balcanizados segundo linhas religiosas. Como assinalou Misha Glenny, “estão surgindo dois eixos, um envergando o traje da ortodoxia oriental e o outro coberto com as vestes islâmicas”, e existe a possibilidade de “uma luta cada vez maior por influência entre o eixo Belgrado-Atenas e a aliança Albânia- Turquia”. 1 Enquanto isso, na antiga União Soviética, a Bielo-Rússia, a Moldova e a Ucrânia ortodoxas gravitam em direção à Rússia, e os armênios e azeris lutam entre si enquanto seus parentes russos e turcos tentam, ao mesmo tempo, apoiá-los e conter o conflito. O exército russo luta contra fun- damentalistas muçulmanos no Tadjiquistão e nacionalistas muçulmanos na Chechênia. As ex-repúblicas soviéticas muçulmanas trabalham para desen¬ volver e expandir seus laços com seus vizinhos muçulmanos, enquanto 1SS Turquia, Irã e Arábia Saudita dedicam grande esforço para cultivar as relações com esses novos Estados. No Subcontinente, permanece o desentendimento entre a índia e o Paquistão por causa de Caxemira e da relação de poder militar entre os dois países. Além disso, os combates em Caxemira se intensificam e surgem novos conflitos entre os fun- damentalistas muçulmanos e os hindus. Na Ásia Oriental, onde vivem povos de seis civilizações diferentes, o rearmamento está ganhando impulso e as disputas territoriais estão surgindo. As três Chinas menores e as comunidades chinesas nos países do Sudeste Asiático estão ficando cada vez mais orientadas para a China continental, envolvidas com ela e dela dependentes. As duas Coréias se movem de forma titubeante, porém significativa, no rumo da unificação. As relações nos Estados do Sudeste Asiático entre os muçulmanos, de um lado, e os chineses e cristãos, do outro, se tornam cada vez mais tensas e, às vezes, ficam violentas. Na América Latina, as associações econômicas — Mercosul, o Pacto Andino, o pacto tripartite (México, Colômbia e Venezuela), o Mercado Comum Centro-americano — estão tendo uma nova vitalidade, reafir¬ mando a tese, demonstrada de forma mais nítida pela União Européia, de que a integração econômica caminha mais depressa e vai mais longe quando está baseada em aspectos culturais em comum. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos e o Canadá tentam absorver o México no NAFTA (Acordo Norte- americano de Livre Comércio) num processo cujo êxito a longo prazo depende essencialmente da capacidade do México de se redefinir culturalmente de latino-americano para norte-americano. Com o fim do ordenamento da Guerra Fria, os países pelo mundo afora estão assim desenvolvendo novos antagonismos e filiações e revigorando os antigos. Estão em busca de agrupamentos e os estão encontrando com países de culturas parecidas e da mesma civilização. Os políticos invocam comunidades culturais “grandes” — com as quais as pessoas se identificam ; —, que transcendem as fronteiras dos Estados- nações, dentre as quais estão a “Grande Sérvia”, a “Grande China”, a “Grande Turquia”, a “Grande Hungria”, a “Grande Croácia”, o “Grande Azerbaijão”, a “Grande Rússia”, a “Grande Albânia”, o “Grande Irã” e o “Grande Uzbequistão”. Irão os alinhamentos políticos e econômicos coincidir sempre com os culturais e civilizacionais? É claro que não. Considerações relativas ao equilíbrio de poder levarão, algumas vezes, a alianças que cortarão as fronteiras civilizacionais, como aconteceu quando Francisco I se juntou aos otomanos contra os Habsburgos. Além disso, padrões de associação formados para atender aos propósitos de Estados numa era persistirão na era seguinte. Entretanto, eles têm a probabilidade de se tomarem mais fracos e terem menos sentido, sendo então adaptados para atender os propósitos da nova era. A Grécia e a Turquia continuarão, sem dúvida alguma, como membros da OTAN, porém seus vínculos com outros membros da OTAN provavelmente irão se atenuar. O mesmo acontecerá com as alianças dos Estados Unidos com o Japão e com a Coréia do Sul, sua aliança defacto com Israel e seus laços de segurança com o Paquistão. Organizações internacionais multicivilizacionais, como a ASEAN, podem defrontar-se com dificuldade crescente para manter sua coerência. Países como a índia e o Paquistão, que eram parceiros de diferentes superpo¬ tências durante a Guerra Fria, agora redefinem seus interesses e procuram novas associações que reflitam as realidades da política cultural. Os países africanos que dependiam do apoio ocidental, configurado para se contrapor à influência soviética, olham agora cada vez mais para a África do Sul em busca de liderança e ajuda. Por que devem os aspectos culturais em comum facilitar a coope¬ ração e a coesão entre os povos e devem as diferenças culturais promover fissuras e conflitos? Em primeiro lugar, todos têm identidades múltiplas que podem competir umas com as outras e reforçar umas em relação às outras: identificações por parentesco, ocupação, cultura, instituição, território, educação, partidarismo, ideologia, entre outras. Identificações em função de uma dimensão podem se chocar com as relativas a outra dimensão. Um caso clássico é o dos trabalhadores alemães em 1914, que tiveram que escolher entre a identificação de classe com o proletariado interna¬ cional e sua identificação nacional com o povo e o império alemães. No mundo contemporâneo, a identificação por cultura está aumentando de importância de forma espetacular em comparação com outras dimensões de identificação. No contexto de qualquer dimensão isolada, a identificação geral¬ mente tem mais significação no nível imediato de pessoa para pessoa. Entretanto, identificações mais estreitas não entram necessariamente em conflito com identificações mais amplas. Um oficial pode se identificar, em termos institucionais, com sua companhia, regimento, divisão e força. Analogamente, uma pessoa pode se identificar culturalmente com seu clã, grupo étnico, nacionalidade, religião e civilização. A maior proemi¬ nência da identificação cultural nos níveis inferiores bem pode reforçar 156 157 sua proeminência em níveis superiores. Como sugeriu Burke, “o amor pelo todo não se extingue por essa simpatia subordinada. (...) Sentir-se ligado à subdivisão, amar o pequeno pelotão a que pertencemos na sociedade, é o primeiro princípio (a semente, por assim dizer) das afeições das pessoas”. Num mundo em que a cultura conta, os pelotões são as tribos e os grupos étnicos, os regimentos são as nações e os exércitos são as civilizações. O grau maior com que as pessoas, pelo mundo afora, se diferenciam entre si segundo linhas culturais significa que os conflitos entre os grupos culturais são cada vez mais importantes. As civilizações são as entidades culturais mais amplas e, por conseguinte, os conflitos entre os grupos de diferentes civilizações se tomam fundamentais para a política mun dial Em segundo lugar, como se expõe nos Capítulos 3 e 4, a maior proeminência da identificação pela cultura é, em grande parte, resultado da modernização sócio-econômica tanto no nível individual, no qual o transtorno e a alienação criam a necessidade de identificações mais significativas, como no nível societário, no qual a maior capacidade e o maior poder das sociedades não-ocidentais estimulam a revitalização das identidades e cultura autóctones. O surgimento simultâneo de movimen¬ tos fundamentalistas” em praticamente todas as religiões principais é uma manifestação desse desdobramento, e la revanche de Dieu não está restrita aos grupos fundamentalistas. Em terceiro lugar, a identificação em qualquer nível — pessoal, tribal, racial, civilizacional — só pode ser definida em relação a uma “outra” uma pessoa, tribo, raça ou civilização diferente. Historicamente, as relações entre Estados ou outras entidades de uma mesma civilização diferem das relações entre Estados ou outras entidades de civilizações diferentes. Códigos separados governam o comportamento para com aqueles que são como nós” e os “bárbaros”, que não são. As regras das nações da Cristandade para lidarem umas com as outras eram diferentes daquelas para lidarem com os turcos e outros “pagãos”. Os muçulmanos agiam de forma diferente para com os do Daral-Islam e os do Daral-harb. Os chineses tratavam os estrangeiros chineses e os estrangeiros não-chineses de maneira diferente. O “nós” civilizacional e o “eles” extracivilizacional é uma constante na História da Humanidade. Essas diferenças de comportamento intracivilizacional e extracivilizacional provêm de: 1. sentimentos de superioridade (e, ocasionalmente, de inferiorida¬ de) em relação às pessoas que são percebidas como sendo muito diferentes; 158 2. receio de tais pessoas e falta de confiança nelas; 3. dificuldade de comunicação com elas em decorrência de diferen¬ ças de idiomas e do que se considera como comportamento educado; 4. falta de familiaridade com os pressupostos, as motivações, os relacionamentos sociais e as práticas sociais de outras pessoas. No mundo atual, os progressos em transportes e comunicações produziram interações mais freqüentes, mais intensas, mais simétricas e mais abrangentes entre pessoas de civilizações diferentes. Em conseqüência, suas identidades civilizacionais tomam-se cada vez mais proeminentes. Os franceses, os alemães, os belgas e os holandeses cada vez mais pensam em si como europeus. Os muçulmanos do Oriente Médio se identificam com os bósnios e os chechênios e acorrem em seu apoio. Os chineses em todo o Sudeste Asiático identificam os seus interesses com os da China continen¬ tal. Os russos se identificam com os sérvios e outros povos ortodoxos, e os apoiam. Esses níveis mais amplos de identificação civilizacional significam uma percepção mais profunda das diferenças civilizacionais e da neces¬ sidade de proteger aquilo que distingue “nós” de “eles”. Em quarto lugar, as fontes de conflito entre Estados e grupos de civilizações diferentes são, em grande medida, aquelas que sempre geraram conflito entre grupos de pessoas: o controle de pessoas, de território, de riqueza, de recursos naturais e de poder relativo. Poder relativo é a capacidade que alguém tem de impor seus próprios valores, cultura e instituições a outro grupo, comparada com a capacidade desse grupo de fazer a mesma coisa no sentido inverso. Entretanto, o conflito entre grupos culturais pode também envolver questões culturais. As diferenças em termos de ideologia secular entre o marxismo-leninismo e a democracia liberal podem pelo menos ser debatidas, ainda que não resolvidas. As diferenças em termos de interesses materiais podem ser negociadas e muitas vezes acertadas por meio de uma acomodação de uma maneira que não é possível nas questões culturais. É improvável que hindus e muçulmanos resolvam a questão sobre se deve ser construído um templo ou uma mesquita em Ayodhya edificando ambos, nenhum dos dois ou um prédio sincrético que servisse de mesquita e de templo. Nem tampouco pode ser resolvida com facilidade o que poderia parecer uma questão territorial simples entre muçulmanos albaneses e sérvios ortodoxos a respeito de Kosovo, ou entre judeus e árabes a respeito de Jerusalém, porque cada um desses lugares tem um profundo 159 significado histórico, cultural e emocional para ambos os povos em cada uma dessas questões. Analogamente, não é provável que ou as autori¬ dades francesas ou os pais muçulmanos aceitem uma fórmula de acomo¬ dação que permitida que as meninas usassem vestimentas muçulmanas dia sim e outro não para ir às aulas. Questões culturais como essas envolvem uma escolha entre sim e não, uma opção entre extremos opostos. Em quinto e último lugar, está a ubiqüidade do conflito. Odiar é humano. Para sua autodefinição e motivação, as pessoas precisam de inimigos: concorrentes nos negócios, rivais nas realizações, adversários na política. Elas naturalmente desconfiam daqueles que são diferentes e que têm a capacidade de lhes causar prejuízo e as vêem como ameaças. A resolução de um conflito e o desaparecimento de um inimigo geram forças pessoais, sociais e políticas que fazem surgir outros. Como disse Ali Mazrui, “a tendência do ‘nós’ contra ‘eles’ é, na arena política, quase universal”. 2 No mundo contemporâneo, o “eles” tem uma probabilidade cada vez maior de se referir a pessoas de uma civilização diferente. O fim da Guerra Fria não acabou com os conflitos, fez surgirem novas identificações enraizadas na cultura e novos padrões de conflitos entre grupos de culturas diferentes que, em seu nível mais amplo, são civilizações. Simultaneamente, a cultura em comum também estimula a cooperação entre Estados e grupos que compartilham dessa cultura, como pode ser visto nos padrões que estão surgindo de associação regional entre países, especialmente no campo econômico. A Cultura e a Cooperação econômica No início dos anos 90, muito se ouviu falar de regionalismo e de regionalização da política mundial. Os conflitos regionais substituíram o conflito global na agenda de segurança do mundo. As grandes potências, como a Rússia, a China e os Estados Unidos, bem como as potências secundárias, como a Suécia e a Turquia, redefiniram seus interesses de segurança em termos explicitamente regionais. O comércio internacional dentro das regiões se expandiu mais depressa do que o comércio internacional entre as regiões, e muitos predisseram o surgimento de blocos econômicos regionais — europeu, norte-americano, asiático- oriental e talvez outros, O termo “regionalismo”, entretanto, não descreve de modo adequa¬ do o que está acontecendo. As regiões são entidades geográficas, não políticas ou culturais. Como ocorre nos Bálcãs ou no Oriente Médio, elas ç. podem ser rachadas por conflitos intercivilizacionais e intracivilizacionais. As regiões são a base para a cooperação entre os Estados, unicamente na medida em que a geografia coincida com a cultura. Divorciada da cultura, a propinqüidade não gera por si só aspectos em comum e pode mesmo induzir exatamente o oposto. As alianças militares e as associações econô¬ micas requerem a cooperação entre os seus membros, a cooperação depende da confiança e a confiança brota mais facilmente de valores e cultura em comum. Em conseqüência, embora o tempo de existência e a finalidade também tenham relevância, a eficácia total das organizações regionais em geral varia na proporção inversa da diversidade civilizacio- nal de seus membros. De forma generalizada, as organizações de uma só civilização fazem e conseguem mais coisas do que as organizações multicivilizacionais. Isso se aplica tanto a organizações políticas e de segurança, de um lado, como a organizações econômicas, de outro. O êxito da OTAN resultou em grande parte do fato de ela ser a organização de segurança fundamental de países ocidentais com valores e pressupostos filosóficos em comum. A União Européia Ocidental é o produto de uma cultura européia comum. A Organização para a Segu¬ rança e a Cooperação na Europa, por outro lado, inclui países de pelo menos três civilizações, com valores e interesses bastante diferentes, o que cria grandes obstáculos a que ela desenvolva uma identidade institucional importante e uma vasta gama de atividades importantes. A Comunidade do Caribe (Caricom), de uma única civilização, composta de 13 ex-colônias britânicas anglófonas, criou grande variedade de arranjos de cooperação, com uma cooperação mais intensa entre alguns subgrupos. Entretanto, as tentativas de criação de organizações caribe- nhas mais amplas, passando por cima da linha de fratura anglo-hispânica no Caribe, fracassaram de modo sistemático. Analogamente, a Associação para a Cooperação Regional da Ásia Meridional, formada em 1985 e abrangendo sete Estados hindus, muçulmanos e budistas, foi quase inteiramente ineficiente, chegando mesmo ao ponto de não conseguir realizar reuniões. 5 A relação da cultura com o regionalismo fica mais evidente no contexto da integração econômica. Partindo da menor para a maior integração, reconhecem-se quatro níveis de associação econômica entre países: 1. área de livre comércio 2. união aduaneira 160 3- mercado comum 4. união econômica A União Européia foi a que avançou mais longe pela estrada da integração, com um mercado comum e muitos dos elementos de uma união econômica. Os países relativamente homogêneos do Mercosul e do Pacto Andino estavam, em 1994, em vias de estabelecer uma união aduaneira. Na Ásia, a ASEAN, multicivilizacional, só começou a se mover na direção de desenvolver uma área de livre comércio em 1992. Outras organizações econômicas multicivilizacionais ficaram ainda mais para trás. Em 1995, com a exceção marginal da NAFTA, nenhuma organização desse tipo havia criado uma área de livre comércio, muito menos qualquer forma mais ampla de integração econômica. Na Europa Ocidental e na América Latina, os aspectos civilizacionais em comum induzem à cooperação e à organização regional. Os europeus ocidentais e os latino-americanos sabem que têm muito em comum. Na Ásia Oriental, há cinco civilizações (seis se for incluída a Rússia). Conseqüentemente, a Ásia Oriental constitui o caso-teste para o desen¬ volvimento de organizações efetivas que não estejam baseadas em civilização em comum. Ao se chegar ao começo dos anos 90, não havia na Ásia Oriental nenhuma organização de segurança ou aliança militar multilateral comparável à OTAN. Uma organização regional multicivili¬ zacional, a ASEAN, foi criada em 1967, com um Estado sínico, dois muçulmanos, um budista e um cristão, todos eles confrontados por ativos desafios de subversão comunista e de desafios em potencial por parte do Vietnã do Norte e da China. A ASEAN é mencionada freqüentemente como um exemplo de uma organização multicivilizacional eficaz. Contudo, ela é um exemplo dos limites de uma organização desse tipo. Ela não é uma aliança militar. Conquanto seus membros às vezes cooperem numa base bilateral, eles também estão expandindo seus orçamentos militares e estão engajados em programas de rearmamento, num contraste flagrante com as reduções que estão fazendo os países europeus ocidentais e latino-americanos. Na frente econômica, a ASEAN foi desde o início projetada para conseguir “a cooperação econômica mais do que a integração econômica”; em conseqüência, o regionalismo se desenvolveu em um “ritmo modesto” e até mesmo uma área de livre comércio não está contemplada antes do século XXI. 4 Em 1978, a ASEAN criou as Conferências Pós-ministeriais, nas quais os seus ministros do Exterior se encontram com os dos “Parceiros do Diálogo”: Estados Unidos, Japão, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Coréia do Sul e a União Européia. Essa conferência, entretanto, tem sido essencialmente um foro para conversações bilaterais e não foi capaz de lidar com “quaisquer questões de segurança importantes”. 5 Em 1993, a ASEAN gerou uma arena ainda maior, o Fórum Regional da ASEAN, que inclui os seus membros e os parceiros de diálogo, e mais Rússia, China, Vietnã, Laos e Papua Nova Guiné. Contudo, como seu nome indica, esse órgão é um local para conversas coletivas, não para ação coletiva. Os membros usaram sua primeira reunião, em julho de 1994, para “ventilar suas opiniões sobre questões regionais de segurança”, porém foram evitadas questões controvertidas porque, como comentou um funcionᬠrio, se elas fossem suscitadas, “os participantes envolvidos começariam a se atacar mutuamente”. 6 A ASEAN e seus filhotes demonstram as limitações inerentes às organizações regionais multicivilizacionais. Só surgirão organizações regionais de peso na Ásia Oriental se houver aspectos culturais comuns asiático-orientais suficientes para sustentá-las. As sociedades asiático-orientais sem dúvida compartilham de algumas coisas em comum, que as diferenciam do Ocidente. O primeiro-ministro da Malásia, Mahatir Mohammad, afirma que esses aspectos culturais em comum proporcionam uma base para associação e, fundamentando-se nela, promoveu a formação do Foro Econômico Asiáti¬ co-oriental [East Asian Economic Caucus — EAEC]. Ele incluiria os países da ASEAN, Myanmar, Taiwan, Hong Kong, Coréia do Sul e, o que é mais importante, a China e o Japão. Mahatir sustenta que o EAEC está baseado numa cultura comum. Ele deve ser considerado “não apenas como um grupo geográfico, porque está na Ásia Oriental, mas também como um grupo cultural. Embora os asiático-orientais possam ser japoneses, coreanos ou indonésios, eles têm certas semelhanças do ponto de vista cultural. (...) Os europeus tendem a se congregar e os norte-americanos tendem a se congregar. Nós, asiáticos, também deveríamos nos congregar”. Segundo disse um dos correligionários de Mahatir, o objetivo do EAEC é aumentar “o comércio internacional entre países que têm aspectos em comum aqui na Ásia”7 A premissa subjacente do EAEC é, portanto, a de que a economia segue a cultura. A Austrália, a Nova Zelândia e os Estados Unidos estão excluídos do EAEC porque, culturalmente, eles não são asiáticos. Entre¬ tanto, o êxito do EAEC depende sobretudo da participação do Japão e da China. Mahatir implorou aos japoneses que ingressassem na organi¬ zação. Dirigindo-se a uma platéia japonesa, assinalou que “O Japão é asiático. O Japão pertence à Ásia Oriental. Vocês não podem desviar-se desse fato geocultural. O seu lugar é aqui”. 8 Mas o governo japonês relutou em entrar para o EAEC, em parte por receio de irritar os Estados Unidos e em parte porque estava dividido quanto a se o Japão devia se identificar com a Ásia. Se o Japão ingressar no EAEC, irá dominá-lo, o que provavelmente causará receios e incertezas entre seus membros, bem como intenso antagonismo por parte da China. Durante vários anos, muito se falou sobre a criação pelo Japão de um “bloco do iene” na Ásia a fim de contrabalançar a União Européia e o NAFTA. .O Japão, contudo, é um país solitário, com poucas ligações culturais com seus vizinhos e, ao se chegar a 1995, não se havia concretizado nenhum bloco do iene. Apesar de a ASEAN evoluir lentamente, o bloco do iene continuar sendo um sonho e o EAEC não decolar, a interação econômica na Ásia Oriental se intensificou de forma espetacular. Essa expansão deu origem a uma “ininterrupta integração informal” de uma economia internacional de base chinesa, em muitos aspectos comparável à Liga Hanseática e “talvez conduzindo a um mercado comum chinês de facto ” 9 (ver pp. 210-218). Na Ásia Oriental, como em outras áreas, os aspectos culturais em comum foram o pré-requisito para uma integração econômica significativa. O fim da Guerra Fria estimulou esforços para a criação de novas organizações econômicas regionais e a revitalização de outras dessas organizações. O êxito desses esforços dependeu sobretudo da homogenei¬ dade cultural dos Estados envolvidos. O plano de Shimon Peres, em 1994, de um mercado comum do Oriente Médio, provavelmente continuará sendo uma “miragem do deserto” ainda por algum tempo. Um funcionário árabe comentou que “o mundo árabe não tem necessidade alguma de uma instituição ou de um banco de desenvolvimento do qual Israel partici¬ pe”. 10 A Associação dos Estados Caribenhos, criada em 1994 para vincular o Caricom ao Haiti e aos países de língua espanhola da região, mostra poucos sinais de estar superando as diferenças lingüísticas e culturais de seus membros diversos e a insularidade das ex-colônias britânicas, com sua predominante orientação na direção dos Estados Unidos. 11 Por outro lado, esforços que envolvem organizações culturalmente mais homogêneas estão progredindo. Embora divididos segundo linhas subcivilizacionais, o Paquistão, o Irã e a Turquia reavivaram em 1985 a moribunda Cooperação Regional para o Desenvolvimento, que tinham criado em 1977, redesignando-a Organização de Cooperação Econômica. Posteriormente lograram-se acordos sobre reduções tarifárias e uma variedade de outras providências. Em 1992, a participação na OCE foi expandida para incorporar o Afeganistão e as seis ex-repúblicas soviéticas muçulmanas. Enquanto isso, em 1991, as cinco ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central acordaram em princípio criar um mercado comum e, em 1994, os dois maiores desses países — o Uzbequistão e o Casaquistão — assinaram um acordo para permitir “a livre circulação de bens, serviços e capitais” e para coordenar suas políticas fiscais, monetárias e aduanei¬ ras. Em 1991, o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai se uniram no Mercosul, com o objetivo de saltar por cima dos estágios normais de integração econômica e, ao se chegar a 1995, havia sido implantada uma união aduaneira parcial. Em 1990, o até então estagnado Mercado Comum Centro-americano implantou uma área de livre comércio e, em 1994, o antes igualmente passivo Grupo Andino criou uma união aduaneira. Em 1992, os países de Visegrad (Polônia, Hungria, República Checa e Eslováquia) acordaram em estabelecer uma Área de Livre Comércio Centro-Européia e, em 1994, aceleraram o cronograma de sua concretização. 12 A expansão do comércio internacional acompanha a integração econômica e, durante os anos 80 e começo dos anos 90, o comércio intra-regional se tornou cada vez mais importante em relação ao comércio inter-regional. O comércio no âmbito da (então) Comunidade Européia correspondia a 50,6 por cento do total do comércio internacional da Comunidade em 1980, e aumentou para 58,9 ao se chegar a 1989. Na América do Norte e na Ásia Oriental, ocorreram alterações análogas no comércio regional. Na América Latina, a criação do Mercosul e a revitalização do Pacto Andino estimularam um surto do comércio intra- latino-americano no começo dos anos 90 e, no período de 1990 a 1993, o comércio entre Brasil e Argentina triplicou e o comércio entre Colômbia e Venezuela quadruplicou. Em 1994, o Brasil substituiu os Estados Unidos como o principal parceiro comercial da Argentina. A criação do NAFTA também foi acompanhada, de modo análogo, por um aumento signifi¬ cativo do comércio entre o México e os Estados Unidos. O comércio no âmbito da Ásia Oriental também se expandiu com maior rapidez do que o comércio extra-regional, porém essa expansão foi prejudicada pela tendência do Japão de manter fechados os seus mercados. Por outro lado, o comércio entre os países da zona cultural chinesa (ASEAN, Taiwan, Hong Kong, Coréia do Sul e China) cresceu de menos de 20 por cento do seu total em 1970 para quase 30 por cento do total em 1992, enquanto a parcela desse comércio correspondente ao Japão declinou de 23 para 13 por cento. Em 1992, as exportações dos países da zona chinesa para países de outras zonas ultrapassaram tanto suas exportações para os Estados Unidos como a soma de suas exportações para o Japão e a Comunidade Européia. 13 O Japão, na condição de sociedade e civilização com características próprias, enfrenta dificuldades para desenvolver seus laços econômicos com a Ásia Oriental e para lidar com suas divergências econômicas com os Estados Unidos e a Europa. A despeito do vigor dos vínculos de comércio e de investimentos que o Japão possa forjar com outros países da Ásia Oriental, suas diferenças culturais com esses países e, em especial, com suas elites econômicas predominantemente chinesas o impedem de criar um agrupamento econômico regional de liderança japonesa com¬ parável ao NAFTA ou à União Européia. Ao mesmo tempo, suas diferenças culturais com o Ocidente exacerbam os mal-entendidos e os antagonismos no seu relacionamento econômico com os Estados Unidos e a Europa. Se, como parece ser o caso, a integração econômica depende de aspectos culturais em comum, o Japão, na condição de país cultural¬ mente isolado, podería ter um futuro economicamente isolado. No passado, os padrões- do comércio internacional entre as nações acompanharam e espelharam os padrões das alianças entre elas. 14 No mundo que está surgindo, os padrões do comércio interna¬ cional sofrerão de forma decisiva a influência dos padrões de cultura. Os homens de negócios fazem transações com pessoas que eles podem compreender e em quem podem confiar; os Estados cedem soberania a associações internacionais compostas de Estados de mentalidade semelhante, os quais podem compreender e nos quais podem confiar. As raízes da cooperação econômica se encontram nos aspectos culturais em comum. A ESTRUTURA DAS CIVILIZAÇÕES Durante a Guerra Fria, os países se relacionavam com as duas superpo¬ tências como aliados, satélites, clientes, neutros, não-alinhados. No mundo pós-Guerra Fria, os países se relacionam com as civilizações como Estados-membros, Estados-núcleos, países isolados, países fendidos, países divididos. Como as tribos e as nações, as civilizações têm estruturas políticas. Um Estado-membro é um país que está plenamente identificado culturalmente com uma civilização, tal como está o Egito com a civilização arábico-islâmica e a Itália com a civilização européia ocidental. Uma civilização também pode incluir pessoas que compartilham de sua cultura e com ela se identificam, vivendo porém em Estados dominados por 166 membros de outra civilização. Geralmente as civilizações têm um ou mais lugares considerados por seus membros como a principal fonte ou fontes da cultura dessa civilização. Essas fontes estão freqüentemente localizadas dentro do Estado-núcleo ou dos Estados-núcleos da civilização respectiva, ou seja, seus Estados mais poderosos e culturalmente importantes. O número e o papel dos Estados-núcleos variam de uma civilização para outra e podem se modificar ao longo do tempo. A civilização japonesa é virtualmente idêntica ao único Estado-núcleo japonês. As civilizações sínica, ortodoxa e hindu têm, cada uma, um único Estado- núcleo amplamente predominante, outros Estados-membros e pessoas filiadas à sua civilização vivendo em Estados dominados por pessoas de uma civilização diferente (os chineses de ultramar, os russos do “exterior próximo”, os tâmiles de Sri Lanka). Historicamente, o Ocidente em geral teve vários Estados-núcleos. Atualmente ele possui dois núcleos — os Estados Unidos e um núcleo franco-germânico na Europa, com a Grã-Bretanha sendo um centro de poder adicional vagando entre os dois. O Islã, a América Latina e a África carecem de Estados-núcleos. Isso se deve em parte ao imperialismo das potências ocidentais, que dividiram entre si a África, o Oriente Médio e, em séculos anteriores e de forma menos decisiva, a América Latina. A inexistência de um Estado-núcleo islâmico representa um proble¬ ma grande tanto para as sociedades muçulmanas como para as não-mu- çulmanas, como se examina no Capítulo 5. Com relação à América Latina, pode-se conceber que a Espanha poderia ter se tomado o Estado-núcleo de uma civilização de fala hispânica ou até mesmo de uma civilização ibérica, porém seus líderes optaram conscientemente por se tornar um Estado-membro da civilização européia, mantendo ao mesmo tempo vínculos culturais com suas antigas colônias. Tamanho, recursos naturais, população, capacidade militar e econômica qualificam o Brasil para ser o líder da América Latina e é concebível que ele possa vir a sê-lo. Entretanto, o Brasil está para a América Latina como o Irã está para o Islã. Embora tenha outras boas qualificações para ser um Estado-núcleo, há diferenças subcivilizacionais (religiosas no caso do Irã e lingüísticas no do Brasil) que tornam difícil para ele assumir esse papel. A América Latina possui vários Estados — Brasil, México, Venezuela e Argentina — que partilham uma liderança e competem por ela. A situação latino-ame¬ ricana é também complicada pelo fato de que o México tentou se redefinir, passando de uma identidade latino-americana para outra, norte-americana, e o Chile e outros Estados podem segui-lo. No final, a civilização latino-americana poderia fundir-se com uma civilização oci¬ dental de três pontas, tomando-se uma subvariante dela. A capacidade que tem qualquer Estado-núcleo em potencial de prover uma liderança na África fica limitada pela divisão entre países francófonos e anglófonos. Durante certo tempo, a Costa do Marfim foi o Estado-núcleo da África francófona. Contudo, em certa medida, o Estado-núcleo da África francesa tem sido a França, que, depois da independência, manteve estreitas ligações econômicas, militares e polí¬ ticas com suas antigas colônias. Os dois Estados africanos mais qualifi¬ cados para se tomarem Estados-núcleos são, ambos, anglófonos. Tama¬ nho, recursos naturais e localização fazem da Nigéria um Estado-núcleo em potencial, porém sua desunião intercivilizacional, corrupção maciça, instabilidade política, governos repressivos e problemas econômicos limitaram drasticamente sua capacidade de desempenhar esse papel, embora o tenha feito em algumas ocasiões. A transição negociada e pacífica do apartheid da África do Sul, seu vigor industrial, seu nível mais alto de desenvolvimento econômico comparado com os outros países africanos, sua capacidade militar, seus recursos naturais e sua sofisticada liderança política negra e branca, tudo isso assinala nitidamente a África do Sul como o líder da África Meridional, como o provável líder da África anglófona e o possível líder de toda a África subsaárica. Um país solitário carece de aspectos culturais em comum com outras sociedades. A Etiópia, por exemplo, é isolada culturalmente por seu idioma predominante, o amárico, escrito com caracteres etíopes, por sua religião predominante, a Ortodoxia Copta, por sua história imperial e por sua diferenciação dos povos circunvizinhos, predominantemente muçul¬ manos. Conquanto a elite do Haiti tenha tradicionalmente tido prazer nos seus laços culturais com a França, o idioma crioulo, a religião Vodu, as origens de escravos revolucionários e a história de brutalidades do Haiti fazem dele um país solitário. Sidney Mintz assinalou que “toda nação é singular, porém o Haiti ocupa uma categoria só sua”. Como conseqüên- cia, durante a crise haitiana de 1994, os países latino-americanos não encararam o Haiti como um problema latino-americano e não se dis¬ puseram a aceitar refugiados haitianos, embora recebessem refugiados cubanos. Como colocou o presidente eleito do Panamá, “na América Latina, o Haiti não é reconhecido como um país latino-americano. Os haitianos falam uma língua diferente. Eles têm raízes étnicas diferentes, uma cultura diferente. Eles são, de forma geral, muito diferentes”. O Haiti está igualmente separado dos países negros anglófonos do Caribe. Um 1 comentarista observou que os haitianos parecem “exatamente tão estra¬ nhos para alguém de Granada ou Jamaica como para alguém de Iowa ou Montana”. O Haiti, “o vizinho que ninguém quer ter”, é verdadeira¬ mente um país sem parentes. 15 O país solitário mais importante é o Japão, que é também o Estado-núcleo e único da civilização japonesa. Nenhum outro país compartilha de sua cultura própria, e os imigrantes japoneses não são nem numericamente significativos em outros países nem foram assimilados pelas culturas desses países (por exemplo, os nipo-americanos). A solidão do Japão é acentuada ainda mais pelo fato de que sua cultura é profun¬ damente particularista e não envolve uma religião potencialmente universal (Cristianismo, Islamismo) ou ideologia (liberalismo, comunismo) passível de ser exportada para outras sociedades e assim estabelecer uma ligação cultural com pessoas nessas sociedades. Quase todos os países são heterogêneos pela circunstância de incluírem dois ou mais grupos étnicos, raciais e religiosos. Muitos países estão divididos pelo fato de que as diferenças e conflitos entre esses grupos desempenham um papel importante na política do país. A importância dessa divisão geralmente se modifica com o tempo. Divisões profundas dentro de um mesmo país podem levar à ampla violência ou a ameaçar a existência do país. Essa última ameaça e os movimentos por autonomia ou separação são os que têm maior probabilidade de aparecer quando as diferenças culturais coincidem com diferenças em localização geográfica. Se a cultura e a geografia não coincidem, elas podem ser obrigadas a coincidir quer através de genocídio quer de migração forçada. Países que contêm agrupamentos culturais distintos e pertencem a uma mesma civilização podem ficar profundamente divididos, com a separação vindo a ocorrer (Checoslováquia) ou sendo uma possibilidade (Canadá). Entretanto, as divisões profundas têm muito mais proba¬ bilidade de surgir dentro de um país fendido, no qual grupos grandes pertencem a civilizações diferentes. As divisões e tensões que lhes são características muitas vezes se desenvolvem quando um grupo majoritᬠrio pertencente a uma civilização tenta definir o Estado como o seu instrumento político e tornar seu idioma, religião e símbolos como sendo os do Estado. Assim tentaram fazer os hindus, os cingaleses e os muçulmanos na índia, em Sri Lanka e na Malásia, respectivamente. Os países fendidos que territorialmente ficam por cima das linhas de fratura entre civilizações se defrontam com problemas específicos para preservar sua unidade. No Sudão, a guerra civil se arrasta há décadas entre o Norte muçulmano e o Sul predominantemente cristão. A mesma divisão civilizacional tem perseguido a política nigeriana durante período semelhante, estimulando uma grande guerra de secessão, além de golpes, agitações e outros tipos de violência. Na Tanzânia, a parte continental, onde predomina um animismo cristão, e Zanzibar, que é árabe-muçul¬ mana, foram se afastando e, em muitos aspectos, tornaram-se dois países separados, tendo Zanzibar, em 1992, se unido secretamente à Organiza¬ ção da Conferência Islâmica e sido induzida pela Tanzânia a se retirar no ano seguinte. 16 A mesma divisão cristão-muçulmana gerou tensões e conflitos no Quênia. No chifre da África, a Etiópia, predominantemente cristã, e a Eritréia, predominantemente muçulmana, se separaram em 1993. Entretanto a Etiópia ficou com considerável minoria muçulmana entre o seu povo Oromo. Dentre outros países divididos por linhas de fratura civilizadonais estão: índia (muçulmanos e hindus), Sri Lanka (budistas cingaleses e hindus tâmiles), Malásia e Singapura (chineses e muçulmanos malaios), China (chineses Han, budistas tibetanos, muçulma¬ nos túrquicos), Filipinas (cristãos e muçulmanos) e Indonésia (muçul¬ manos e cristãos timorens es). O efeito divisório das linhas de fratura civilizadonais foi mais notável nos países fendidos que foram mantidos coesos durante a Guerra Fria por regimes comunistas autoritários, legitimados pela ideologia marxista-leninista. Com o colapso do comunismo, a cultura substituiu a ideologia como o pólo de atração ou repulsão, e a Iugoslávia e a União Soviética se esfacelaram e se dividiram em novas entidades agrupadas segundo linhas civilizadonais: as repúblicas bálticas (protestantes e católicas), ortodoxas e muçulmanas na antiga União Soviética; a Eslovênia e a Croácia católicas, a Bósnia-Herzegovina parcialmente muçulmana e a Sérvia-Montenegro e a Macedônia ortodoxas na antiga Iugoslávia. Nos casos em que essas entidades sucessoras ainda abrangiam grupos multicivilizacionais, ocorreram divisões de segunda etapa. A Bósnia-Her¬ zegovina foi dividida por uma guerra entre segmentos sérvios, muçulma¬ nos e croatas, e a Croácia foi partida entre sérvios e croatas. É altamente duvidoso que se preserve a posição pacífica de Kosovo, muçulmano albanês, dentro de uma Sérvia ortodoxa eslava. Na Macedônia, cresceram as tensões entre a minoria de muçulmanos albaneses e a maioria ortodoxa eslava. Muitas das ex-repúblicas soviéticas também estão sobre linhas de fratura civilizacionais, em parte porque o governo soviético traçava os limites visando a criar repúblicas divididas: a Criméia russa passou para a Ucrânia, o Nagomo-Karabakh armênio passou para o Azerbaijão. A Rússia possui várias minorias muçulmanas, relativamente pequenas, principalmente no Cãucaso setentrional e na região do Volga. A Estônia, a Letônia e o Casaquistão possuem consideráveis minorias russas, também criadas em boa medida por diretrizes soviéticas. A Ucrânia está dividida entre o ocidente que fala ucraniano, é uniata e nacionalista, e o oriente que fala russo e é ortodoxo. Num país fendido, os grupos principais de duas ou mais civiliza¬ ções, na prática, dizem “nós somos povos diferentes e pertencemos a lugares diferentes”. As forças de repulsão os separam e eles gravitam na direção dos ímãs civilizacionais de outras sociedades. Um pais dividido , ao contrário, possui uma única cultura predominante, que o coloca numa única civilização, porém seus dirigentes decidiram mudá-lo para outra civilização. Na realidade, eles dizem “nós somos um povo e pertencemos, juntos, a um lugar, porém queremos mudar esse lugar”. Ao contrário das pessoas de países fendidos, as pessoas de países divididos concordam a respeito de quem são, porém discordam quanto a qual é a civilização que lhes é mais apropriada. É típico que uma parcela significativa dos dirigentes abrace uma estratégia kemalista e resolva que sua sociedade deve repudiar sua cultura e suas instituições não-ocidentais, deve juntar- se ao Ocidente e deve modernizar-se e ocidentalizar-se. A Rússia é um país dividido desde Pedro, o Grande, indecisa em torno da questão de se ela é parte da civilização ocidental ou se é o núcleo de uma civilização eurasiana ortodoxa própria. O país de Mustafá Kemal é, evidentemente, o país dividido clássico, que, desde os anos 20, vem tentando se modernizar, se ocidentalizar e se tornar parte do Ocidente. Quase dois séculos depois de o México ter se definido como um país latino-americano em oposição aos Estados Unidos, na década de 80 seus dirigentes o transformaram num país dividido ao tentar redefini-lo como uma sociedade norte-americana. Nos anos 90, os dirigentes da Austrália tentaram, ao contrário, desligar seu país do Ocidente e torná-lo parte da Ásia, criando assim um país-dividido-no-sentido-in- verso. Podem-se identificar os países divididos por dois fenômenos. Seus dirigentes se referem a eles como uma “ponte” entre duas culturas, e os observadores os descrevem como Janus de duas faces. “A Rússia olha para o Ocidente — e para o Oriente”, “Turquia: Leste, Oeste, qual é o melhor?”, “Nacionalismo australiano: lealdades divididas” — são títulos típicos que realçam os problemas de identidade de um pais dividido. 17 170 171 PAÍSES DIVIDIDOS: O FRACASSO DA MUDANÇA DE CIVILIZAÇÃO Para que um país dividido possa ter êxito na redefinição de sua identidade civilizacional, é preciso satisfazer pelo menos três requisitos. Primeiro, a elite política e econômica do país precisa, de forma geral, apoiar essa ação e se entusiasmar por ela. Segundo, o público tem que, pelo menos, aquiescer com essa redefinição de identidade. Terceiro, os elementos predominantes na civilização anfitriã, na maioria dos casos o Ocidente, precisam estar dispostos a abraçar os convertidos. O processo de redefinição de identidade será prolongado, interrompido e doloroso do ponto de vista político, social, institucional e cultural. Alem disso, com base nos registros históricos, ele vai fracassar. Rússia . Nos anos 90, o México era um país dividido havia vários anos e a Turquia havia várias décadas. A Rússia, ao contrário, era um país dividido havia vários séculos e, ao contrário do México ou da Turquia republicana, era também o Estado-núcleo de uma grande civilização. Se a Turquia ou o México tivessem se redefinido com êxito como membros da civilização ocidental, o efeito sobre a civilização islâmica ou latino- americana seria pequeno ou moderado. Se a Rússia se tornasse ocidental, a civilização ortodoxa deixaria de existir. O colapso da União Soviética gerou duas questões fundamentais: como deveria a Rússia se definir em relação ao Ocidente? Quais deveriam ser as relações da Rússia com seus parentes ortodoxos e com os novos países que haviam sido parte do império soviético? As relações da Rússia com a civilização ocidental evoluíram através de quatro fases. Na primeira fase, que durou até o reinado de Pedro, o Grande (1689-1725), Kievan Rus e Moscovy existiram separadamente do Ocidente e tinham pouco contato com as sociedades européias ociden¬ tais. A civilização russa se desenvolveu como um fruto da civilização bizantina e depois, durante 200 anos, de meados do século XIII até meados do século XV, a Rússia ficou sob a suserania mongol. A Rússia não foi exposta, ou foi muito pouco exposta, aos fenômenos históricos que definiram a civilização ocidental: o Catolicismo Romano, o feudalis¬ mo, o Renascimento, a Reforma, a expansão e colonização ultramarina, o Iluminismo e o surgimento do Estado-nação. Das oito características próprias da civilização ocidental anteriormente identificadas, sete — religião, idiomas, separação entre Igreja e Estado, império da lei, plura¬ lismo social, órgãos representativos, individualismo — estiveram pratica¬ mente ausentes por completo da experiência russa. A única exceção possível é a herança clássica que, contudo, chegou à Rússia através de Bizâncio e, por conseguinte, foi bastante diferente da que chegou ao Ocidente diretamente de Roma. A civilização russa foi um produto de suas raízes autóctones em Kievan Rus e Moscovy, de um considerável impacto bizantino e de um longo período de dominação mongol. Essas influências moldaram uma sociedade e uma cultura que tinha pouca semelhança com as que se desenvolveram na Europa ocidental, sob a influência de forças muito diferentes. No final do século XVII, a Rússia não só era diferente da Europa, mas também era atrasada em relação à Europa, como Pedro, o Grande, constatou durante seu giro pela Europa em 1697-1698. Ele regressou à Rússia decidido a modernizar e ocidentalizar seu país. Para fazer com que seu povo parecesse europeu, Ataturk proibiu o uso do fez. Com objetivo semelhante, a primeira coisa que Pedro fez ao regressar a Moscou foi obrigar os nobres a rasparem a barba e proibir o uso de túnicas compridas e chapéus cônicos. Ataturk substituiu o alfabeto árabe pelo latino; Pedro não aboliu o alfabeto cirílico, mas reformou-o e simplificou-o, além de introduzir palavras e expressões ocidentais. Entretanto, ele atribuiu prioridade máxima ao desenvolvimento e moder¬ nização das forças armadas russas, criando uma marinha, adotando o serviço militar obrigatório, implantando indústrias de material bélico, criando escolas técnicas, enviando pessoas para estudar no Ocidente e importando do Ocidente os últimos conhecimentos a respeito de arma¬ mentos, navios e construção naval, navegação, administração burocrática e outros assuntos essenciais para a eficácia militar. Para prover os recursos para essas inovações, ele reformou e expandiu drasticamente o sistema tributário e além disso, perto do final do seu reinado, reorganizou a estrutura do governo. Decidido a fazer da Rússia não só uma potência européia, como também uma potência na Europa, abandonou Moscou, criou uma nova capital em São Petersburgo e desencadeou a Grande Guerra do Norte contra a Suécia, a fim de estabelecer a Rússia como a força predominante no Báltico e criar presença na Europa. Entretanto, ao tentar fazer seu país moderno e ocidental, Pedro também reforçou as características asiáticas da Rússia, ao aperfeiçoar o despotismo e eliminar qualquer possível fonte de pluralismo social ou político. A nobreza russa nunca fora poderosa. Pedro reduziu-a ainda mais, expandindo a nobreza militar e estabelecendo uma Tabela de Graus baseada no mérito e não no nascimento nem na posição social. Os nobres, como os camponeses, eram convocados para o serviço do Estado, formando a “aristocracia servil” que mais tarde enfureceu Custine. 18 A autonomia dos servos foi ainda mais restringida na medida em que ficaram vinculados de modo mais permanente tanto à terra quanto ao seu senhor. A Igreja Ortodoxa, que sempre estivera debaixo de um controle amplo do Estado, foi reorganizada e colocada sob um sínodo que era designado diretamente pelo tzar. O tzar também passou a ter o poder de designar seu sucessor sem referência às práticas vigentes de herança. Com essas mudanças, Pedro iniciou e exemplificou a íntima ligação na Rússia entre modernização e ocidentalização, por um lado, e o despotismo por outro. Seguindo esse modelo petrino, Lênin, Stalin e, em menor grau, Catarina II e Alexandre II também tentaram, de diversos modos, modernizar e ocidentalizar a Rússia e fortalecer o poder autocrᬠtico. Pelo menos até os anos 80, os democratizadores da Rússia eram geralmente ocidentalizadores, porém os ocidentalizadores não eram democratizadores. A lição da história russa é a de que a centralização do poder é o pré-requisito para as reformas sociais e econômicas. No final dos anos 80, correligionários de Gorbachev lamentaram não terem apreciado esse fato ao criticar os obstáculos que a glasnost havia criado para a liberalização econômica. Pedro teve mais êxito em tornar a Rússia parte da Europa do que em tornar a Europa parte da Rússia. Ao contrário do Império Otomano, o Império Russo veio a ser aceito como um participante importante e legítimo do sistema internacional europeu. In ternamente, as reformas de Pedro introduziram algumas mudanças, porém sua sociedade continuou híbrida: à parte uma pequena elite, os modos asiáticos e bizantinos, as instituições e as crenças predominaram na sociedade russa, e assim se percebia tanto por europeus como por russos. De Maistre assinalou que “arranhe-se a pele de um russo e se encontra um tártaro”. Pedro criou um país dividido e, durante o século XIX, os eslavófilos e os ocidentali¬ zadores lamentavam juntos essa situação infeliz e discordavam vigorosa¬ mente a respeito de se deviam acabar com ela tomando-se inteiramente ocidentalizados, ou eliminando as influências européias e retornando à verdadeira alma da Rússia. Um ocidentalizador como Chaadaev sus¬ tentava que “o sol é o sol do Ocidente” e a Rússia devia utilizar sua luz para iluminar e modificar as instituições que herdara. Um eslavófilo como Danilevskiy, com palavras que também foram ouvidas nos anos 90, condenou os esforços europeinizadores por “deturparem a vida das pessoas e substituírem suas formas com formas estranhas, estrangeiras”, tomando emprestadas instituições estrangeiras e transplantando-as para o solo russo” e “considerando as relações internas e externas, bem como as questões da vida russa, através de uma ótica estrangeira, européia, vendo-as, por assim dizer, através de uma lente moldada para um ângulo de refração europeu”. 19 Na história russa subseqüente, Pedro tornou-se o herói dos ocidentalizadores e o satã dos seus oponentes, representados em seu extremo pelos eurasianos dos anos 20, que o condenaram como traidor e aplaudiram os bolcheviques por repudiarem a ocidentalização, desafiarem a Europa e mudarem a capital de volta para Moscou. A revolução bolchevista deu início a uma terceira fase do relacio¬ namento entre a Rússia e o Ocidente, muito diferente do relacionamento ambivalente que existira durante dois séculos. Ela criou um sistema político-econômico que não podia existir no Ocidente, em nome de uma ideologia que foi criada no Ocidente. Os eslavófilos e os ocidentalizado¬ res tinham debatido se a Rússia podia ser diferente do Ocidente sem ser atrasada em comparação com o Ocidente. O comunismo resolveu essa questão de maneira brilhante: a Rússia era diferente do Ocidente e a ele se opunha de forma fundamental, porque era mais avançada do que ele. Ela estava assumindo a liderança da revolução proletária, que acabaria por varrer o mundo. A Rússia personificava não um passado asiático atrasado, mas sim um futuro soviético progressista. De fato, a Revolução permitiu à Rússia saltar por cima do Ocidente, diferenciando-se dele não porque “vocês são diferentes e nós não ficaremos como vocês”, como tinham argumentado os eslavófilos, mas porque “nós somos diferentes e vocês acabarão ficando como nós”, como dizia a mensagem da Interna¬ cional Comunista. Contudo, ao mesmo tempo em que o comunismo permitiu aos líderes soviéticos diferenciar-se do Ocidente, ele também criou fortes laços com o Ocidente. Marx e Engels eram alemães. A maioria dos principais expositores de suas opiniões, no final do século XIX e começo do século XX, eram europeus ocidentais. Ao se chegar a 1910, muitos sindicatos de trabalhadores e partidos trabalhistas e social-democratas das sociedades ocidentais estavam engajados na ideologia deles e estavam se tornando atores poderosos na política européia. Depois da revolução bolchevista, os partidos de esquerda se dividiram em partidos comunistas e partidos socialistas, e os dois tipos muitas vezes foram forças poderosas em países europeus. A ótica marxista prevaleceu em boa parte do Ocidente. O comunismo e o socialismo eram vistos como a onda do futuro e amplamente abraçados, de uma forma ou de outra, pelas elites políticas e intelectuais. Em conseqüência, o debate na Rússia entre os eslavófilos e os ocidentalizadores a respeito do futuro da Rússia foi substituído por um debate na Europa entre a esquerda e a direita a respeito do futuro do Ocidente, e sobre se a União Soviética sintetizava ou não esse futuro. Depois da II Guerra Mundial, o poderio da União Soviética reforçou a atração que o comunismo exercia tanto no Ocidente como, o que era mais importante, naquelas civilizações não-ocidentais que estavam então reagindo ao Ocidente. As elites nas sociedades não-ocidentais dominadas pelo Ocidente que queriam seduzir o Ocidente falavam em termos de autodeterminação e democracia, enquanto as que desejavam confrontar o Ocidente invocavam a revolução e a liberação nacional. Ao adotar uma ideologia ocidental e utilizá-la para desafiar o Ocidente, os russos, em certo sentido, ficaram mais próximos e mais intimamente envolvidos com o Ocidente do que em qualquer outro período anterior de sua história. Embora as ideologias da democracia liberal e do comunismo fossem muito diferentes, ambos os lados estavam, de certo modo, falando a mesma língua. O colapso do comunismo e da União Soviética puseram fim a essa interação político-ideológica entre o Ocidente e a Rússia. O Ocidente esperava e acreditava que o resultado seria o triunfo da democracia liberal em todo o antigo império soviético. Isso, entretanto, não estava necessariamente predeterminado. Ao se chegar a 1995, o futuro da democracia liberal na Rússia e nas outras repúblicas ortodoxas era incerto. Além disso, à medida que os russos deixaram de se comportar como marxistas e começaram a se comportar como russos, o hiato entre a Rússia e o Ocidente se ampliou. O conflito entre a democracia liberal e o marxismo-leninismo se dava entre ideolo¬ gias que, a despeito de suas principais diferenças, eram modernas e seculares e compartilhavam ostensivamente os objetivos finais de liber¬ dade, igualdade e bem-estar material. Um democrata ocidental poderia manter um debate intelectual com um marxista soviético. Seria impossível para ele fazer isso com um nacionalista russo ortodoxo. Durante os anos soviéticos, a luta entre os eslavófilos e os ociden¬ talizadores ficou em suspenso, enquanto tantos os Solzhenitsyns como os Sakharovs desafiavam a síntese comunista. Com o colapso dessa síntese, o debate a respeito da verdadeira identidade da Rússia reemergiu com pleno vigor. Deveria a Rússia adotar os valores, as instituições e as práticas ocidentais e tentar se tomar parte do Ocidente? Ou encarnaria a Rússia uma civilização ortodoxa e eurasiana distinta, diferente da do Ocidente com um destino singular de ligar a Europa e a Ásia? As elites intelectuais e políticas e o público em geral estavam seriamente divididos a respeito dessas questões. De um lado estavam os ocidentalizadores, “cosmopolitas” ou “atlanticistas”, e de outro os sucessores dos eslavófilos, mencionados de forma variada como “nacionalistas”, “eurasianistas” ou “derzhavnikf (firmes defensores do Estado). 20 As principais diferenças entre esses grupos se centravam em política externa e, em menor grau, reforma econômica e estrutura do Estado. As opiniões estavam distribuídas sobre um continuum , de um extremo ao outro. Agrupados perto de uma extremidade do espectro estavam aqueles que articulavam “o novo pensamento” esposado por Gorbachev e sintetizado na sua meta de um “lar europeu em comum”, e muitos dos principais assessores de Yeltsin, expressando seu desejo de que a Rússia se tornasse “um país normal” e fosse aceito como o oitavo membro do clube do G-7 das principais democracias industrializadas. Os nacionalis¬ tas mais moderados, como Sergei Stankevich, sustentavam que a Rússia devia rejeitar o curso “atlanticista” e devia dar prioridade à proteção dos russos em outros países, enfatizar suas conexões túrquicas e muçulmanas e promover “uma redistribuiçào apreciável de nossos recursos, nossas opções, nossos laços e nossos interesses em favor da Ásia ou da direção oriental”. 21 As pessoas dessa corrente de opinião criticavam Yeltsin por subordinar os interesses da Rússia aos do Ocidente, por reduzir o poderio militar russo, por deixar de apoiar amigos tradicionais como a Sérvia e por forçar as reformas econômicas e políticas de maneira prejudicial ao povo russo. A nova popularidade das idéias de Piotr Savitsky, que argumentara nos anos 20 que a Rússia era uma singular civilização eurasiana, era indicativa dessa tendência. Os nacionalistas mais extremados estavam divididos entre, de um lado, os nacionalistas russos como Solzhenitsyn, que advogavam uma Rússia abrangendo todos os russos, os bielo-russos e os ucranianos ortodoxos eslavos, intimamente ligados a eles, porém a ninguém mais, e, do outro lado, os nacionalistas imperiais como Vladimir Zhirinovsky, que queriam recriar o império soviético e o poderio militar russo. As pessoas neste segundo grupo às vezes eram anti-semitas tanto quanto antiocidentais e queriam reorientar a política externa russa em direção ao Leste e ao Sul, quer dominando o Sul muçulmano (como instava Zhirinovsky), quer cooperando com os Estados muçulmanos e a China contra o Ocidente. Os nacionalistas também endossavam um apoio maior aos sérvios na sua guerra contra os muçulmanos. As diferenças entre cosmopolitas e nacionalistas se refletiam institucionalmente nos pontos de vista do Ministério do Exterior e dos militares. Elas também se refletiam nas mudanças das políticas externa e de segurança de Yeltsin, primeiro numa direção e depois na outra. O povo russo estava tão dividido quanto as elites russas. Uma pesquisa de opinião de 1992, com uma amostragem de 2.069 russos europeus, revelou que 40 por cento dos entrevistados estavam “abertos ao Ocidente", 36 por cento “fechados ao Ocidente” e 24 por cento “indecisos”. Nas eleições parlamentares de dezembro de 1993, os partidos reformistas conquistaram 34,2 por cento dos votos, os partidos anti-re- formas e nacionalistas, 43,3 por cento, e os partidos centristas, 13,7 por cento. 22 Analogamente, na eleição presidencial de junho de 1996, o público russo se dividiu novamente, com 43 por cento apoiando o candidato do Ocidente, Yeltsin, e 52 por cento votando pelos candidatos nacionalista e comunista. A respeito da questão fundamental de sua identidade, a Rússia dos anos 90 continua sendo um país nitidamente dividido, com a dualidade ocidental-eslavófila como “um traço inalienᬠvel do (...) caráter nacional”. 23 Turquia . Através de uma série cuidadosamente calculada de refor¬ mas nos anos 20 e 30, Mustafá Kemal Ataturk tentou afastar seu povo do seu passado otomano e muçulmano. Os princípios básicos ou “as seis flechas” do kemalismo eram populismo, republicanismo, nacionalismo, secularismo, estatismo e reformismo. Rejeitando a idéia de um império multinacional, Kemal visava a produzir um Estado-nação homogêneo, expulsando e matando armênios e gregos no processo. Em seguida, depôs o sultão e implantou um sistema republicano de autoridade política, de tipo ocidental. Ele aboliu o califado, que era a fonte fundamental da autoridade religiosa, acabou com a educação tradicional e os ministérios religiosos, aboliu as escolas e faculdades religiosas separadas, implantou um sistema secular unificado de ensino público e eliminou as cortes religiosas que aplicavam a lei islâmica, substituindo-as por um novo sistema legal baseado no código civil suíço. Ele também proibiu o uso do fez, porque era um símbolo do tradicionalismo religioso, incentivando as pessoas a usarem chapéu; substituiu o calendário tradicional pelo calendário gregoriano; retirou formalmente do Islamismo a condição de religião do Estado e decretou que o turco seria escrito com caracteres latinos em vez dos caracteres arábicos. Esta última reforma teve uma importância fundamental. “Ela tomou virtualmente impossível para as novas gerações, educadas com caracteres latinos, ter acesso à vasta massa da literatura tradicional, estimulou o aprendizado dos I idiomas europeus e facilitou enormemente o problema de incrementar a alfabetização.” 24 Tendo redefinido a identidade nacional, política, religiosa e cultural do povo turco, nos anos 30, Kemal tentou com todo o vigor promover o desenvolvimento econômico turco. A ocidentalização foi de mãos dadas com a modernização e constituiu o meio para atingi-la. Durante a guerra civil do Ocidente, entre 1939 e 1945, a Turquia permaneceu neutra. Depois da guerra, porém, ela rapidamente tratou de se identificar ainda mais com o Ocidente. Emulando explicitamente as políticas ocidentais, mudou do regime de partido único para um sistema partidário competitivo. Fez campanha para ingressar na OTAN, o que acabou por conseguir em 1952, confirmando-se assim como membro do Mundo Livre. Tomou-se recipiente de bilhões de dólares do Ocidente em assistência econômica e de segurança, suas forças armadas foram treinadas e equipadas pelo Ocidente e integradas na estrutura de comando da OTAN, e passou a ser anfitriã de bases militares norte-ame¬ ricanas. A Turquia passou a ser vista pelo Ocidente como seu bastião oriental de contenção, impedindo a expansão da União Soviética na direção do Mediterrâneo, do Oriente Médio e do Golfo Pérsico. Essa vinculação e auto-identificação com o Ocidente levou a que os turcos fossem condenados pelos países não-ocidentais e não-alinhados, na Conferência de Bandung em 1955, e fossem atacados como blasfemos pelos países islâmicos. 2 ^ Após a Guerra Fria, a elite turca continuou a apoiar de forma predominante a tese de que a Turquia deve ser ocidental e européia. Continuar sendo membro da OTAN é para ela indispensável, porque essa condição proporciona um vínculo organizacional íntimo com o Ocidente e é necessária para contrabalançar a Grécia. O envolvimento da Turquia com o Ocidente, encarnado na sua participação na OTAN, foi, contudo, um produto da Guerra Fria. O fim da Guerra Fria afasta a razão principal para esse envolvimento e leva a um enfraquecimento e a uma redefinição dessa ligação. A Turquia não é mais necessária para o Ocidente como um bastião contra a principal ameaça do Norte, mas sim, como na Guerra do Golfo, como um possível parceiro para lidar com as ameaças menores vindas do Sul. Nessa guerra, a Turquia proporcionou um auxílio crucial à coligação contra Sadam Hussein ao fechar o oleoduto que passa por seu território, através do qual o petróleo iraquiano chegava ao Mediter¬ râneo, e ao permitir que aviões norte-americanos operassem contra o Iraque a partir de bases na Turquia. Entretanto, essas decisões do presidente Õzal estimularam consideráveis críticas à Turquia e con- duziram à renúncia do ministro do Exterior, do ministro da Defesa e do chefe do Estado-maior, bem como grandes manifestações de rua protes¬ tando contra a estreita colaboração de Õzal com os Estados Unidos. Posteriormente, tanto o presidente Demirel quanto a primeira-ministra Ciller instaram à antecipação do término das sanções das Nações Unidas contra o Iraque, que também impunham considerável carga econômica à Turquia. 26 A disposição da Turquia de trabalhar com o Ocidente para lidar com ameaças islâmicas provenientes do Sul é mais incerta do que era sua disposição de se postar junto com o Ocidente contra a ameaça soviética. Durante a crise do Golfo, a recusa da Alemanha, uma amiga tradicional da Turquia, em encarar um ataque de mísseis iraquianos contra a Turquia como um ataque contra a OTAN, também demonstrou que a Turquia não poderia contar com o apoio ocidental contra ataques vindos do Sul. As confrontações na Guerra Fria com a União Soviética não suscitaram a questão da identidade civilizacional da Turquia, mas as relações com os países árabes no pós-Guerra Fria o fazem. A partir dos anos 80, uma das metas principais — talvez a principal — da política externa da elite turca de orientação ocidental tenha sido a de conseguir o ingresso na União Européia. A Turquia requereu formal¬ mente sua admissão em abril de 1987. Em dezembro de 1989, foi dito à Turquia que seu requerimento não podia ser examinado antes de 1993. Em 1994, a União Européia aprovou os requerimentos da Áustria, Finlândia, Suécia e Noruega, havendo amplas previsões de que nos próximos anos serão tomadas medidas favoráveis em relação aos reque¬ rimentos da Polônia, Hungria e República Checa e, mais tarde, pos¬ sivelmente, da Eslovênia, Eslováquia e das repúblicas bálticas. Os turcos ficaram especialmente decepcionados com o fato de que, novamente, a Alemanha, o membro mais influente da União Européia, não tivesse apoiado de forma ativa o seu ingresso e, em vez disso, desse prioridade à admissão dos Estados centro-europeus. 27 Pressionada pelos Estados Unidos, a União Européia de fato negociou uma união aduaneira com a Turquia, porém a participação plena é uma possibilidade remota e duvidosa. Por que se passou por cima da Turquia e por que ela sempre parece estar no fim da fila? Em público, os funcionários europeus se referiram ao baixo nível de desenvolvimento econômico da Turquia e ao seu respeito menos do que escandinavo pelos direitos humanos. Em parti¬ cular, tanto europeus quanto turcos concordam em que as verdadeiras razões foram a intensa oposição dos gregos e, o que é mais importante, o fato de que a Turquia é um país muçulmano. Os países europeus não queriam encarar a possibilidade de abrir suas fronteiras à imigração de um país de 60 milhões de muçulmanos e muito desemprego. Ainda mais significativo foi o fato de que eles achavam que, do ponto de vista cultural, os turcos não pertencem à Europa. Como disse o presidente Õzal em 1992, o desempenho da Turquia em relação aos direitos humanos “é uma razão artificial para que a Turquia não possa ingressar na UE. A verdadeira razão é que nós somos muçulmanos e eles são cristãos”, porém, acrescentou, “eles não dizem isso”. Os funcionários europeus, por seu lado, concordaram em que a União Européia é “um clube cristão” e que “a Turquia é pobre demais, populosa demais, muçulmana demais, dura demais, culturalmente diferente demais, tudo demais”. Um comentarista assinalou que o “pesadelo particular” dos europeus é “a memória histórica das pilhagens dos guerreiros sarracenos na Europa Ocidental e dos turcos às portas de Viena”. Essas atitudes, por sua vez, geraram a “percepção comum entre os turcos” de que “o Ocidente não vê um lugar para uma Turquia muçulmana dentro da Europa”. 28 Tendo rejeitado Meca e sendo rejeitada por Bruxelas, a Turquia agarrou a oportunidade aberta pela dissolução da União Soviética para se voltar para o Tashkent. O presidente Õzal e outros líderes turcos expuseram sua visão de uma comunidade de povos túrquicos e envida¬ ram grandes esforços para desenvolver laços com os “turcos exteriores” no “exterior próximo” da Turquia, que se estende “do Adriático às fronteiras da China”. Uma atenção especial foi dedicada ao Azerbaijão e às quatro repúblicas centro-asiáticas em que se falam idiomas túrquicos — Uzbequistão, Turcomenistão, Casaquistão e Quirguízia. Em 1991 e 1992, a Turquia desencadeou uma vasta gama de atividades destinadas a ampliar seus laços com essas novas repúblicas e sua influência nas mesmas. Dentre essas medidas se incluíram empréstimos de longo prazo e a juros baixos no total de um bilhão e meio de dólares, 79 milhões de dólares em auxílio direto para programas sociais, televisão por satélite (substituindo um canal em idioma russo), comunicações por telefonia, serviços aéreos comerciais, milhares de bolsas para jovens estudarem na Turquia e treinamento na Turquia para banqueiros, empresários, diplo¬ matas e centenas de oficiais das forças armadas desses países centro-asiᬠticos e do Azerbaijão. Foram enviados professores para as novas repú¬ blicas a fim de ensinar turco e foram iniciadas cerca de duas mil parcerias empresariais. Os aspectos culturais em comum facilitaram esses relacio¬ namentos econômicos. Segundo comentou um empresário turco, “a coisa mais importante para se ter êxito no Azerbaijão ou no Turcomenistão é encontrar o parceiro certo. Para os turcos, isso não é tão difícil. Nós temos a mesma cultura, mais ou menos o mesmo idioma e comemos os mesmos pratos”. 2 ^ A reorientação da Turquia em direção ao Cãucaso e à Ásia Central foi alimentada não só por seu sonho de se tornar líder da comunidade túrquica de nações, como também por seu desejo de se contrapor a que o Irã e a Arábia Saudita expandissem sua influência e promovessem o fundamentalismo islâmico nessa região. Os turcos se viam como ofere¬ cendo o “modelo turco” ou a “idéia da Turquia” — um Estado muçulmano secular e democrático, com uma economia de mercado — como alter¬ nativa. Além disso, a Turquia tinha a esperança de conter o ressurgimento da influência russa. Ao fornecer uma alternativa à Rússia e ao Islã, a Turquia também reforçaria sua reivindicação do apoio da União Européia e de uma futura admissão a ela. O surto inicial de atividades da Turquia com as repúblicas túrquicas ficou mais limitado em 1993 devido às limitações de seus recursos, à ascensão de Suleyman Demirel à presidência, em seguida à morte de Õzal, e à reafirmação da influência da Rússia no que esta considerava o seu “exterior próximo”. Logo que as ex-repúblicas soviéticas túrquicas se tornaram independentes, seus líderes acorreram a Ancara para cortejar a Turquia. Posteriormente, quando a Rússia aplicou pressões e incentivos, elas retrocederam e, de forma geral, sublinharam a necessidade de relacionamentos “equilibrados” entre o seu primo cultural e seu ex-senhor imperial. Entretanto, os turcos continuaram a tentar utilizar suas afinidades culturais para expandir suas vinculações econômicas e políticas e, no seu golpe mais importante, conseguiram um acordo com os governos e as empresas petrolíferas pertinentes para a construção de um oleoduto, a fim de trazer o petróleo da Ásia Central e do Azerbaijão através da Turquia até o Mediterrâneo. 30 Enquanto a Turquia trabalhava para desenvolver seus vínculos com as ex-repúblicas soviéticas túrquicas, sua própria identidade secular kemalista estava sob ataque no plano interno. Em primeiro lugar, para a Turquia, como para tantos outros países, o fim da Guerra Fria, junto com as perturbações geradas pelo desenvolvimento econômico e social, suscitou importantes questões de “identidade nacional e identificação étnica”, 31 e a religião ali estava para prover uma resposta. O legado secular de Ataturk e da elite turca após dois terços de século ficou sob fogo. A experiência dos turcos no exterior tendia a estimular os senti¬ mentos fundamentalistas islâmicos dentro do país. Os turcos que retor- navam da Alemanha Ocidental “reagiram à hostilidade que encontraram lá retomando para o^ que lhes era familiar. E isso era o Islã”. A corrente de opinião e a prática dominantes ficaram cada vez mais fundamentalistas islâmicas. Em 1993, reportou-se “que as barbas de estilo islâmico e as mulheres cobertas com véu proliferaram na Turquia, que as mesquitas estão atraindo multidões cada vez maiores e que algumas livrarias estão transbordando de livros, revistas, cassetes, CDs e videocassetes glorifican¬ do a história, os preceitos e o estilo de vida islâmicos, e exaltando o papel do Império Otomano de preservar os valores do Profeta Maomé”. Segundo se informou, “nada menos do que 290 editoras e gráficas, 300 publicações, inclusive quatro jornais, cerca de uma centena de estações de rádio sem licença e cerca de 30 canais de televisão também sem licença estão todos divulgando a ideologia islâmica”. 32 Confrontados por um crescente sentimento fundamentalista islâmi¬ co, os dirigentes turcos tentaram adotar as práticas fundamentalistas e aliciar o apoio fundamentalista. Nos anos 80 e 90, o governo turco, supostamente secular, manteve um Departamento de Assuntos Religio¬ sos, com um orçamento maior do que o de alguns ministérios, financiou a construção de mesquitas, exigiu o ensino religioso em todas as escolas públicas e proporcionou fundos para escolas islâmicas. O número dessas escolas quintuplicou durante a década de 80, estando nelas matriculados cerca de 15 por cento dos alunos de nível secundário; nelas se pregavam as doutrinas fundamentalistas islâmicas e se formaram milhares de jovens, muitos dos quais entraram para o serviço público. Num contraste com a França, simbólico mas espetacular, o governo permitiu na prática que as moças usassem o tradicional lenço de cabeça muçulmano, 70 anos depois de Ataturk ter proibido o fez. 33 Essas ações governamentais, em grande parte motivadas pelo desejo de tirar o vento das velas dos fundamentalis¬ tas islâmicos, são testemunho de como esse vento era forte na década de 80 e no início dos anos 90. Em segundo lugar, o ressurgimento do Islã mudou o caráter da política turca. Os líderes políticos, notadamente Turgo Õzal, se identifi¬ caram de modo muito explícito com os símbolos e as políticas muçul¬ manas. Na Turquia, como em outros lugares, a democracia reforçou a indigenização e a volta para a religião. “No seu afã de angariar a simpatia do povo e conquistar votos, os políticos — e até mesmo os militares, que eram o próprio bastião e os guardiães do secularismo — tiveram de levar em conta as aspirações religiosas da população. Muitas das concessões feitas por eles cheiravam a demagogia.” Os movimentos populares 1Q2 tinham um pendor religioso. Enquanto a elite e os grupos burocráticos, especialmente os militares, tinham uma orientação secular, os sentimen¬ tos fundamentalistas islâmicos se manifestaram no seio das forças arma¬ das, e várias centenas de cadetes foram expurgados das academias militares em 1987 sob suspeita de sentimentos fundamentalistas islâmicos. Os principais partidos políticos cada vez mais sentiam a necessidade de buscar apoio eleitoral das reativadas tarikas muçulmanas, ou sociedades seletas, que Ataturk tinha proscrito. 34 Nas eleições municipais de março de 1994, o Partido do Bem-Estar, fundamentalista, foi o único dentre os cinco partidos principais a aumentar sua participação nos votos, receben¬ do aproximadamente 19 por cento do total, comparados com 21 por cento para o Partido Caminho Verdadeiro, da primeira-ministra Ciller, e 20 por cento para o Partido da Pátria, do falecido Õzal. O Partido do Bem-Estar conquistou o controle das duas principais cidades da Turquia, Istambul e Ancara, e competiu com posição muito forte na parte sudeste do país. Nas eleições de dezembro de 1995, o Partido do Bem-Estar teve mais votos e assentos no Parlamento do que qualquer outro partido, e os dois principais partidos seculares, que tinham estado em confronto, tiveram de montar uma coalizão para impedir que os fundamentalistas islâmicos assumissem o governo. Como em outros países, o apoio aos fundamentalistas veio dos jovens, dos emigrantes que retornaram, dos “perseguidos e miseráveis” e dos “novos migrantes urbanos, os sans culottes das grandes cidades”. 35 Em terceiro lugar, o ressurgimento do Islã afetou a política externa turca. Sob a liderança do presidente Õzal, a Turquia havia se postado decididamente do lado do Ocidente na Guerra do Golfo, contando com que essa ação favoreceria sua candidatura a membro da União Européia. Entretanto, essa conseqüência não se concretizou e foi intensa a oposição à guerra dentro da Turquia. Com o colapso da União Soviética rompendo o principal elo entre a Turquia e o Ocidente, a hesitação da OTAN quanto a que reação teria caso a Turquia fosse atacada pelo Iraque durante aquela guerra não tranqüilizou os turcos quanto a como a OTAN reagiria a uma ameaça não-russa a seu país. 36 Durante a década de 80, a Turquia expandiu cada vez mais as suas relações com os países árabes e outros países muçulmanos e, nos anos 90, promoveu ativamente os interesses islâmicos ao proporcionar apoio significativo aos muçulmanos da Bósnia, bem como ao Azerbaijão. Com relação aos Bálcãs, à Ásia Central e ao Oriente Médio, a política externa turca estava se tomando cada vez mais islamicizada. Durante muitos anos a Turquia preencheu dois dos três requisitos mínimos para um país dividido mudar sua identidade civilizacional. As elites turcas apoiaram de forma majoritária essa linha de ação e seu povo assentiu. Entretanto, as elites da recipiente — a civilização ocidental — não foram receptivas. Enquanto a questão estava pendente, o res¬ surgimento do Islã dentro da Turquia começou a solapar a orientação secularista e pró-ocidental das elites turcas. Os obstáculos a que a Turquia se tome plenamente européia, as limitações da sua capacidade de desempenhar um papel dominante com relação às ex-repúblicas sovié¬ ticas túrquicas e a ascensão das tendências fundamentalistas islâmicas erodindo o legado de Ataturk, tudo isso parecia assegurar que a Turquia permanecerá sendo um país dividido. Refletindo essas forças de atração contrapostas, os líderes turcos repetidamente descreviam seu país como uma “ponte” entre as culturas. Em 1993, a primeira-ministra Tansu Ciller argumentou que a Turquia é, ao mesmo tempo, uma “democracia ocidental” e “parte do Oriente Médio”, e “serve de ponte a duas civilizações, física e filosoficamente”. Espelhando essa ambivalência, Ciller freqüentemente aparecia em públi¬ co, em seu próprio país, como muçulmana, porém, quando se dirigia à OTAN, ela afirmava que “o fato geográfico e político é que a Turquia é um país europeu”. De modo análogo, o presidente Suleyman Demirel chamou a Turquia de “uma ponte muito importante, numa região que se estende de oeste para leste, ou seja, da Europa para a China”. 37 Entretanto, uma ponte é uma criação artificial que liga duas entidades sólidas, mas não é parte de nenhuma delas. Quando os líderes da Turquia chamam seu país de uma ponte, eles estão eufemisticamente confirman¬ do que ela é um país dividido. México . A Turquia se tornou um país dividido nos anos 20 e o México só depois dos anos 80. No entanto, suas relações históricas com o Ocidente têm certas semelhanças. Tal como a Turquia, o México possuía uma cultura nitidamente não-ocidental. Mesmo no século XX, como colocou Octávio Paz, “o ceme do México é índio. É não-europeu”. 38 No século XIX, o México, como o Império Otomano, foi desmembrado por mãos ocidentais. Na segunda e na terceira décadas do século XX, o México, como a Turquia, passou por uma revolução que estabeleceu uma nova base de identidade nacional e um novo sistema político de partido único. Na Turquia, porém, a revolução envolveu tanto uma rejeição da cultura tradicional islâmica e otomana como um esforço por importar a cultura ocidental e juntar-se ao Ocidente. No México, como na Rússia, a revolução envolveu a incorporação e a adaptação de elementos da cultura ocidental, o que gerou um novo nacionalismo, oposto ao capitalismo e à democracia do Ocidente. Assim, durante 60 anos, a Turquia tentou se definir como européia, enquanto que o México tentou se definir em oposição aos Estados Unidos. Da década de 30 à de 80, os dirigentes do México perseguiram políticas econômica e externa que desafiavam os interesses norte-americanos. Nos anos 80, isso mudou. O presidente Miguel de la Madrid deu início a novas políticas, que seu sucessor, Carlos Salinas, expandiu numa redefinição de larga escala dos objetivos, práticas e identidade mexica¬ nos, no mais amplo esforço de mudanças desde a Revolução de 1910. Salinas se tornou, de fato, o Mustafá Kemal do México. Ataturk promoveu o secularismo e o nacionalismo, temas predominantes no Ocidente do seu tempo. Salinas promoveu o liberalismo econômico, um dos dois temas predominantes no Ocidente do seu tempo (o outro, a democracia política, não foi abraçada por ele). Como aconteceu com Ataturk, essas opiniões eram compartilhadas de forma geral pelas elites políticas e econômicas, muitos membros das quais, como Salinas e de la Madrid, tinham se formado nos Estados Unidos. Salinas reduziu a inflação de modo espetacular, privatizou grande quantidade de empresas estatais, promoveu o investimento estrangeiro, reduziu as tarifas e os subsídios, reestruturou a dívida externa, desafiou o poder dos sindicatos, aumentou a produtividade e levou o México para o Acordo de Livre Comércio Norte-americano (NAFTA) com os Estados Unidos e o Canadá. Tal como as reformas de Ataturk se destinavam a transformar a Turquia de país muçulmano do Oriente Médio em país secular europeu, as reformas de Salinas se destinavam a mudar o México de país latino-americano em país norte-americano. Não se tratava de uma escolha inevitável para o México. É conce¬ bível que as elites mexicanas pudessem ter continuado a seguir um caminho anti-EUA, nacionalista, terceiro-mundista e protecionista, como as suas predecessoras tinham seguido durante a maior parte do século. Como alternativa, conforme instado por alguns mexicanos, elas poderiam ter tentado desenvolver, com a Espanha, Portugal e os países sul-ameri¬ canos, uma associação ibérica de nações. Terá o México êxito na sua busca norte-americana? A enorme maioria das elites política, econômica e intelectual é favorável a esse rumo. Além disso, ao contrário da situação da Turquia, a grande maioria das elites política, econômica e intelectual da civilização recipiente também é favorável ao realinhamento cultural do México. A questão intercivilizacional crucial da imigração realça essa diferença. O medo de uma imigração turca maciça gerou resistências tanto das elites como do público europeu a deixar a Turquia ingressar na Europa. Ao contrário, a maciça imigração mexicana, legal e ilegal, para os Estados Unidos fez parte da argumentação de Salinas em relação ao NAFTA: “Ou bem vocês aceitam nossos bens ou aceitam nossa gente.” Além disso, a distância cultural entre o México e os Estados Unidos é muito menor do que a que existe entre a Turquia e a Europa. O México é, em parte, ocidental: sua religião é o Catolicismo, seu idioma é o espanhol, suas elites estavam orientadas historicamente para a Europa (para onde enviavam seus filhos para estudar) e, mais recentemente, para os Estados Unidos (para onde atualmente enviam seus filhos). A acomodação entre a América do Norte anglo-americana e o México hispano-indígena deveria ser consideravel¬ mente mais fácil do que entre a Europa cristã e a Turquia muçulmana. A despeito desses aspectos em comum, depois da ratificação do NAFTA, desenvolveu-se nos Estados Unidos uma oposição a qualquer envolvi¬ mento mais estreito com o México, com reclamos de restrições sobre a imigração, queixas sobre fábricas que se transferiam para o Sul e questionamentos sobre a capacidade do México de aderir às concepções norte-americanas de liberdade e do império da lei. 59 O terceiro pré-requisito para uma mudança de identidade bem-su¬ cedida por um país dividido é a aquiescência generalizada, embora não necessariamente o apoio, por parte do seu povo. A importância desse fator depende, em certa medida, do grau de importância das opiniões do povo para os processos de tomada de decisão do país. Ao se chegar a 1995, a postura pró-ocidental do México não havia sido testada pela democratização. A revolta no dia do Ano-novo de alguns milhares de guerrilheiros bem organizados e com apoio externo em Chiapas não foi, por si só, uma indicação de resistência considerável à norte-americani- zação. Entretanto, a resposta favorável que ela gerou no meio dos intelectuais, jornalistas e outros formadores de opinião mexicanos sugeriu que a norte-americanização em geral e o NAFTA em particular poderiam encontrar resistência cada vez maior por parte das elites e do povo mexicano. O presidente Salinas, de modo muito deliberado, atribuiu prioridade às reformas e à ocidentalização em relação à reforma política e à democratização. Contudo, tanto o desenvolvimento econômico como o crescente envolvimento com os Estados Unidos irão aumentar as forças que promovem uma verdadeira democratização do sistema político mexicano. A questão-chave para o futuro do México é a seguinte: até que ponto a modernização e a democratização irão estimular a desoci- dentalização, sintetizada numa retirada ou num enfraquecimento radical do NAFTA e em mudanças paralelas nas políticas impostas ao México por suas elites orientadas para o Ocidente dos anos 80 e 90? A norte-americanização do México é compatível com sua democratização? Austrália. Em contraste com a Rússia, a Turquia e o México, a Austrália foi, desde suas origens, uma sociedade ocidental. Através de todo o século XX, ela esteve intimamente aliada primeiro à Grã-Bretanha e depois aos Estados Unidos e, durante a Guerra Fria, ela foi não apenas um membro do Ocidente como também do núcleo ocidental militar e de inteligência Estados Unidos-Reino Unido-Canadá-Austrália. Entretanto, no começo dos anos 90, os dirigentes políticos australianos decidiram na realidade que a Austrália devia afastar-se do Ocidente, se redefinir como uma sociedade asiática e cultivar íntimos laços com seus vizinhos geográficos. O primeiro-ministro Paul Keating declarou que a Austrália devia deixar de ser uma “sucursal do Império”, tomar-se uma república e visar a se “entremear” com a Ásia. Ele argumentou que isso era necessário a fim de estabelecer a identidade da Austrália como um país independente. A Austrália não pode se apresentar ao mundo como uma sociedade multicultural, se engajar na Ásia, criar esse vínculo e fazê-lo de forma persuasiva enquanto, de algum modo, pelo menos em termos constitucionais, permanece sendo uma sociedade derivada." Keating declarou ainda que a Austrália havia padecido durante inúmeros anos de “anglofilia e torpor” e que continuar sua associação com a Grã-Breta¬ nha seria debilitante para nossa cultura nacional, nosso futuro econô¬ mico e nosso destino na Ásia e no Pacífico”. O ministro do Exterior Gareth Evans expressou idéias análogas. 40 A proposição de redefinir a Austrália como um país asiático se fundamentava no pressuposto de que a economia sobrepuja a cultura na formação do destino das nações. O ímpeto essencial era o crescimento dinâmico das economias da Ásia Oriental, as quais, por sua vez, esporearam a rápida expansão do comércio da Austrália com a Ásia. Em 1971, absorveram 39 por cento das exportações australianas e contribuí¬ ram com 21 por cento das importações australianas. Em 1994, a Ásia Oriental e o Sudeste Asiático estavam recebendo 62 por cento das exportações da Austrália e contribuindo com 41 por cento de suas importações. Em contraste, em 1991, 11,8 por cento das exportações australianas foram para a Comunidade Européia e 10,1 por cento para os Estados Unidos. Esse vínculo econômico que se ia aprofundando com a Ásia era reforçado na mente dos australianos por uma crença de que o mundo estava se movendo na direção de três blocos econômicos principais e que o lugar da Austrália estava no bloco da Ásia Oriental. Apesar dessas ligações econômicas, o projeto asiático da Austrália parece ter pouca probabilidade de satisfazer qualquer dos requisitos para o êxito de uma mudança de civilização por um país dividido. Em primeiro lugar, em meados da década de 90, as elites australianas estavam longe de ter um grande entusiasmo por esse rumo. Em certa medida, isso constituía uma questão partidária, com os dirigentes do Partido Liberal assumindo uma postura ambivalente ou de oposição. O governo traba¬ lhista também recebeu consideráveis críticas de vários intelectuais e jornalistas. Não havia nenhum consenso nítido da elite quanto à opção asiática. Em segundo lugar, a opinião pública estava indecisa. De 1987 a 1993, a proporção do povo australiano favorável a acabar com a monarquia subiu de 21 para 46 por cento. A essa altura, entretanto, o apoio para a idéia começou a vacilar e a erodir. A proporção do povo que apoiava a retirada da bandeira britânica do canto da bandeira australiana caiu de 42 por cento em maio de 1992 para 35 por cento em agosto de 1993. Segundo comentou em 1992 uma autoridade australiana, “é difícil para o público engolir isso. Quando eu digo, periodicamente, que a Austrália devia fazer parte da Ásia, nem lhe posso dizer quantas cartas de ódio recebo”. 41 Em terceiro lugar — e o que é mais importante —, as elites dos países asiáticos se mostraram menos receptivas às propostas aus¬ tralianas do que as elites européias em relação às da Turquia. Deixaram claro que, se a Austrália deseja fazer parte da Ásia, ela precisa se tornar realmente asiática, o que consideram improvável se não impossível. Uma autoridade indonésia disse que “o êxito da integração da Austrália na Ásia depende de uma coisa — até que ponto os Estados asiáticos acolhem de bom grado a intenção australiana. A aceitação da Austrália na Ásia depende do grau com que o governo e o povo da Austrália compreendem a cultura e a sociedade asiática”. Os asiáticos vêem um hiato entre a retórica asiática da Austrália e sua realidade perversamente ocidental. Segundo um diplomata australiano, os tailandeses tratam a insistência da Austrália de que ela é asiática com uma “tolerância perplexa”. 42 O primeiro-ministro Mahatir, da Malásia, 188 189 declarou em outubro de 1994 que, “culturalmente, a Austrália ainda é européia, (...) nós achamos que é européia” e, por conseguinte, a Austrália não deve ser membro do Foro Econômico Asiático-oriental (EAEC). Nós, asiáticos, “temos menos tendência a criticar abertamente outros países ou a julgá-los. Mas a Austrália, sendo culturalmente européia, acha que tem o direito de dizer a outros o que fazer, o que não fazer, o que está certo, o que está errado. Assim sendo, é claro, ela não é compatível com o grupo. Essa é a minha razão [para me opor a seu ingresso no EAEC], Não é pela cor da pele, mas pela cultura .43 Em suma, os asiáticos estão decididos a excluir a Austrália do seu clube pela mesma razão que os europeus, a Turquia: eles são diferentes de nós. O primeiro-ministro Keating gostava de dizer que ia mudar a Austrália de “o estranho de fora para o estranho de dentro” na Ásia. Isso, porém, é um oxímoro: os estranhos não entram. Como expôs Mahatir, a cultura e os valores são o obstáculo básico para que a Austrália se junte à Ásia. Regularmente ocorrem choques devido ao engajamento da Austrália com a democracia, direitos humanos, liberdade de imprensa e a seus protestos quanto a violações desses direitos por parte dos governos de praticamente todos os seus vizinhos. Um veterano diplomata australiano assinalou que “o verdadeiro proble¬ ma para a Austrália na região não é nossa bandeira, mas nossos valores sociais fundamentais. Desconfio que não se encontrará nenhum aus¬ traliano disposto a abrir mão de qualquer desses valores para ser aceito na região . As diferenças de caráter, estilo e comportamento também sao acentuadas. Como insinuou Mahatir, de forma geral os asiáticos perseguem seus objetivos com os outros por maneiras que são sutis, indiretas, moduladas, sinuosas, sem fazer julgamentos, sem fazer prega¬ ções e sem ser confrontacionistas. Os australianos, ao contrário, são as pessoas mais diretas, francas, desabridas e, diriam alguns, insensíveis do mundo anglófono. Esse choque de culturas fica evidenciado de modo mais espetacular nas próprias tratativas de Paul Keating com os asiáticos Keating encarna as características nacionais australianas num grau extre¬ mo^ Ele foi descrito como “um político do tipo bate-estaca”, com um estilo que é “intrinsicamente provocador e brigão”, e ele não hesita em atacar seus adversários políticos como “sacos de lixo”, “gigolôs perfuma¬ dos e delinquentes birutas com lesão cerebral”.45 Ao mesmo tempo em que sustenta que a Austrália tem que ser asiática, Keating sistematica¬ mente irritou, chocou e antagonizou líderes asiáticos por sua brutal ranqueza. O hiato entre as culturas era tão grande que cegava o proponente da convergência cultural ao ponto de seu próprio compor¬ tamento repelir aqueles de quem ele se dizia irmão cultural. A opção de Keating-Evans poderia ser vista como o resultado míope de superestimar os fatores econômicos e ignorar, em vez de resgatar, a cultura do país, e como uma jogada política tática para desviar a atenção dos problemas econômicos da Austrália. Por outro lado, ela poderia ser considerada como uma iniciativa de longo alcance, destinada a juntar e identificar a Austrália com os centros emergentes de poder econômico, político e, por fim, militar da Ásia Oriental. Nesse contexto, a Austrália poderia ser o primeiro de possivelmente muitos países ocidentais a tentar abandonar o Ocidente e atrelar-se às emergentes civilizações não-oci¬ dentais. No começo do século XXII, os historiadores poderiam olhar para a opção de Keating-Evans como um dos marcos principais do declínio do Ocidente. Contudo, mesmo que essa opção seja perseguida, ela não eliminará o legado ocidental da Austrália, e o “país de sorte será permanentemente um país dividido, ao mesmo tempo a “sucursal do Império”, que Paul Keating criticou, e a “nova escória branca da Ásia”, como Lee Kuan Yew a chamou com desprezo. 46 Esse não foi e não é o destino inevitável da Austrália. Aceitando seu desejo de romper com a Grã-Bretanha, em vez de definir a Austrália como uma potência asiática, seus líderes poderiam defini-la como um país do Pacífico, como, na realidade, o antecessor de Keating, Bob Hawke, tentou fazer. Se a Austrália deseja se tomar uma república separada da Coroa britânica, ela poderia se alinhar com o primeiro país do mundo a fazer isso, um país que, como a Austrália, é de origem britânica, é um país de imigração, tem dimensões continentais, fala inglês, foi aliado da Grã-Bretanha em três guerras e possui uma população predominantemente européia, ainda que, também como a Austrália, cada vez mais asiática. Culturalmente, os valores da Declaração da Indepen¬ dência, de 4 de julho de 1776, se coadunam muito mais com os valores australianos do que os de qualquer país asiático. Economicamente, em vez de tentar abrir caminho para dentro de um grupo de sociedades às quais é estranha culturalmente e que, por essa razão, a rejeitam, os líderes da Austrália poderiam propor expandir o NAFTA para um acordo América do Norte-Pacífico Sul (North America-South Pacific — NASP), abrangen¬ do os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia. Um agrupamento assim conciliaria cultura e economia e proporcionaria uma identidade sólida e duradoura para a Austrália, que não será obtida através de esforços vãos de tornar a Austrália asiática. 190 191 O vírus ocidental e a esquizofrenia cultural Enquanto os dirigentes da Austrália embarcavam numa busca da Ásia, os de outros países divididos — Turquia, México, Rússia — tentavam incorporar o Ocidente às suas sociedades e incorporar suas sociedades ao Ocidente. Ao se chegar a 1995, nenhuma dessas tentativas de redefinição cultural tinha alcançado êxito. Os fatos demonstram claramente a força, a resistência e a viscosidade das culturas autóctones e sua capacidade de se renovar e de resistir, conter e absorver o que foi importado do Ocidente. Os líderes imbuídos da ilusão de pensar que podem refazer suas sociedades parecem fadadas ao fracasso. Conquanto eles possam introduzir elemen¬ tos da cultura ocidental, não são capazes de reprimir ou eliminar de modo permanente os elementos centrais de suas culturas autóctones. Inversa¬ mente, o vírus ocidental, uma vez alojado em outra sociedade, é difícil de expulsar. O vírus persiste, mas não é fatal — o paciente sobreviverá, mas nunca mais será o mesmo. Os líderes políticos podem fazer História, mas não podem escapar da História. Eles produzem países divididos; eles não criam sociedades ocidentais. Eles contaminam seu país com uma esquizofrenia cultural que se transforma na sua característica constante e definidora. 192 Capítulo 7 Estados-núcleos, Círculos Concêntricos e Ordem Civilizacional Civilizações e Ordem N a política mundial que está surgindo, as duas superpotências da Guerra Fria estão sendo suplantadas pelos Estados-núcleos das principais civilizações como os principais pólos de atração e repulsão de outros países. Esses processos são mais nitidamente visíveis em relação às civilizações ocidental, ortodoxa e sínica. Nesses casos, estão surgindo agrupamentos civilizacionais que envolvem Estados-nú¬ cleos, Estados-membros, populações minoritárias culturalmente pareci¬ das em Estados vizinhos e, de modo mais controvertido, povos vizinhos culturalmente distintos que os Estados-núcleos desejam dominar por motivos de segurança. Os Estados desses blocos civilizacionais tendem freqüentemente a estar distribuídos em círculos concêntricos em tomo do Estado ou Estados-núcleos, refletindo seu grau de identificação e integração com esse bloco. Carecendo de um Estado-núcleo, o Islã está intensificando sua percepção comum, porém até agora só desenvolveu uma rudimentar estrutura política comum. Os países tendem a atrelar-se a países de cultura semelhante e a manter um equilíbrio com os países com os quais não têm aspectos culturais em comum. Isso é especialmente verdadeiro com relação aos Estados-núcleos. Seu poderio atrai aqueles que são culturalmente seme¬ lhantes a eles e repele aqueles que são culturalmente diferentes. Por 1 motivos de segurança, os Estados-núcleos podem tentar incorporar ou dominar alguns povos de outras civilizações, os quais, por sua vez, tentam resistir ou escapar a tal controle (China versus tibetanos e uigures; Rússia versus tártaros, chechenos e muçulmanos centro-asiáticos). Os relaciona¬ mentos históricos e considerações de equilíbrio de poder também levam alguns países a resistir à influência de seu Estado-núcleo. Tanto a Geórgia como a Rússia são países ortodoxos, porém, historicamente, os georgia- nos resistiram à dominação russa e a uma íntima associação com a Rússia. O Vietnã e a China são ambos países confucianos e, no entanto, um padrão comparável de inimizade histórica sempre existiu entre os dois. Ao longo do tempo, porém, os aspectos culturais em comum e o desenvolvimento de uma percepção civilizacional mais ampla e mais forte têm a probabilidade de fazer esses países se juntarem, como se juntaram os países da Europa Ocidental. Durante a Guerra Fria, a ordem que possa ter existido era fruto da dominação pelas superpotências de seus respectivos blocos e da influên¬ cia das superpotências no Terceiro Mundo. No mundo que está surgindo, o poder global tomou-se obsoleto, a comunidade global, um sonho longínquo. Nenhum país, inclusive os Estados Unidos, tem importantes interesses globais de segurança. Os componentes da ordem no mundo atual, mais complexo e heterogêneo, se encontram dentro das civiliza¬ ções e entre elas. O mundo será ordenado com base nas civilizações ou não será ordenado de forma alguma. Nesse mundo, os Estados-núcleos das civilizações assumem o lugar das superpotências. Eles são a fonte da ordem no seio das civilizações e, através de negociações com outros Estados-núcleos, entre as civilizações. A ordem, se é que existe alguma na Bósnia, requer a cooperação dos Estados Unidos, das potências européias e da Rússia. Um mundo no qual os Estados-núcleos desempenham um papel de liderança ou predominante é um mundo de esferas de influência. Mas é também um mundo no qual o exercício da influência pelo Estado-nú¬ cleo é temperado e moderado pela cultura em comum que ele comparti¬ lha com Estados-membros de sua civilização. Os aspectos culturais em comum legitimam a liderança e o papel de impor a ordem que o Estado-núcleo desempenha, tanto em relação aos Estados-membros como às potências e instituições externas. Entretanto, em 1994, o secretário-geral das Nações Unidas, Boutros Boutros-Ghali, promulgou uma regra de “manutenção de esfera de influência” no sentido de que a potência regional predominante não pode prover mais de um terço da 194 força de paz das Nações Unidas. Essa exigência contraria a realidade geopolítica de que, em qualquer região onde exista um Estado predomi¬ nante, a paz só pode ser conseguida e mantida através da liderança desse Estado. As Nações Unidas não constituem uma alternativa do poder regional e o poder regional se toma responsável e legítimo quando é exercido por Estados-núcleos em relação a outros membros de sua civilização. Um Estado-núcleo pode desempenhar sua função de ordenamento porque os Estados-membros o vêem como seu parente cultural. Uma civilização é uma família ampliada e, como os membros mais velhos de uma família, os Estados-núcleos proporcionam a seus parentes apoio e disciplina. Na ausência desse laço de parentesco, fica limitada a capaci¬ dade de um Estado mais poderoso de resolver conflitos e de impor a ordem na sua região. O Paquistão, Bangladesh e até mesmo Sri Lanka não aceitarão a índia como a provedora da ordem na Ásia Meridional e nenhum Estado da Ásia Oriental aceitará que o Japão desempenhe tal papel nessa região. Quando as civilizações carecem de Estados-núcleos, os problemas de criar a ordem no seio dessas civilizações ou negociar a ordem entre civilizações se torna mais difícil. A ausência de um Estado-núcleo islâmico que pudesse, com legitimidade e autoridade, relacionar-se com a Bósnia, como a Rússia fez com os sérvios e a Alemanha, com os croatas, impeliu os Estados Unidos a tentar desempenhar esse papel. A ineficácia com que o fez derivou da falta de interesse estratégico norte-americano quanto às fronteiras traçadas na ex-Iugoslávia, da inexistência de qualquer ligação cultural entre os Estados Unidos e a Bósnia e da oposição européia à criação de um Estado muçulmano na Europa. Analogamente, a ausência de um Estado-núcleo latino-americano obrigou os Estados Unidos a desempenharem o papel principal na questão do Haiti, quando suas ações foram, por sua vez, criticadas pelos países latino-americanos como sendo as de um interventor extracivilizacional. A ausência de Estados-núcleos tanto na África como no mundo árabe complicou enormemente os esforços por resolver a continuada guerra civil no Sudão. Por outro lado, onde existem Estados-núcleos, eles constituem os elementos fundamentais da nova ordem internacional baseada nas civilizações. Demarcando o Ocidente Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos estavam no centro de um agrupamento grande, variado e multicivilizacional de países que com¬ partilhavam do objetivo de impedir uma maior expansão da União Soviética. Esse agrupamento, conhecido por várias designações como o “Mundo Livre”, o “Ocidente” ou os “Aliados”, incluía muitas das socieda¬ des ocidentais, mas não todas, além de Turquia, Grécia, Japão, Coréia do Sul, Filipinas, Israel e, de forma mais flexível, outros países como Taiwan, Tailândia e Paquistão. A ele se opunha um agrupamento de países apenas ligeiramente heterogêneos, que incluía todos os países ortodoxos com exceção da Grécia, vários países que tinham sido historicamente ocidentais, além de Vietnã, Cuba, em menor grau a índia e, às vezes, um ou mais países africanos. Com o término da Guerra Fria, esses agrupa¬ mentos multicivilizacionais e de diversas culturas se fragmentaram. A dissolução do sistema soviético, especialmente do Pacto de Varsóvia, foi espetacular. De modo mais lento, porém análogo, o “Ocidente” multici- vilizacional da época da Guerra Fria está sendo reconfigurado como um novo agrupamento, que mais ou menos coincide com a civilização ocidental. Um processo de demarcação está em curso, envolvendo a definição dos membros dos organismos internacionais ocidentais. Os Estados-núcleos da União Européia — França e Alemanha — estão rodeados primeiro por um agrupamento interior composto por Bélgica, Holanda e Luxemburgo, que concordaram em eliminar todas as barreiras ao trânsito de bens e pessoas; depois os outros países-membros como a Itália, Espanha, Portugal, Dinamarca, Grã-Bretanha, Irlanda e Grécia; Estados que se tomaram membros em 1995 (Áustria, Finlândia e Suécia) e pelos países que até então eram membros associados (Polônia, Hungria, República Checa, Eslováquia, Bulgária e Romênia). Refletindo essa realidade, no outono de 1994 o partido no poder na Alemanha e altas autoridades francesas apresentaram propostas para uma União diferenciada. O plano alemão propôs que o “núcleo central” consistisse dos membros originais menos a Itália e que “a Alemanha e a França formassem o núcleo do núcleo central”. Os países do núcleo central iriam tentar implantar rapidamente uma união monetária e integrar suas políticas exterior e de defesa. Quase simultaneamente, o primeiro-minis¬ tro Edouard Balladur sugeriu uma União de três níveis, com os cinco Estados pró-integração formando o núcleo, os outros Estados-membros atuais um segundo círculo e os novos Estados a caminho de se tornarem membros compondo um círculo exterior. Posteriormente, o ministro do Exterior francês, Alain Juppé, elaborou mais esse conceito, propondo “um círculo exterior de Estados ‘parceiros’, incluindo a Europa Central e Oriental, um círculo intermediário de Estados-membros que seriam obrigados a aceitar disciplinas comuns em certos campos (mercado 196 único, união aduaneira, etc.) e vários círculos interiores de ‘solidariedade reforçada’, que incorporariam aqueles que tivessem a disposição e a capacidade de avançar mais depressa do que outros em áreas como defesa, integração monetária, política externa e assim por diante”. 1 Outros líderes políticos propuseram outros tipos de acordos, todos, entretanto, envolviam um agrupamento interior de Estados associados mais intima¬ mente e depois agrupamentos exteriores de Estados integrados de forma menos ampla com o Estado-núcleo, até que se chega à linha que separa os membros dos não-membros. O estabelecimento dessa linha na Europa tem sido um dos princi¬ pais desafios com que se defronta o Ocidente no mundo pós-Guerra Fria. Durante a Guerra Fria, a Europa não existia como um todo. Entretanto, com o colapso do comunismo, tornou-se necessário enfrentar e respon¬ der a pergunta: o que é a Europa? As fronteiras da Europa ao Norte, a Oeste e ao Sul são delimitadas por grandes massas d’água, que, ao Sul, coincidem com nítidas diferenças de cultura. Porém, onde fica a fronteira leste da Europa? Que países devem ser considerados como europeus e, por conseguinte, membros em potencial da União Européia, da OTAN e de organizações análogas? A resposta mais atraente e abrangente a essas indagações é dada pela grande linha histórica que existiu durante séculos separando os povos cristãos ocidentais dos povos muçulmanos e ortodoxos. Essa linha data da divisão do Sacro Império Romano no século X. Ela esteve aproximadamente no mesmo lugar que ocupa atualmente há pelo menos 500 anos. Começando no Norte, ela corre ao longo do que são hoje as fronteiras entre a Finlândia e a Rússia, entre esta e os Estados bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), passando pela Bielo-Rússia ocidental, através da Ucrânia, onde separa o oeste uniata e o leste ortodoxo, cruzando a Romênia entre a Transi!vânia, com sua população húngara católica, e o resto do país, e depois pela ex-Iugoslávia, ao longo da fronteira que separa a Eslovênia e a Croácia das outras repúblicas. Nos Bálcãs, é claro, essa linha coincide com a divisão histórica entre os Impérios Austro-húngaro e Otomano. Ela é a fronteira cultural da Europa e, no mundo pós-Guerra Fria, ela é também a fronteira política e econômica da Europa e do Ocidente. Um enfoque civilizacional fornece uma resposta precisa e atraente para a questão com que se defrontam os europeus ocidentais: onde termina a Europa? A Europa termina onde o Cristianismo ocidental termina e começam o Islamismo e a Ortodoxia. Esta é a resposta que os 197 A Fronteira Leste Oriental da Civilização Ocidental europeus ocidentais desejam ouvir, que eles apoiam majoritariamente em voz baixa e que diversos intelectuais e líderes políticos endossaram explicitamente. Como Michael Howard sustentou, é preciso reconhecer a distinção, um tanto nebulosa durante os anos soviéticos, entre a Europa Central ou Mitteleuropa e a Europa Oriental propriamente dita. A Europa Central inclui “aquelas terras que outrora formavam parte da Cristandade ocidental, as antigas terras do Império Habsburgo — Áustria, Hungria e Checoslováquia, juntamente com a Polônia e as regiões orientais da Alemanha. O termo ‘Europa Oriental' devia ficar reservado para aquelas regiões que se desenvolveram sob a égide da Igreja Ortodoxa: as comunidades do Mar Negro na Bulgária e na Romênia, que só emergiram da dominação otomana no século XIX, e as partes ‘européias 7 da União Soviética”. A primeira prova da Europa Ocidental, argumentou ele, deve ser “reabsorver os povos da Europa Central na nossa comunidade cultural e econômica, à qual eles devidamente pertencem: reatar os laços entre Londres, Paris, Roma e Munique, de um lado, e Leipzig, Varsóvia, Praga e Budapeste, de outro. Dois anos depois, Pierre Behar comentou que está surgindo “uma nova linha de fratura, uma divisória basicamente cultural entre uma Europa marcada pelo Cristianismo ocidental (Católico Romano ou Protestante), por um lado, e uma Europa marcada pelas tradições do Cristianismo oriental e do Islamismo, por outro 77 . Um destacado finlandês viu de modo análogo a divisão crucial da Europa substituindo a Cortina de Ferro como “a antiga linha de fratura cultural entre Leste e Oeste”, que coloca “as terras do antigo Império Austro-hún- garo, bem como a Polônia e os Estados bálticos” dentro da Europa do Ocidente e os outros países da Europa Oriental e os países balcânicos fora dela. Um inglês ilustre concordou com que essa era “a grande divisória (...) entre as Igrejas oriental e ocidental: de forma genérica, entre aqueles povos que receberam o seu Cristianismo diretamente de Roma ou através de seus intermediários celtas ou germânicos, e aqueles no Leste e no Sudeste para quem ele veio atrayés de Constantinopla (Bizâncio) 77 . 2 As pessoas na Europa Central também salientam a importância dessa linha divisória. Os países que conseguiram um progresso notável em se desvencilhar dos legados do comunismo e em se mover na direção de uma política democrática e de economias de mercado estão separados daqueles que não o conseguiram “pela linha que divide o Catolicismo e o Protestantismo, de um lado, e a Ortodoxia, de outro”. O presidente da Lituânia argumentou que, séculos atrás, os lituanos tiveram que escolher entre “duas civilizações” e “optaram pelo mundo Latino, se converteram ao Catolicismo Romano e escolheram uma forma de organização do Estado fundamentada na lei”. Com palavras análogas, os poloneses dizem que eles fazem parte do Ocidente desde a escolha que fizeram no século X do Cristianismo latino contra Bizâncio. 3 Em contraste, as pessoas dos países ortodoxos da Europa Oriental vêem com ambivalência a nova ênfase que é atribuída a essa linha de fratura cultural. Os búlgaros e os romenos vêem grandes vantagens em fazer parte do Ocidente e em se incorporarem às suas instituições, porém eles também se identificam com a sua própria tradição ortodoxa e, por parte dos búlgaros, com sua associação historicamente estreita com a Rússia. A identificação da Europa com a Cristandade ocidental fornece um critério claro para a admissão de novos membros nas organizações ocidentais. A União Européia é a principal entidade do Ocidente na Europa, e a expansão do número de seus membros foi retomada em 1994 com a admissão da Áustria, da Finlândia e da Suécia, culturalmente ocidentais. Na primavera de 1994, a União decidiu em caráter provisório vedar o acesso como membros a todas as ex-repúblicas soviéticas, com exceção dos Estados bálticos. Ela também celebrou “acordos de as¬ sociação” com quatro Estados da Europa Central (Polônia, Hungria, República Checa e Eslováquia) e dois da Europa Oriental (Romênia e Bulgária). Entretanto, nenhum desses Estados tem probabilidade de se tornar membro pleno da UE até algum momento no século XXI, e os Estados da Europa Central sem dúvida atingirão essa condição antes da Romênia e da Bulgária, caso, na realidade, estas algum dia cheguem a atingi-la. Nesse ínterim, a futura admissão dos Estados bálticos e da Eslovênia parece promissora, enquanto que as solicitações feitas pela Turquia muçulmana, pela diminuta Malta e pelo Chipre ortodoxo ainda estavam pendentes em 1995. Na expansão do número de membros da UE, há uma nítida preferência por aqueles Estados que são culturalmente ocidentais e que também tendem a ser mais desenvolvidos economica¬ mente. Se esse critério for aplicado, os Estados de Visegrad (Polônia, República Checa, Eslováquia e Hungria), as repúblicas bálticas, a Eslo¬ vênia, a Croácia e Malta acabarão se tornando membros da UE, e esta será coincidente' com a civilização ocidental tal como ela existiu his¬ toricamente na Europa. A lógica das civilizações determina um desfecho análogo para a expansão da OTAN. A Guerra Fria começou com a extensão do controle político e militar da União Soviética sobre a Europa Central. Os Estados Unidos e os países da Europa Ocidental formaram a OTAN para deter e, se necessário, derrotar novas agressões soviéticas. No mundo pós-Guerra Fria, a OTAN é o organismo de segurança da civilização ocidental. Com a Guerra Fria terminada, a OTAN tem um objetivo fundamental e atraente: assegurar que a Guerra Fria continue terminada por meio do impedimen¬ to da reimposição do controle político e militar russo sobre a Europa Central. Na qualidade de organismo de segurança do Ocidente, a OTAN está, como é apropriado, aberta à admissão de países ocidentais que desejem nela ingressar e que satisfaçam os requisitos básicos em termos de compe¬ tência militar, democracia política e controle civil das forças armadas. A política norte-americana em relação aos arranjos de segurança europeus pós-Guerra Fria incorporava inicialmente um enfoque mais universalista, encarnado na Parceria para a Paz, que estaria aberta, de forma geral, aos países europeus e, na realidade, aos países eurasianos. Esse enfoque também realçava o papel da Organização sobre Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Ele se refletiu nas observações do presidente Clinton quando visitou a Europa em janeiro de 1994: “As fronteiras da liberdade devem agora ser definidas por um novo compor¬ tamento, não pela história antiga. Digo a todos (...) que irão traçar uma nova linha na Europa: não devemos excluir previamente a possibilidade do melhor futuro para a Europa — democracia por toda parte, economias de mercado por toda parte, países cooperando pela segurança mútua por toda parte. Precisamos nos resguardar contra um desfecho menor.” Entretanto, um ano depois, o governo tinha chegado ao reconhecimento da importân¬ cia das fronteiras definidas pela “história antiga”, e tinha chegado à aceitação de um “desfecho menor” refletindo as realidades das diferenças civilizacionais. O governo agiu de modo incisivo para desenvolver os critérios e um cronograma para a expansão do número de membros da OTAN, primeiro incluindo a Polônia, a Hungria, a República Checa e a Eslováquia e depois, provavelmente, as repúblicas bálticas. A Rússia se opôs firmemente a qualquer expansão da OTAN, com aqueles dentre os russos que eram presumivelmente mais liberais e pró-ocidentais argumentando que a expansão iria fortalecer muito as forças políticas nacionalistas e antiocidentais na Rússia. Contudo, a expansão da OTAN limitada aos países que historicamente fizeram parte da Cristandade ocidental também garantia à Rússia que seriam excluídas a Sérvia, a Bulgária, a Romênia, a Moldova, a Bielo-Rússia e a Ucrânia, enquanto esta última permanecesse unida. A expansão da OTAN limitada aos Estados ocidentais também sublinharia o papel da Rússia como o Estado-núcleo de uma civilização ortodoxa à parte e, portanto, como um país que deveria ser responsável pela ordem dentro e ao longo das fronteiras da Ortodoxia, e que poderia e deveria lidar numa base de igualdade com a OTAN e com os Estados-núcleos ocidentais. A utilidade de se fazer uma diferenciação entre os países em termos de civilização fica evidenciada no caso das repúblicas bãlticas. Elas são as únicas ex-repúblicas soviéticas que são claramente ocidentais em termos de história, cultura e religião, e seu destino foi sempre uma grande preocupação para o Ocidente. Os Estados Unidos nunca reconheceram sua incorporação pela União Soviética, apoiaram sua ação pela indepen¬ dência quando a União Soviética começou a desmoronar e insistiram em que a Rússia tinha que observar o cronograma acordado para a retirada de suas tropas dessas repúblicas. A mensagem para os russos foi de que eles tinham que reconhecer que os países bálticos estão fora de qualquer esfera de influência que desejem estabelecer em relação a outras ex-repúblicas soviéticas. Esse resultado positivo do governo Clinton foi, como disse o primeiro-ministro da Suécia, “uma de suas mais importantes contribuições para a segurança e a estabilidade européias”, e ajudou os democratas russos ao determinar que quaisquer desígnios revanchistas de nacionalistas extremados russos eram inúteis diante de um com¬ promisso explícito ocidental para com essas repúblicas.^ Embora se tenha dedicado muita atenção à expansão da União Européia e da OTAN, a reconfiguração cultural dessas organizações também suscita a questão de sua possível contração. Um país não-oci¬ dental, a Grécia, é membro de ambas as organizações, e outro, a Turquia, é membro da OTAN e candidato a membro da União. Esses relaciona¬ mentos foram fruto da Guerra Fria. Será que eles têm cabimento no mundo das civilizações pós-Guerra Fria? A Turquia é um país dividido. Sua participação plena na União Européia é problemática e improvável e sua participação na OTAN foi atacada pelo Partido do Bem-Estar. Entretanto, é provável que a Turquia continue como membro da OTAN, a menos que o Partido do Bem-Estar consiga uma vitória eleitoral retumbante e/ou a Turquia, por alguma outra forma, rejeite o legado de Ataturk e se redefina como líder do Islã. Isso é concebível e podería ser desejável para a Turquia, mas também é improvável no futuro imediato. Qualquer que seja o seu papel na OTAN, é provável que a Turquia cada vez mais busque seus próprios interesses com relação aos Bálcãs, ao mundo árabe e à Ásia Central. A Grécia não faz parte da civilização ocidental, porém foi a sede da civilização clássica que, por sua vez, foi uma fonte importante da civilização ocidental. Na sua oposição aos turcos, os gregos histori¬ camente se consideraram como os lanceiros do Cristianismo. Ao contrário de sérvios, romenos e búlgaros, sua história está intimamente entrelaçada com a do Ocidente. No entanto, a Grécia também é uma anomalia, o estranho ortodoxo nas organizações ocidentais, Nunca foi fácil para ela ser membro quer da UE quer da OTAN, e ela teve dificuldades em se adaptar aos princípios e costumes de ambas. De meados da década de 60 a meados da de 70, ela foi governada por uma junta militar e só pôde entrar para a Comunidade Européia depois de passar a ser uma demo¬ cracia. Seus dirigentes freqüentemente parecem se esforçar por desviar-se das normas ocidentais e por antagonizar os governos ocidentais. Ela era mais pobre do que os outros membros da Comunidade e da OTAN e, muitas vezes, adotava políticas que pareciam desrespeitar os padrões vigentes em Bruxelas. Seu comportamento na presidência do Conselho da UE em 1994 exasperou outros membros, e autoridades européias ocidentais, em privado, consideram um erro tê-la como membro. No mundo pós-Guerra Fria, as políticas da Grécia se afastam cada vez mais das do Ocidente. O bloqueio que impôs à Macedônia teve a encarniçada oposição dos governos ocidentais e resultou na moção, pela Comissão Européia, de uma ação comina tória contra a Grécia na Corte Européia de Justiça. No contexto de seus conflitos com a ex-Iugoslávia, a Grécia se separou das políticas adotadas pelas principais potências ocidentais, apoiou ativamente os sérvios e violou flagrantemente as sanções das Nações Unidas a eles impostas. Com o fim da União Soviética e da ameaça comunista, a Grécia tem interesses mútuos com a Rússia em oposição a seu inimigo comum, a Turquia. Ela permitiu que a Rússia estabelecesse uma presença importante na parte grega de Chipre e, como resultado de “sua religião ortodoxa oriental compartilhada”, os cipriotas gregos acolheram tanto russos como sérvios na ilha. 5 Em 1995, cerca de duas mil empresas de propriedade russa estavam operando em Chipre, ali se publicavam jornais russos e servo-croatas e o governo cipriota grego estava comprando grandes quantidades de armamento da Rússia. A Grécia também explorou com a Rússia a possibilidade de trazer petróleo do Cáucaso e da Ásia Central até o Mediterrâneo, por meio de um oleoduto búlgaro-grego contornando a Turquia e outros países muçul¬ manos. De modo geral, as diretrizes da política externa grega assumiram uma orientação com forte teor ortodoxo. A Grécia indubitavelmente continuará sendo, formalmente, membro da OTAN e da União Européia. Entretanto, à medida que se intensifique o processo de reconfiguração cultural, essas participações sem dúvida ficarão mais tênues, menos significativas e mais difíceis para as partes envolvidas. O antagonista da União Soviética na Guerra Fria está evoluindo para o aliado pós-Guerra Fria da Rússia. A Rússia e o seu Exterior Próximo A Rússia é um país dividido, mas também é o Estado-núcleo de uma importante civilização. O sistema que sucedeu aos impérios tzarista e comunista é um bloco civilizacional, que em muitos aspectos segue em paralelo ao do Ocidente na Europa. No seu núcleo, a Rússia — o equivalente da França e da Alemanha — está intimamente ligada com um círculo interior que inclui as duas repúblicas predominantemente ortodoxas eslavas da Bielo-Rússia e de Moldova, o Casaquistão, com 40 por cento da população compostos por russos, e a Armênia, his¬ toricamente um íntimo aliado da Rússia. Em meados dos anos 90, todos esses países possuíam governos pró-russos, que, de forma geral, tinham chegado ao poder pelas umas. Há relações estreitas, porém mais tênues, entre a Rússia e a Geórgia (predominantemente ortodoxa) e a Ucrânia (em grande parte ortodoxa), mas que têm também fortes sentimentos de identidade nacional e de independência no passado. Nos Bálcãs ortodo¬ xos, a Rússia tem relações estreitas com a Bulgária, a Grécia, a Sérvia e Chipre, e um tanto menos estreitas com a Romênia. As repúblicas muçulmanas da antiga União Soviética desenvolveram alguns mecanis¬ mos de cooperação entre si, e têm sido cortejadas pela Turquia e por outros Estados muçulmanos. Contudo, elas continuam muito depen¬ dentes da Rússia, tanto economicamente quanto no campo da segurança. Em contraste, as repúblicas bálticas, respondendo à atração gravitacional da Europa, efetivamente se retiraram da esfera de influência russa. De modo geral, a Rússia está criando sob sua liderança um bloco com um coração ortodoxo e uma zona tampão de Estados islâmicos relativamente fracos que ela irá, em graus diferentes, dominar, e nos quais ela tentará excluir a influência de outras potências. Além disso, a Rússia espera que o mundo aceite e aprove esse sistema. Como disse Yeltsin em fevereiro de 1993, os governos estrangeiros e os organismos interna¬ cionais precisam “outorgar à Rússia poderes especiais como uma garantia da paz e da estabilidade nas regiões que eram parte da antiga URSS”. Enquanto a União Soviética era uma superpotência com interesses globais, a Rússia é uma potência importante com interesses regionais e ,civilizacionais. Os países ortodoxos da antiga União Soviética são fundamentais para o desenvolvimento de um bloco russo coerente nas questões eurasianas e mundiais. Durante o desmembramento da União Soviética, todos esses cinco países se moveram inicialmente numa direção altamen¬ te nacionalista, enfatizando sua nova independência e seu distanciamento de Moscou. Posteriormente, o reconhecimento das realidades econômi¬ cas, geopolíticas e culturais levou os eleitores em quatro deles a eleger governos pró-russos e a apoiar políticas pró-russas. Nesse países as pessoas olham para a Rússia em busca de apoio e proteção. No quinto, a Geórgia, a intervenção militar russa obrigou a uma mudança análoga na posição do governo. Historicamente, a Armênia identificou seus interesses com a Rússia, e esta se orgulhava de ser a defensora da Armênia contra seus vizinhos muçulmanos. Esse relacionamento foi revigorado nos anos pós-soviéticos. Os armênios dependem da assistência econômica e militar russa e apoiaram a Rússia em questões vinculadas às relações com as antigas repúblicas soviéticas. Os dois países têm interesses estratégicos convergentes. Ao contrário da Armênia, a Bielo-Rússia tem um reduzido sentimen¬ to de identidade nacional. Além disso, ela é ainda mais dependente da assistência russa. Muitos de seus habitantes parecem se identificar tanto com a Rússia quanto com seu próprio país. Em janeiro de 1994, o Legislativo substituiu no cargo de chefe de Estado um nacionalista moderado, de centro, por um conservador pró-russo. Em julho de 1994, 80 por cento dos eleitores escolheram para presidente um pró-russo extremado, aliado de Vladimir Zhirinovsky. A Bielo-Rússia logo aderiu à Comunidade dos Estados Independentes (CEI), foi membro fundador da união econômica criada em 1993 cõriTa Rússia e a Ucrânia, concordou com uma união monetária com a Rússia, entregou suas armas nucleares à Rússia e concordou com o aquartelamento de tropas russas em seu território até o final deste século. Na realidade, a Bielo-Rússia só não é parte da Rússia no nome. Depois que, com o colapso da União Soviética, a Moldova ficou independente, muitos esperavam que ela acabasse por se reintegrar à Romênia. O medo de que isso acontecesse, por sua vez, estimulou um movimento secessionista no leste russificado, com o apoio tácito de Moscou e o apoio ativo do 14° Exército russo, e que levou à criação da República do Trans-Dniestr. Entretanto, os desejos dos moldóvios de união com a Romênia arrefeceram, em decorrência dos problemas econômicos dos dois países e da pressão econômica russa. A Moldova aderiu à CEI e o comércio com a Rússia se expandiu. Em fevereiro de 1994, os partidos pró-russos tiveram amplo êxito nas eleições parlamentares. Nesses três Estados, a opinião pública, respondendo a uma certa combinação de interesses estratégicos e econômicos, produziu governos que favoreciam um alinhamento estreito com a Rússia. Um padrão algo semelhante acabou ocorrendo na Ucrânia. Na Geórgia, o curso dos acontecimentos foi diferente. A Geórgia foi um país independente até 1801, quando seu monarca, o rei George XIII, pediu a proteção russa contra os turcos. Durante três anos depois da Revolução Russa, de 1918 a 1921, a Geórgia ficou mais uma vez independente, porém os bolchevis- tas a incorporaram à força à União Soviética.ÍQuando a União Soviética acabou, a Geórgia uma vez mais declarou'"sua independência. Uma coalizão nacionalista ganhou as eleições, porém seu líder se engajou numa repressão autodestrutiva e foi derrubado pela força. Edvard A. Shevarnadze, que tinha sido ministro do Exterior da União Soviética, retornou para dirigir seu país e foi confirmado no poder nas eleições presidenciais, em 1992 e em 1995. Entretanto, foi confrontado por um movimento separatista em Abkhásia, que recebeu considerável apoio russo, bem como por uma insurreição pelo líder deposto, Gamsakhurdia. Emulando o rei George, Shevarnadze chegou à conclusão de que “não temos uma grande escolha” e voltou-se para Moscou em busca de auxílio. As tropas russas intervieram para apoiá-lo, em troca do ingresso da Geórgia na CEI. Em 1994, os georgianos concordaram em permitir que os russos mantivessem três bases militares por um período indeter¬ minado. Desse modo, a intervenção militar russa, primeiro para debilitar o governo georgiano e depois para preservá-lo, trouxe a Geórgia, apesar do seu espírito de independência, para o campo russo. Afora a Rússia, a maior e mais importante ex-república soviética é a Ucrânia. Em diversos momentos da História, a Ucrânia foi indepen¬ dente. Contudo, durante a maior parte da era moderna ela fez parte de uma entidade política governada de Moscou. O acontecimento decisivo teve lugar em 1654, quando Bohdan Khmelnytsky, o líder cossaco de um levante contra o domínio polonês, concordou em jurar lealdade ao tzar em troca de ajuda contra os poloneses. A partir de então, até 1991, exceto por um breve período como república independente, entre 1917 e 1920, o que é agora a Ucrânia foi controlado politicamente por Moscou. Entretanto, a Ucrânia é um país rachado, com duas culturas distintas. A linha de fratura civilizacional entre o Ocidente e a Ortodoxia passa através do seu coração, e é assim há séculos. Em alguns momentos no passado, a Ucrânia ocidental foi parte da Polônia, da Lituânia e do Império Austro-húngaro. Uma grande parcela da sua população pertence à Igreja Uniata, que pratica os ritos ortodoxos, mas reconhece a autoridade do Papa. Historicamente, os ucranianos ocidentais sempre falaram ucraniano e adotaram uma perspectiva fortemente nacionalista. As pessoas da Ucrânia oriental, por outro lado, são predominantemente ortodoxas e, em grande parte, falam russo. Os russos representam 22 por cento e os que têm o russo como língua materna, 31 por cento do total da população ucraniana. A maioria dos alunos das escolas primárias e secundárias têm suas aulas em russo. 6 A Criméia é predominantemente russa e fez parte da Federação Russa até 1954, quando Krushchev a transferiu para a Ucrânia, ostensivamente como reconhecimento pela decisão de Khmel¬ nytsky de 300 anos antes. As diferenças entre a Ucrânia oriental e ocidental se manifestam nas atitudes de suas populações. No final de 1992, por exemplo, um terço dos russos da Ucrânia ocidental disse que era alvo de animosidade anti-russa, em comparação com apenas 10 por cento em Kiev. 7 A divisão entre leste e oeste ficou evidenciada de modo espetacular nas eleições presidenciais de julho de 1994. O presidente no cargo, Leonid Kravchuk, que se identificava como nacionalista apesar de trabalhar intimamente com os dirigentes da Rússia, ganhou nas 13 províncias da Ucrânia ocidental com maiorias que chegavam a até 90 por cento dos votos. Seu adversário, Leonid Kuchma, que tomou aulas de ucraniano durante a campanha, ganhou nas 13 províncias orientais por maiorias comparáveis. No cômputo final, Kuchma ganhou com 52 por cento dos votos. Na realidade, uma pequena maioria do povo ucraniano confirmou em 1994 a opção de Khmelnytsky em 1654. Como um perito norte-americano comentou, a eleição “refletiu, cristalizou mesmo, a divisão entre os eslavos europeizados da Ucrânia ocidental e a visão russo-eslava do que a Ucrânia deveria ser. Não se trata tanto de polarização étnica, mas sobretudo de culturas diferentes”. 8 Como resultado dessa divisão, as relações entre a Ucrânia e a Rússia poderiam se desenvolver de uma de três maneiras. No início dos anos 90, havia questões seriamente importantes entre os dois países a respeito de armas nucleares, a Criméia, os direitos do russos na Ucrânia, a esquadra do Mar Negro e as relações econômicas. Muitas pessoas achavam que havia a probabilidade de um conflito armado, o que levou alguns analistas ocidentais a argumentar que o Ocidente devia apoiar a UCRÂNIA: um país rachado BIELO-RÚSSIA Volyn ”Hl.O (87,-3) /is* mm< / Ch*mihiv / ay...: —*'*«,*• - 72.3(211)/ RÜSSIA POLÔNIA f™ *<«*»>} ? } V \ Sumy "u;^ _/i 4,6 <««< nlssiis*?)... ..i. Iviv SfCZf "7 iCksv regtoft /. \ X 3.<M93J) **/ f < 138,4(^3^/ \ l, Kharkív ^ÍNêrkaiy- S9.2 07.4) '■/ 71 0 | /* Vfw»yt*ia ..-«-A 42.3 (54 3) I Luhftnsk ÍMJQ(WJ) Zakarpatiia : /lUtotfNrtfeit ^"^Chemivtsí l 1 / 25.2 ( 70 . 5 ) 313(61 8 ) ' , k ROMÂNIA *y .»OVA< | Resultados preliminares oficiais | 1 Regiões que votaram por: □ Leortid Kuchma CZU Leonid Kravchuk í Dados mostram final de percentagem* ' de veios para Kuchma e Kravchuk *Tat«i indui vofos nulos. : FONTE: íme* natioiul f o.UHS.Ifton for EkHloral fytfà ..^43.7 ($08) \ xl. Kirovohrad / «"ÍEfSSfSr*" ^ 43.7 ( 45 . 7 ) j € **i?* 7 U .i ****** r —08 5) , ^ MykoUrv ;> 0 - 1 ^ 52 M (44.7) s % Z*H*t*fc*W» C 25 %, J 10 li s m,ou, > V La-At-— 1 .''-v Ml ( 324 ) v * t: V"* Mar de Azov ^ d Crfi»*«* CS-.-/"-""' ASxr . Mar Negro g9 7 (8 8) ^.-- 1 CZj 4 Seteastopol r s 31 J ( 15 ) ^." tese de a Ucrânia possuir um arsenal nuclear a fim de deter uma agressão russa.9 Entretanto, se o que conta é a civilização, a probabilidade de violência entre ucranianos e russos deve ser baixa. São dois povos eslavos, basicamente ortodoxos, que têm um relacionamento íntimo há séculos, e são comuns os casamentos entre eles. A despeito de questões profundamente controvertidas e da pressão de nacionalistas extremados de ambos os lados, os dirigentes dos dois países têm trabalhado com empenho, e com grande dose de êxito, para moderar essas controvérsias. A eleição na Ucrânia, em meados de 1994, de um presidente declarada¬ mente orientado para a Rússia, reduziu ainda mais a probabilidade de um conflito exacerbado entre os dois países. Enquanto, em outras partes da antiga União Soviética, ocorreram sérias lutas entre muçulmanos e cristãos, e houve muita tensão e algumas lutas entre cristãos ocidentais e ortodoxos nos Estados bálticos, ao se chegar a 1995 não havia ocorrido praticamente nenhuma violência entre ucranianos e russos. Uma segunda e maior possibilidade é a de que a Ucrânia possa se partir, seguindo sua linha de fratura, em duas entidades separadas, das quais a oriental podería se fundir com a Rússia. A questão da secessão 208 primeiro apareceu em relação à Criméia. O povo da Criméia, cujo percentual de russos está em 70 por cento, apoiou de forma ampla a independência da Ucrânia da União Soviética num plebiscito em dezem¬ bro de 1991. Em maio de 1992, o Parlamento da Criméia também aprovou uma moção para declarar sua independência da Ucrânia e depois, sob pressão ucraniana, rescindiu essa decisão. Entretanto, o Parlamento russo decidiu por votação cancelar a cessão da Criméia à Ucrânia feita em 1954. Em janeiro de 1994, o povo da Criméia elegeu como presidente um homem que fizera sua campanha com a plataforma de “união com a Rússia”. Isso induziu algumas pessoas a levantarem a questão: “Irá a Criméia ser o próximo Nagomo-Karabakh ou Abkhásia?” 10 A resposta foi um rotundo “Não!”, enquanto o novo presidente da Criméia recuava de seu compromisso de realizar um plebiscito sobre a independência e, em vez disso, negociou com o governo de Kiev. Em maio de 1994, a situação voltou a esquentar quando o Parlamento da Criméia votou a restauração da Constituição de 1992, que a tomava virtualmente independente da Ucrânia. Entretanto, uma vez mais, a moderação dos dirigentes russos e ucranianos impediu que essa questão acabasse em violência e a vitória nas eleições realizadas dois meses depois de Kuchma, pró-russo, como presidente da Ucrânia, solapou a pressão pela secessão da Criméia. Não obstante, essa eleição suscitou a possibilidade de que a parte ocidental do país se separasse de uma Ucrânia que estava cada vez mais chegada à Rússia. Alguns russos podiam ver isso com bons olhos. Como comentou um general russo, “a Ucrânia, ou melhor, a Ucrânia oriental voltará em cinco, 10 ou 15 anos. A Ucrânia ocidental pode ir para o inferno!”. 11 Entretanto, tal pedaço remanescente de uma Ucrânia uniata e orientada para o Ocidente só seria viável se tivesse um apoio forte e eficaz do Ocidente. Por seu lado, esse apoio só teria probabilidade de se concretizar se as relações entre o Ocidente e a Rússia se deteriorassem seriamente e viessem a se parecer com as que existiam na época da Guerra Fria. O terceiro e mais provável cenário é o de que a Ucrânia permanecerá unida, permanecerá rachada, permanecerá independente e, de modo geral, cooperará estreitamente com a Rússia. Uma vez resolvidas as questões transitórias a respeito de armas nucleares e de forças armadas, as questões de longo prazo mais graves serão as econômicas, cuja solução será facilitada por uma cultura parcialmente compartilhada e por íntimos laços pessoais. John Morrison assinalou que o relacionamento russo-ucraniano representa para a Europa Oriental o que o relacionamento franco-alemão representa para a Europa Ocidental. 12 Da mesma forma que este constitui o núcleo da União Européia, o primeiro é o núcleo essencial para a união do mundo ortodoxo. A Grande China e sua Esfera de Co-prosperidade Através da História, a China concebeu a si mesma como abrangendo uma “Zona Sínica”, que incluía a Coréia, o Vietnã, as ilhas Liu Chiu e, às vezes, o Japão; uma “Zona Asiática Interior” de não-chineses — manchus, mongóis, uigures, turcos e tibetanos, que tinham que ser controlados por motivos de segurança —; e depois uma “Zona Exterior” de bárbaros, que, não obstante, “deviam pagar tributos e reconhecer a superioridade da China”. 13 A civilização sínica contemporânea está ficando estruturada de maneira semelhante: o núcleo central da China Han, as províncias periféricas que fazem parte da China, mas detêm considerável autonomia, províncias que legalmente fazem parte da China mas com grande parte da população formada por não-chineses de outras civilizações (Tibete, Xinxiang), sociedades chinesas que irão ser ou têm probabilidade de vir a ser parte de uma China centrada em Pequim segundo determinadas condições (Hong Kong, Taiwan), um Estado predominantemente chinês cada vez mais orientado para Pequim (Singapura), populações chinesas muito influentes na Tailândia, Vietnã, Malásia, Indonésia e Filipinas, e sociedades não-chinesas (Coréias do Norte e do Sul, Vietnã) que, mesmo assim, compartilham muito da cultura confuciana da China. Durante a década de 50, a China se definia como aliada da União Soviética. Então, após a ruptura sino-soviética, ela passou a se ver como líder do Terceiro Mundo contra ambas as superpotências. Disso resulta¬ ram grandes custos e poucos dividendos e, depois da mudança da política norte-americana no governo Nixon, a China procurou ser o terceiro elemento num jogo de equilíbrio de poder entre as duas superpotências, alinhando-se com os Estados Unidos durante os anos 70, quando os Estados Unidos pareciam fracos, e depois passando para uma posição mais eqüidis- tante nos anos 80, quando o poder militar dos Estados Unidos aumentou e a União Soviética declinou economicamente, ficando atolada no Afeganistão. Entretanto, com o fim da competição das superpotências, a “carta da China” perdeu todo o seu valor e a China se viu obrigada uma vez mais a redefinir seu papel nas questões mundiais. Ela se fixou duas metas: tornar-se a defensora da cultura chinesa, o pólo de atração civilizacional de Estado-núcleo em direção ao qual iriam se orientar todas as outras comunidades chinesas, e retomar sua posição histórica, que perdera no século XIX, como potência hegemônica na Ásia Oriental. Pode-se distinguir o papel emergente da China como o Estado-nú¬ cleo e o pólo de atração da civilização sínica nos seguintes aspectos: primeiro, no modo como a China descreve sua posição nas questões mundiais; segundo, no grau em que os chineses de ultramar se envolve¬ ram economicamente na China; e terceiro, nas crescentes ligações econômicas, políticas e diplomáticas com a China das outras três princi¬ pais entidades chinesas — Hong Kong, Taiwan e Singapura —, bem como na mais acentuada orientação na direção da China por parte dos países do Sudeste Asiático em que os chineses têm uma influência política significativa (Tailândia, Malásia). O governo chinês vê a China continental como o Estado-núcleo de uma civilização chinesa na direção da qual todas as outras comunidades chinesas deveriam se orientar. Tendo há muito abandonado seus esforços para promover seus interesses no exterior através de partidos comunistas locais, o governo atualmente busca “posicionar-se como o representante da ‘chinesidade’ em todo o mundo”. 14 Para o governo chinês, as pessoas de ascendência chinesa, mesmo que sejam cidadãos de um outro país, são membros da comunidade chinesa e, por conseguinte, estão em alguma medida sujeitas à autoridade do governo chinês. A identidade chinesa vem a ser definida em termos raciais. Como expôs um estudioso da República Popular da China (RPC), os chineses são pessoas da mesma “raça, sangue e cultura”. Em meados dos anos 90, esse tema era cada vez mais mencionado por fontes chinesas governamentais e particulares. Para os chineses e os de ascendência chinesa que vivem em sociedades não-chinesas, a “prova do espelho” passa assim a ser a prova de quem eles são: “Vá se olhar no espelho”, é a advertência feita pelos chineses orientados para Pequim aos de ascendência chinesa que tentam ser assimilados no seio de sociedades estrangeiras. Os chineses da diáspora, ou seja, os huaren ou pessoas de origem chinesa, por diferenciação dos zhongguoren ou pessoas do Estado chinês, cada vez mais articulam a concepção da “China cultural” como uma manifestação de sua gonshi ou percepção em comum. A identidade chinesa, sujeita a tantos ataques do Ocidente no século XX, está atualmente sendo reformulada em termos dos elementos ininterruptos da cultura chinesa. 15 Historicamente, essa identidade também foi compatível com os diferentes relacionamentos com as autoridades centrais do Estado chinês. Essa noção de identidade cultural facilita a expansão dos relacionamentos econômicos entre as várias Chinas, ao mesmo tempo em que é reforçada por ela. Por sua vez, essas várias Chinas têm sido importante elemento para a promoção do rápido crescimento econômico da China continental e de outras áreas, as quais, por seu turno, proporcionaram o ímpeto material e psicológico para ressaltar a identidade cultural chinesa. Assim sendo, a “Grande China” não é apenas uma concepção abstrata. É uma realidade cultural e econômica que cresce rapidamente, e que está começando a se tornar uma realidade política. Os chineses foram responsáveis pelo espetacular desenvolvimento econômico dos anos 80 e 90: na China continental, nos Tigres (dos quatro, três eram chineses) e nos países do Sudeste Asiático, cujas economias estavam dominadas por chineses. A economia da Ásia Oriental está cada vez mais centrada na China e dominada pela China. Os chineses de Hong Kong, Taiwan e Singapura aportaram muito do capital responsável pelo cresci¬ mento da China continental nos anos 90. Em outras áreas do Sudeste Asiático, os chineses de ultramar dominaram as economias dos seus respectivos países. No começo da década de 90, os chineses repre¬ sentavam um por cento da população das Filipinas, mas respondiam por 35 por cento das vendas das empresas de propriedade nacional. Na Indonésia, em meados da década de 80, os chineses eram de dois a três por cento da população, porém eram donos de cerca de 70 por cento do capital privado doméstico. Dezessete das 25 maiores empresas eram controladas por chineses, e consta que um conglomerado chinês respondia por cinco por cento do PNB da Indonésia. No início dos anos 90, os chineses formavam 10 por cento da população da Tailândia, mas eram donos de nove dos 10 maiores grupos empresariais e respondiam por 50 por cento do seu PNB. Os chineses são cerca de um terço da população da Malásia, porém dominam quase totalmente a economia do país. 16 Fora Japão e Coréia, a economia da Ásia Oriental é basicamente uma economia chinesa. O surgimento da esfera de co-prosperidade da Grande China foi muito facilitado por uma “rede de bambu” de relacionamentos pessoais e de família e por uma cultura em comum. Os chineses de ultramar têm uma capacidade muito maior do que ocidentais ou japoneses para fazer negócios na China. Na China, a confiança e a obrigação dependem dos relacionamentos pessoais, não de leis, contratos ou outros documentos legais. Os homens de negócios ocidentais têm maior facilidade em fazer transações na índia do que na China, onde a observância de um acordo se baseia no relacionamento pessoal entre as partes. Um japonês proeminente comentou com inveja, em 1993, que a China se beneficiava de “uma rede sem fronteiras de comerciantes chineses em Hong Kong, em Taiwan e no Sudeste Asiático”. 17 Um homem de negócios norte-ame¬ ricano concordou, dizendo que os chineses de ultramar “têm os dotes empresariais, têm o idioma e combinam a rede de bambu das relações de família aos contratos. É uma enorme vantagem sobre alguém que precisa se reportar para Akron ou Filadélfia”. As vantagens dos chineses de fora para tratar com a China continental também foram bem expostas por Lee Kuan Yew: “Nós somos chineses étnicos. Nós compartilhamos de certas características através de uma ascendência e uma cultura em comum. (...) As pessoas sentem uma empatia natural por aqueles que compartilham de seus atributos físicos. Esse sentimento de proximidade é reforçado quando elas também compartilham de uma base para a cultura e o idioma. Isso cria as condições para entrosamento e confiança fáceis, que são os alicerces de todas as relações de negócios.” 18 Na segunda metade dos anos 80 e 90, os chineses étnicos de ultramar puderam “demonstrar a um mundo cético que as ligações de quanxi, através do mesmo idioma e da mesma cultura, compensam a falta de um reinado da lei e da transparência de normas e regulamentos”. As raízes do desenvolvimento econômico numa cultura em comum foram realça¬ das na Segunda Conferência Mundial de Empresários Chineses, realizada em Hong Kong em 1993, descrita como “uma celebração do triunfalismo chinês a que compareceram homens de negócios chineses étnicos de todas as partes do mundo”. 19 No mundo sínico, como em outras áreas, os aspectos culturais em comum promovem o engajamento econômico. A redução do envolvimento ocidental na China depois dos episó¬ dios na Praça Tiananmen, após uma década de rápido crescimento econômico chinês, criou as oportunidades e o incentivo para que os chineses de ultramar capitalizassem sobre sua cultura em comum e seus contatos pessoais para investir maciçamente na China. O resultado foi uma expansão espetacular dos laços econômicos em geral entre as comunidades chinesas. Em 1992, 80 por cento dos investimentos es¬ trangeiros diretos na China (11,3 bilhões de dólares) vieram de chineses de ultramar, sobretudo de Hong Kong (68,3 por cento), mas também de Taiwan (9,3 por cento), Singapura, Macau e outras áreas. Em contraste, o Japão participou em 6,6 por cento e os Estados Unidos em 4,6 por cento do total. Do total dos investimentos estrangeiros acumulados de 50 bilhões de dólares, 67 por cento vieram de fontes chinesas. O crescimento do comércio internacional foi igualmente impressionante. As exportações de Taiwan para a China subiram de quase nada em 1986 para oito por cento do total das exportações de Taiwan em 1992, expandindo-se nesse ano cerca de 35 por cento. As exportações de Singapura para a China aumentaram em 22 por cento em 1992, em comparação com um crescimento geral de suas exportações de menos de dois por cento. Como assinalou Murray Weidenbaum em 1993, “apesar do atual predomínio japonês na região, a economia asiática baseada na China está emergindo rapidamente como um novo epicentro da indústria, do comércio e das finanças. Essa área estratégica contém doses subs¬ tanciais de capacidade tecnológica e manufatureira (Taiwan), uma ex¬ traordinária perspicácia empresarial, de comercialização e de serviços (Hong Kong), uma ótima rede de comunicações (Singapura), um tremen¬ do manancial de capital financeiro (todos os três) e dotes muito grandes em terras, recursos naturais e mão-de-obra (China continental)”. 20 Além disso, é claro, a China continental era, em termos potenciais, o maior de todos os mercados em expansão e, em meados dos anos 90, os investimentos na China estavam cada vez mais orientados para as vendas nesse mercado, bem como para as exportações a partir dele. Os chineses nos países do Sudeste Asiático se assimilaram em graus diferentes às populações locais, estas últimas freqüentemente nutrindo sentimentos antichineses que, em determinadas ocasiões, como nos distúrbios de Medan, na Indonésia, em abril de 1994, irromperam em violência. Alguns malásios e indonésios criticaram como “fuga de capi¬ tais” o fluxo de investimentos chineses para a China continental, e os dirigentes políticos, encabeçados pelo presidente Suharto, tiveram que tranqüilizar seus povos no sentido de que isso não iria causar danos às suas respectivas economias. Os chineses do Sudeste Asiático, por sua vez, insistiam em que suas lealdades eram estritamente para com seus países de nascimento e não o de seus ancestrais. No começo dos anos 90, o fluxo de capitais chineses do Sudeste Asiático para a China continental foi contrabalançado por investimentos taiwaneses nas Filipi¬ nas, na Malásia e no Vietnã. A combinação de um crescente poderio econômico e de uma cultura chinesa compartilhada levou Hong Kong, Taiwan e Singapura a se envolverem cada vez mais com a terra natal chinesa. Acomodando-se à transferência de poder que se aproxima, os chineses de Hong Kong começaram a se adaptar a ser governados de Pequim em vez de Londres. Os homens de negócios e outros elementos influentes passaram a relutar em criticar a China ou a fazer coisas que pudessem ofender a China. Quando ofendiam, o governo chinês nào hesitava em retaliar prontamen- te. Em 1994, centenas de homens de negócios estavam cooperando com Pequim e servindo como “Assessores de Hong Kong” no que era de fato um governo paralelo. No começo dos anos 90, a influência econômica chinesa em Hong Kong também se expandiu de forma espetacular, com os investimentos provenientes do continente em 1993, ao que se informa, superando os do Japão e dos Estados Unidos combinados. 21 Em meados dos anos 90, a integração econômica entre Hong Kong e a China continental estava praticamente concluída, com a integração política a ser consumada em 1997. A expansão dos laços de Taiwan com a China continental ficou mais atrasada em comparação com a de Hong Kong. Não obstante, nos anos 80, começaram a ocorrer mudanças significativas. Durante as três décadas seguintes a 1949, as duas repúblicas chinesas se recusavam a reconhecer a existência ou a legitimidade uma da outra, não tinham nenhuma comunicação entre si e estavam num virtual estado de guerra, manifes¬ tado de tempos em tempos por uma troca de tiros de canhão nas ilhas ao largo da costa. Depois que Deng Xiaoping consolidou seu poder e começou o processo de reformas econômicas, porém, o governo da China continental deu início a uma série de gestos conciliatórios em relação a Taiwan. Em 1981, o governo de Taiwan respondeu e começou a mudar de sua política anterior dos “três nenhuns”: nenhum contato, nenhuma nego¬ ciação e nenhuma acomodação com a parte continental. Em maio de 1986, ocorreram as primeiras negociações entre representantes dos dois lados a respeito da restituição à República da China de um avião que tinha sido seqüestrado para a parte continental e, no ano seguinte, a República da China anulou a proibição de viagens ao continente. 22 A rápida expansão das relações econômicas entre Taiwan e a China continental que se seguiu foi muito facilitada por sua “chinesidade compartilhada” e pela confiança mútua que dela resultava. Como comen¬ tou o principal negociador de Taiwan, as pessoas de Taiwan e da China têm “um sentimento de que o sangue fala mais forte” e se orgulhavam das realizações de cada lado. Em 1993, mais de 4,2 milhões de taiwaneses tinham visitado a parte continental, e 40 mil pessoas desta tinham visitado Taiwan; diariamente eram trocadas 40 mil cartas e 13 mil telefonemas. O comércio entre as duas Chinas, pelo que se informou, atingiu 14,4 bilhões de dólares em 1993, e 20 mil empresas de Taiwan tinham investido algo entre 15 e 30 bilhões de dólares na parte continental. A atenção de Taiwan cada vez mais se concentrou na China continental e seu êxito cada vez mais foi dependente desta. Uma autoridade taiwanesa comentou em 1993 que, “antes de 1980, o mercado mais importante para Taiwan eram os Estados Unidos, mas nos anos 90 sabemos que o fator mais crítico para o êxito da economia de Taiwan está no continente”. A mão-de-obra barata da parte continental constituía a principal atração para os inves¬ tidores taiwaneses, que enfrentavam uma escassez de mão-de-obra em seu país. Em 1994, entrou em andamento um processo inverso de retificação do desequilíbrio capital-mão-de-obra entre as duas Chinas, com as companhias pesqueiras taiwanesas contratando pessoas da parte continental para tripular suas embarcações. 23 As ligações econômicas em desenvolvimento conduziram a nego¬ ciações entre os dois governos. Em 1991, Taiwan criou a Fundação de Intercâmbio dos Estreitos e a China continental criou a Associação para as Relações através do Estreito de Taiwan, para as comunicações recíprocas. Sua primeira reunião foi realizada em Singapura em abril de 1993, com reuniões posteriores realizadas na parte continental e em Taiwan. Em agosto de 1994, chegou-se a um acordo “de abrir caminho”, que cobria uma série de questões-chave, e iniciou-se a especulação a respeito de uma possível reunião de cúpula entre as principais autorida¬ des dos dois governos. Em meados dos anos 90, ainda havia questões importantes entre Taipé e Pequim, inclusive as da soberania, da participação de Taiwan em organismos internacionais e da possibilidade de que Taiwan se redefinisse como um Estado independente. Entretanto, a probabilidade de que esta hipótese se concretizasse tomou-se cada vez mais remota quando o principal advogado da independência, o Partido Democrático Progressista, constatou que os eleitores taiwaneses não queriam perturbar as relações existentes com a China continental, e que suas perspectivas eleitorais seriam prejudi¬ cadas se persistisse com essa questão. Os dirigentes do PDP enfatizaram então que, se chegassem ao poder, a independência não seria um item imediato do seu programa. Os dois governos também compartilhavam um interesse comum em afirmar a soberania chinesa sobre as Ilhas Spratly e outras, no Mar do Sul da China, e em assegurar o tratamento de nação mais favorecida por parte dos Estados Unidos para o comércio da China continental. Em meados dos anos 90, de forma lenta porém perceptível e inelutável, as duas Chinas estavam se aproximando entre si e desenvolvendo interesses comuns a partir de suas relações econômicas em expansão e de sua identidade cultural compartilhada. Esse movimento no rumo da acomodação foi sustado de forma abrupta em 1995, quando o governo de Taiwan empreendeu agressiva campanha pelo reconhecimento diplomático e admissão em organismos internacionais, o presidente Lee Teng-hui fez uma visita “particular” aos Estados Unidos e foram realizadas eleições legislativas no Estado-núcleo em dezembro de 1995, seguidas por eleições presidenciais em março de 1996. Em resposta, o governo chinês fez provas de lançamento de mísseis em águas próximas dos principais portos taiwaneses e efetuou manobras militares ao largo da costa chinesa perto das ilhas controladas por Taiwan. Esses desdobramentos suscitaram duas questões-chave: no momento atual, é possível para Taiwan permanecer democrática sem se tornar formalmente independente? No futuro, poderia Taiwan ser democrática sem continuar sendo de fato independente? Na prática, as relações de Taiwan com a China continental passaram por duas fases e poderiam entrar numa terceira. Durante décadas, o governo nacionalista afirmou que era o governo de toda a China. Essa afirmação obviamente significava um conflito com o governo que de fato constituía o governo de toda a China, com exceção de Taiwan. Na década de 80, o governo em Taipé abandonou aquela pretensão e se definiu como o governo de Taiwan, o que proporcionou a base para a acomodação com a concepção da China continental de “um país, dois sistemas”. Diversos indivíduos e grupos, entretanto, enfatizavam cada vez mais a identidade cultural própria de Taiwan, a relativa brevidade do período sob o domínio chinês e seu idioma local, incompreensível para os que falavam mandarim. Na realidade, eles estavam tentando definir a sociedade taiwanesa como não-chinesa e, portanto, legitimamente in¬ dependente da China. Além disso, à medida que o governo de Taiwan se tornava mais atuante internacionalmente, também ele parecia estar sugerindo que era um país independente e não parte da China. Em suma, a autodefinição do governo de Taiwan parecia evoluir de governo de toda a China para governo de parte da China e daí para governo de nenhuma parte da China. Essa última posição, formalizando sua indepen¬ dência de facto, seria inteiramente inaceitável para o governo de Pequim, que afirmou repetidamente sua disposição de fazer uso da força para impedir que ela se materializasse. Os dirigentes do governo chinês também declararam que, após a incorporação à RPC de Hong Kong em 1997 e de Macau em 1999, iriam atuar a fim de reassociar Taiwan com a parte continental. É de se presumir que a maneira como isso vai ocorrer dependerá do grau com que cresça em Taiwan o apoio à independência formal, o desfecho da luta pela sucessão em Pequim, que induz os líderes políticos e militares a serem acentuadamente nacionalistas, e o desenvol- 216 vimento da capacidade militar chinesa a ponto de tornar factível o bloqueio ou a invasão de Taiwan. Parece provável que, no começo do século XXI, através de coerção, acomodação ou, mais provavelmente, uma combinação de ambas, Taiwan ficará integrada mais intimamente com a China continental. Até o final da década de 70, eram frias as relações entre uma Singapura firmemente anticomunista e a República Popular, e Lee Kuan Yew e outros líderes singapurianos menosprezavam o atraso chinês. Entretanto, quando o desenvolvimento econômico chinês decolou nos anos 80, Singapura começou a se reorientar em direção à China conti¬ nental, num clássico comportamento de se atrelar. Em 1992, Singapura tinha investido 1,9 bilhão de dólares na China e, no ano seguinte, foram anunciados planos para a construção de uma cidade industrial, “Singa¬ pura II”, nos arredores de Xangai, envolvendo bilhões de dólares de investimento. Lee se tornou entusiasmado incentivador das perspectivas econômicas da China e admirador do seu poderio. Em 1993, ele disse que “a China é onde as coisas estão acontecendo”. 24 Os investimentos externos de Singapura, que se tinham concentrado fortemente na Malásia e na Indonésia, se deslocaram para a China. Metade dos projetos no exterior assistidos pelo governo singapuriano em 1993 estavam na China. Na sua primeira visita a Pequim, nos anos 70, consta que Lee Kuan Yew insistiu em falar com os dirigentes chineses em inglês em vez de em mandarim. É improvável que ele tivesse feito isso duas décadas depois. O Islã: Percepção sem Coesão A estrutura da lealdade política entre os árabes e, de forma geral, entre os muçulmanos, tem sido o oposto da do Ocidente moderno. Para este último, o Estado-nação é o ápice da lealdade política. Lealdades mais limitadas ficam subordinadas a ela e ficam subordinadas à lealdade ao Estado-nação. Os grupos que transcendem os Estados-nações — comu¬ nidades lingüísticas ou religiosas, ou civilizações — obtiveram lealdade e devotamento menos intensos. Ao longo de um continuum de entidades mais limitadas para entidades mais amplas, as lealdades ocidentais tendem assim a atingir seu auge no meio, com a curva de intensidade da lealdade formando de algum modo um U de cabeça para baixo. No mundo islâmico, a estrutura de lealdade é quase exatamente o inverso. O Islã teve um meio oco na sua hierarquia de lealdades. Como assinalou Ira Lapidus, “as duas estruturas fundamentais, originais e que persistem”, são a família, o clã e a tribo, de um lado, e “as unidades de cultura, religião e império numa escala sempre maior”, do outro. 25 Um estudioso líbio observou de modo análogo que “o tribalismo e a religião (Islamis- mo) desempenharam e ainda desempenham importante e determinante papel nos desdobramentos sociais, econômicos, culturais e políticos das sociedades e sistemas políticos árabes e na mentalidade política árabe”. As tribos foram fundamentais para a política nos Estados árabes, muitos dos quais, como expôs Tahsin Bashir, são simplesmente “tribos com bandeiras”. O fundador da Arábia Saudita em grande parte teve êxito por sua habilidade em criar uma coalizão tribal através de casamentos e outros meios, e a política saudita continuou sendo intensamente tribal, lançando Sudaris contra Shammars e outras tribos. Pelo menos 18 tribos principais desempenharam papéis importantes no desenvolvimento da Líbia, e diz-se que, no Sudão, vivem cerca de 500 tribos, a maior das quais abrange 12 por cento da população do país. 2 ^ Na Ásia Central, historicamente, não houve identidades nacionais. “A lealdade é à tribo, ao clã e à família ampla, não ao Estado.” No outro extremo, as pessoas tinham “idioma, religião, cultura e estilos de vida” em comum, e “o Islamismo era a força unificadora mais forte entre as pessoas, mais ainda do que o poder do Emir”. Entre os chechenos e povos aparentados com eles do Cáucaso Setentrional, existiam cerca de 100 clãs “das montanhas” e 70 “das planícies”, e eles controlavam a política e a economia a tal ponto que, em contraste com a economia planificada soviética, dizia-se que os chechenos possuíam uma economia “danificada”. 27 Em todo o Islã, o grupo pequeno e a grande fé, a tribo e a ummah , foram os principais focos de lealdade e devotamento, e o Estado-nação foi menos importante. No mundo árabe, os Estados existentes têm problemas de legitimidade porque, na sua maioria, eles são produtos arbitrários, quando não caprichosos, do imperialismo europeu, e suas fronteiras muitas vezes nem sequer coincidem com as dos grupos étnicos, como os bérberes e os curdos. Esses Estados dividiram a nação árabe, mas, por outro lado, um Estado pan-arábico jamais se materializou. Além disso, a idéia de Estados-nações soberanos é incompatível com a crença na soberania de Alá e o primado da ummah . Na condição de movimento revolucionário, o fundamentalismo islâmico rejeita o Estado-nação em favor da unidade do Islã, exatamente do mesmo modo como o marxismo o rejeitava em favor da unidade do proletariado internacional. A fraqueza do Estado-nação no Islã se reflete também no fato de que, enquanto ocorreram numerosos 910 conflitos entre grupos muçulmanos durante os anos após a II Guerra Mundial, só ocorreram duas guerras maiores diretamente entre Estados muçulmanos, ambas envolvendo invasões pelo Iraque a seus vizinhos. Nos anos 70 e 80, os mesmos fatores que ensejaram o Ressurgimento islâmico dentro dos países também fortaleceram a identificação com a ummah ou civilização islâmica como um todo. Como um estudioso observou em meados dos anos 80: Uma profunda preocupação com a identidade e a unidade muçulmanas foi estimulada ainda mais pela descolonização, pelo crescimento demo¬ gráfico, pela industrialização, pela urbanização e por uma ordem econômica internacional em mutação, associados, entre outras coisas, à riqueza do petróleo em terras muçulmanas. (...) As modernas comuni¬ cações fortaleceram e tornaram mais elaborados os laços entre os povos muçulmanos. Houve um crescimento pronunciado na quantidade de homens que fazem a peregrinação a Meca, criando uma noção mais intensa de identidade comum entre os muçulmanos de lugares tão distantes quanto a China e o Senegal, o Iêmen e Bangladesh. Um número cada vez maior de estudantes da Indonésia, da Malásia, do sul das Filipinas e da África está cursando universidades do Oriente Médio, espalhando idéias e estabelecendo contatos pessoais, passando por cima de fronteiras nacionais. São realizadas conferências e consultas regulares, cada vez mais freqüentes, entre os intelectuais muçulmanos e os ulemás (estudiosos da religião) em centros como Teerã, Meca e Kuala Lumpur. (...) Cassetes (de som e agora de vídeo) difundem os sermões das mesquitas por cima das fronteiras internacionais, de modo que prega¬ dores influentes atualmente atingem audiências muito além de suas comunidades locais . 28 A noção de unidade muçulmana também se refletiu nas ações dos Estados e das organizações internacionais, e foi por eles estimulada. Em 1969, os dirigentes da Arábia Saudita, trabalhando com os do Paquistão, do Marrocos, do Irã, da Tunísia e da Turquia, organizaram a primeira reunião de cúpula islâmica em Rabat. Dela emergiu a Organização da Conferência Islâmica, que foi formalmente estabelecida com uma sede em Jeddah em 1972. Praticamente todos os Estados que possuem uma população muçulmana substancial pertencem agora à conferência, que é a única organização desse tipo entre Estados. Os governos cristãos, ortodoxos, budistas ou hindus não têm organizações entre Estados cuja participação seja baseada na religião, mas os governos muçulmanos, sim. Além disso, os governos da Arábia Saudita, Paquistão, Irã e Líbia patrocinaram e apoiaram organizações não-govemamentais como o Congresso Mundial Muçulmano (uma criação paquistanesa) e a Liga 220 Mundial Muçulmana (uma criação saudita), bem como “numerosos, e muitas vezes muito distantes, regimes, partidos, movimentos e causas que, se acredita, compartilham de suas orientações ideológicas” e que estão “enriquecendo o fluxo de informações e recursos entre os muçul¬ manos”. 29 Entretanto, o movimento da percepção islâmica para a coesão islâmica envolve dois paradoxos. O primeiro é que o Islã está dividido entre centros de poder competitivos, cada um tentando capitalizar sobre a identificação muçulmana com a ummah a fim de promover a coesão islâmica sob sua liderança. Essa competição prossegue entre os regimes instalados e suas organizações, por um lado, e os regimes fundamentalis- tas islâmicos e suas organizações, por outro. A Arábia Saudita assumiu a liderança ao criar a Organização da Conferência Islâmica (OCI), em parte para ter um contrapeso da Liga Árabe, que na época era dominada por Nasser. Em 1991, depois da Guerra do Golfo, o líder sudanês Hassan al-Turabi criou a Conferência Popular Árabe e Islâmica (CPAI), para contrabalançar a OCI dominada pelos sauditas. À terceira reunião da CP AI, em Cartum, no início de 1995, compareceram várias centenas de delegados de organizações e movimentos fundamentalistas islâmicos de 80 países. 30 Além dessas organizações formais, a guerra no Afeganistão gerou uma extensa rede de grupos informais e clandestinos de veteranos, que apareceram lutando por causas muçulmanas ou fundamentalistas islâmicas na Argélia, Chechênia, Egito, Tunísia, Bósnia, Palestina, Filipi¬ nas e em outros lugares. Depois da guerra, suas fileiras se renovaram com combatentes treinados na Universidade de Dawa Jihad, nos ar¬ redores de Peshawar, e em campos patrocinados por diversas facções e pelos estrangeiros que os apoiavam no Afeganistão. Os interesses comuns compartilhados pelos regimes e movimentos radicais superaram, em certas ocasiões, antagonismos mais tradicionais e, com o apoio iraniano, foram estabelecidas vinculações entre os grupos fundamentalis¬ tas sunitas e xiitas. Há uma estreita colaboração militar entre o Sudão e o Irã, a força aérea e a marinha iranianas utilizam instalações sudanesas, e os dois governos cooperaram no apoio a grupos fundamentalistas na Argélia e em outros lugares. Consta que Hassan al-Turabi e Saddam Hussein desenvolveram laços estreitos em 1994, e Irã e Iraque se encaminharam para a reconciliação. 31 O segundo paradoxo é o de que a ummah pressupõe a ile¬ gitimidade do Estado-nação e, no entanto, a ummah só pode ser unificada através das ações de um ou mais Estados-núcleos fortes, que 221 atualmente não existem. A concepção do Islã como uma comunidade religiosa e política fez com que, no passado, os Estados-núcleos tivessem geralmente se materializado somente quando a liderança religiosa e política — o califado e o sultanato — se combinavam numa única instituição governante. A rápida conquista árabe, no século VII, do Norte da África e do Oriente Médio, culminou no califado Omaiada, com sua capital em Damasco. A ele se seguiu, no século VIII, o califado Abassida, com sede em Bagdá e sob influência persa, com califados secundários surgindo no Cairo e em Córdoba no século X. Quatrocentos anos depois, os turcos otomanos varreram o Oriente Médio, conquistaram Cons¬ tantinopla em 1453 e estabeleceram um novo califado em 1517. Mais ou menos nessa época, outros povos túrquicos invadiram a índia e fundaram o império Mogol. A ascensão do Ocidente solapou os impérios Otomano e Mogol, e o fim do Império Otomano deixou o Islã sem um Estado-nú- cleo. Seus territórios foram, de modo considerável, divididos entre as potências ocidentais, as quais, quando se retiraram, deixaram atrás de si Estados frágeis, formados segundo um modelo ocidental, estranho às tradições do Islã. Em conseqüência, durante a maior parte do século XX, nenhum país muçulmano teve poder suficiente ou suficiente legitimidade cultural e religiosa para assumir o papel de líder do Islã e ser como tal aceito pelos demais países islâmicos e não-islâmicos. A inexistência de um Estado-núcleo islâmico muito contribui para os generalizados conflitos internos e externos que caracterizam o Islã. A percepção sem a coesão é uma fonte de fraqueza do Islã e uma fonte de ameaça para as outras civilizações. Terá essa condição alguma proba¬ bilidade de se manter? Um Estado-núcleo islâmico precisa possuir os recursos econômicos, o poderio militar, a capacidade organizacional e a identidade e o engajamento islâmicos para prover a liderança política e religiosa da ummah. De tempos em tempos, seis Estados são mencionados como possíveis líderes do Islã. No momento atual, nenhum deles, contudo, reúne todos os requisitos para ser um Estado-núcleo eficaz. A Indonésia é o maior país muçulmano e está crescendo economicamente com rapidez. Entretanto, está situada na periferia do Islã, muito afastada do seu centro árabe; seu Islamismo tem a feição mais tranqüila do Sudeste Asiático, e seu povo e cultura são um misto de influências autóctones, muçulmanas, hindus, chinesas e cristãs. O Egito é um país árabe, com uma grande população, uma localização geográfica central e estrate¬ gicamente importante e a principal instituição de ensino islâmico, a 222 Universidade Al-Azhar. Entretanto, é um país pobre, que depende economicamente dos Estados Unidos, de instituições internacionais controladas pelo Ocidente e pelos Estados árabes ricos em petróleo. Irã, Paquistão e Arábia Saudita se definiram, todos, explicitamente como países muçulmanos e tentaram de forma ativa exercer influência sobre a ummah e a ela proporcionar liderança. Assim fazendo, compe¬ tiram entre si patrocinando organizações, financiando grupos islâmicos, dando apoio aos combatentes no Afeganistão e cortejando os povos muçulmanos da Ásia Central. O Irã possui a dimensão, a localização central, a população, as tradições históricas, os depósitos de petróleo e um nível médio de desenvolvimento econômico que o qualificariam para ser um Estado-núcleo islâmico. Contudo, 90 por cento dos muçulmanos são sunitas e o Irã é xiita, o persa fica em um distante segundo lugar do árabe como idioma do Islã, e as relações entre persas e árabes his¬ toricamente sempre foram antagônicas. O Paquistão tem dimensão, população e competência militar, e seus líderes têm, de modo razoavelmente consistente, tentado reivindicar um papel de promotor da cooperação entre os Estados islâmicos e de porta-voz do Islã para o resto do mundo. Entretanto, o Paquistão é relativamente pobre e padece de graves divisões internas étnicas e regionais, um passado de instabilidade política e uma fixação no problema de sua segurança diante da índia, o que explica em grande parte seu interesse por desenvolver relações íntimas com os outros países islâmicos, bem como com potências não-muçulmanas como a China e os Estados Unidos. A Arábia Saudita foi o lar original do Islã, os santuários mais sagrados do Islã estão lá, seu idioma é o idioma do Islã, ela detém as maiores reservas de petróleo do mundo e a decorrente influência financeira no mundo, e seu Governo moldou a sociedade saudita segundo linhas estritamente islâmicas. Durante os anos 70 e 80, a Arábia Saudita foi, isoladamente, a força mais influente no mundo muçulmano. Ela despendeu bilhões de dólares apoiando causas muçulmanas pelo mundo afora, de mesquitas e livros de estudo a partidos políticos, organizações fundamentalistas islâmicas e movimentos terroristas, e o fez de modo relativamente indiscriminado. Por outro lado, sua população relativamente pequena e sua vulnerabilidade geográfica a fazem depen¬ der do Ocidente no que se refere à sua segurança. Finalmente, a Turquia tem a história, população, desenvolvimento econômico de nível médio, coerência nacional e tradição e competência 223 militares para ser o Estado-núcleo do Islã. Entretanto, ao definir explici¬ tamente a Turquia como uma sociedade secular, Ataturk impediu que a República Turca sucedesse ao Império Otomano naquele papel. A Turquia nào conseguiu sequer se tornar membro fundador da OCI devido ao compromisso com o secularismo incorporado à sua Constituição. Enquanto a Turquia continuar a se definir como um Estado secular, a liderança do Islã lhe estará vedada. Contudo, o que aconteceria se a Turquia se redefinisse? Em algum momento, a Turquia pode estar pronta para abandonar seu papel frustrante e humilhante de mendiga que implora para ser admitida no Ocidente, e retomar seu papel histórico, muito mais respeitável e altaneiro, de principal interlocutor e antagonista islâmico do Ocidente. O fundamentalismo tem estado em ascensão na Turquia; durante o governo de Õzal, a Turquia fez grandes esforços para se identificar com o mundo árabe, capitalizou sobre seus laços étnicos e lingüísticos para desempenhar um papel modesto na Ásia Central e deu estímulo e apoio aos muçulmanos da Bósnia. Dentre os países muçulmanos, a Turquia é a única a ter amplas vinculações históricas com os muçulmanos dos Bálcãs, do Oriente Médio, do Norte da África e da Ásia Central, É concebível que a Turquia possa, na realidade, Mar uma de África do Sul”: abandonar o secularismo como sendo estranho ao seu modo de ser, tal como a África do Sul abandonou o apartheid , e assim se transformar de Estado pária na sua civilização em Estado líder dessa civilização. Tendo experimentado o que há de melhor e de pior no Ocidente com o Cristianismo e o apartheid , a África do Sul está qualificada de modo especial para liderar a África. Da mesma maneira, tendo experimentado o que há de pior e de melhor no Ocidente com o secularismo e a democracia, a Turquia pode igualmente se qualificar para liderar o Islã. Porém, para fazer isso, ela teria de rejeitar o legado de Ataturk de forma mais radical do que a Rússia rejeitou o de Lênin. Seria também preciso um líder do calibre de Ataturk, e que combinasse a legitimidade religiosa e política, para transformar a Turquia de país dividido em Estado-núcleo. 224 IV Os Choques das Civilizações Capítulo 8 O Ocidente e o Resto: Questões Intercivilizacionais UNIVERSALISMO OCIDENTAL E nquanto as relações entre grupos de civilizações diferentes não serão íntimas e freqüentemente serão antagônicas, algumas rela¬ ções intercivilizacionais têm maior tendência para o conflito do que outras. No nível micro, as linhas de fratura mais violentas estão entre o Islã e seus vizinhos ortodoxos, hindus, africanos e cristãos ocidentais. No nível macro, a divisão predominante está entre “o Ocidente e o resto”, com os conflitos mais intensos ocorrendo entre as sociedades muçulmana e asiática, de um lado, e o Ocidente, do outro. Os choques mais perigosos do futuro provavelmente surgirão da interação da arrogância ocidental, da intolerância islâmica e da postura afirmativa sínica. O Ocidente foi a única dentre as civilizações que exerceu um impacto grande — e, por vezes, devastador — sobre cada uma das outras civilizações. Em conseqüência, a relação entre o poderio e a cultura do Ocidente e o poderio e a cultura das outras civilizações é a característica mais generalizada do mundo das civilizações. À medida que cresce o poder relativo das outras civilizações, a atração da cultura ocidental diminui e os povos não-ocidentais têm cada vez mais confiança nas suas respectivas culturas indígenas e se dedicam mais a elas. O problema fundamental nas relações entre o Ocidente e o resto é, conseqüentemente, a disparidade entre os esforços do Ocidente — especialmente dos Estados 997 Unidos — para promover uma cultura ocidental universal, e a sua decrescente capacidade para fazê-lo. O colapso do comunismo exacerbou essa disparidade ao reforçar no Ocidente a noção de que sua ideologia de liberalismo democrático tinha triunfado em escala global e que, portanto, tinha validade universal. O Ocidente — e em especial os Estados Unidos, que sempre foram uma nação missionária — está convencido de que os povos não-ocidentais deviam se dedicar aos valores ocidentais de democracia, mercados livres, governos limitados, direitos humanos, individualismo e império da lei, e de que deviam incorporar esses valores às suas instituições. Nas outras civilizações, há minorias que abraçam e promovem esses valores, porém as atitudes predominantes em relação a eles nas culturas não-ocidentais variam de um ceticismo generalizado a uma intensa oposição. O que é universalismo para o Ocidente é imperialismo para o resto. O Ocidente está tentando e continuará a tentar manter sua posição de preeminência e defender seus interesses, definindo-os como os interesses da “comunidade mundial”. Esta expressão se tornou o subs¬ tantivo coletivo eufemístico (substituindo “o Mundo Livre”) para dar legitimidade global às ações que refletem os interesses dos Estados Unidos e das outras potências ocidentais. O Ocidente está, por exemplo, tentando integrar as economias das sociedades não-ocidentais num sistema econômico global que é dominado por ele. Através do FMI e de outras instituições econômicas internacionais, o Ocidente promove seus interesses econômicos e impõe a outras nações as políticas econômicas que ele considera apropriadas. Entretanto, em qualquer pesquisa de opinião com povos não-ocidentais, o FMI sem dúvida receberia o apoio dos ministros de Finanças e de algumas pessoas mais, porém teria um resultado majoritariamente desfavorável de quase todos os demais, que concordariam com a descrição feita por Georgi Arbatov das autoridades do FMI como “neobolchevistas que adoram desapropriar o dinheiro das outras pessoas, impondo regras estranhas e não-democráticas de conduta econômica e política, e sufocando a liberdade econômica”. 1 Tendo conquistado a independência política, as sociedades não- ocidentais desejam se libertar do que consideram como dominação econômica, militar e cultural pelo Ocidente. As sociedades da Ásia Oriental estão bem adiantadas no caminho de se igualar economicamente ao Ocidente. Os países asiáticos e islâmicos estão buscando atalhos para contrabalançar militarmente o Ocidente. Eles também não hesitam em apontar os hiatos entre os princípios ocidentais e as práticas ocidentais. A hipocrisia, os dois pesos e duas medidas e os “porém não” são o preço das pretensões universalistas. Promove-se a democracia, porém não se ela for levar os fundamentalistas islâmicos ao poder; prega-se a não-pro¬ liferação em relação ao Irã e ao Iraque, porém não em relação a Israel; o livre comércio é o elixir do crescimento econômico, porém não para a agricultura; os direitos humanos constituem uma questão com a China, porém não com a Arábia Saudita; a agressão contra os kuwaitianos donos de petróleo encontra uma repulsa maciça, porém não a agressão contra os bósnios desprovidos de petróleo. As aspirações universais da civiliza¬ ção ocidental, o poder relativo decrescente do Ocidente e a postura afirmativa cada vez maior das outras civilizações levam a relações de modo geral difíceis entre o Ocidente e o resto. A natureza dessas relações e o grau em que são antagônicas, porém, varia consideravelmente e cai em três categorias. Com as civilizações desafiadoras — Islã e China —, o Ocidente provavelmente terá relações invariavelmente tensas e muitas vezes altamente antagônicas. Nas relações com a América Latina e com a África, civilizações mais fracas que têm de alguma forma dependido do Ocidente, os níveis de conflito serão muito mais baixos, especialmente com a América Latina. As relações da Rússia, do Japão e da índia com o Ocidente provavelmente ficarão entre as dos outros dois grupos, envolvendo elementos de cooperação e de conflito, na medida em que esses três Estados-núcleos às vezes se alinham com as civilizações desafiadoras e outras vezes com o Ocidente. Elas são as civilizações “pêndulos” entre o Ocidente, de um lado, e as civilizações islâmica e sínica, do outro. O Islã e a China encarnam grandes tradições culturais muito diferentes das do Ocidente — e, aos seus olhos, muito superiores a elas. O poderio e a disposição afirmativa de ambos em relação ao Ocidente estão aumentando, e os conflitos entre os seus valores e interesses e os do Ocidente estão-se multiplicando e se intensificando. Como o Islã_, carece de um Estado-núcleo, suas relações com o Ocidente variam grandemente de país para país. Entretanto, desde os anos 70 existe uma tendência antiocidental razoavelmente consistente, marcada pela ascen¬ são do fundamentalismo, mudanças do poder dentro dos países muçul¬ manos de governos mais pró-ocidentais para mais antiocidentais, o surgimento de uma quase-guerra entre alguns grupos islâmicos e o Ocidente e o enfraquecimento dos vínculos de segurança que existiam entre alguns Estados muçulmanos e os Estados Unidos no contexto da Guerra Fria. Questões específicas entre o Ocidente e o Islã abrangeram a proliferação de armamentos, direitos humanos, terrorismo, imigração e acesso ao petróleo. Com a China, elas abrangeram a proliferação de armamentos, direitos humanos, comércio internacional, direitos de pro¬ priedade e política econômica. Entretanto, por baixo dessas controvérsias está a questão fundamental do papel que essas civilizações desempe¬ nharão em relação com o Ocidente para moldar o futuro do mundo. Irão as instituições mundiais, a distribuição do poder e a política e a economia das nações em meados do século XXI refletir precipuamente os valores e interesses ocidentais, ou irão elas ser precipuamente moldadas pelos do Islã e da China? A teoria realista das relações internacionais prediz que os Estados- núcleos das civilizações não-ocidentais devem se congregar para contra¬ balançar o poder dominante do Ocidente. Em algumas áreas, isso já ocorreu. Contudo, uma coalizão antiocidental generalizada parece im¬ provável no futuro imediato. As civilizações islâmica e sínica contêm, na raiz de seu estilo de vida, muitas diferenças fundamentais em termos de religião, cultura, estrutura social, tradições, política e pressupostos bási¬ cos. É provável que, intrinsecamente, cada uma das duas tenha menos em comum uma com a outra do que com a civilização ocidental. No entanto, em política um inimigo comum cria um interesse comum. As sociedades islâmicas e sínicas que vêem o Ocidente como seu antagonista têm, assim, razões para cooperar entre si contra o Ocidente, da mesma maneira como os Aliados e Stalin o fizeram contra Hitler. Essa cooperação ocorre em tomo de um leque de questões, inclusive direitos humanos, economia e, mais notadamente, os esforços das sociedades em ambas as civilizações para desenvolver sua capacidade militar, especialmente armas de destruição em massa e os mísseis para lançá-las, a fim de se contrapor à superioridade militar convencional do Ocidente. No início dos anos 90, “havia-se estabelecido uma ligação confuciano-islâmica entre a China e a Coréia do Norte, de um lado, e, em diferentes graus, o Paquistão, o Irã, a Síria, a Líbia e a Argélia, do outro, a fim de confrontar o Ocidente nessas questões”. As questões cada vez mais importantes na agenda internacional são aquelas que dividem o Ocidente e essas outras sociedades. Três dessas questões envolvem os esforços do Ocidente; (1) para manter sua superioridade militar através de política de não-proliferação e contrapro- liferação com relação a armas nucleares, biológicas e químicas e os meios de lançá-las; (2) para promover os valores e as instituições políticas do Ocidente através de pressões sobre as outras sociedades para que respeitem os direitos humanos tal como concebidos no Ocidente e adotem a democracia segundo as linhas ocidentais e (3) para proteger a integridade cultural, social e étnica das sociedades ocidentais, através da restrição do número de não-ocidentais admitidos como imigrantes ou refugiados. Em todas essas três áreas, o Ocidente teve e é provável que continue a ter dificuldades para defender os seus interesses contra os das sociedades não-ocidentais. Proliferação de Armas A disseminação da capacidade militar é conseqüência do desenvolvimen¬ to econômico e social mundial. À medida que ficam economicamente mais ricos, o Japão, a China e outros países asiáticos vão ficando militarmente mais poderosos, como também acabarão ficando as socie¬ dades islâmicas. Também assim acontecerá com a Rússia, se tiver êxito na reforma de sua economia. Nas últimas décadas do século XX, muitas nações não-ocidentais obtiveram armas sofisticadas através de transfe¬ rências de armamentos pelas sociedades ocidentais, pela Rússia, por Israel e pela China, e também criaram instalações para a produção autóctone de armamentos destinadas a armas altamente sofisticadas. Esses processos vão continuar e provavelmente se acelerar durante os primeiros anos do século XXI. Não obstante, ainda bem adiante nesse século, o Ocidente — o que quer dizer precipuamente os Estados Unidos, com alguns elementos suplementares da Grã-Bretanha e da França — será capaz de intervir militarmente em praticamente qualquer parte do mundo. E somente os Estados Unidos terão o poder aéreo capaz de bombardear virtualmente qualquer lugar no mundo. Esses são os ele¬ mentos essenciais da posição militar dos Estados Unidos como potência global, e do Ocidente como a civilização predominante no mundo. No futuro imediato, a balança de poder militar convencional entre o Ocidente e o resto irá pender predominantemente para o Ocidente. O tempo, esforço e gastos requeridos para desenvolver um poderio militar de primeira classe geram enormes incentivos para que os Estados não-ocidentais busquem outros meios de se contrapor ao poder militar convencional ocidental. O atalho visualizado é a obtenção de armas nucleares, biológicas ou químicas e os meios para lançá-las. Os Estados- núcleos das civilizações e os países que são ou aspiram a ser potências dominantes no âmbito regional têm um estímulo especial para obter essas armas de destruição em massa. Em primeiro lugar, essas armas habilita- riam esses Estados a estabelecer seu predomínio sobre outros Estados em suas respectivas civilização e região, e, em segundo lugar, lhes dariam os meios de deter a intervenção em suas respectivas civilização e região pelos Estados Unidos ou outras potências externas. Se Saddam Hussein tivesse retardado sua invasão do Kuwait por dois ou três anos, até que o Iraque possuísse armas nucleares, é muito provável que ele lograsse a posse do Kuwait e, muito possivelmente, também dos campos de petróleo sauditas. Os Estados não-ocidentais extraíram da Guerra do Golfo lições evidentes. Para os militares norte-coreanos elas foram as seguintes: “Não deixe os norte-americanos concentrarem suas forças; não deixe que eles adensem o seu poder aéreo; não deixe que eles assumam a iniciativa; não deixe que eles empreendam uma guerra com reduzidas baixas norte-americanas.” Para uma alta autoridade militar indiana, a lição foi ainda mais explícita: “Não lute contra os Estados Unidos a menos que disponha de armas nucleares.” 2 Esta lição foi adotada pelos líderes políticos e militares em todo o mundo não-ocidental, bem como um corolário plausível: “Se você possuir armas nucleares, os Estados Unidos não lutarão contra você.” Lawrence Freedman assinalou que “as armas nucleares, em vez de reforçar a política de poder como de costume, na realidade confirmam a tendência em direção à fragmentação do sistema internacional, na medida em que as antigas grandes potências desempenham um papel reduzido”. No mundo pós-Guerra Fria, para o Ocidente o papel das armas nucleares é, assim, o oposto do que foi durante a Guerra Fria. Naquela época, como acentuou Les Aspin, secretário de Defesa dos Estados Unidos, as armas nucleares compensavam a inferioridade convencional frente à União Sovié¬ tica. Elas eram “o equalizador”. Entretanto, no mundo pós-Guerra Fria, os Estados Unidos têm “um poder militar convencional inigualável e são os nossos adversários em potencial que podem chegar às armas nuclea¬ res. Nós é que somos os que podem acabar sendo os equalizados”.^ Nessas condições, não é de surpreender que a Rússia tenha dado ênfase ao papel das armas nucleares no seu planejamento de defesa e, em 1995, tenha conseguido comprar da Ucrânia novos bombardeiros e mísseis intercontinentais. Um perito norte-americano em armamentos comentou que “ouvimos agora o que costumávamos dizer a respeito dos russos na década de 50. Agora os russos estão dizendo: ‘Precisamos de armas nucleares para compensar a superioridade convencional deles.’” Numa inversão relacionada com isso, há uma outra situação. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos, para efeitos de dissuasão, se recusaram a renunciar à possibilidade de serem os primeiros a usar armas nucleares. Em conformidade com a nova função dissuasória das armas nucleares no mundo pós-Guerra Fria, a Rússia, em 1993, efetivamente renunciou ao compromisso anterior soviético de não as usar em primeiro lugar. Simultaneamente, a China, ao desenvolver no pós-Guerra Fria sua estratégia nuclear de dissuasão limitada, também começou a questionar e a atenuar seu compromisso de 1964 de não ser a primeira a usar armas nucleares. 4 À medida que obtenham armas nucleares e outras armas de destruição em massa, é provável que outros Estados-núcleos e potências regionais sigam esses exemplos a fim de maximizar o efeito dissuasório de suas armas sobre ações militares convencionais ocidentais contra eles. As armas nucleares também podem ameaçar o Ocidente de modo mais direto. A China e a Rússia possuem mísseis balísticos que podem atingir a Europa e a América do Norte com ogivas nucleares. A Coréia do Norte, o Paquistão e a índia estão expandindo o raio de alcance de seus mísseis e, em algum ponto, é provável que também tenham a capacidade de poder atingir alvos no Ocidente. Além disso, as armas nucleares podem ser lançadas por outros meios. Os analistas militares traçam um espectro de violência, desde guerra de baixa intensidade, como terrorismo e ação guerrilheira esporádica, passando por guerras limitadas, até guerras de maiores proporções, envolvendo forças conven¬ cionais, e a guerra nuclear. Historicamente, o terrorismo é a arma dos fracos, isto é, daqueles que não possuem poder militar convencional. Desde a II Guerra Mundial, as armas nucleares também foram as armas pelas quais os fracos compensaram sua inferioridade convencional. No mundo pós-Guerra Fria, a arma definitiva dos fracos é a combinação dos dois extremos do espectro de violência, compondo o terrorismo nuclear. No passado, os terroristas só podiam perpetrar violência limitada, matan¬ do algumas pessoas aqui ou destruindo uma instalação ali. Para produzir violência maciça eram necessárias forças militares maciças. Entretanto, em algum momento, uns poucos terroristas serão capazes de produzir violência maciça e destruição maciça. Tomados em separado, o ter¬ rorismo e as armas nucleares são as armas dos fracos não-ocidentais. Se e quando elas forem combinadas, os não-ocidentais fracos ficarão fortes. No mundo pós-Guerra Fria, os esforços para desenvolver armas de destruição em massa e os meios de lançá-las se concentraram em Estados islâmicos e confucianos. O Paquistão e provavelmente a Coréia do Norte possuem uma pequena quantidade de armas nucleares ou, pelo menos, têm a capacidade de montá-las em pouco tempo, e também são capazes de desenvolver ou adquirir mísseis de maior alcance para seu lançamen¬ to. O Iraque possuía significativa capacidade de guerra química e estava desenvolvendo grandes esforços para obter armas nucleares e biológicas. O Irã tem um amplo programa de desenvolvimento de armas nucleares e vem expandindo sua capacidade de lançá-las. Em 1988, o presidente Rafsanjani declarou que “nós, iranianos, precisamos nos equipar por completo no uso ofensivo e defensivo das armas químicas, bacteriológi¬ cas e radiológicas”, e, três anos depois, seu vice-presidente declarou perante uma conferência islâmica que, “já que Israel continua a possuir armas nucleares, nós, os muçulmanos, precisamos cooperar para produ¬ zir uma bomba atômica, independentemente das tentativas das Nações Unidas de impedir a proliferação”. Em 1992 e 1993, as maiores autorida¬ des de inteligência dos Estados Unidos disseram que o Irã estava buscando a obtenção de armas nucleares e, em 1995, Warren Christopher, secretário de Estado, declarou de forma taxativa que “o Irã está atual¬ mente engajado num esforço acelerado para desenvolver armas nuclea¬ res”. Ao que consta, dentre outros Estados muçulmanos interessados em desenvolver armas nucleares estão a Líbia, a Argélia e a Arábia Saudita. Segundo a vívida expressão de Ali Mazrui, “o crescente paira sobre a nuvem em forma de cogumelo” e pode ameaçar outros além do Ocidente. O Islã poderia acabar “jogando roleta russa com duas outras civilizações com o Hinduísmo na Ásia Meridional e com o Sionismo e o Judaísmo politizado no Oriente Médio”. 5 É na proliferação de armas que a ligação confuciano-islâmica tem sido mais ampla e mais concreta, com a China desempenhando o papel fundamental na transferência de armas, tanto convencionais quanto não-convencionais, para muitos Estados muçulmanos. Essas transferên¬ cias abrangem: a construção de um reator nuclear fortemente defendido no deserto argelino, ostensivamente destinado à pesquisa, mas que a maioria dos peritos ocidentais acredita ser capaz de produzir plutônio; a venda para a Líbia de substâncias para armas químicas; o fornecimento à Arábia Saudita de mísseis de médio alcance CSS-2; o fornecimento de tecnologia ou substâncias nucleares ao Iraque, Líbia, Síria e Coréia do Norte e a transferência de grandes quantidades de armas convencionais para o Iraque. Suplementando as transferências pela China, nos primeiros anos da década de 90, a Coréia do Norte forneceu à Síria mísseis Scud-C, entregues através do Irã, e depois os chassis móveis para o seu lançamento. 6 Entretanto, o ponto central da conexão confuciano-islâmica sobre armas tem sido o relacionamento entre a China — e, em menor escala, da Coréia do Norte —, de um lado, e o Paquistão e o Irã, do outro. Entre 1980 e 1991, os dois principais recipientes de armas chinesas foram o Irã e o Paquistão, com o Iraque vindo atrás. A partir da década de 70, a China e o Paquistão desenvolveram um relacionamento militar extrema¬ mente íntimo. Em 1989, os dois países assinaram um memorando de entendimento, com validade de 10 anos, para a “cooperação militar em todos os campos de compra, pesquisa e desenvolvimento conjuntos, produção conjunta, transferência de tecnologia, bem como exportação para terceiros países através de acordo mútuo”. Em 1991 foi assinado um acordo suplementar prevendo créditos chineses para as compras de armas pelo Paquistão. Em conseqüência, a China se tornou “o maior e mais confiável fornecedor de equipamento militar para o Paquistão, transferindo material de utilização militar de praticamente todos os tipos e destinados a todos os ramos das forças armadas paquistanesas”. A China também ajudou o Paquistão a criar fábricas de aviões a jato, tanques, canhões e mísseis. De importância muito maior foi o fato de a China ter proporcionado ao Paquistão auxílio essencial para o desenvolvimento de sua capacidade em armas nucleares, aparentemente fornecendo ao Paquistão urânio para enriquecimento, prestando assessoramento para o desenho de bombas e possivelmente permitindo ao Paquistão detonar um artefato nuclear num campo de provas chinês. Posteriormente, a China forneceu ao Paquistão mísseis balísticos M-ll, com um alcance de 300km, capazes de lançar ogivas nucleares, violando desse modo um compromisso que assumira com os Estados Unidos. Em troca, a China obteve do Paquistão tecnologia de reabastecimento em vôo e de mísseis do tipo “Stinger”. 7 Ao se chegar aos anos 90, haviam-se intensificado as conexões em torno de armamentos também entre a China e o Irã. Durante a Guerra Irã-Iraque, nos anos 80, a China forneceu ao Irã 22 por cento de seus armamentos e, em 1989, se tornou seu maior fornecedor individual. A China também colaborou ativamente com os esforços abertamente declarados do Irã de obter armas nucleares. Depois de assinar “um acordo inicial de cooperação sino-iraniano”, os dois países acordaram, em janeiro de 1990, um entendimento, com validade de 10 anos, sobre cooperação científica e transferências de tecnologia militar. Em setembro de 1992, o presidente Rafsanjani, acompanhado por peritos nucleares iranianos, visitou o Paquistão. Daí prosseguiu viagem até a China, onde assinou outro acordo para a cooperação na área nuclear e, em fevereiro de 1993, a China concordou em construir no Irã dois reatores nucleares 234 Quadro 8.1 Transferências de Armas pela China /1980-1991 (dados selecionados) Irã Paquistão Iraque Tanques pesados 540 1.100 1.300 Viaturas blindadas de transporte de tropas 300 — 650 Mísseis teleguiados antitanque 7.500 100 — Canhões / Lança-foguetes 1 . 200 * 50 720 Aviões de caça 140 212 — Mísseis antinavio 332 32 — Mísseis terra-ar 788 * 222 * _ * Indicam entregas não confirmadas integralmente. Fonte: Karl W. Eikenberry, Explaining and Influencing Chinese Arms Transfer[Para Explicar as Transferências de Armas pela China e Influir sobre Elas] (Washington: National Defense University, Instftute for National Strategic Studies, McNair Paper No. 36, fevereiro, 1995), p. 12. de 300 MW. Em conformidade com esses acordos, a China transferiu tecnologia e informações nucleares para o Irã, treinou cientistas e engenheiros iranianos e forneceu ao Irã um dispositivo para enriqueci¬ mento do tipo calutron. Em 1995, depois de constante pressão dos Estados Unidos, a China concordou em “cancelar”, segundo Washington, ou “suspender”, segundo Pequim, a venda dos dois reatores de 300 MW. A China também foi o maior fornecedor de mísseis e de tecnologia de mísseis para o Irã, inclusive, no final da década de 80, de mísseis Silkworm, entregues através da Coréia do Norte e de “dezenas, talvez centenas, de sistemas de direção de mísseis e máquinas-ferramentas computadorizadas” em 1994-95. A China também permitiu a produção sob licença no Irã de mísseis chineses superfície-superfície. A Coréia do Norte suplementou essa assistência embarcando mísseis Scud para o Irã, ajudando o Irã a desenvolver suas próprias fábricas e depois, em 1993, concordando em fornecer ao Irã seu míssil Nodong I, com um alcance de 970km. No terceiro lado do triângulo, o Irã e o Paquistão também desenvolveram uma ampla cooperação na área nuclear, com o Paquistão treinando cientistas iranianos e Paquistão, Irã e China acordando, em novembro de 1992, trabalhar em conjunto em projetos nucleares. 8 Em decorrência desses desdobramentos e das ameaças em potencial que eles encerram para os interesses ocidentais, a proliferação das armas de destruição em massa passou para o topo da agenda de segurança do Ocidente. Em 1990, por exemplo, 59 por cento da opinião pública norte-americana considerava que impedir a disseminação das armas nucleares era uma importante meta de política externa. Em 1994, 82 por cento da opinião pública e 90 por cento das autoridades no campo da política externa assim pensavam. O presidente Clinton destacou a prioridade da não-proliferação em setembro de 1993 e, no outono de 1994, declarou “emergência nacional” tratar da “inusitada e extraordinária ameaça para a segurança, a política externa e a economia nacionais dos Estados Unidos” representada pela “proliferação de armas nucleares, bioló¬ gicas e químicas e dos meios de lançá-las”. Em 1991, a CIA criou um Centro de Não-proliferação, com um quadro de 100 pessoas e, em dezembro de 1993, o secretário de Defesa Aspin anunciou uma nova Iniciativa de Contraproliferação do Departamento de Defesa e a criação de um novo cargo de secretário-assistente para Segurança Nuclear e Contraproliferação.^ Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos e a União Soviética se engajaram numa clássica corrida armamentista, desenvolvendo armas nucleares e meios de lançamento cada vez mais sofisticados tecnologi¬ camente. Era um caso de aumento contra aumento. No mundo pós-Guer- ra Fria, a competição fundamental em termos de armamentos é de outro tipo. Os antagonistas do Ocidente estão tentando obter armas de destruição em massa e o Ocidente está tentando impedi-los. Não é um caso de aumento versus aumento, mas sim de aumento versus contenção. A dimensão e a capacidade do arsenal nuclear do Ocidente não fazem, posta a retórica de lado, parte da competição. O desfecho de uma corrida armamentista de aumento versus aumento depende de recursos, empe¬ nho e competência tecnológica de ambos os lados. Ele não está predeterminado. O desfecho de uma corrida entre aumento e contenção é mais previsível. Os esforços do Ocidente pela contenção podem retardar o aumento de armamentos de outras sociedades, mas não irão detê-lo. Tudo contribui para subverter os esforços de contenção feitos pelo Ocidente: o desenvolvimento econômico e social das sociedades não-ocidentais, os incentivos comerciais para todas as sociedades — ocidentais e não-ocidentais — para ganhar dinheiro através da venda de armas, de tecnologia e de conhecimento especializado, e os motivos políticos dos Estados-núcleos e das potências regionais para proteger suas hegemonias locais. O Ocidente promove a não-proliferação como se ela refletisse os interesses de todas as nações pela ordem e estabilidade internacionais. Entretanto, outras nações vêem a não-proliferação como servindo aos interesses da hegemonia ocidental. Essa realidade se reflete nas diferen- ças de preocupação entre o Ocidente — e os Estados Unidos em particular —, de um lado, e as potências regionais cuja segurança seria afetada pela proliferação, do outro. Isso ficou patente com relação à Coréia. Em 1993 e 1994, os Estados Unidos chegaram a um estado “crítico” ante a perspectiva de armas nucleares norte-coreanas. Em novembro de 1993, o presidente Clinton afirmou taxativamente que “não se pode permitir que a Coréia do Norte desenvolva uma bomba nuclear. Temos que ser muito firmes quanto a isso”. Senadores, deputados e ex-altos funcionários do governo Bush debateram a possível necessidade de ataque preventivo contra instalações nucleares norte-coreanas. A preo¬ cupação dos Estados Unidos quanto ao programa norte-coreano se fundamentava, em boa medida, na sua preocupação com a proliferação mundial: não só a obtenção dessa capacidade iria impor limitações e complicações a possíveis ações norte-americanas na Ásia Oriental, como também, se a Coréia do Norte vendesse sua tecnologia e/ou armas nucleares, isso poderia ter efeitos semelhantes para os Estados Unidos na Ásia Meridional e no Oriente Médio. A Coréia do Sul, por outro lado, encarava a bomba no contexto de seus interesses regionais. Muitos sul-coreanos viam uma bomba norte- coreana como uma bomba coreana, que nunca seria usada contra outros coreanos, mas que poderia ser usada para defender a independência e os interesses coreanos contra o Japão e outras ameaças em potencial. Autoridades civis e militares sul-coreanas viam com nítido agrado que uma Coréia unificada tivesse essa capacidade. Os interesses sul-coreanos estavam bem servidos: a Coréia do Norte arcaria com os gastos e o opróbrio internacional do desenvolvimento da bomba, a Coréia do Sul acabaria por herdá-la e a combinação de armas nucleares do Norte e a capacidade industrial do Sul habilitariam uma Coréia unificada a assumir seu papel apropriado de um dos atores principais no cenário da Ásia Oriental. Em conseqüência, havia nítidas diferenças entre a gravidade com que Washington via uma grande crise na península coreana em 1994 e a inexistência de qualquer sensação de crise em Seul, gerando um “hiato de pânico” entre as duas capitais. No auge da “crise”, em junho de 1994, um jornalista assinalou que uma das “peculiaridades do impasse nuclear norte-coreano, desde o seu começo vários anos atrás, está em que a sensação de crise aumenta em função da distância a que se está da Coréia”. Um hiato análogo entre os interesses de segurança dos Estados Unidos e os de potências regionais ocorreu na Ásia Meridional, com os Estados Unidos mais preocupados com a proliferação nuclear nessa região do que os que nela vivem. Era mais fácil para a índia e para o Paquistão aceitarem a ameaça nuclear um do outro do que as propostas norte-ame¬ ricanas de conter, reduzir ou eliminar a ameaça mútua de ambos. 10 Os esforços dos Estados Unidos e de outros países ocidentais para impedir a proliferação de armas “equalizadoras” de destruição em massa tiveram e é provável que continuem a ter êxito limitado. Um mês depois que o presidente Clinton disse que não se podia permitir que a Coréia do Norte tivesse armas nucleares, os serviços de inteligência norte-americanos informaram-no de que provavelmente ela já possuía uma ou duas. 11 Em decorrência, a política dos Estados Unidos foi alterada, passando a oferecer aos norte-coreanos atrativos a fim de induzi-los a não expandir seu arsenal nuclear. Os Estados Unidos também não conseguiram fazer recuar nem deter o desenvolvimento de armas nucleares pela índia e pelo Paquistão, e foram incapazes de deter os avanços do Irã no campo nuclear. Na conferência de abril de 1995 sobre o Tratado de Não-proliferação Nuclear, a questão-chave era se ele devia ser renovado por um período indefinido ou por 25 anos. Os Estados Unidos lideraram o esforço pela prorrogação permanente. Entretanto, muitos países recusaram tal pror¬ rogação, a menos que fosse acompanhada por uma redução muito mais drástica das armas nucleares pelas cinco potências nucleares declaradas. Além disso, o Egito se opôs à prorrogação a menos que Israel assinasse o tratado e aceitasse inspeções de salvaguardas. No final, os Estados Unidos conquistaram um consenso avassalador para a prorrogação por tempo indeterminado através de uma estratégia altamente bem-sucedida de pressões, subornos e ameaças. Nem Egito nem México, por exemplo, que eram ambos contra a prorrogação indefinida, puderam manter suas posições diante da sua dependência econômica dos Estados Unidos. Embora o tratado tivesse sido prorrogado por consenso, os repre¬ sentantes de sete países muçulmanos (Síria, Jordânia, Irã, Iraque, Líbia, Egito e Malásia) e uma nação africana (Nigéria) expressaram opiniões discordantes no debate final. 12 Em 1993, as metas primordiais do Ocidente, tal como definidas pela política norte-americana, mudaram da não-proliferação para a contrapro- liferação. Essa mudança foi um reconhecimento realista do grau em que uma certa proliferação nuclear não podia ser evitada. No devido tempo, a política dos Estados Unidos irá mudar: da postura de se contrapor à proliferação, passará a se acomodar com a proliferação. Além disso, se o governo puder escapar do tipo de raciocínio moldado na Guerra Fria, passará a entender como a promoção da proliferação pode de fato atender aos interesses dos Estados Unidos e do Ocidente. Entretanto, em 1995, os Estados Unidos e o Ocidente continuavam engajados numa política de contenção que, no final, tenderá a fracassar. A proliferação das armas nucleares e outras armas de destruição em massa é um fenômeno essencial da lenta porém inelutável disseminação do poder num mundo multicivilizacional. DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA Durante as décadas de 70 e 80, mais de 30 países passaram de sistemas políticos autoritários para democráticos. Essa onda de transições se deveu a várias causas. O desenvolvimento econômico foi, sem dúvida, o principal fator subjacente que gerou essas mudanças políticas. Além disso, porém, as políticas e ações dos Estados Unidos e das principais potências e instituições européias ocidentais ajudaram a levar a demo¬ cracia à Espanha e a Portugal, a muitos países latino-americanos, às Filipinas, à Coréia do Sul e à Europa Oriental. A democratização foi mais bem-sucedida em países onde as influências cristãs e ocidentais eram fortes. Novos regimes democráticos pareciam ter maior probabilidade de se estabilizar nos países da Europa Central e Meridional que eram predominantemente católicos ou protestantes e, com menos certeza, em países latino-americanos. Na Ásia Oriental, as Filipinas, católicas e com forte influência norte-americana, retornaram à democracia na década de 80, enquanto líderes cristãos promoveram movimentos na direção da democracia na Coréia do Sul e em Taiwan. Como foi apontado anterior¬ mente, na ex-União Soviética as repúblicas bálticas parecem estar tendo êxito em estabilizar a democracia; o grau e a estabilidade da democracia nas repúblicas ortodoxas variam consideravelmente e são incertos; as perspectivas democráticas nas repúblicas muçulmanas são sombrias. Ao se chegar aos anos 90, com exceção de Cuba, haviam ocorrido transições democráticas na maioria dos países, afora nos africanos, nos quais os povos esposavam o Cristianismo ocidental ou havia grande influência cristã. Essas transições e o colapso da União Soviética geraram no Oci¬ dente, especialmente nos Estados Unidos, a crença de que uma revolução democrática mundial estava em andamento e de que, dentro de pouco tempo, as concepções ocidentais de direitos humanos e as formas ocidentais de democracia política iriam prevalecer em todo o mundo. Por conseguinte, a promoção dessa disseminação da democracia se tornou um objetivo de alta prioridade para os ocidentais. Ela foi endossada pelo governo Bush e o secretário de Estado James Baker declarou, em abril de 1990, que “para lá da contenção está a democracia” e que, para o mundo pós-Guerra Fria, “o presidente Bush definiu nossa nova missão como sendo a promoção e a consolidação da democracia”. Na sua campanha eleitoral de 1992, Bill Clinton disse repetidas vezes que a promoção da democracia iria ter alta prioridade no governo Clinton, e a democratização foi o único tópico de política externa ao qual ele devotou inteiramente um dos principais discursos da campanha. Uma vez no cargo, ele recomendou um aumento de dois terços dos recursos financeiros do Fundo Nacional para a Democracia, seu assistente para Segurança Nacional definiu o tema central da política externa de Clinton como sendo “a ampliação da democracia” e seu secretário de Defesa identificou a promoção da democracia como um dos quatro objetivos principais, e tentou criar um cargo de alto nível no seu Departamento para promovê-lo. Em menor grau e de modo menos óbvio, a promoção dos direitos humanos e da democracia assumiu um papel de destaque na política externa dos Estados europeus e nos critérios utilizados pelas instituições econômicas internacionais controladas pelo Ocidente para a concessão de empréstimos e doações aos países em desenvolvimento. Ao se chegar a 1995, os esforços europeus e norte-americanos para atingir esses objetivos tinham tido um êxito limitado. Quase todas as civilizações não-ocidentais resistiram a essa pressão do Ocidente. Aí se incluíram países hindus, ortodoxos, africanos e, de algum modo, até mesmo latino-americanos. Contudo, a maior resistência aos esforços ocidentais pela democratização vieram do Islã e da Ásia. Essa resistência tinha suas raízes nos movimentos mais amplos de afirmação cultural corporificados no Ressurgimento Islâmico e na Afirmação Asiática. Os fracassos dos Estados Unidos com respeito à Ásia provieram precipuamente da crescente riqueza econômica e autoconfiança dos governos asiáticos. Autores asiáticos repetidamente recordaram ao Oci¬ dente que a antiga era da dependência e da subordinação tinha acabado e que o Ocidente, que produzia metade do produto econômico do mundo na década de 40, dominava as Nações Unidas e escrevera a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tinha desaparecido nas brumas da História. Uma autoridade singapuriana argumentou que “os esforços para promover os direitos humanos na Ásia precisam também levar em conta a distribuição de poder diferente no mundo pós-Guerra Fria. (...) A capacidade de influência do Ocidente em relação à Ásia Oriental e ao Sudeste Asiático ficou grandemente reduzida”.^ Ele tem razão. Conquanto o acordo sobre assuntos nucleares entre os Estados Unidos e a Coréia do Norte possa ser apropriadamente denominado de “rendição negociada”, a capitulação dos Estados Unidos sobre as questões de direitos humanos com a China e outras potências asiáticas foi uma rendição incondicional. Depois de ameaçar a China com a denegação do tratamento de nação mais favorecida caso ela não se mostrasse mais efetiva quanto aos direitos humanos, o governo Clinton primeiro viu seu secretário de Estado humilhado em Pequim, tendo-lhe sido negado até mesmo um gesto para “salvar as aparências”, e depois reagiu a esse comportamento, renunciando à sua diretriz anterior, separando a condição de nação mais favorecida das preocupações com direitos humanos. A China, por sua vez, reagiu a essa demonstração de fraqueza continuando e intensificando o comportamento a que o governo Clinton objetara. O governo empreendeu retiradas análogas nas suas tratativas com Singapura, a propósito da sentença de surra de vara aplicada a um cidadão norte-americano, e com a Indonésia, em relação à repressão violenta em Timor Oriental. A capacidade dos governos asiáticos de resistir a pressões ocidentais vinculadas a direitos humanos foi reforçada por vários fatores. Empresas norte-americanas e européias, desesperadamente ansiosas por expan¬ direm seus negócios e seus investimentos nesses países em rápido crescimento, submeteram seus próprios governos a intensas pressões para não prejudicarem as relações econômicas com aqueles países. Além disso, os países asiáticos encararam as pressões ocidentais como uma violação da sua soberania e acorreram em apoio uns dos outros quando essas questões foram levantadas. Homens de negócios de Taiwan, Japão e Hong Kong, que haviam investido na China, tinham um grande interesse em que a China retivesse os privilégios de nação mais favorecida nos Estados Unidos. O governo japonês distanciou-se, de forma genera¬ lizada, das diretrizes norte-americanas sobre direitos humanos. O primei¬ ro-ministro Kiichi Miyazawa disse, pouco depois do episódio da Praça Tiananmen, que não permitiremos que “noções abstratas de direitos humanos” afetem nossas relações com a China. Os países da ASEAN não se mostraram dispostos a exercer pressão sobre Myanmar e, na realidade, em 1994 acolheram a junta militar à sua reunião, enquanto que a União Européia, como disse seu porta-voz, teve que reconhecer que sua política “não tinha tido muito êxito” e que teria de acompanhar a postura da ASEAN em relação a Myanmar. Além disso, o crescente poder econômico de Estados como a Malásia e a Indonésia permitiu-lhes aplicar “con- dicionalidades ao revés” a países e empresas que os criticassem ou adotassem outras formas de comportamento que elas julgassem objetᬠveis. 14 De modo geral, o crescente poder econômico dos países asiáticos os toma cada vez mais imunes às pressões ocidentais no que se refere aos direitos humanos e à democracia. Em 1994, Richard Nixon comentou que, “atualmente, o poder econômico da China torna imprudentes sermões dos Estados Unidos sobre direitos humanos. Dentro de uma década, ele os tornará irrelevantes. Dentro de duas décadas, os tomará risíveis”. 15 Entretanto, quando se chegar a essa altura, o desenvolvimento econômico chinês bem pode tomar os sermões ocidentais desnecessários. O crescimento econômico está fortalecendo os governos asiáticos em relação aos governos ocidentais. Num prazo mais longo, ele também fortalecerá as sociedades asiáticas em relação aos governos asiáticos. Se a democracia chegar a outros países asiáticos, isso se dará porque as cada vez mais fortes burguesias e classes médias asiáticas assim o terão desejado. Contrastando com a concordância quanto à prorrogação indefinida do tratado de não-proliferação, de modo geral em nada resultaram os esforços ocidentais para promover os direitos humanos e a democracia nos órgãos das Nações Unidas. Com poucas exceções, como as que condenaram o Iraque, as resoluções sobre direitos humanos foram quase sempre derrotadas nas votações nas Nações Unidas. Afora alguns países latino-americanos, os demais governos relutaram em aderir a esforços pela promoção do que muitos viam como “imperialismo dos direitos humanos”. Em 1990, por exemplo, a Suécia apresentou, em nome de 20 nações ocidentais, uma resolução condenando o regime militar de Myanmar, porém ela foi liquidada pela oposição dos asiáticos e de outros países. As resoluções condenando o Irã por abusos contra os direitos humanos também foram derrotadas nas votações. Durante cinco anos consecutivos na década de 90, a China conseguiu mobilizar o apoio asiático para derrotar resoluções patrocinadas pelo Ocidente que expres¬ savam preocupação quanto às suas violações dos direitos humanos. Em 1994, o Paquistão apresentou uma resolução na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas condenando as violações de direitos humanos perpetradas pela índia em Caxemira. Os países com simpatias pela índia se uniram contra ela, mas também o fizeram dois dos melhores amigos do Paquistão, a China e o Irã, que tinham sido alvo de medidas similares e que persuadiram o Paquistão a retirar o projeto. A revista The Economist comentou que, ao deixar de condenar a brutalidade indiana em Caxemira, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas “as havia aprovado por omissão. Outros países também estão cometendo atrocidades impunemente: Turquia, Indonésia, Colômbia e Argélia esca¬ param todos das críticas. Desse modo, a Comissão está endossando os governos que praticam carnificina e tortura, o que é exatamente o oposto do que seus criadores pretendiam”. 16 As divergências quanto a direitos humanos entre o Ocidente e outras civilizações, bem como a capacidade limitada do Ocidente de atingir seus objetivos, ficaram claramente reveladas na Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, realizada em Viena em junho de 1993. De um lado estavam os países europeus e norte-ame¬ ricanos e do outro estava um bloco de cerca de 50 Estados não-ocidentais, dos quais os 15 mais atuantes incluíam os governos de um país latino-americano (Cuba), um país budista (Myanmar), quatro países confucianos com ideologias políticas, sistemas econômicos e níveis de desenvolvimento muito diversos (Singapura, Vietnã, Coréia do Norte e China) e nove países muçulmanos (Malásia, Indonésia, Paquistão, Irã, Iraque, Síria, Iêmen, Sudão e Líbia). A liderança desse agrupamento asiático-islâmico veio da China, da Síria e do Irã. A meia distância desses dois agrupamentos estavam os países latino-americanos que, com exce¬ ção de Cuba, freqüentemente apoiavam o Ocidente, e os países africanos e ortodoxos que às vezes davam apoio, mas freqüentemente se opunham às posições ocidentais. As questões em tomo das quais os países se dividiam segundo as linhas civilizacionais compreendiam as seguintes: universalidade versus relativismo cultural com respeito a direitos humanos, a relativa prioridade dos direitos econômicos e sociais (inclusive o direito ao desenvolvimen¬ to) versus os direitos políticos e civis, a condicionalidade política com respeito à assistência econômica, a criação de um Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, o grau em que as organizações não-go¬ vernamentais que estavam reunidas simultaneamente em Viena deviam poder participar da Conferência governamental, os direitos específicos que deveriam ser endossados pela Conferência, bem como questões mais específicas tais como se o dalai-lama devia ter permissão para se dirigir à Conferência e se os abusos contra os direitos humanos na Bósnia deviam ser condenados de forma explícita. Havia grandes divergências entre os países ocidentais e o bloco asiático-islâmico sobre essas questões. Dois meses antes da Conferência de Viena, os países asiáticos se reuniram em Bangcoc e aprovaram uma declaração que enfatizava que os direitos humanos deviam ser conside¬ rados “no contexto (...) das particularidades nacionais e regionais e dos diversos antecedentes históricos, religiosos e culturais”, que o monitora¬ mento dos direitos humanos violava a soberania dos Estados e que o condicionamento da assistência econômica ao desempenho quanto aos direitos humanos era contrário ao direito ao desenvolvimento. As diver¬ gências sobre essas e outras questões foram tão grandes que quase todo o texto do documento produzido no final da reunião preparatória da Conferência de Viena, realizada em Genebra no início de maio, estava entre colchetes, indicando discordância por parte de um ou mais países. As nações ocidentais estavam mal preparadas para Viena, estavam em inferioridade numérica na Conferência e, durante os seus trabalhos, fizeram mais concessões do que seus oponentes. Como resultado, afora um firme endosso dos direitos das mulheres, a declaração aprovada pela Conferência teve um conteúdo mínimo. Como assinalou um defensor dos direitos humanos, era um documento “falho e contraditório” e representava uma vitória da coalizão asiático-islâmica e uma derrota do Ocidente. 17 A declaração de Viena não continha nenhum endosso explícito dos direitos de liberdade de expressão, de imprensa, de reunião ou de religião, e ficou assim, em muitos aspectos, mais fraca do que a Declaração Universal dos Direitos Humanos que as Nações Unidas tinham aprovado em 1948. Essa mudança refletiu o declínio do poder do Ocidente. Um norte-americano defensor dos direitos humanos observou que “o regime internacional de direitos humanos de 1945 não existe mais. A hegemonia norte-americana se erodiu. A Europa, mesmo com os acon¬ tecimentos de 1992, é pouco mais do que uma península. O mundo agora é tanto árabe, asiático e africano quanto é ocidental. Atualmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e as convenções internacionais são menos relevantes para grande parte do planeta do que na era imediatamente posterior à II Guerra Mundial”. Um asiático crítico do Ocidente tem opiniões análogas: “Pela primeira vez desde que a Declaração Universal foi aprovada em 1948, estão na primeira linha os países que não têm uma profunda formação baseada nas tradições judeu-cristãs e do direito natural. Essa situação sem precedentes definirá a nova política internacional de direitos humanos e também multiplicará as ocasiões para conflitos.” 18 Em Viena, um outro observador comentou que “o grande vencedor foi, nitidamente, a China, pelo menos se o êxito for medido em termos de dizer aos outros que saiam do seu caminho. Pequim continuou ganhando durante toda a reunião simplesmente fazendo valer o seu peso específico a torto e a direito”. 19 O Ocidente, derrotado nas votações e nas manobras em Viena, conseguiu mesmo assim marcar uma vitória significativa contra a China. Conseguir que as Olimpíadas de verão do ano 2000 se realizassem em Pequim era uma meta importante para o governo chinês, que investiu enormes recursos para tentar obter esse resultado. Na China foi dada imensa publicidade à candidatura à sede das Olimpíadas e as expectativas da opinião pública eram altas. O governo fez gestões junto a outros governos para que pressionassem seus | respectivos Comitês Olímpicos, e Taiwan e Hong Kong se juntaram a | essa campanha. No campo adversário, o Congresso dos Estados Unidos, o Parlamento Europeu e organizações de direitos humanos se opuseram vigorosamente, todos, à escolha de Pequim. Embora a votação no Comitê Olímpico Internacional seja por voto secreto, nesse caso ela seguiu claramente as linhas civilizacionais. No primeiro escrutínio, Pequim, segundo consta, com amplo apoio africano, ficou em primeiro lugar e Sydney em segundo. Nos escrutínios subseqüentes, quando Istambul foi eliminada, a conexão confuciano-islâmica levou maciçamente os seus votos para Pequim; quando Berlim e Manchester foram eliminadas, seus votos foram maciçamente para Sydney, dando-lhe a vitória no quarto escrutínio e impondo uma derrota humilhante à China, que por ela culpou diretamente os Estados Unidos * Lee Kuan Yew comentou que “os Estados Unidos e a Grã-Bretanha conseguiram pôr a China no seu lugar. (...) A razão aparente foi ‘direitos humanos 1 . A razão verdadeira foi política, para mostrar o poderio político ocidental”. 20 Inegavelmente, há muito mais gente no mundo interessada em esportes do que em direitos humanos, porém, dadas as derrotas que o Ocidente sofreu em Viena e em outros lugares, essa demonstração isolada da “influência” ocidental foi também um lembrete da fraqueza ocidental. * A votação nos quatro escrutínios foi a seguinte: Primeiro Segundo Terceiro Quarto Pequim 32 37 40 43 Sydney 30 30 37 45 Manchester 11 13 11 Berlim 9 9 Istambul 7 abstenção 1 1 TOTAL 89 89 89 89 Não só a influência ocidental está menor, como também o paradoxo da democracia enfraquece a vontade ocidental de promover a democra¬ cia no mundo pós-Guerra Fria. Durante a Guerra Fria, o Ocidente e os Estados Unidos em especial se defrontavam com o problema do “tirano amistoso”: os dilemas de cooperar com ditadores e juntas militares que eram anticomunistas e por isso parceiros úteis na Guerra Fria. Essa cooperação produziu mal-estar e, às vezes, embaraços quando esses regimes cometiam violações revoltantes dos direitos humanos. Entretan¬ to, a cooperação podia ser justificada como o mal menor: esses governos geralmente eram menos repressivos do que os regimes comunistas e se podia supor que seriam menos duráveis e também mais suscetíveis às influências norte-americanas e de outras origens externas. Por que não trabalhar com um tirano amistoso menos brutal se a alternativa era outro mais brutal e inamistoso? No mundo pós-Guerra Fria, a escolha pode ser mais difícil: entre um tirano amistoso e uma democracia inamistosa. A suposição gratuita do Ocidente de que governos eleitos democraticamen¬ te serão cooperativos e pró-ocidentais não se confirma em sociedades não-ocidentais em que a competição eleitoral pode levar ao poder nacionalistas e fundamentalistas antiocidentais. O Ocidente ficou aliviado quando os militares argelinos intervieram em 1992 e suspenderam as eleições em que a fundamentalista FIS ia indubitavelmente sair vitoriosa. Os governos ocidentais também se tranqüilizaram quando o funda¬ mentalista Partido do Bem-Estar, na Turquia, e o nacionalista BJP, na índia, foram alijados do poder depois de lograr vitórias eleitorais em 1995 e 1996, respectivamente. Por outro lado, em alguns aspectos, o Irã possui, dentro do contexto da sua revolução, um dos regimes mais democráticos do mundo islâmico, e eleições livres em muitos países árabes, inclusive Arábia Saudita e Egito, iriam quase certamente produzir governos muito menos simpáticos aos interesses ocidentais do que seus predecessores não-democráticos. Um governo eleito pela via popular na China bem poderia ser profundamente nacionalista. À medida que os líderes ociden¬ tais se dão conta de que os processos democráticos nas sociedades não-ocidentais freqüentemente produzem governos hostis ao Ocidente, tentam exercer influência nessas eleições, bem como perdem seu entu¬ siasmo por promover a democracia nessas sociedades. IMIGRAÇÃO Se a demografia é o destino da História, os movimentos populacionais são o seu motor. Em séculos passados, taxas diferenciais de crescimento, condições econômicas e políticas governamentais produziram migrações maciças de gregos, judeus, tribos germânicas, nórdicos, turcos, russos, chineses e outros. Em alguns casos, esses movimentos foram relativa¬ mente pacíficos em outros, bastante violentos. Entretanto, os europeus do século XIX foram a raça superior em termos de invasão demográfica. Entre 1821 e 1924, aproximadamente 55 milhões de europeus emigraram para o ultramar, dos quais 34 milhões para os Estados Unidos. Os ocidentais conquistaram e, algumas vezes, obliteraram outros povos, exploraram e colonizaram terras menos densamente povoadas. A expor¬ tação de pessoas foi talvez a mais importante dimensão da ascensão do Ocidente entre os séculos XVI e XX. O final do século XX presenciou um surto diferente e ainda maior de migrações. Em 1990, os migrantes legais internacionais totalizavam cerca de 100 milhões, os refugiados cerca de 19 milhões e os migrantes ilegais provavelmente mais 10 milhões, no mínimo. Essa nova onda de migrações foi, em parte, fruto da descolonização, da criação de novos Estados e de políticas oficiais que encorajavam ou forçavam as pessoas a se mudar. Contudo, foi também fruto da modernização e do desenvol¬ vimento tecnológico. Os avanços nos meios de transporte tomaram as migrações mais fáceis, mais rápidas e mais baratas; os avanços nas comunicações aumentaram os incentivos para buscar oportunidades econômicas e promoveram as relações entre os imigrantes e suas famílias nos países de origem. Além disso, do mesmo modo que o crescimento econômico do Ocidente estimulou a emigração no século XIX, o desenvolvimento econômico das sociedades não-ocidentais estimulou a emigração no século XX. As migrações passam a ser um processo que se autofortalece. Myron Weiner argumenta que “se existe uma única ‘lei’ sobre migrações, é a de que o fluxo migratório, uma vez iniciado, induz seu próprio fluxo. Os imigrantes habilitam seus amigos e familiares no país de origem a imigrarem ao lhes proporcionarem informações sobre como imigrar, recursos para facilitar o seu deslocamento e assistência para encontrar emprego e moradia”. O resultado é, nas suas palavras, “uma crise mundial de migrações”. 21 Os ocidentais têm se oposto, de modo consistente e amplo, à proliferação nuclear e apoiado a democracia e os direitos humanos. Suas posturas quanto à imigração, pelo contrário, têm sido ambivalentes e têm mudado com sua evolução, alterando-se de forma significativa nas últimas duas décadas do século XX. Até os anos 70, os países europeus tinham, de forma geral, uma disposição favorável à imigração e, em alguns casos, notadamente Alemanha e Suíça, a encorajavam a fim de remediar a escassez de mão-de-obra. Em 1965, os Estados Unidos aboliram as quotas orientadas para os europeus, que datavam dos anos 20, e reviram de modo drástico sua legislação, possibilitando enormes aumentos de quantidade e novas fontes de imigrantes nas décadas de 70 e 80. Entretanto, no final dos anos 80, as altas taxas de desemprego, o número elevado de imigrantes e a característica de serem predominan¬ temente “não-europeus” produziram severas mudanças nas atitudes e na política dos países europeus. Alguns anos depois, preocupações análogas levaram a uma mudança comparável nos Estados Unidos. A maioria dos migrantes e refugiados do final do século XX deslocaram-se de uma sociedade não-ocidental para outra. O fluxo de migrantes para as sociedades ocidentais, entretanto, se aproximou, em números absolutos, da emigração ocidental do século XIX. Em 1990, estimava-se que havia 20 milhões de imigrantes nos Estados Unidos, 15,5 milhões na Europa e 8 milhões na Austrália e no Canadá. A proporção de imigrantes no total da população atingiu de sete a oito por cento nos principais países europeus. Nos Estados Unidos, os imigrantes cons¬ tituíam 8,7 por cento da população em 1994, o dobro de 1970, e compunham 25 por cento da população da Califórnia e 16 por cento da de Nova York. Cerca de 8,3 milhões de pessoas entraram nos Estados Unidos nos anos 80 e 4,5 milhões nos primeiros quatro anos da década de 90. Em sua maioria, os novos imigrantes vieram de sociedades não-oci¬ dentais. Na Alemanha, os residentes estrangeiros turcos somavam 1.675.000 em 1990, com a Iugoslávia, Itália e Grécia fornecendo os seguintes maiores contingentes. Na Itália, as principais fontes eram o Marrocos, os Estados Unidos (presumivelmente, sobretudo ítalo-ameri¬ canos regressando), a Tunísia e as Filipinas. Em meados de 1990, aproximadamente quatro milhões de muçulmanos viviam na França e até 13 milhões em toda a Europa Ocidental. Na década de 50, dois terços dos imigrantes nos Estados Unidos provinham da Europa e do Canadá; na década de 80, cerca de 35 por cento de um número muito maior de imigrantes provinham da Ásia, 45 por cento da América Latina e menos de 15 por cento da Europa e do Canadá. O crescimento natural da população nos Estados Unidos é baixo e praticamente zero na Europa. Os migrantes têm altas taxas de fertilidade e por isso respondem pela maior parte do futuro crescimento populacional nas sociedades ociden¬ tais. Em conseqüência, os ocidentais cada vez mais receiam “estarem atualmente sendo invadidos, não por exércitos e tanques, mas por migrantes que falam outros idiomas, adoram outros deuses, pertencem a outras culturas e, temem eles, irão tomar seus empregos, ocupar suas terras, viver à custa do sistema de previdência social e ameaçar seu estilo de vida”. 22 Stanley Hoffmann assinala que essas fobias, com raízes no declínio demográfico relativo, “estão baseadas em choques culturais genuínos a respeito da identidade nacional”. 23 Nos primeiros anos da década de 90, dois terços dos migrantes na Europa eram muçulmanos e a preocupação européia com a imigração era sobretudo com a imigração muçulmana. O desafio é demográfico — os migrantes respondem por 10 por cento dos nascimentos na Europa Ocidental, os árabes por 50 por cento dos nascimentos em Bruxelas — e cultural. As comunidades muçulmanas, quer sejam turcos na Alemanha, quer argelinos na França, não se integraram nas respectivas culturas anfitriãs e, para a preocupação dos europeus, dão poucos sinais de virem a se integrar. Jean Marie Domenach disse em 1991 que “há um medo crescente em toda a Europa de uma comunidade muçulmana que atravesse as linhas européias, uma espécie de décima terceira nação na Comunidade Européia”. Com relação aos imigrantes, um jornalista nor¬ te-americano comentou que a hostilidade européia é curiosamente seletiva. Poucas pessoas na França se preocupam com uma invasão vinda do Leste — os poloneses são, afinal de contas, europeus e católicos. E, na sua maioria, os imigrantes africanos não-árabes não são temidos nem menosprezados. A hostilidade se dirige sobretudo aos muçulmanos. A palavra immigréé praticamente sinônimo de Islamismo, atualmente a segunda maior religião na França, e reflete um racismo cultural e étnico profundamente enraizado na história francesa. 2 ^ Entretanto os franceses são mais culturistas do que racistas em qualquer sentido estrito. Aceitaram na sua legislatura africanos negros que falam francês perfeito, mas não aceitam meninas muçulmanas que usam lenços de cabeça nas suas escolas. Em 1990, 76 por cento do povo francês achava que havia árabes demais na França; 46 por cento, que havia negros demais; 40 por cento, que havia asiáticos demais e 24 por cento que havia judeus demais; em 1994, 47 por cento dos alemães disseram que prefeririam não ter árabes vivendo em seus bairros, 39 por cento não queriam poloneses, 36 por cento não queriam turcos e 22 por cento não queriam judeus. 25 Na Europa Ocidental, o anti-semitismo dirigido contra os judeus foi em grande parte substituído por um anti-semitismo dirigido contra os árabes. A oposição popular à imigração e a hostilidade para com os imigrantes se manifestam, em casos extremos, em atos de violência contra as comunidades de imigrantes e imigrantes individuais. Tais atos de violência se tomaram um problema na Alemanha no início da década de 90. Mais significativo foi o aumento de votos dados aos partidos de direita, nacionalistas e antiimigração. Entretanto, raramente essa votação foi elevada. Na Alemanha, o Partido Republicano teve mais de sete por cento dos votos nas eleições européias de 1989, porém apenas 2,1 por cento nas eleições nacionais de 1990. Na França, a votação obtida pela Frente Nacional, que tinha sido desprezível em 1981, subiu para 9,6 por cento em 1988 e, daí por diante, se estabilizou entre 12 e 15 por cento nas eleições regionais, parlamentares e presidenciais. Em 1995, a Frente conseguiu, contudo, eleger os prefeitos de várias cidades, inclusive Toulon e Nice. Na Itália, a votação da Aliança Nacional/MSI analogamen¬ te se elevou de cerca de cinco por cento nos anos 80 para de 10 a 15 por cento no início da década de 90. Na Bélgica, a votação do Bloco Flamengo/Frente Nacional aumentou para nove por cento nas eleições municipais de 1994, com o Bloco conseguindo 28 por cento dos votos em Antuérpia. Na Áustria, a votação obtida nas eleições gerais pelo Partido da Liberdade aumentou de menos de 10 por cento em 1986 para mais de 15 por cento em 1990 e quase 23 por cento em 1994. 26 Esses partidos europeus que se opõem à imigração muçulmana eram, em grande parte, o espelho dos partidos fundamentalistas islâmicos dos países muçulmanos. Ambos eram grupos de fora que condenavam uma estrutura corrupta e seus partidos, explorando as queixas quanto à econo¬ mia, especialmente o desemprego, fazendo chamamentos étnicos e religio¬ sos e atacando as influências forâneas em suas respectivas sociedades. Em ambos os casos, uma fímbria extremista se engajou em atos de violência e terrorismo. Na maioria das situações, tanto os partidos fundamentalistas islâmicos quanto os nacionalistas europeus tenderam a ter um melhor desempenho nas eleições locais do que nas de âmbito nacional. As estruturas políticas tradicionais muçulmanas e européias reagiram a esses desdobramentos de modo análogo. Nos países muçulmanos, como já vimos, os governos, de forma geral, se tornaram mais islâmicos em suas orientações, símbolos, políticas e práticas. Na Europa, os partidos tradi¬ cionais a s dotaram a retórica e promoveram as medidas dos partidos de direita e contrários à imigração. Nos países em que havia uma política democrática em funcionamento efetivo e onde havia dois ou mais partidos como alternativas ao partido fundamentalista islâmico ou na¬ cionalista, a votação dos mesmos chegou a um teto de cerca de 20 por cento. Os partidos de protesto só conseguiram superar esse índice onde não havia nenhuma alternativa válida para o partido ou coligação no poder, como aconteceu na Argélia, na Áustria e, em grau razoável, na Itália. No início da década de 90, os líderes políticos europeus estavam competindo entre si para responder aos sentimentos antiimigração. Na França, Jacques Chirac declarou em 1990 que “é preciso parar totalmente a imigração”, o ministro do Interior Charles Pasqua defendeu em 1993 a “imigração zero” e François Mitterrand, Edith Cresson, Valéry Giscard d’Estaing e outros políticos de correntes majoritárias assumiram posturas contrárias à imigração. Nas eleições parlamentares de 1993, a imigração foi uma das questões principais e aparentemente contribuiu para a vitória dos partidos conservadores. Durante os primeiros anos da década de 90, a política do governo francês foi modificada a fim de tornar mais difícil a aquisição da cidadania francesa pelos filhos de estrangeiros, a imigração de famílias de estrangeiros, a solicitação de direito de asilo por estrangeiros e a obtenção do visto de entrada na França por argelinos. Os imigrantes ilegais foram deportados, e foram ampliados os poderes da polícia e de outras autoridades governamentais que lidavam com imigração. Na Alemanha, o chanceler Helmut Kohl e outros líderes políticos também manifestaram preocupações quanto à imigração e, na sua providência mais importante, o governo emendou o artigo XVI da Constituição alemã, que garantia o asilo a “pessoas perseguidas por motivos políticos” e cortou os benefícios dos candidatos a asilo. Em 1992, 438 mil pessoas chegaram à Alemanha em busca de asilo, enquanto que em 1994 esse número foi de apenas 127 mil. Em 1980, a Grã-Bretanha tinha reduzido drasticamente sua imigração para cerca de 50 mil pessoas por ano e, em conseqüência, a questão suscitou lá menos comoção e oposição do que no continente. Contudo, entre 1992 e 1994, a Grã-Breta¬ nha reduziu drasticamente de 20 mil para menos de 10 mil o número de candidatos a asilo que tinham permissão para permanecer no país. À medida que iam caindo as barreiras aos deslocamentos dentro da União Européia, as preocupações britânicas se concentraram em boa medida nos perigos da migração não-européia proveniente do continente. Em meados dos anos 90, de modo geral, os países europeus ocidentais estavam se movendo inexoravelmente no sentido de reduzir a um mínimo, quando não eliminar totalmente, a imigração de fontes não-européias. 252 A questão da imigração veio à tona um tanto mais tarde nos Estados Unidos do que na Europa e não chegou a gerar a mesma crise emocional Os Estados Unidos sempre foram país de imigrantes, assim se considera e, historicamente, desenvolveu processos muito bem-sucedidos para a as¬ similação dos recém-chegados. Além disso, nos anos 80 e 90, o desemprego era consideravelmente menor nos Estados Unidos do que na Europa, e o medo de perda do emprego não foi um fator decisivo para moldar as atitudes quanto à imigração. Ademais, as fontes da imigração nos Estados Unidos foram mais diversificadas do que na Europa e, desse modo, o medo de serem inundados por um único grupo estrangeiro foi menor em âmbito nacional, embora fosse muito concreto em algumas localidades em particular. A distância cultural entre os dois maiores grupos de imigrantes e a cultura anfitriã também foi menor do que na Europa: os mexicanos são católicos e falam espanhol; os filipinos são católicos e falam inglês. Apesar desses fatores, no quarto de século depois da passagem da lei de 1965 que permitiu uma imigração muito maior de asiáticos e latino-americanos, a opinião pública norte-americana mudou de maneira decisiva. Em 1965, apenas 33 por cento do povo queriam menos imigração. Em 1972, 42 por cento queriam sua redução, em 1986 eram 49 por cento e em 1990 e 1993 esse número subiu para 62 por cento. As pesquisas de opinião feitas nos anos 90 revelaram de maneira sistemática que 60 por cento ou mais do povo eram a favor de uma redução na imigração. 27 Conquanto as preocupações econômicas e as condições econômicas afetem as atitudes para com a imigração, a oposição que cresce de modo sistemático em tempos bons e ruins sugere que cultura, criminalidade e estilo de vida foram mais importantes para essa mudança de opinião. Um observador comentou em 1994 que “muitos norte-ame¬ ricanos, talvez a maioria deles, ainda vêem sua nação como um país de colonização européia, cújas leis são uma herança da Inglaterra, cujo idioma é (e deve continuar a ser) o inglês, cujas instituições e edifícios públicos foram inspirados por normas clássicas ocidentais, cuja religião tem raízes judaico-cristãs, e cuja grandeza surgiu inicialmente da ética de trabalho protestante”. Refletindo essas preocupações, 55 por cento de uma amostragem da opinião pública disseram que consideravam a imigração uma ameaça para a cultura norte-americana. Enquanto os europeus vêem a ameaça da imigração como muçulmana ou árabe, os norte-americanos a vêem como latino-americana e asiática, mas sobretu¬ do como mexicana. Em 1990, uma amostragem de norte-americanos, perguntados sobre de quais países os Estados Unidos estavam admitindo 253 imigrantes em demasia, revelou que o México era citado o dobro de vezes do que qualquer outro país, seguido, em ordem decrescente, por Cuba, Oriente (não especificados os países), América do Sul è América Latina (não especificados os países), Japão, Vietnã, China e Coréia do Sul. 28 Uma crescente oposição do povo à imigração nos primeiros anos da década de 90 induziu uma reação política análoga à que ocorreu na Europa. Dada a natureza do sistema político norte-americano, partidos direitistas e antiimigração não conquistaram votos, porém autores e grupos de pressão antiimigração ficaram mais numerosos, mais atuantes e mais vociferantes. Muito do ressentimento se centrava no total de três e meio a quatro milhões de imigrantes ilegais, e os políticos responderam a isso. Tal como na Europa, a reação mais forte se deu nos níveis estadual e municipal, que arcam com a maior parte dos custos sociais dos imigrantes. Em conseqüência, em 1994, a Flórida, à qual depois se juntaram outros seis Estados, moveu uma ação contra o governo federal exigindo 884 milhões de dólares por ano para cobrir os gastos com educação, assistência social, policiamento e outras despesas acarretadas pelos imigrantes ilegais. Na Califórnia, o estado que tem a maior quantidade de imigrantes, em números absolutos e proporcionais, o governador Pete Wilson conquistou o apoio popular ao instar que se vedasse o acesso à rede de ensino público aos filhos dos imigrantes ilegais, recusar cidadania aos filhos nascidos nos Estados Unidos de imigrantes ilegais e terminar com os pagamentos com verbas estaduais do atendimento médico de emergência a imigrantes ilegais. Em novem¬ bro de 1994, os califomianos aprovaram por grande maioria a Proposição 187, pela qual se denegavam benefícios de saúde, educação e assistência social a estrangeiros ilegais e seus filhos. Ainda em 1994, o governo Clinton, invertendo uma postura anterior, tomou providências para tomar mais severos os controles de imigração e mais estritas as regras a respeito de asilo político, expandir o Serviço de Imigração e Naturalização, reforçar a Patrulha de Fronteira e erigir barreiras físicas ao longo da fronteira com o México. Em 1995, a Comissão sobre Reforma da Imigração, autorizada pelo Congresso em 1990, recomendou a redução anual da imigração legal de mais de 800 mil pessoas para 550 mil, dando preferência a crianças pequenas e cônjuges mas não a outros parentes de atuais cidadãos e residentes. Essa dis¬ posição “inflamou as famílias asiático-americanas e hispânicas”. 29 Um projeto de lei que incorporava muitas das recomendações da Comissão e outras medidas que restringiam a imigração estava tramitando pelo Congresso em 1995-96. Em meados da década de 90, a imigração tinha assim se tomado uma importante questão política nos Estados Unidos e, em 1996, Patrick Buchanan fez da oposição à imigração um ponto fundamental de sua campanha pela Presidência. Os Estados Unidos estão seguindo a Europa ao tomarem providências para reduzir de modo substancial a entrada de não-ocidentais em sua sociedade. Será possível à Europa ou aos Estados Unidos sustar a corrente migratória? A França passou por uma versão importante do pessimismo demográfico, indo desde o cáustico romance de Jean Raspail na década de 70 até a análise erudita de Jean-Claude Chesnais nos anos 90, e que está resumida nos comentários feitos, em 1991, por Pierre Lellouche: “A história, a proximidade e a pobreza garantem que a França e a Europa estão destinadas a serem invadidas pelas pessoas das sociedades fracas¬ sadas do Sul. O passado da Europa foi branco e judaico-cristão. O futuro não o é.”* 30 Entretanto, o futuro não está determinado de modo ir¬ revogável, nem há um único futuro permanente. A questão não é se a Europa será islamizada ou se os Estados Unidos serão hispanizados. A questão é, sim, se a Europa e os Estados Unidos se transformarão em sociedades partidas em duas comunidades distintas e em grande parte separadas, oriundas de duas civilizações diferentes, o que, por sua vez, depende do número total de imigrantes e do grau em que sejam assimilados nas culturas ocidentais que prevalecem na Europa e nos Estados Unidos. De forma geral, as sociedades européias ou não querem assimilar os imigrantes ou têm grandes dificuldades para fazê-lo, e não está claro o grau com que os imigrantes muçulmanos e seus filhos desejam ser assimilados. Em conseqüência disso, uma continuada imigração subs¬ tancial provavelmente produzirá países divididos em comunidades cristã e muçulmana. Esse resultado pode ser evitado na medida em que os governos e os povos europeus estejam dispostos a arcar com os custos de restringir esse tipo de imigração, o que inclui os custos orçamentários * O livro de Raspail, Le Camp des Saints, foi publicado inicialmente em 1973 (Paris, Éditions Robert Lafffont) e foi impresso numa nova edição em 1985, quando se intensificou na França a preocupação com a imigração. O romance foi levado de fonna espetacular à atenção dos norte-americanos quando essa preocupação se intensificou nos Estados Unidos, em 1994, por Matthew Connelly e Paul Kennedy no artigo “Must It Be the Rest Against the West?” [Tem que ser o Resto contra o Ocidente?], Atlantic Monthly, v. 274 (dez. 1994), p. 6l e ss. O prefácio de Raspail da edição francesa de 1985 foi publicado em inglês na revista The Social Contract, v. 4 (inverno 1993-94), pp. 115-117. 254 255 diretos de medidas antiimigratórias, os custos sociais de alienar ainda mais as atuais comunidades de imigrantes e os custos econômicos em potencial, a longo prazo, da escassez de mão-de-obra e de taxas de crescimento mais baixas. Entretanto, é provável que o problema da invasão demográfica muçulmana diminua à medida que as taxas de crescimento populacional nas sociedades do Norte da África e do Oriente Médio cheguem ao seu ápice, como já ocorreu em alguns países, e comecem a declinar. Pelo menos algumas projeções sugerem que esse declínio será bastante considerável nas primeiras décadas do século XXI. 31 Na medida em que a pressão demográfica estimula a imigração, a imigração muçulmana poderia ser muito menor em 2025. Isso não se aplica à África Subsaárica. Se houver desenvolvimento econômico e se for promovida a mobilidade social na África Central e Ocidental, aumentarão os incentivos e a capacidade para migrar, e a ameaça de “islamização” da Europa será substituída pela de africanização”. O grau em que essá ameaça se irá concretizar sofrerá grande influência do grau em que as populações africanas sejam reduzidas pela AIDS e outras pestes, bem como do grau de atração que a África do Sul exerça sobre imigrantes de outras áreas da África. Enquanto os muçulmanos representam o problema imediato para a Europa, os mexicanos representam tal problema para os Estados Unidos. Pressupondo-se a continuidade das tendências e políticas atuais, a população norte-americana irá, como mostra o Quadro 8.2, modificar-se de forma espetacular na primeira metade do século XXI, ficando aproxi¬ madamente 50 por cento branca e quase 25 por cento hispânica. Como na Europa, mudanças na política de imigração e a eficácia na aplicação de medidas antiimigratórias podem alterar essas projeções. Mesmo assim, a questão fundamental continuará sendo o grau em que os hispânicos sejam assimilados na sociedade norte-americana, como grupos anteriores de imigrantes o foram. Os hispânicos de segunda e terceira geração se vêem diante de uma ampla gama de incentivos e pressões para isso. A imigração mexicana, por outro lado, se diferencia de modos pos¬ sivelmente importantes da imigração de outras fontes. Em primeiro lugar, os imigrantes oriundos da Europa ou da Ásia cruzam oceanos; os mexicanos cruzam apenas uma fronteira ou, no máximo, um rio. Isso, somado à facilidade cada vez maior dos meios de transporte e comuni¬ cações, os habilita a manter contatos estreitos e a identidade com suas comunidades de origem. Em segundo lugar, os imigrantes mexicanos 256 Quadro 8.2 População dos Estados Unidos por Raça e Etnia (em porcentagens) 1993 2020 (est.) 2050 (est.) brancos não-hispânicos 74 63 51 hispânicos 10 16 23 negros 13 14 16 asiáticos e iihéus do Pacífico 3 7 indígenas norte-americanos e do Alasca <1 <1 1 Total (em milhões de pessoas) 259 326 392 estão concentrados no sudoeste dos Estados Unidos e fazem parte de uma sociedade mexicana ininterrupta, que se estende do Yucatan até Nevada (ver Mapa 8.1). Em terceiro lugar, há indícios que sugerem que a resistência à assimilação é mais forte nos imigrantes mexicanos do que foi em outros grupos de imigrantes, e que os mexicanos tendem a manter sua identidade mexicana, como ficou evidenciado na luta em torno da Proposição 187 na Califórnia, em 1994. Em quarto lugar, a área em que se instalaram os imigrantes mexicanos foi anexada pelos Estados Unidos, depois de terem derrotado o México em meados do século XIX. É praticamente certo que o desenvolvimento econômico mexicano gerará sentimentos revanchistas mexicanos. No seu devido tempo, os resultados da expansão militar norte-americana do século XIX poderão ser amea¬ çados pela expansão demográfica do século XXI. A mutação da balança de poder entre as civilizações toma cada vez mais difícil para o Ocidente atingir os seus objetivos com relação à proliferação de armamentos, direitos humanos, imigração e outras ques¬ tões. Para que o Ocidente possa minimizar suas perdas nessa situação ele precisa, ao lidar com outras sociedades, empregar com habilidade seus recursos econômicos a título de incentivos e penalidades, aumentar sua unidade e coordenar suas políticas para dificultar que outras socie¬ dades joguem um país ocidental contra outro, e promover e explorar as diferenças entre as nações não-ocidentais. A capacidade do Ocidente de implementar essas estratégias será, por um lado, condicionada pela natureza e intensidade de seus conflitos com as civilizações desafiantes e, por outro, pelo grau com que consiga identificar e desenvolver interesses comuns com as civilizações oscilantes. 257 RACHADO? asiática, Condado Capítulo 9 A Política Mundial das Civilizações Estado-núcleo e Conflitos de Linha de Fratura N o mundo que está surgindo, os Estados e os grupos de duas civilizações diferentes podem formar conexões e coligações táticas, ad hoc } limitadas a fim de desenvolver os seus interesses contra entidades de uma terceira civilização ou para outras finalidades compartilhadas. Entretanto, as relações entre grupos de civilizações diferentes quase nunca serão íntimas, geralmente serão frias e muitas vezes hostis. Conexões entre Estados de civilizações diferentes herdadas do passado, tais como alianças militares da época da Guerra Fria, provavelmente se atenuaram ou se evaporarão. As esperanças de íntimas “parcerias” intercivilizacionais, como as que foram num momento arti¬ culadas pelos respectivos dirigentes entre a Rússia e os Estados Unidos, não se concretizarão. As relações intercivilizacionais que surgirão nor¬ malmente variarão de distanciadas a violentas, situando-se a maioria em algum ponto entre esses dois extremos. Em muitos casos, elas provavel¬ mente se parecerão com a “paz fria” que Boris Yeltsin advertiu que poderia ser o futuro das relações entre a Rússia e o Ocidente. Outras relações intercivilizacionais poderiam se parecer com uma condição de “guerra fria”. A expressão la guerra fria foi inventada pelos espanhóis no século XIII para descrever sua “coexistência inquieta” com os muçul¬ manos no Mediterrâneo, e, nos anos 90, muitas pessoas viram uma “guerra fria civilizacional” mais uma vez se desenvolvendo entre o Islã e o Ocidente. 1 Em 1992, Deng Xiaoping falou de uma “guerra fria” que estava surgindo entre os Estados Unidos e a China. Mais ou menos na mesma época, vários comentaristas falaram de uma guerra fria entre os Estados Unidos e o Japão. Paz fria, guerra fria, guerra comercial, quase-guerra, paz inquieta, relações conturbadas, rivalidade intensa, coexistência com¬ petitiva, corridas armamentistas: essas expressões são as mais prováveis descrições das relações entre entidades de civilizações diferentes. A confiança e a amizade serão raras. As civilizações são as últimas modalidades de tribos humanas e o choque das civilizações é o conflito tribal numa escala mundial. Esse choque assume duas formas. No nível local ou micro, ocorrem os conflitos de linha de fratura entre Estados vizinhos de civilizações diferentes, entre grupos de civilizações diferentes dentro de um mesmo Estado e entre grupos que estão tentando criar novos Estados com os destroços do antigo Estado (como na antiga União Soviética e na antiga Iugoslávia). Os conflitos de linha de fratura são especialmente freqüentes entre muçulmanos e não-muçulmanos. As razões para esses conflitos, bem como sua natureza e dinâmica, são examinadas nos Capítulos 10 e 11. No nível global ou macro, os conflitos de Estados-núcleos ocorrem entre os principais Estados de civilizações diferentes. As questões nesses conflitos são as clássicas da política internacional, dentre as quais figuram: 1. Influência relativa sobre a forma de acontecimentos mundiais e as ações das organizações internacionais mundiais, como as Nações Unidas, o FMI e o Banco Mundial; 2. Poder militar relativo, que se manifesta nas controvérsias a respeito de não-proliferação e controle de armamento e nas corridas armamentistas; 3- Poder econômico e bem-estar, que se manifestam em 1 2 * 4 5 6 disputas a respeito de comércio internacional, investimentos e outras questões; 4. Pessoas, envolvendo os esforços de um Estado de uma civilização para proteger as pessoas afins em outra civilização, para discriminar pessoas de outra civilização ou para excluir de seu território pessoas de outra civilização; 5. Valores e cultura, em torno dos quais surgem conflitos quando um Estado tenta promover ou impor os seus valores às pessoas de outra civilização; 6. Ocasionalmente, território, quando Estados-núcleos se tornam participantes da linha de frente em conflitos de linha de fratura. Essas questões são, é claro, as fontes de conflito entre os seres humanos ao longo de toda a História. Entretanto, quando estão envolvi¬ dos Estados de civilizações diferentes, as diferenças culturais aguçam o conflito. Questões econômicas ou territoriais concretas e muitas vezes negociáveis são redefinidas em termos culturais e, em conseqüência, ficam mais difíceis de resolver, surgindo questões culturais e simbólicas que reforçam estereótipos hostis. Em sua competição entre si, os Estados-núcleos tentam congregar suas legiões civilizacionais, fazer alianças com Estados de terceiras civilizações, promover a divisão e defecções nas civilizações adversárias e empregar a combinação apropriada de ações diplomáticas, políticas, econômicas e clandestinas, bem como instigações por propaganda e forma de coerção, para atingir seus objetivos. Entretanto, é improvável que os Estados-núcleos empreguem a força militar diretamente uns contra os outros, exceto em situações como as que existem no Oriente Médio e no subcontinente indiano, onde eles estão apostos uns aos outros sobre uma linha de fratura civilizacional. Em outros casos, as guerras entre Estados-núcleos têm probabilidade de surgir apenas em duas circuns¬ tâncias. Na primeira, elas podem se desenvolver a partir da escalada de conflitos de linha de fratura entre grupos locais, quando grupos relacio¬ nados entre si, inclusive Estados-núcleos, acorrem em apoio dos comba¬ tentes locais. Essa possibilidade, porém, cria um forte incentivo para que os Estados-núcleos das civilizações contrapostas contenham ou solucio¬ nem o conflito de linha de fratura. Na segunda, a guerra de Estados-núcleos decorre de mudanças na balança mundial de poder entre civilizações. No seio da civilização grega, o crescente poder de Atenas, como argumentou Tucídides, levou à Guerra do Peloponeso, e a história da civilização ocidental é uma história de “guerras hegemônicas” entre potências em ascensão e em declínio. O grau em que fatores análogos estimulam conflitos entre Estados-núcleos em ascensão e em declínio de civilizações diferentes depende, em parte, de se o contrabalançar ou o atrelar-se é a modalidade preferida nessas civilizações para que os Estados se ajustem à ascensão de uma nova potência. Conquanto o atrelar-se possa ser mais característico das civiliza¬ ções asiáticas, a ascensão do poder chinês podería gerar esforços de contrabalanceamento por parte de Estados de outras civilizações, como os Estados Unidos, a índia e a Rússia. A guerra hegemônica que faltou na história ocidental foi entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, podendo-se supor que a transição pacífica da Pax Britannica para a Pax Americana se deveu em grande parte à íntima afinidade cultural entre as duas socie¬ dades. A inexistência de tal afinidade na balança de poder em mutação entre o Ocidente e a China não torna o conflito armado inevitável, porém o faz mais provável. O dinamismo do Islã é, assim, a fonte contínua de muitas guerras de linha de fratura relativamente pequenas; já a ascensão da China é a fonte em potencial de uma grande guerra intercivilizacional de Estados-núcleos. O ISLà E O OCIDENTE Alguns ocidentais, dentre eles o presidente Bill Clinton, têm afirmado que o Ocidente não tem problemas com o Islã, mas apenas com os violentos extremistas fundamentalistas islâmicos. Mil e quatrocentos anos de História provam o contrário. As relações entre o Islamismo e o Cristianismo, tanto Ortodoxo como Ocidental, foram freqüentemente tempestuosas. Cada um foi o Outro do outro. O conflito do século XX entre a democracia liberal e o marxismo-leninismo é apenas um fenô¬ meno histórico fugaz e superficial, se comparado com a relação conti¬ nuada e profundamente conflitiva entre o Islamismo e o Cristianismo. Em alguns períodos, prevaleceu uma coexistência pacífica, mas na maioria das vezes essa relação foi de la guerra fria e de diversos graus de guerra quente. John Esposito comenta que sua “dinâmica histórica (...) freqüentemente encontrou as duas comunidades em competição e, às vezes, engajadas em combates mortais por poder, terras e almas”. 2 Através dos séculos, a sorte das duas religiões subiu e caiu numa seqüência de momentosos surtos, pausas e contra-surtos. A primeira expansão centrífuga arábico-islâmica, do início do século VII até meados do século VIII, implantou o domínio muçulmano no Norte da África, na Ibéria, no Oriente Médio, na Pérsia e na índia Setentrional. Durante cerca de dois séculos, as linhas divisórias entre o Islamismo e o Cristianismo ficaram estabilizadas. Depois, no final do século XI, os cristãos restabeleceram seu controle do Mediterrâneo ocidental, conquis¬ taram a Sicília e capturaram Toledo. Em 1095, a Cristandade lançou as Cruzadas e, durante um século e meio, potentados cristãos tentaram, com êxito decrescente, estabelecer a autoridade cristã na Terra Santa e nas áreas adjacentes do Oriente Próximo, perdendo São João dAcre, seu último ponto de apoio nesta região, em 1291. Enquanto isso, apareceram em cena os turcos otomanos. Eles primeiro enfraqueceram Bizâncio e depois conquistaram grande parte dos Bálcãs, bem como do Norte da África, capturaram Constantinopla em 1453 e sitiaram Viena em 1529. Bernard Lewis assinala que “durante quase mil anos, do primeiro desembarque mouro na Espanha até o segundo sítio de Viena pelos turcos, a Europa esteve sob a ameaça constante do Islã”. 3 O Islã é a única civilização que pôs em dúvida a sobrevivência do Ocidente, e o fez por duas vezes pelo menos. Entretanto, ao se chegar ao século XV, a maré tinha começado a recuar. Os cristãos foram gradualmente recuperando a Ibéria, completan¬ do a tarefa em Granada em 1492. Enquanto isso, as inovações em navegação oceânica habilitaram os portugueses, e depois outros, a contornar o coração do mundo muçulmano e penetrar no Oceano índico e ir além. Simultaneamente, os russos puseram fim a dois séculos de domínio tártaro. Subseqüentemente, os otomanos empreenderam um último avanço, tornando a sitiar Viena em 1683. O fracasso que aí tiveram marcou o começo de uma longa retirada, envolvendo a luta dos povos ortodoxos nos Bálcãs para se livrarem do domínio otomano, a expansão do Império Habsburgo e o espetacular avanço dos russos até o Mar Negro e o Cáucaso. No decurso de aproximadamente um século, “o flagelo da Cristandade” foi transformado no “velho doente da Europa”. 4 Ao se concluir a I Guerra Mundial, a Grã-Bretanha, a França e a Itália lhe aplicaram o golpe de misericórdia e impuseram seu domínio, direto ou indireto, por todo o resto das terras otomanas, com exceção do território da República Turca. Por volta de 1920, apenas quatro países muçulmanos — Turquia, Arábia Saudita, Irã e Afeganistão — continuavam indepen¬ dentes de alguma forma de domínio não-muçulmano. Por sua vez, o recuo do colonialismo ocidental começou lentamente nas décadas de 20 e 30 e se acelerou de forma notável no período posterior à II Guerra Mundial. O colapso da União Soviética levou a independência a muitas sociedades muçulmanas. Segundo um levanta¬ mento, no período entre 1757 e 1919 ocorreram 92 aquisições de território muçulmano por governos não-muçulmanos. Ao se chegar a 1995, 69 desses territórios estavam de novo sob domínio muçulmano e cerca de 45 Estados independentes tinham populações majoritariamente muçul¬ manas. A natureza violenta desses relacionamentos em mutação se reflete no fato de que 50 por cento das guerras que envolveram pares de Estados de religiões diferentes no período de 1820 a 1929 foram guerras entre muçulmanos e cristãos. 5 As causas desse padrão ininterrupto de conflitos não estão em fenômenos transitórios como o fervor cristão do século XII ou o fundamentalismo muçulmano do século XX. Elas decorrem da natureza dessas duas religiões e das civilizações nelas baseadas. Os conflitos eram, por um lado, fruto das diferenças, especialmente da concepção muçul¬ mana do Islamismo como um estilo de vida que transcendia e unia religião e política versus a concepção cristã ocidental da separação dos reinos de Deus e de César. Entretanto, os conflitos também se originavam de suas similitudes. Ambas são religiões monoteístas, que, ao contrário das politeístas, não podem assimilar com facilidade outras divindades e que vêem o mundo em termos dualistas, do nós-e-eles. Ambas são universalistas, afirmando serem a única fé verdadeira à qual devem aderir todos os seres humanos. Ambas são religiões missionárias, acreditando que seus seguidores têm a obrigação de converter os não-crentes a essa única fé verdadeira. Desde suas origens, o Islamismo se expandiu pela conquista e, quando surgiram oportunidades, o mesmo se deu com o Cristianismo. As concepções paralelas de “jihad” e de “cruzada” não só se parecem como distinguem esses dois credos de outras grandes religiões do mundo. O Islamismo e o Cristianismo, junto com o Judaísmo, têm uma visão teleológica da História, em contraste com a visão cíclica ou estática que prevalece nas outras civilizações. O nível de conflito violento entre o Islamismo e o Cristianismo variou ao longo do tempo, influenciado por crescimento e declínio demográfico, desenvolvimento econômico, mudanças tecnológicas e intensidade de dedicação religiosa. A expansão do Islã no século VII foi acompanhada por migrações maciças de povos árabes, numa “escala e velocidade” sem precedentes, para as terras dos impérios bizantino e sassaniano. Alguns séculos depois, as Cruzadas foram, em grande parte, fruto do crescimento econômico, expansão populacional e da “ressurreição clunaica” na Europa do século XI, que possibilitou a mobilização de grandes números de cavaleiros e camponeses para a marcha sobre a Terra Santa. Quando a Primeira Cruzada chegou a Constantinopla, um observador bizantino escreveu que ela dava a impressão de que “todo o Ocidente, inclusive algumas tribos dos bárbaros que viviam além do Mar Adriático até as Colunas de Hércules, tinha começado uma migração em massa e estava em marcha, explodindo para dentro da Ásia numa massa sólida, com todos os seus pertences”. 6 No século XIX, um crescimento populacional espetacular mais uma vez produziu uma erupção européia, gerando a maior migração da História, que fluiu para as terras muçulmanas como para outras terras. Uma combinação comparável de fatores incrementou os conflitos entre o Islã e o Ocidente no final do século XX. Primeiro, o crescimento populacional muçulmano gerou grande quantidade de jovens desempre¬ gados e descontentes que se tornam recrutas das causas fundamentalistas islâmicas, exercem pressão sobre sociedades vizinhas e migram para o Ocidente. Segundo, o Ressurgimento islâmico deu aos muçulmanos uma confiança renovada no caráter e na qualidade próprios de sua civilização e nos valores comparáveis aos do Ocidente. Terceiro, os esforços simultâneos do Ocidente para universalizar seus valores e instituições, para manter sua superioridade econômica e militar e para intervir nos conflitos do mundo muçulmano geram um intenso ressentimento no meio dos muçulmanos. Quarto, o colapso do comunismo acabou com um inimigo comum do Ocidente e do Islã, deixando cada um como a ameaça percebida do outro. Quinto, os crescentes contatos e entremescla de muçulmanos e ocidentais estimulam em cada lado uma nova percep¬ ção de sua própria identidade e de como ela difere da identidade do outro. A interação e a entremescla também exacerbam as diferenças em relação aos direitos dos membros de uma civilização num país dominado por membros de outra civilização. Dentro das sociedades muçulmanas e cristãs, a tolerância de uma para com a outra diminuiu de forma aguda nos anos 80 e 90. As causas dos renovados conflitos entre o Islã e o Ocidente residem assim nas questões fundamentais de poder e cultura. Kto? Kovo? Quem vai dominar? Quem vai ser dominado? A questão fundamental da política, definida por Lênin, é a raiz do confronto entre o Islã e o Ocidente. Há, entretanto, o conflito adicional, que Lênin teria considerado sem sentido, entre duas versões diferentes do que é certo e do que é errado e, como conseqüência, quem está certo e quem está errado. Enquanto o Islã continuar sendo o Islã (como continuará) e o Ocidente continuar sendo o Ocidente (o que é mais duvidoso), esse conflito fundamental entre duas grandes civilizações e estilos de vida continuará a definir suas relações no futuro do mesmo modo como as definiu durante os últimos 14 séculos. Essas relações são complicadas ainda mais por uma quantidade de questões substantivas sobre as quais suas posições divergem ou estão em conflito. Do ponto de vista histórico, uma das questões principais foi o controle de território, porém isso é, hoje em dia, relativamente insignificante. Dezenove dos 28 conflitos de linha de fratura, em meados da década de 90, entre muçulmanos e não-muçulmanos foram entre muçulmanos e cristãos. Onze deles com cristãos ortodoxos e sete com seguidores do Cristianismo ocidental na África e no Sudeste Asiático. Apenas um desses conflitos violentos ou com potencial de violência ocorreu diretamente ao longo da linha de fratura entre o Ocidente e o Islã — o que se deu entre croatas e bósnios. O efetivo encerramento do imperialismo territorial ocidental e a inexistência, até agora, de uma nova expansão territorial muçulmana produziram uma segregação geográfica, de modo que apenas em alguns lugares nos Bálcãs as comunidades ocidentais e muçulmanas de fato fazem fronteira direta umas com as outras. Os conflitos entre o Ocidente e o Islã estão assim centrados menos em território do que em questões intercivilizacionais mais amplas, como a proliferação de armamentos, direitos humanos e democracia, migração, terrorismo fundamentalista islâmico e intervenção ocidental. Na esteira da Guerra Fria, esse antagonismo histórico assumiu novo ímpeto e a intensidade crescente desse choque foi amplamente reco¬ nhecida por membros de ambas as comunidades. Em 1991, por exemplo, o insigne estudioso inglês Barry Buzan viu muitas razões pelas quais uma guerra fria societária estava surgindo “entre o Ocidente e o Islã, na qual a Europa estaria na linha de frente”. Esse desdobramento tem parcialmente a ver com valores seculares versus valores religiosos, parcialmente com a rivalidade histórica entre a Cristandade e o Islã, parcialmente com inveja do poderio ocidental, parcialmente com ressentimentos pela dominação ocidental da es¬ truturação política pós-colonial do Oriente Médio e parcialmente com a amargura e a humilhação da comparação nada invejável entre as realizações das civilizações islâmica e ocidental nos últimos dois séculos. Além disso, ele assinalou que “uma guerra fria societária com o Islã serviria para reforçar a identidade européia de modo geral, num momen¬ to crucial para o processo de unificação européia”. Por conseguinte, “bem pode haver uma comunidade substancial no Ocidente disposta não só a apoiar uma guerra fria societária contra o Islã, mas também a adotar políticas que a estimulem”. Em 1990, Bemard Lewis, destacado estudioso ocidental do Islã, analisou “As Raízes da Fúria Muçulmana” e chegou à conclusão de que: Devia agora estar claro que estamos diante de um estado de ânimo e de um movimento que transcende em muito o nível das questões e das políticas, bem como dos governos que as perseguem. Isso não é nada menos do que um choque de civilizações — aquela reação, talvez irracional porém certamente histórica, de um velho rival contra nossa herança judaico-cristã, nosso presente secular e a expansão de ambos por todo o mundo. É de importância crucial que nós, do nosso lado, não sejamos provocados a uma reação igualmente histórica, porém igualmente irracional, contra esse rival . 7 Observações análogas vieram da comunidade islâmica. Um co¬ nhecido jornalista egípcio, Mohamed Sid-Ahmed, argumentou em 1994 que “há sinais inequívocos de um crescente choque entre a ética ocidental judaico-cristã e o movimento de revitalização islâmica, que atualmente está-se estendendo do Atlântico, a Oeste, até a China, a Leste”. Um proeminente muçulmano indiano previu em 1992 que “a próxima confrontação do Ocidente virá sem dúvida do mundo muçulmano. É no arco de nações islâmicas do Maghreb ao Paquistão que começará a luta pela nova ordem mundial”. Para um destacado advogado tunisiano, a luta já está em andamento: “O colonialismo tentou deturpar todas as tradições culturais do Islã. Eu não sou um fundamentalista islâmico. Não acho que exista um conflito entre religiões. Existe um conflito entre civilizações.” 8 Nos anos 80 e 90, a tendência generalizada no Islã seguiu numa direção antiocidental. Isso é, em parte, uma conseqüência natural do Ressurgimento islâmico e da reação contra a “gharbzadegf ou “ociden- toxicação” percebida pelas sociedades muçulmanas. A “reafirmação do Islã, qualquer que seja sua forma sectária específica, significa o repúdio da influência européia e norte-americana sobre a sociedade, a política e a moral locais”. 9 No passado, em algumas ocasiões, os líderes muçulma¬ nos de fato disseram à sua gente: “Precisamos nos ocidentalizar.” Entretanto, nos 25 anos finais do século XX, qualquer líder muçulmano que tenha dito isso é uma figura isolada. Na realidade, é difícil encontrar declarações por qualquer muçulmano, seja político, alto funcionário, acadêmico, homem de negócios ou jornalista, que elogie os valores e as instituições ocidentais. Ao contrário, eles acentuam as diferenças entre sua civilização e a civilização ocidental, a superioridade da sua cultura e a necessidade de manter a integridade dessa cultura contra o ataque ocidental. Os muçulmanos receiam e detestam o poderio ocidental e a ameaça que ele representa para sua sociedade e suas crenças. Eles vêem a cultura ocidental como materialista, corrupta, decadente e imoral. Eles também a vêem como sedutora e, em conseqüência, acentuam ainda mais a necessidade de resistir ao seu impacto sobre seu estilo de vida. Os muçulmanos cada vez mais atacam os ocidentais não por professarem uma religião imperfeita e errônea, que é, não obstante, uma “religião do Livro”, mas por não professarem nenhuma religião em absoluto. Aos olhos muçulmanos, o secularismo, a irreligiosidade e, portanto, a imora- lidade ocidentais são males piores do que o Cristianismo ocidental, que os produziu. Na Guerra Fria, o Ocidente rotulou seu adversário de “comunismo ateu”; no conflito de civilizações pós-Guerra Fria, os mu¬ çulmanos vêem seu adversário como “o Ocidente ateu”. Essas imagens do Ocidente como arrogante, materialista, repressor, brutal e decadente são mantidas não só pelos imãs fundamentalistas como também por aqueles a quem muitos no Ocidente considerariam seus aliados e correligionários naturais. Poucos dos livros de autores muçulmanos publicados nos anos 90, por exemplo, receberam os elogios dados à obra de Fatima Memissi, Islam and Democracy , saudado de modo geral pelos ocidentais como o depoimento corajoso de uma mulher muçulmana moderna e liberal. 10 Entretanto a representação do Ocidente feita nesse livro dificilmente poderia ser menos elogiosa. O Ocidente é “militarista” e “imperialista” e “traumatizou” outras nações através do “terror colonial” (pp. 3, 9). O individualismo, marca registrada da cultura ocidental, é “a fonte de todos os problemas” (p. 8). O poderio ocidental é temível. O Ocidente “é o único que decide se os satélites serão empregados para ensinar os árabes ou para fazer cair bombas sobre eles. (...) Ele esmaga nossas potencialidades e invade nossas vidas, com seus produtos importados e filmes de televisão que inundam as ondas de transmissão. (...) É um poder que nos esmaga, sitia nossos mercados e controla nossos mais simples recursos, iniciativas e potencialidades. Era assim que percebíamos nossa situação, e a Guerra do Golfo transformou nossa percepção em certeza” (pp. 146-147). O Ocidente “cria o seu poderio através de pesquisas militares” e depois vende os produtos dessa pesquisa aos países subdesenvolvidos, que são os seus “consumidores passivos”. Para se liberar dessa subserviência, o Islã precisa desenvolver os seus próprios engenheiros e cientistas, construir sua próprias armas (nucleares ou convencionais, ela não especifica) e “se libertar da dependência militar do Ocidente” (pp. 43-44). Essas, para repetir, não são as opiniões de algum aiatolá barbudo, de turbante. Quaisquer que sejam suas opiniões religiosas ou políticas, os muçulmanos estão de acordo em que existem diferenças entre a sua cultura e a cultura ocidental. Como definiu o xeque Chanoushi, “o cerne da questão é que nossas sociedades estão baseadas em valores diversos dos do Ocidente”. Um funcionário do governo egípcio disse que “os norte-americanos vêm aqui e querem que nós sejamos como eles. Eles não entendem nada de nossos valores e de nossa cultura”. Um jornalista egípcio concordou: “Nós somos diferentes. Nós temos origens diferentes, uma história diferente. Por conseguinte, temos o direito a futuros diferentes.” As publicações muçulmanas, tanto populares como intelec¬ tualmente sérias, repetidamente descrevem o que se diz serem complôs e desígnios ocidentais para subordinar, humilhar e solapar as instituições e a cultura islâmicas. 11 A reação contra o Ocidente pode ser vista não só no ímpeto cultural fundamental do Ressurgimento islâmico como também na mudança de atitude em relação ao Ocidente por parte dos governos de países muçulmanos. No período imediato pós-colonial, os governos eram, de forma geral, ocidentais em suas ideologias e diretrizes políticas e econô¬ micas e pró-ocidentais em suas políticas externas, com exceções parciais, como a Argélia e a Indonésia, onde a independência resultara de revoluções nacionalistas. Entretanto, um a um, os governos pró-ociden- tais deram lugar a governos menos identificados com o Ocidente ou explicitamente antioddentais no Iraque, Líbia, Iêmen, Síria, Irã, Sudão, Líbano e Afeganistão. Ocorreram mudanças na mesma direção, porém menos espetaculares, na orientação e no alinhamento de outros Estados, inclusive a Tunísia, Indonésia e Malásia. Os dois mais firmes aliados militares muçulmanos dos Estados Unidos na Guerra Fria — Turquia e Paquistão — estão sob pressão fundamentalista islâmica internamente, e seus laços com o Ocidente estão sujeitos a uma crescente tensão. Em 1995, o único Estado muçulmano claramente mais pró-ocidental do que tinha sido 10 anos antes era o Kuwait. Atualmente, os amigos íntimos do Ocidente no mundo islâmico são ou como o Kuwait, Arábia Saudita e os emirados do Golfo — dependentes militarmente dos Estados Unidos —, ou como o Egito e a Argélia — deles dependentes economi¬ camente. No final da década de 80, os regimes comunistas da Europa Oriental desmoronaram quando ficou claro que a União Soviética não mais lhes proporcionaria apoio econômico e militar. Se ficar claro que o Ocidente não mais manterá seus regimes satélites muçulmanos, é provᬠvel que eles tenham destino semelhante. O crescente antiocidentalismo muçulmano foi acompanhado para¬ lelamente por uma preocupação crescente com a “ameaça islâmica”, representada em especial pelo extremismo muçulmano. O Islã é visto como fonte de proliferação nuclear, terrorismo e, na Europa, imigrantes indesejados. Essas preocupações são compartilhadas tanto pelo povo como pelos líderes. Assim, por exemplo, quando perguntados, em novembro de 1994, sobre se a “revitalização muçulmana” constituía uma ameaça para os interesses dos Estados Unidos no Oriente Médio, 61 por cento de uma amostragem de 35 mil norte-americanos interessados em política externa disseram que sim e apenas 28 por cento que não. Um ano antes, à pergunta de qual país representava o maior perigo para os Estados Unidos, uma amostragem aleatória da opinião pública apontara o Irã, a China e o Iraque como os três primeiros. Analogamente, ao pedido feito em 1994 para que identificassem “ameaças críticas” aos Estados Unidos, 72 por cento do povo e 61 por cento das autoridades em política externa apontaram a proliferação nuclear e 69 por cento do povo e 33 por cento das autoridades apontaram o terrorismo internacio¬ nal — duas questões amplamente associadas com o Islã. Além disso, 33 por cento do povo e 39 por cento das autoridades viam uma ameaça na possível expansão do fundamentalismo islâmico. Os europeus tinham atitudes semelhantes. Na primavera de 1991, por exemplo, 51 por cento do povo francês disseram que a principal ameaça para a França vinha do Sul, com apenas oito por cento dizendo que viria do Leste. Os quatro países que o povo francês mais temia eram todos muçulmanos: Iraque (52 por cento), Irã (35 por cento), Líbia (26 por cento) e Argélia (22 por cento). 12 Os líderes políticos ocidentais, inclusive o chanceler alemão e o primeiro-ministro francês, expressaram preocupações semelhantes, tendo o secretário-geral da OTAN declarado em 1995 que o fun¬ damentalismo islâmico era “pelo menos tão perigoso quanto o comunis¬ mo” tinha sido para o Ocidente, e “uma autoridade muito alta” do governo Clinton apontado o Islã como o rival mundial do Ocidente. 13 Com o virtual desaparecimento de uma ameaça militar vinda do Leste, o planejamento da OTAN está cada vez mais dirigido contra ameaças em potencial provenientes do Sul. Um analista do Exército norte-americano assinalou em 1992 que “a Linha Meridional” está subs¬ tituindo a Frente Central e “está rapidamente se tornando a nova linha de frente da OTAN”. Para enfrentar essas ameaças meridionais, os membros da OTAN situados ao sul — Itália, França, Espanha e Portugal — começaram um planejamento e manobras militares conjuntas e, ao mesmo tempo, convidaram os governos do Maghreb para consultas sobre formas de se contrapor aos extremistas islâmicos. Essas ameaças perce¬ bidas também ensejaram uma justificativa para a manutenção de subs¬ tancial presença militar dos Estados Unidos na Europa. Um antigo alto funcionário norte-americano assinalou que “conquanto as forças norte- americanas na Europa não sejam uma panacéia para os problemas criados pelo Islã fundamentalista, elas efetivamente lançam uma sombra pode¬ rosa sobre o planejamento militar em toda a área. Lembram-se do bem-sucedido desdobramento de forças norte-americanas, francesas e britânicas da Europa na Guerra do Golfo em 1990-91? As pessoas nessa região se lembram”. 14 E, poderia ele ter acrescentado, elas se lembram com medo, ressentimento e ódio. Tendo em vista as percepções que muçulmanos e ocidentais têm uns dos outros e mais a ascensão do extremismo islâmico, não é de surpreender que, logo após a Revolução Iraniana de 1979, tenha-se desenvolvido uma quase-guerra entre o Islã e o Ocidente. É uma quase-guerra por três motivos. Primeiro, não é todo o Islã que está lutando contra todo o Ocidente. Dois Estados fundamentalistas (Irã e Sudão), três Estados não-fundamentalistas (Iraque, Líbia e Síria), mais uma larga faixa de organizações fundamentalistas islâmicas, com apoio financeiro de outros países muçulmanos, como a Arábia Saudita, vêm lutando contra os Estados Unidos e, algumas vezes, contra a Grã-Breta¬ nha, a França e outros Estados e grupos ocidentais, bem como Israel e os judeus de forma geral. Segundo, é uma quase-guerra porque, fora a Guerra do Golfo de 1990-91, ela foi travada com meios limitados: terrorismo de um lado e poder aéreo, ações clandestinas e sanções econômicas do outro. Terceiro, é uma quase-guerra porque, embora a violência tenha persistido, ela não foi contínua, envolvendo ações intermi¬ tentes de um lado, que provocam respostas do outro. Contudo, uma quase-guerra é, mesmo assim, uma guerra. Mesmo excluindo-se as dezenas de milhares de soldados e civis iraquianos mortos pelos bombardeios ocidentais em janeiro-fevereiro de 1991, as mortes e outras baixas totalizam muitos milhares e ocorreram praticamente todos os anos desde 1979. Um número muito maior de ocidentais foram mortos nessa quase-guerra, em relação aos que foram mortos na guerra “de verdade” no Golfo. Além disso, ambos os lados identificaram esse conflito como uma guerra. Logo no início, Khomeini declarou, com muito acerto, que “o Irã está de fato em guerra com os Estados Unidos”, 15 e Khadafi proclama com regularidade uma guerra santa contra o Ocidente. Líderes muçulma¬ nos de outros grupos e Estados extremistas se pronunciaram em termos semelhantes. Do lado ocidental, os Estados Unidos classificaram sete países como “Estados terroristas”, cinco dos quais são muçulmanos (Irã, Iraque, Síria, Líbia e Sudão). Cuba e Coréia do Norte são os outros dois. Isso, na realidade, os identifica como inimigos, porque eles estão atacando os Estados Unidos e seus amigos com a arma mais eficaz de que dispõem, e assim reconhecem a existência de um estado de guerra 270 com eles. Funcionários norte-americanos repetidamente se referem a esses países como Estados “fora da lei", “de desforra” e “desgarrados” — desse modo colocando-os fora da ordem civilizada internacional e tornando-os alvos legítimos para contramedidas unilaterais ou multilate- rais. O governo dos Estados Unidos acusou os que colocaram a bomba no World Trade Center de terem a intenção de “desencadear uma guerra de terrorismo urbano contra os Estados Unidos” e afirmou que os conspiradores acusados de planejar outras bombas em Manhattan eram “soldados” numa luta “que envolve uma guerra” contra os Estados Unidos. Se os muçulmanos alegam que o Ocidente faz guerra contra o Islã e se os ocidentais alegam que grupos islâmicos fazem guerra contra o Ocidente, parece razoável concluir que algo muito parecido com uma guerra está em andamento. Nessa quase-guerra, cada lado capitalizou sobre suas próprias forças e as fraquezas do outro lado. Do ponto de vista militar, ela tem sido sobretudo uma guerra de terrorismo versus poder aéreo. Dedicados militantes fundamentalistas islâmicos se aproveitam das sociedades aber¬ tas do Ocidente e colocam carros-bombas em alvos selecionados. Os profissionais militares ocidentais se aproveitam dos céus abertos do Islã e lançam bombas inteligentes sobre alvos selecionados. Os participantes fundamentalistas islâmicos planejam o assassinato de ocidentais proemi¬ nentes; os Estados Unidos planejam a derrubada dos regimes fun¬ damentalistas islâmicos extremistas. Segundo o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, nos 15 anos entre 1980 e 1995, os Estados Unidos se engajaram em 17 operações militares no Oriente Médio, todas elas dirigidas contra muçulmanos. Até esta data, afora a Guerra do Golfo, cada lado manteve a intensidade da violência em níveis razoavelmente baixos e se absteve de rotular atos violentos como atos de guerra que exigiriam uma resposta total. A revista The Economist assinalou que “se a Líbia ordenasse a um de seus submarinos que afundasse um navio de passageiros norte-americano, os Estados Unidos tratariam isso como um ato de guerra por um governo e não pediriam a extradição do capitão do submarino. Em princípio, fazer explodir uma bomba em um avião de passageiros por meio do serviço secreto da Líbia não é em nada diferente”. 16 Os participantes dessa guerra empregam uns contra os outros táticas muito mais violentas do que os Estados Unidos e a União Soviética empregaram entre si na Guerra Fria. Os dirigentes norte-americanos afirmam que os muçulmanos envol¬ vidos na quase-guerra são pequena minoria, cujo uso da violência é repudiado pela grande maioria dos muçulmanos moderados. Pode ser assim, mas faltam provas para apoiar essa tese. Os protestos contra a violência antiocidental inexistem por completo nos países muçulmanos. Até mesmo os entrincheirados governos amigos e dependentes do Ocidente têm-se mostrado extraordinariamente reticentes quando se trata de condenar atos de terrorismo contra o Ocidente. Do outro lado, os governos europeus e a opinião pública têm de forma geral apoiado e raramente criticado as ações que os Estados Unidos empreenderam contra seus adversários muçulmanos, em flagrante contraste com a vigorosa oposição que muitas vezes expressaram às ações norte-ameri¬ canas contra a União Soviética e o comunismo durante a Guerra Fria. Nos conflitos civilizacionais, ao contrário dos ideológicos, as pessoas ficam do lado daquelas com as quais têm afinidades. O problema subjacente para o Ocidente não é o fundamentalismo islâmico. É o Islã, uma civilização diferente, cujas pessoas estão conven¬ cidas da superioridade de sua cultura e obcecadas com a inferioridade de seu poderio. O problema para o Islã não é a CIA ou o Departamento de Defesa dos Estados Unidos. É o Ocidente, uma civilização diferente cujas pessoas estão convencidas da universalidade de sua cultura e acreditam que seu poderio superior, mesmo que em declínio, lhes impõe a obrigação de estender sua cultura por todo o mundo. Esses são os ingredientes básicos que alimentam o conflito entre o Islã e o Ocidente. Ásia, China e Estados Unidos O Cadinho de Civilizações. As mudanças econômicas na Ásia, es¬ pecialmente na Ásia Oriental, são um dos desdobramentos mais impor¬ tantes do mundo na segunda metade do século XX. Ao se chegar aos anos 90, esse desenvolvimento econômico tinha gerado uma euforia econômica entre muitos observadores, que viam a Ásia Oriental e toda a Bacia do Pacífico vinculadas em redes comerciais em expansão constante e que iriam assegurar a paz e a harmonia entre as nações. Esse otimismo estava baseado na pressuposição altamente duvidosa de que o intercâmbio comercial é invariavelmente uma força em prol da paz. Isso, porém, não é verdade. O crescimento econômico cria instabilidade política dentro dos países e entre países, alterando a balança de poder entre países e regiões. O intercâmbio econômico põe as pessoas em contato, não as põe de acordo. Historicamente, ele muitas vezes produziu uma percepção mais profunda das diferenças entre os povos e estimulou medos recíprocos. O comércio entre os países produz conflitos ao mesmo tempo que lucros. Se a experiência do passado se mantiver, a Ásia do esplendor econômico gerará uma Ásia de sombras políticas, uma Ásia de instabilidade e de conflito. O desenvolvimento econômico da Ásia e a crescente autoconfiança das sociedades asiáticas estão perturbando a política internacional de pelo menos três modos. Primeiro, o desenvolvimento econômico habilita os Estados asiáticos a expandir sua capacidade militar, promove incerteza quanto às futuras relações entre esses países e traz à tona questões e rivalidades que haviam sido reprimidas durante a Guerra Fria, lançando assim uma sombra de instabilidade e conflito em potencial sobre a região. Segundo, o desenvolvimento econômico aumenta a intensidade de conflitos entre as sociedades asiáticas e o Ocidente, principalmente os Estados Unidos, e reforça a capacidade das sociedades asiáticas de levar a melhor nesses embates. Terceiro, o crescimento econômico da maior potência da Ásia aumenta a influência chinesa na região e a probabilidade de a China reafirmar sua tradicional hegemonia na Ásia Oriental, obrigando assim outras nações a “se atrelarem” e se acomodarem a esse desdobra¬ mento, ou a “contrabalançarem” e tentarem conter a influência chinesa. Durante os vários séculos de ascendência ocidental, as relações internacionais que tinham importância eram um jogo ocidental que se desenrolava entre as principais potências ocidentais, suplementado, até certo ponto, primeiro pela Rússia, no século XVIII, e depois pelo Japão, no século XX. A Europa era a principal arena dos grandes conflitos de poder e cooperação, e mesmo durante a Guerra Fria, a principal linha de confrontação entre as superpotências estava no coração da Europa. Se é que as relações internacionais importantes no pós-Guerra Fria têm uma área primordial, ela está na Ásia e, em especial, na Ásia Oriental. A Ásia é o cadinho de civilizações. A Ásia Oriental sozinha contém sociedades que pertencem a seis civilizações — japonesa, sínica, ortodo¬ xa, budista, muçulmana e ocidental — e a Ásia Meridional acrescenta o hinduísmo. Os Estados-núcleos de quatro civilizações — Japão, China, Rússia e Estados Unidos — são atores principais na Ásia Oriental; a Ásia Meridional acrescenta a índia, e a Indonésia é uma potência muçulmana emergente. Além disso, a Ásia Oriental contém várias potências de nível médio, com crescente poderio econômico, como a Coréia do Sul, Taiwan e Malásia, além de um Vietnã potencialmente forte. O resultado é um quadro altamente complexo de relações internacionais, comparável de muitos modos às que existiram na Europa nos séculos XVIII e XIX, e cheia de toda a fluidez e incerteza que caracteriza as situações multipolares. O fato de ter múltiplas potências e de ser multicivilizacional distingue a Ásia Oriental da Europa Ocidental, e as diferenças econômicas e políticas reforçam esse contraste. Todos os países da Europa Ociden¬ tal são democracias estáveis, possuem economias de mercado e estão num alto nível de desenvolvimento econômico. Em meados dos anos 90, a Ásia Oriental incluía uma democracia estável, várias democracias novas e instáveis, quatro das cinco ditaduras comunistas que restam no mundo, além de governos militares, ditaduras pessoais e sistemas auto¬ ritários, com dominação de um só partido. Os níveis de desenvolvimento econômico variam dos do Japão e Singapura até os do Vietnã e da Coréia do Norte. Havia uma tendência generalizada na direção da criação de mercados e da abertura econômica, mas os sistemas econômicos ainda cobriam uma larga faixa, desde a economia estatizada da Coréia do Norte, passando por diversas combinações de controle estatal e empresa privada, até o laissez-faire de Hong Kong. Exceto pela ocasional ordem, algumas vezes estabelecida na região pela hegemonia chinesa, não existiu na Ásia Oriental uma sociedade internacional (no sentido sociológico do termo) como houve na Europa Ocidental. 17 No final do século XX, a Europa está ligada por um complexo extraordinariamente denso de instituições internacionais: a União Européia, a OTAN, a União Européia Ocidental, o Conselho da Europa, a Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa, entre outras. A Ásia Oriental não teve nada comparável, com exceção da ASEAN, que não inclui as potências principais, tem, de modo geral, se esquivado de questões de segurança e está apenas começando a se mover na direção das formas mais primitivas de integração econômica. Nos anos 90, foi criada a APEC, organização muito mais ampla, que incorpora a maioria dos países da Bacia do Pacífico, porém ela é ainda mais fraca do que a ASEAN no que se refere a debater questões concretas. Não há nenhuma outra instituição multilateral importante que reúna as principais potências asiáticas. Ainda em contraste com a Europa Ocidental, sao muitas as sementes de conflito entre Estados na Ásia Oriental, Dois pontos de perigo amplamente identificados envolvem as duas Coréias e as duas Chinas. Eles são, porém, resquícios da Guerra Fria. As diferenças ideológicas têm uma importância decrescente e, ao se chegar a 1995, as relações tinham-se expandido de forma significativa entre as duas Chinas e tinham começado a se desenvolver entre as duas Coréias. A probabilidade de coreanos lutarem contra coreanos existe, porém é baixa. As perspectivas de chineses lutarem contra chineses são maiores, mas ainda limitadas, a menos que os taiwaneses renunciem à sua identidade chinesa e formal¬ mente constituam uma República de Taiwan independente. Um do¬ cumento militar chinês citou, em tom de aprovação, um general dizendo que “deve haver limites para as brigas entre membros de uma família'’. 18 Conquanto a violência entre as duas Coréias ou as duas Chinas continue sendo possível, um enfoque civilizacional sugere que os aspectos culturais em comum irão, com o tempo, erodir essa probabilidade. Na Ásia Oriental, os conflitos herdados da Guerra Fria estão sendo suplementados e suplantados por outros possíveis conflitos que reflitam antigas rivalidades e novos relacionamentos econômicos. As análises da segurança da Ásia Oriental no começo dos anos 90 se referiam de modo regular à Ásia Oriental como “uma vizinhança perigosa”, como “madura para as rivalidades”, como uma região de “várias guerras frias”, como “caminhando de volta para o futuro”, no qual prevalecerão a guerra e a instabilidade. 19 Em contraste com a Europa Ocidental, nos anos 90, a Ásia Oriental tinha disputas territoriais não resolvidas, das quais as mais importantes abrangem disputas entre a Rússia e o Japão em torno das ilhas ao norte, e entre a China, o Vietnã, as Filipinas e, possivelmente, outros Estados do Sudeste Asiático na área do Mar do Sul da China. As divergências sobre fronteiras entre a China, de um lado, e a Rússia e a índia, do outro, diminuíram em meados dos anos 90, mas poderiam ressurgir, como também poderia acontecer com as reivindicações chine¬ sas na Mongólia. Havia movimentos de insurgência ou secessão, em alguns casos apoiados de fora, em Mindanao, Timor Oriental, Tibete, sul da Tailândia e leste de Myanmar. Além disso, embora houvesse paz entre os Estados da Ásia Oriental em meados dos anos 90, durante os 50 anos precedentes ocorreram guerras de grandes proporções na Coréia e no Vietnã, e a potência principal da Ásia — a China — lutou contra os norte-americanos e contra quase todos os seus vizinhos, incluindo coreanos, vietnamitas, chineses nacionalistas, indianos, tibetanos e rus¬ sos. Em 1993, uma análise feita por militares chineses identificou oito pontos “quentes” regionais que ameaçavam a segurança militar da China, e a Comissão Militar Central da China chegou à conclusão de que, de modo geral, a perspectiva de segurança na Ásia Oriental era “muito sombria”. Depois de séculos de lutas, a Europa Ocidental está em paz e a guerra é impensável. Na Ásia Oriental não o é e, como sugeriu Aaron Friedberg, o passado da Europa poderia ser o futuro da Ásia. 20 O dinamismo econômico, as disputas territoriais, as rivalidades reativadas e as incertezas políticas alimentaram aumentos significativos nos orçamentos militares e na capacidade militar dos países da Ásia Oriental nos anos 80 e 90. Aproveitando-se de sua nova riqueza e, na maioria dos casos, de populações com bom nível de instrução, os governos da Ásia Oriental tomaram providências para substituir exércitos “de camponeses”, grandes e pobremente equipados, por forças armadas menores, mais profissionais e tecnologicamente sofisticadas. Ante dúvi¬ das crescentes quanto ao grau de engajamento dos Estados Unidos na Ásia Oriental, esses países visam a poder contar consigo próprios em termos militares. Embora os países da Ásia Oriental continuassem a importar grandes quantidades de armamentos da Europa, dos Estados Unidos e da antiga União Soviética, passaram a dar preferência à importação de tecnologias que os habilitassem a produzir internamen¬ te aviões sofisticados, mísseis e equipamento eletrônico. O Japão e os Estados sínicos — China, Taiwan, Singapura e Coréia do Sul — possuem indústrias de armamentos cada vez mais sofisticadas. Dada a configuração geográfica litorânea da Ásia Oriental, a ênfase tem sido na projeção de forças e na capacidade aérea e naval. Em conseqüência, nações que anteriormente não estavam militarmente capacitadas a lutar umas contra as outras estão cada vez mais adquirindo essa capacidade. Esses aumentos de poder militar têm tido pouca trans¬ parência e, conseqüentemente, induziram mais suspeitas e incertezas. 21 Numa situação de relações de poder em mutação, cada governo, legítima e necessariamente, se pergunta: “Daqui a 10 anos, quem será meu inimigo e quem, se houver algum, será meu amigo?” As Guerras FriasÁsia-Estados Unidos. No final dos anos 80 e começo dos 90, os relacionamentos entre os Estados Unidos e os países asiáticos, com exceção do Vietnã, se tornaram cada vez mais antagônicos, enquan¬ to diminuía a capacidade dos Estados Unidos de levar a melhor nessas controvérsias. Essas tendências foram especialmente marcadas com respeito às principais potências da Ásia Oriental, e as relações norte-ame¬ ricanas com a China e o Japão evoluíram ao longo de linhas paralelas. Chineses e norte-americanos e japoneses e norte-americanos falaram do desenvolvimento de guerras frias entre os seus respectivos países. 22 Essas tendências simultâneas começaram durante o governo Bush e se acele¬ raram no governo Clinton. Ao se chegar a meados da década de 90, as relações dos Estados Unidos com as duas principais potências asiáticas poderiam ser, na melhor das hipóteses, descritas como “tensas”, e parecia haver poucas perspectivas de que essa tensão diminuísse.* No começo dos anos 90, as relações entre o Japão e os Estados Unidos ficaram cada vez mais aquecidas por controvérsias a respeito de uma ampla gama de questões, incluindo o papel do Japão na Guerra do Golfo, a presença militar norte-americana no Japão, as atitudes japonesas quanto à política norte-americana sobre direitos humanos em relação à China e outros países, a participação japonesa em missões de manuten¬ ção da paz e, o que era mais importante, as relações econômicas, principalmente o comércio internacional. As referências a guerras comer¬ ciais viraram lugar-comum. 23 Autoridades norte-americanas, sobretudo no governo Clinton, exigiram mais e mais concessões do Japão; autori¬ dades japonesas resistiram a essas exigências de maneira cada vez mais enérgica. Cada controvérsia comercial Japão-Estados Unidos ficava mais azeda e mais difícil de ser resolvida do que a anterior. Em março de 1994, por exemplo, o presidente Clinton assinou um decreto que lhe conferia poderes para impor ao Japão sanções comerciais mais severas, o que causou protestos não só dos japoneses còmo também do secretário-geral do GATT, a principal organização mundial de comércio. Pouco tempo depois, o Japão respondeu com um “cáustico ataque” contra a política norte-americana e, logo em seguida, os Estados Unidos “acusaram formalmente o Japão” de discriminar empresas norte-americanas ao celebrar contratos do governo. Na primavera de 1995, o governo Clinton ameaçou impor tarifas de 100 por cento aos carros de luxo de fabricação japonesa, chegando-se a um acordo que evitou essa medida pouco antes * Deve-se observar que, pelo menos nos Estados Unidos, existe uma confusão de terminologia a respeito das relações entre os países. Considera-se que “boas” relações são as de amizade e cooperação; “más” relações são as hostis e antagônicas. Esse emprego dos termos conjumina duas dimensões muito diferentes: amizade versus hostilidade e desejável versus indesejável. Isso reflete a pressuposição tipicamente norte-americana de que a harmonia nas relações internacionais é sempre boa e de que o conflito é sempre mau. Entretanto, a identificação de boas relações com relações de amizade só é válida se o conflito nunca for desejável. A maioria dos norte-americanos achou que foi “bom” o governo Bush ter transformado em “más” as relações dos Estados Unidos com o Iraque ao ir à guerra por causa do Kuwait. A fim de evitar confusões sobre se “boas” quer dizer desejáveis ou harmoniosas e “más” quer dizer indesejáveis ou hostis, empregarei “boas” e “más” apenas para significar desejáveis ou indesejáveis. É interessante, embora cause perplexidade, que os norte-americanos endossem a competição, na sociedade norte-americana, entre opiniões, grupos, partidos, órgãos do governo e empresas. Por que os norte-americanos acham que o conflito é bom no seio de sua própria sociedade mas é mau entre sociedades, constitui uma questão fascinante que, at onde eu sei, ninguém jamais estudou com seriedade. que as sanções entrassem em vigor. Algo muito parecido com uma guerra comercial estava nitidamente em andamento entre os dois países. Ao se chegar a meados dos anos 90, a acrimônia das relações tinha chegado a um ponto tal que os principais políticos japoneses começaram a ques¬ tionar a presença militar norte-americana no Japão. Durante esses anos, a opinião pública em cada um dos dois países foi sistematicamente assumindo uma disposição menos favorável para com o outro. Em 1985, 87 por cento do povo norte-americano diziam ter uma atitude de forma geral amistosa para com o Japão. Em 1990, esse total caiu para 67 por cento e, ao se chegar a 1993, apenas 50 por cento dos norte-americanos tinham uma disposição favorável para com o Japão, e quase dois terços disseram que procuravam evitar comprar produtos japoneses. Em 1985, 73 por cento dos japoneses descreviam as relações Japão-Estados Unidos como amistosas; ao se chegar a 1993, 64 por cento diziam que elas eram inamistosas. O ano de 1991 marcou o ponto crucial de inflexão na mudança da opinião pública, saindo do formato da Guerra Fria. Nesse ano, cada país substituiu a União Soviética na percepção do outro. Pela primeira vez, os norte-americanos classificaram o Japão à frente da União Soviética como uma ameaça à segurança norte-americana e, pela primeira vez, os japoneses classificaram os Estados Unidos à frente da União Soviética como uma ameaça à segurança do Japão. 24 As mudanças nas atitudes do povo foram acompanhadas por mudanças nas percepções da elite. Nos Estados Unidos, surgiu um grupo significativo de acadêmicos, intelectuais e revisionistas políticos que enfatizaram as diferenças culturais e estruturais entre os dois países e a necessidade de que os Estados Unidos adotassem uma linha muito mais dura ao tratar com o Japão questões econômicas. As imagens do Japão na mídia popular, nas publicações de não-ficção e nos romances populares ficaram cada vez mais pejorativas. De modo paralelo, apareceu no Japão uma nova geração de líderes políticos que não tinham tido a experiência do poderio norte-americano durante a II Guerra Mundial nem da benevolência norte-americana após a mesma, que se orgulhavam muito dos êxitos econômicos japoneses e que estavam perfeitamente dispostos a resistir às exigências norte-americanas por meios que não ocorreriam aos seus antecessores. Esses “elementos de resistência” japoneses eram a contrapartida dos “revisionistas” norte-americanos e, em ambos os países, os candidatos descobriram que advogar uma linha-dura em questões que afetavam as relações Japão-Estados Unidos caía bem com os eleitores. Durante o final da década de 80 e início da de 90, as relações dos Estados Unidos com a China também ficaram cada vez mais antagônicas. Os conflitos entre os dois países, disse Deng Xiaoping em setembro de 1991, constituíam “uma nova guerra fria”, expressão repetida com regularidade na imprensa chinesa. Em agosto de 1995, a agência de notícias do governo declarou que “as relações China-Estados Unidos estão no seu nível mais baixo desde que os dois países estabeleceram relações diplomáticas” em 1979- As autoridades chinesas denunciavam com regularidade uma alegada intromissão nos assuntos chineses. Um documento interno do governo chinês, de 1992, argumentou que “nós devíamos ressaltar que, desde que se tornaram a única superpotência, os Estados Unidos estão tentando, de forma descontrolada, adotar uma nova conduta hegemônica e uma nova política de poder, bem como que o seu poderio está em declínio relativo e que há limites para o que eles podem fazer”. Em agosto de 1995, o presidente Jiang Zemin disse que “as forças ocidentais hostis não abandonaram por um só momento sua trama de ocidentalizar e ‘dividir’ nosso país”. Ao se chegar a 1995, dizia-se haver um amplo consenso entre os líderes e os estudiosos chineses no sentido de que os Estados Unidos estavam tentando “dividir territorial¬ mente a China, subvertê-la politicamente, contê-la estrategicamente e frustrá-la economicamente”. 25 Havia fundamento para todas essas acusações. Os Estados Unidos permitiram que o presidente Lee, de Taiwan, fosse aos Estados Unidos, venderam 150 F-16 para Taiwan, designaram o Tibete um “território soberano ocupado”, condenaram a China por seus abusos contra os direitos humanos, negaram a Pequim as Olimpíadas do ano 2000, normalizaram suas relações com o Vietnã, acusaram a China de exportar componentes de armas químicas para o Irã, impuseram sanções comer¬ ciais à China pela venda de equipamento para mísseis para o Paquistão e ameaçaram a China com sanções adicionais em função de questões econômicas e, ao mesmo tempo, barraram a admissão da China na Organização Mundial do Comércio. Cada lado acusou o outro de má fé: segundo os norte-americanos, a China violou entendimentos sobre a exportação de mísseis, direitos de propriedade intelectual e trabalho de detentos; segundo os chineses, os Estados Unidos violaram enten¬ dimentos ao permitir que o presidente Lee viajasse aos Estados Unidos e ao vender aviões de caça sofisticados a Taiwan. O grupo mais importante na China com uma postura antagônica para com os Estados Unidos era o dos militares, que, aparentemente, exerciam sistematicamente pressão sobre o governo a fim de que assumisse uma linha mais dura para com os Estados Unidos. Em junho de 1993, ao que consta, 100 generais chineses remeteram uma carta a Deng reclamando da política “passiva” do governo em relação aos Estados Unidos e do fato de não ter resistido às tentativas norte-ameri¬ canas de “chantagear” a China, No outono desse ano, um documento confidencial do governo chinês delineou as razões militares para um conflito com os Estados Unidos: “Devido ao fato de que a China e os Estados Unidos têm antigos conflitos em torno de suas ideologias, sistemas sociais e políticas externas diferentes, será impossível melhorar de forma fundamental as relações sino-norte-americanas.” Como os norte-americanos acreditam que a Ásia Oriental se tornará “o coração da economia mundial, (...) os Estados Unidos não podem tolerar um adversário poderoso na Ásia Oriental”. 26 Em meados dos anos 90, as autoridades e os órgãos chineses apresentavam de modo rotineiro os Estados Unidos como uma potência hostil. O crescente antagonismo entre a China e os Estados Unidos foi em parte impulsionado pela política interna em ambos os países. Tal como aconteceu com o Japão, a opinião pública norte-americana bem-infor- mada ficou dividida. Muitas personalidades do establishment propugna¬ vam por um engajamento construtivo com a China, expandindo as relações econômicas e atraindo a China para a chamada comunidade das nações. Outros enfatizavam a ameaça em potencial da China para os interesses norte-americanos, argumentavam que medidas conciliatórias em relação à China produziam resultados negativos e instavam por uma política de firme contenção. Em 1993, a opinião pública norte-americana colocava a China em segundo lugar, perdendo apenas para o Irã, como o país que representava o maior perigo para os Estados Unidos. A política norte-americana muitas vezes operou de modo a produzir gestos simbó¬ licos, como a visita de Lee a Comell e o encontro de Clinton com o dalai-lama, que deixaram os chineses indignados, enquanto, ao mesmo tempo, levou o governo a sacrificar considerações de direitos humanos por interesses econômicos, como na prorrogação do tratamento de Nação Mais Favorecida. Do lado chinês, o governo precisava de um novo inimigo para reforçar os chamamentos ao nacionalismo chinês e para legitimar seu poder. Enquanto se estendia a luta pela sucessão, aumentou a influência dos militares, e o presidente Jiang e outros concorrentes ao poder pós-Deng não podiam se dar ao luxo de parecer frouxos na promoção dos interesses chineses. Nessas condições, no transcurso de uma década, as relações dos Estados Unidos se “deterioraram” tanto com o Japão como com a China. Essa mudança naá relações asiãtico-norte-americanas foi tão ampla e abrangeu tantas áreas diferentes de questões que parece improvável que suas causas possam ser encontradas em conflitos de interesses individuais a propósito de peças de automóvel, vendas de câmeras fotográficas ou bases militares por um lado, ou prisão de dissidentes, transferências de armamentos ou pirataria intelectual do outro. Além disso, era claramente contrário ao interesse nacional norte-americano permitir que suas rela¬ ções ficassem mais conflituosas com as duas principais potências asiáti¬ cas. As regras elementares de diplomacia e de política de poder deter¬ minam que os Estados Unidos deviam tentar jogar uma contra a outra ou, pelo menos, tentar suavizar as relações com uma se elas estivessem ficando mais conflituosas com a outra. No entanto, tal não aconteceu. Havia fatores mais amplos atuando para promover conflitos nas relações asiático-norte-americanas e tornar mais difícil a solução de questões individuais que surgiam nessas relações. Esse fenômeno generalizado tinha causas generalizadas. Em primeiro lugar, uma maior interação entre as sociedades asiáti¬ cas e os Estados Unidos, sob a forma de expansão de comunicações, de comércio, de investimentos e de conhecimento mútuo, multiplicou as questões e os assuntos nos quais os interesses podiam se chocar, como de fato aconteceu. Essa maior interação tornou ameaçadoras, para cada uma dessas sociedades, práticas e concepções da outra que, à distância, tinham parecido inofensivamente exóticas. Em segundo lugar, a ameaça soviética da década de 50 levara ao tratado de segurança mútua Estados Unidos-Japão. O crescimento do poderio soviético nos anos 70 levara ao estabelecimento de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a China em 1979 e à cooperação ad hoc entre os dois países a fim de promover seu interesse comum na neutralização daquela ameaça. O fim da Guerra Fria retirou esse interesse comum predominante dos Estados Unidos e das potências asiáticas, não deixando coisa alguma em seu lugar. Conseqüentemente, vieram à tona outras questões em que havia significativos conflitos de interesse. Em terceiro lugar, o desenvolvimento econômico dos países da Ásia Oriental alterou a balança de poder entre eles e os Estados Unidos. Como vimos, os asiáticos cada vez mais afirmavam a validade de seus valores e instituições, bem como a superioridade de sua cultura em relação à cultura ocidental. Por outro lado, os norte-americanos tendiam a supor, especialmente depois da sua vitória na Guerra Fria, que os seus valores e instituições tinham relevância universal e que eles ainda dispunham do poder para moldar as políticas interna e externa das sociedades asiáticas. Esse ambiente internacional em mutação trouxe à baila as diferenças culturais fundamentais entre as civilizações asiática e norte-americana. No seu nível mais amplo, a ética confuciana, que permeia muitas das sociedades asiáticas, ressalta os valores de autoridade, hierarquia, subordinação dos direitos e interesses individuais, importância do consenso, evitar a confrontação, “salvar a face” e, de modo geral, supremacia do Estado sobre a sociedade e da sociedade sobre o indivíduo. Além disso, os asiáticos tendiam a pensar na evolução de suas sociedades em termos de séculos e milênios e a dar prioridade à maximização dos ganhos a longo prazo. Essas atitudes contrastam com a primazia nas concepções norte-americanas de liberdade, igualdade, democracia e individualismo, e a propensão norte-americana para des¬ confiar do governo, opor-se à autoridade, promover pesos e contrapesos, encorajar a competição, tornar sacrossantos os direitos do indivíduo e esquecer o passado, ignorar o futuro e se concentrar na maximização dos ganhos imediatos. As fontes de conflito estão nas diferenças fun¬ damentais de sociedade e de cultura. Essas diferenças tiveram conseqüências especiais para as relações entre os Estados Unidos e as principais sociedades asiáticas. Os diplo¬ matas desenvolveram grandes esforços para resolver os conflitos norte- americanos com o Japão a propósito de questões econômicas, es¬ pecialmente o superávit comercial japonês e a resistência do Japão aos produtos e investimentos norte-americanos. As negociações comerciais Estados Unidos-Japão assumiram muitas das características das negociações sobre controle de armamentos soviético-norte-americanas durante a Guerra Fria. Ao se chegar a 1995, as primeiras tinham produzido ainda menos resultados do que estas últimas porque esses conflitos provinham das diferenças fundamentais das duas economias, especialmente da natureza singular da economia japonesa no âmbito da economia dos principais países industrializados. As importações pelo Japão de artigos manufaturados totalizaram cerca de 3,1 por cento do seu PNB, comparados com uma média de 7,4 por cento nas outras principais potências industriais. Os investimentos estrangeiros diretos no Japão somaram um diminuto 0,7 por cento do PIB, comparado com 28,6 por cento nos Estados Unidos e 38,5 por cento na Europa. O Japão foi o único dos países industrializados a ter superávit s orçamentários nos primeiros anos da década de 90. 27 De modo geral, a economia japonesa não se comportou como ditam as leis universais de economia ocidental. A suposição simplista dos economistas ocidentais nos anos 80 de que a desvalorização do dólar reduziría o superávit comercial japonês revelou-se errada. Embora o acordo do Plaza, de 1985, tivesse retificado o déficit comercial norte-ame¬ ricano com a Europa, ele teve pouco efeito sobre o déficit com o Japão. Enquanto o iene ficou com seu valor a menos de 100 por dólar, o superávit comercial japonês permaneceu alto e até mesmo aumentou. Os japoneses puderam assim manter, ao mesmo tempo, uma moeda forte e um superávit comercial. O pensamento econômico ocidental tende a definir uma compensação negativa entre desemprego e inflação, achan¬ do-se que, com uma taxa de desemprego significativamente abaixo de cinco por cento, se desencadeariam pressões inflacionárias. No entanto, durante anos, o Japão teve uma taxa de desemprego em média inferior a três por cento e uma inflação de um e meio por cento em média. Ao se chegar à década de 90, os economistas tanto norte-americanos como japoneses tinham chegado a identificar e conceituar as diferenças básicas entre esses dois sistemas econômicos. Um estudo cuidadoso chegou à conclusão de que o baixo nível de importações de manufaturados peculiar ao Japão “não pode ser explicado através de fatores econômicos padrão”. Um outro analista argumentou que “a economia japonesa não segue a lógica ocidental, independentemente do que digam os que fazem prognósticos no Ocidente, pela simples razão de que ela não é uma economia livre de mercado do tipo ocidental. Os japoneses (...) inven¬ taram um tipo de economia que se comporta de modos que enganam os poderes de previsão dos observadores ocidentais”. 28 O que explica o caráter próprio da economia japonesa? Entre os principais países industrializados, a economia japonesa é única porque a sociedade japonesa é não-ocidental de um modo único. A sociedade e cultura japonesas diferem das ocidentais, e especialmente da sociedade e cultura norte-americanas. Essas diferenças foram ressaltadas em todas as análises comparativas sérias do Japão e Estados Unidos. 29 A solução das questões econômicas entre Japão e Estados Unidos depende de mudanças fundamentais na natureza de uma, ou de ambas, dessas economias, o que, por sua vez, depende de mudanças básicas na sociedade e na cultura de um ou de ambos os países. Tais mudanças não são impossíveis. As sociedades e as culturas de fato mudam. Isso pode decorrer de um importante fato traumático: a derrota total na II Guerra Mundial transformou dois dos países mais militaristas do mundo em dois 9íU dos mais pacifistas. Entretanto, parece improvável que Estados Unidos ou Japão venham a impor uma Hiroxima econômica um ao outro. O desenvolvimento econômico também pode mudar profundamente a estrutura social e a cultura, como ocorreu na Espanha entre o início da década de 50 e o final da de 70, e talvez a riqueza econômica faça do Japão uma sociedade mais parecida com a norte-americana, orientada para o consumo. No final da década de 80, tanto no Japão como nos Estados Unidos havia quem sustentasse que seu país devia ficar mais parecido com o outro. De uma forma limitada, o acordo nipo-norte-americano de Iniciativas sobre Impedimentos Estruturais foi planejado para promover essa con¬ vergência. Seu insucesso, bem como o de outras tentativas análogas, demonstra o grau em que as diferenças econômicas estão profundamente enraizadas nas culturas das duas sociedades. Enquanto os conflitos entre os Estados Unidos e a Ásia têm suas fontes nas diferenças culturais, os desfechos desses conflitos refletiram a mudança nas relações de poder entre os Estados Unidos e a Ásia. Nessas disputas, os Estados Unidos lograram algumas vitórias, mas a tendência foi na direção da Ásia e a mudança no poderio exacerbou ainda mais esses conflitos. Os Estados Unidos esperavam que os governos asiáticos os aceitariam como o líder da “comunidade internacional” e anuíssem à aplicação dos princípios e valores ocidentais a suas culturas. Os asiáticos, por outro lado, como disse o secretário-assistente de Estado Winston Lord, estavam “cada vez mais cônscios e orgulhosos de suas realizações”, esperavam ser tratados de igual para igual, e tendiam a ver os Estados Unidos como “uma babá internacional, se não um brutamontes”. Entre¬ tanto, no seio da cultura norte-americana, imperativos profundos impul¬ sionam os Estados Unidos para ser pelo menos uma babá, se não um brutamontes, nas relações internacionais e, em conseqüência, as expec¬ tativas norte-americanas estavam cada vez mais em contradição com as asiáticas. Numa ampla gama de questões, os dirigentes japoneses e de outros países asiáticos aprenderam a dizer não aos seus interlocutores norte-americanos, dito às vezes em versões asiáticas polidas de “vá passear”. O ponto de inflexão simbólico das relações asiático-norte- americanas foi talvez o que uma alta autoridade japonesa denominou de o “primeiro grande desastre de trem” das relações nipo-norte-ame- ricanas, que se deu em fevereiro de 1994, quando o primeiro-ministro Morihiro Hosokawa rejeitou com firmeza a exigência do presidente Clinton de que se fixassem metas numéricas para as importações pelo Japão de artigos manufaturados norte-americanos. Uma outra autoridade japonesa comentou que “não poderíamos ter imaginado que algo assim acontecesse até mesmo um ano atrás”. O ministro do Exterior japonês, um ano depois, sublinhou essa mudança ao declarar que, numa era de competição econômica entre nações e regiões, o interesse nacional japonês era mais importante do que sua “mera identidade” como um membro do Ocidente. 30 A paulatina adaptação norte-americana à alterada balança de poder se refletiu na política norte-americana em relação ã Ásia nos anos 90. Em primeiro lugar, de fato reconhecendo que careciam da vontade e/ou da capacidade para pressionar as sociedades asiáticas, os Estados Unidos separaram áreas de questões sobre as quais poderiam ter algum poder de influência das áreas de questões nas quais ocorriam conflitos. Embora Clinton tivesse proclamado que os direitos humanos cons¬ tituíam uma das primeiras prioridades da política externa norte-ame¬ ricana para com a China, em 1994 ele respondeu às pressões dos empresários norte-americanos, de Taiwan e de outras fontes, desvin¬ culando os direitos humanos das questões econômicas e abandonando a tentativa de empregar a prorrogação da condição de Nação Mais Favorecida como meio para influenciar o comportamento chinês em relação aos dissidentes políticos. Numa providência paralela, o gover¬ no desvinculou formalmente sua política de segurança para com o Japão, na qual presumivelmente teria capacidade de influência, das questões comerciais e de outras questões econômicas, em cujo con¬ texto suas relações com o Japão eram altamente conflituosas. Dessa forma, os Estados Unidos abandonaram armas que poderiam ter empre¬ gado para promover os direitos humanos na China e concessões comer¬ ciais no Japão. Em segundo lugar, os Estados Unidos perseguiram reiteradamente um rumo de reciprocidade antecipada com as nações asiáticas, fazendo concessões na expectativa de que elas induziriam concessões comparᬠveis por parte dos asiáticos. Muitas vezes essa linha de ação foi justificada por referências à necessidade de manter um “engajamento construtivo” ou “diálogo” com o país asiático em pauta. Entretanto, na maioria das vezes, esse país asiático interpretou a concessão como sinal da fraqueza norte-americana e, por conseguinte, concluiu que poderia ir ainda mais longe na rejeição das exigências norte-americanas. Esse padrão de comportamento foi particularmente notável em relação à China, que respondeu à desvinculação pelos Estados Unidos da condição de Nação Mais Favorecida com uma nova e intensa rodada de violações de direitos humanos. Devido à predileção norte-americana por identificar “boas” relações com relações “amistosas”, os Estados Unidos ficam em conside¬ rável desvantagem para competir com as sociedades asiáticas, que identificam como “boas” as relações que produzem vitórias para si. Para os asiáticos, as concessões norte-americanas não devem ser objeto de reciprocidade; devem ser exploradas. Em terceiro lugar, desenvolveu-se um padrão nos renitentes confli¬ tos Estados Unidos-Japão por questões comerciais, nos quais os Estados Unidos faziam exigências ao Japão e ameaçavam com sanções caso elas não fossem atendidas. Seguiam-se longas negociações e então, no último momento antes que as sanções entrassem em vigor, anunciava-se um acordo. Os acordos eram geralmente redigidos de modo tão ambíguo que os Estados Unidos podiam bradar vitória de princípio e os japoneses podiam implementar ou não o acordo como bem entendessem, e tudo prosseguia como antes. De maneira análoga, os chineses assentiam com relutância a declarações de princípios amplos a respeito de direitos humanos, propriedade intelectual ou proliferação e simplesmente as interpretavam de modo muito diferente dos Estados Unidos, e continua¬ vam seguindo suas diretrizes anteriores. Essas diferenças de cultura e as alterações na balança de poder entre a Ásia e os Estados Unidos encorajaram as sociedades asiáticas a apoiar umas às outras em seus conflitos com os Estados Unidos. Em 1994, por exemplo, praticamente todos os países asiáticos, “da Austrália à Malásia e à Coréia do Sul”, se congregaram em apoio ao Japão na sua resistência contra a exigência norte-americana de metas numéricas para as impor¬ tações. Uma congregação semelhante se deu, simultaneamente, em apoio ao tratamento de Nação Mais Favorecida para a China, com o primeiro- ministro Hosokawa na dianteira, argumentando que os conceitos ociden¬ tais de direitos humanos não podiam ser “aplicados cegamente”, e Lee Kuan Yew, de Singapura, advertindo que, se pressionarem a China, “os Estados Unidos se verão inteiramente isolados no Pacífico”. 31 Em outra demonstração de solidariedade, asiáticos, africanos e outros povos se congregaram atrás do Japão em apoio à reeleição de um japonês que ocupava o cargo de diretor da Organização Mundial de Saúde, contra a oposição do Ocidente, e o Japão promoveu a candidatura de um sul-coreano para dirigir a Organização Mundial do Comércio, contra o candidato dos Estados Unidos, Carlos Salinas, ex-presidente do México. Os registros mostram de forma indiscutível que ao se chegar aos anos 90, com respeito a questões relacionadas ao além-Pacífico, cada país da 287 Ásia Oriental sentia que tinha muito mais em comum com outros países da Ásia Orientai do que com os Estados Unidos. O fim da Guerra Fria, a crescente interação entre a Ásia e a América e o declínio relativo do poderio norte-americano trouxeram assim à tona o choque de culturas entre os Estados Unidos e o Japão e as outras sociedades asiáticas, capacitando estes últimos a resistir às pressões norte-americanas. A ascensão da China representava um problema mais fundamental para os Estados Unidos. Os conflitos dos Estados Unidos com a China cobriam uma gama muito mais ampla de questões do que com o Japão, abrangendo questões econômicas, direitos humanos, Tibete, Taiwan, o Mar do Sul da China e a proliferação de armamentos. Os Estados Unidos e a China não partilhavam objetivos comuns em nenhuma das principais questões de política. As diferenças vão de uma ponta à outra do quadro. Tal como no caso do Japão, esses conflitos estavam, em grande parte, baseados nas culturas diferentes das duas sociedades. Os conflitos entre os Estados Unidos e a China, porém, também envolviam questões fundamentais de poder. A China não está disposta a aceitar a liderança ou hegemonia norte-americana no mundo; os Estados Unidos não estão dispostos a aceitar a liderança ou hegemonia chinesa na Ásia. Durante mais de 200 anos os Estados Unidos tentaram impedir o surgimento de uma potência com predomínio absoluto na Europa, Durante quase 200 anos, a começar por sua política de “Portas Abertas” em relação à China, os Estados Unidos tentaram fazer o mesmo na Ásia Oriental. Para atingir esses objetivos, os Estados Unidos travaram duas guerras mundiais e uma guerra fria contra a Alemanha imperial, a Alemanha nazista, o Japão imperial, a União Soviética e a China comunista. Esse interesse norte-americano persiste e foi reafirmado pelos presidentes Reagan e Bush. A ascensão da China como potência regional dominante na Ásia Oriental, caso prossiga, põe em risco esse interesse norte-americano fundamental. A causa subjacente do conflito entre os Estados Unidos e a China está na sua diferença básica quanto a como deve ficar a futura balança de poder na Ásia Oriental. Hegemonia Chinesa: Contrabalançar e Atrelar-se. Com seis civili¬ zações, 18 países, economias crescendo rapidamente e grandes diferen¬ ças políticas, econômicas e sociais entre as suas sociedades, a Ásia Oriental poderia desenvolver qualquer um de vários padrões de relações internacionais no início do século XXI. É concebível que surja um conjunto extremamente complexo de relações de cooperação e confli¬ 288 tuosas, envolvendo a maioria das principais potências e as de nível médio da região. Ou poder-se-ia formar um grande sistema internacional multipolar de poder, com China, Japão, Estados Unidos, Rússia e, possivelmente, índia se contrabalançando e competindo uns com os outros. Outra variante poderia ser com a política da Ásia Oriental sendo dominada por uma rivalidade bipolar continuada entre a China e o Japão, ou entre a China e os Estados Unidos, com outros países se alinhando com um lado ou o outro, ou optando pelo não-alinhamento. Possivelmente, ainda, a política da Ásia Oriental poderia reverter ao seu padrão unipolar tradicional, com uma hierarquia de poder centrada em Pequim. Se a China mantiver seus altos níveis de crescimento econômico ao entrar no século XXI, mantiver sua unidade na era pós-Deng e não for tolhida por lutas de sucessão, é provável que tente concretizar o último desses desfechos. Seu êxito dependerá das reações dos demais partici¬ pantes do jogo político do poder na Ásia Oriental. A história, a cultura, as tradições, as dimensões, o dinamismo econômico e a auto-imagem da China são, todos, fatores que a impul¬ sionam para assumir uma posição hegemônica na Ásia Oriental, Durante a década de 50, a China era a aliada comunista da União Soviética. Com a ruptura sino-soviética, ela tentou, na década de ó0, se estabelecer como líder do Terceiro Mundo, tanto contra os Estados Unidos como contra a União Soviética. Quando essa tentativa fracassou, a China buscou, nos anos 70 e 80, com razoável grau de êxito, colocar-se numa posição de equilíbrio entre as duas superpotências, jogando uma contra a outra. O final da Guerra Fria acabou com essa possibilidade. Na sua última fase, a China fixou para si a meta de se tomar uma potência hegemônica na Ásia Oriental. Essa meta é a conseqüência natural de seu rápido desenvolvimento econômico. Cada uma das demais potências principais — Grã-Bretanha e França, Alemanha e Japão, Estados Unidos e União Soviética — engajou-se em expansão externa, afirmação e imperialismo, coinciden¬ temente durante os anos em que passou por industrialização e cresci¬ mento econômico acelerados, ou logo em seguida a tal período. Não há nenhuma razão para se pensar que a obtenção de poderio econômico e militar não terá efeitos análogos na China. Durante dois míl anos, a China foi a potência proeminente na Ásia Oriental. Atualmente, os chineses estão cada vez mais afirmando sua intenção de retomar esse papel histórico e pôr um fim ao demasiado longo século de humilhação e subordinação ao Ocidente e ao Japão, que começou com a imposição pela Grã-Bretanha do Tratado de Nanquim, em 1842. 289 No final dos anos 80, a China começou a converter seus crescentes recursos econômicos em poder militar e influência política. Se o seu desenvolvimento econômico continuar, esse processo de conversão assumirá grandes proporções. Segundo dados oficiais, durante a maior parte da década de 80, os gastos militares chineses diminuíram. Contudo, entre 1988 e 1993, os gastos militares dobraram em moeda corrente e aumentaram em 50 por cento em termos reais. Em 1995, planejava-se um aumento de 21 por cento. As estimativas dos gastos militares chineses para o ano de 1993 variam de aproximadamente 22 bilhões para 37 bilhões de dólares, a taxas oficiais de câmbio, e até 90 bilhões em termos de paridade de poder de compra. No final dos anos 80, a China reformulou sua estratégia militar, mudando de defesa contra uma invasão numa guerra de grandes proporções com a União Soviética, para uma estratégia regional que enfatiza a projeção de poder. De acordo com essa mudança, ela começou a desenvolver sua capacidade naval, adquirindo modernos aviões de combate de longo raio de ação, desenvolvendo a capacidade de reabastecimento em vôo e resolvendo adquirir um porta- aviões. A China também ingressou num relacionamento mutuamente benéfico de compra de armamentos com a Rússia e passou com afinco a exportar armamentos, inclusive tecnologia e mísseis capazes de trans¬ portar ogivas nucleares, para o Paquistão, o Irã e outros países. A China está a caminho de se tornar a potência dominante na Ásia Oriental. O desenvolvimento econômico da Ásia Oriental está se toman¬ do cada vez mais orientado para a China, alimentado pelo rápido crescimento da parte continental e das outras três Chinas, além do papel fundamental desempenhado por elementos da etnia chinesa no desen¬ volvimento da economia da Tailândia, Malásia, Indonésia e Filipinas. De modo mais ameaçador, a China está afirmando com vigor cada vez maior suas reivindicações no Mar do Sul da China: ampliando süa base nas Ilhas Paracel; disputando com os vietnamitas um punhado de ilhas em 1988; estabelecendo uma presença militar no Recife do Engano, ao largo da costa das Filipinas; e reclamando para si as jazidas submarinas de gás junto da Ilha Natuna, que pertence à Indonésia. A China também abandonou o apoio discreto que dava à manutenção de uma presença militar norte-americana na Ásia Oriental, e começou a se opor de forma ativa a esse desdobramento. Analogamente, embora durante a Guerra Fria a China tivesse discretamente instado o Japão a reforçar seu poderio militar, nos anos pós-Guerra Fria ela tem manifestado crescente preo¬ cupação com o aumento do poder militar japonês. Atuando na maneira 290 clássica de um país hegemônico regional, a China está tratando de reduzir os obstáculos à consecução de sua superioridade militar regional. Com raras exceções — como, possivelmente, no Mar do Sul da China —, a hegemonia chinesa na Ásia Oriental provavelmente não envolverá uma expansão de controle territorial através do emprego direto da força armada. Entretanto, ela provavelmente significará que a China esperará que os demais países da Ásia Oriental, em diferentes graus de intensidade, implementem algumas, ou todas, das seguintes proposições: • apoiar a integridade territorial chinesa, o controle pela China do Tibete e de Xinjiang e a integração de Hong Kong e de Taiwan à China Continental; • assentir com a soberania chinesa sobre o Mar do Sul da China e, possivelmente, sobre a Mongólia; • apoiar, de modo geral, a China nos conflitos com o Ocidente em torno de questões econômicas, de direitos humanos, de prolife¬ ração de armamentos, entre outras; • aceitar o predomínio militar chinês na região e se abster de adquirir armas nucleares ou forças convencionais capazes de contestar esse predomínio; • adotar políticas de comércio internacional e de investimentos compatíveis com os interesses chineses e conducentes ao desen¬ volvimento econômico chinês; • acatar a liderança chinesa no tratamento de problemas regionais; • ser aberto, de modo geral, à imigração proveniente da China; • proibir ou reprimir movimentos contra a China e contra os chineses no âmbito das suas respectivas sociedades; • respeitar os direitos dos chineses dentro das suas sociedades, inclusive seu direito de manter relacionamentos estreitos com seus familiares e com suas províncias de origem na China; • abster-se de alianças militares ou coligações contra a China com outras potências; • promover o emprego do mandarim como suplemento e, final¬ mente, como substituto do inglês como a Língua de Comunicação Mais Ampla (LCMA) na Ásia Oriental. Os analistas comparam a ascensão da China à da Alemanha imperial como a potência dominante na Europa no final do século XIX. O surgimento de novas grandes potências é sempre altamente deses- 9Q1 tabilizador, e o da China, na condição de uma das principais potências, caso assim aconteça, será um fenômeno muito maior do que qualquer outro comparável da metade final do segundo milênio. Lee Kuan Yew comentou em 1994 que “a dimensão do deslocamento que a China produz no mundo é tal que será preciso encontrar-se um novo equilíbrio mundial dentro de 30 ou 40 anos. Não é possível se pretender que ela é apenas mais um grande ator. Ela é o maior ator da História da Humanidade”. 32 Se o desenvolvimento econômico chinês prosseguir por mais uma década, como parece possível, e se a China mantiver sua unidade durante o período da sucessão, como parece provável, os países da Ásia Oriental e do mundo terão de se defrontar com um desempenho cada vez mais afirmativo desse maior ator da História da Humanidade. De modo geral, os Estados podem reagir de uma de duas maneiras, ou numa combinação de ambas, ao surgimento de uma nova potência. Isoladamente ou em coligação com outros Estados, podem tentar garantir sua segurança através de um processo de contrabalançar a potência que surge, contê-la e, se necessário, ir à guerra para derrotá-la. Ou então os Estados podem tentar atrelar-se à potência que surge, se acomodar a ela e assumir uma posição secundária ou subordinada em relação à potência em ascensão, com a expectativa de que seus interesses básicos serão protegidos. Ou ainda, é concebível que os Estados tentem alguma mescla de contrabalançar e de se atrelar, embora isso acarrete o risco de, ao mesmo tempo, antagonizar a potência em ascensão e não ter proteção alguma contra ela. Segundo a teoria ocidental das relações internacionais, geralmente contrabalançar é uma opção mais desejável e, na realidade, tem sido adotada com mais freqüência do que a de se atrelar. Como argumentou Stephen Walt, de modo geral, as avaliações de intenção deveriam encorajar os Estados a contrabalançar. Atrelar-se é arriscado porque exige confiança — um Estado presta assistência a uma potência dominante na esperança de que ela se manterá benévola. É mais seguro contrabalançar, para o caso de a potência dominante se mostrar agressiva. Além disso, o alinhamento com o lado mais fraco aumenta a influência de um Estado no âmbito da coligação resultante, porque o lado mais fraco tem maior necessidade de assistência . 33 A análise feita por Walt da formação de alianças no Sudoeste Asiático revelou que quase sempre os Estados tentaram contrabalançar diante de ameaças externas. Também se supôs, de modo geral, que o comportamento de contrabalanceamento era a norma durante a maior parte da história européia, com várias potências alterando suas alianças de modo a contrabalançar e conter as ameaças que viam configuradas em Felipe II, Luís XIV, Frederico, o Grande, Napoleão, o Kaiser e Hitler. Walt admite, entretanto, que os Estados podem optar por atrelar-se “sob algumas condições” e, como argumenta Randall Schweller, “há uma probabilidade de que Estados revisionistas se atrelem a uma potência em ascensão por estarem descontentes e terem a esperança de se beneficia¬ rem com as mudanças do status quo”. òA Além disso, como indica Walt, o atrelar-se de fato requer um certo grau de confiança nas intenções não-malévolas do Estado mais poderoso. Ao contrabalançar poder, os Estados podem desempenhar um papel primário ou secundário. O Estado A pode tentar contrabalançar poder contra o Estado B, que ele considera como um adversário real ou potencial, estabelecendo alianças com os Estados C e D, desenvolvendo seu próprio poder militar e de outra natureza (o que provavelmente levará a uma corrida armamentista), ou através de uma combinação dessas linhas de ação. Nessa situação, os Estados A e B são os contrabalancea- dores primários um do outro. Na outra hipótese, o Estado A pode não considerar nenhum outro Estado como um adversário imediato, mas pode ter interesse em promover um equilíbrio de poder entre os Estados B e C, pois se qualquer deles ficasse forte demais poderia se constituir numa ameaça para o Estado A. Nessa situação, o Estado A atua como um contrabalanceador secundário em relação aos Estados B e C, que podem ser contrabalanceadores primários um do outro. Como irão os países reagir à China se ela começar a surgir como potência hegemônica na Ásia Oriental? As reações, sem dúvida, variarão amplamente. Pelas razões indicadas aqui e porque a China definiu os Estados Unidos como o seu inimigo principal, a inclinação norte-ameri¬ cana predominante será a de agir como contrabalanceador primário e evitar a hegemonia chinesa. A adoção de tal papel estaria acorde com a preocupação tradicional norte-americana de evitar a dominação quer da Europa quer da Ásia por qualquer potência isolada. Esse objetivo já não é relevante na Europa, mas ainda poderia sê-lo na Ásia. Uma federação flexível na Europa Ocidental, intimamente ligada aos Estados Unidos cultural, política e economicamente, não constituirá ameaça para a segurança norte-americana. Uma China unificada, poderosa e assertiva poderia ser uma ameaça. Será do interesse norte-americano estar pronto para ir à guerra, se necessário, para impedir a hegemonia chinesa na Ásia Oriental? Se o desenvolvimento econômico chinês se mantiver no atual 202 0G2 ritmo, isso poderia vir a ser a mais grave questão de segurança com que se depararão os responsáveis por traçar a política norte-americana no começo do século XXI. Se os Estados Unidos de fato quiserem impedir a dominação da Ásia Oriental pela China, precisarão redirecionar sua aliança com o Japão para essa finalidade, desenvolver estreitos laços militares com outras nações asiáticas e aumentar sua presença militar na Ásia, bem como o poder militar que possa empregar na região. Se os Estados Unidos não estiverem dispostos a lutar contra a hegemonia chinesa, terão que abrir mão de seu universalismo, aprender a viver com essa hegemonia e se conformar com uma redução acentuada de sua capacidade de moldar os acontecimentos no lado oposto do Pacífico. Qualquer dessas linhas de ação acarreta grandes custos e riscos. O maior perigo é o de que os Estados Unidos não façam uma opção clara e acabem se vendo em guerra com a China sem terem avaliado cuidadosamente se isso atende ao seu interesse nacional e sem estarem preparados para travar de modo eficaz uma guerra desse tipo. Teoricamente, os Estados Unidos poderiam tentar conter a China desempenhando um papel de contrabalanceamento secundário, se algu¬ ma outra potência importante atuasse como o contrabalanceador primᬠrio da China. A única possibilidade concebível é o Japão, e isso exigiria grandes mudanças na política japonesa: intensificação do rearmamento japonês, obtenção de armas nucleares e uma ativa competição com a China em busca de apoio das outras potências asiáticas. Embora o Japão pudesse estar disposto a participar de uma coligação encabeçada pelos Estados Unidos para se contrapor à China, ainda que isso também seja incerto, é improvável que ele se torne o contrabalanceador primário da China. Além disso, os Estados Unidos não mostraram grande interesse ou capacidade num papel de contrabalanceamento secundário. Quando ainda eram um país jovem e pequeno, tentaram fazer isso durante a era napoleônica e acabaram em guerra tanto com a Grã-Bretanha como com a França. Durante a primeira parte do século XX, os Estados Unidos fizeram apenas esforços mínimos para promover contrabalanceaméntos entre países europeus e asiáticos e, em conseqüência, se viram engajados em guerras mundiais para restabelecer equilíbrios que tinham sido desfeitos. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos não tiveram alterna¬ tiva senão serem o contrabalanceador primário da União Soviética. Portanto, como grande potência, os Estados Unidos nunca foram um contrabalanceador secundário. Para sê-lo é preciso desempenhar um papel sutil, flexível, ambíguo e até mesmo insincero. Isso podería implicar 294 mudar o apoio de um lado para outro, recusar-se a apoiar ou se opor a um Estado que, pelos valores norte-americanos, parecesse estar moral¬ mente certo e apoiar um Estado que estivesse moralmente errado. Mesmo que o Japão emergisse como o contrabalanceador primário da China na Ásia, fica em aberto a questão da capacidade dos Estados Unidos de apoiar esse contrabalanceamento. Os Estados Unidos são muito mais capazes de se mobilizar diretamente contra uma ameaça existente do que de contrabalançar uma contra a outra duas ameaças em potencial. Por último, é provável que exista entre as potências asiáticas uma propensão a se atrelar, o que inviabilizaria qualquer tentativa norte-americana de contrabalanceamento secundário. Na medida em que o atrelar-se depende de confiança, apresentam- se três proposições. Em primeiro lugar, há mais probabilidade de que o atrelar-se ocorra entre Estados que pertencem à mesma civilização ou compartilham de alguma outra maneira aspectos culturais comuns, do que entre Estados que carecem de tais aspectos em comum. Em segundo lugar, é provável que os níveis de confiança variem conforme o contexto. Um menino pequeno se atrelará ao irmão mais velho quando eles enfrentarem,outros meninos; é menos provável que ele confie no irmão mais velho quando estiverem sozinhos em casa. Por conseguinte, as interações mais freqüentes entre Estados de civilizações diferentes es¬ timularão ainda mais o atrelar-se no seio de cada civilização. Em terceiro lugar, a propensão para atrelar-se e para contrabalançar pode variar de uma civilização para outra, porque os níveis de confiança entre seus integrantes são diferentes. A predominância do contrabalanceamento no Oriente Médio, por exemplo, pode refletir os níveis proverbialmente baixos de confiança que existem na cultura árabe e nas outras culturas dessa região. Além dessas influências, a propensão para atrelar-se ou para contrabalançar será condicionada pelas expectativas e preferências no que se refere à distribuição do poder. As sociedades européias passaram por uma fase de absolutismo, porém evitaram os longos impérios burocráticos ou “despotismos orientais’' que caracterizaram a Ásia duran¬ te grande parte de sua história. O feudalismo proporcionou uma base para o pluralismo e para o pressuposto de que uma certa dispersão de poder era tanto natural como desejável. Assim, também no nível inter¬ nacional um equilíbrio de poder era considerado natural e desejável, e a responsabilidade dos estadistas era protegê-lo e sustentá-lo. Em con¬ seqüência, quando o equilíbrio ficava ameaçado, precisava-se de uma conduta de contrabalanceamento para restabelecê-lo. Em resumo, o modelo europeu de sociedade internacional refletia o modelo europeu de sociedade doméstica. Em contraste, os impérios burocráticos da Ásia não deixavam muito espaço para o pluralismo político e a divisão de poder. Dentro da China, o atrelar-se parece ter sido muito mais importante em comparação com o contrabalanceamento do que na Europa. Lucian Pye assinala que, durante a década de 20, “os chefes guerreiros procuraram, primeiro, ver o que poderiam ganhar se identificando com os fortes, e só depois exploraram as vantagens de se aliar com os fracos. (...) para os chefes guerreiros chineses, a autonomia não era o valor definitivo, como era nos cálculos tradicionais europeus de equilíbrio de poder. Ao contrário, eles baseavam suas decisões na associação com o poder”. Em sentido semelhante, Avery Goldstein argumenta que o atrelar-se caracterizou a política na China comunista enquanto a estrutura de autoridade era relativamente clara, de 1949 a 1966. Quando a Revolução Cultural criou as condições de quase anarquia e incerteza a respeito da autoridade e ameaçou a sobrevivência dos atores políticos, começou a prevalecer o comportamento de contrabalanceamento. 35 Pode-se supor que o res¬ tabelecimento de uma estrutura de autoridade definida com maior clareza depois de 1978 também restabeleceu o atrelar-se como o padrão domi¬ nante de comportamento político. Historicamente, os chineses jamais fizeram uma distinção nítida entre os assuntos internos e externos. Sua “imagem da ordem mundial não passava de um corolário da ordem interna chinesa e, assim, era uma projeção ampliada da identidade civilizacional chinesa”, que “se pres¬ supunha que se repetia em círculos concêntricos cada vez maiores, como a correta ordem cósmica”. Ou, como expressou Roderick MacFarquhar, “a visão chinesa tradicional do mundo era ym reflexo da visão confuciana de uma sociedade hierárquica cuidadosamente articulada. Pressupunha-se que os monarcas e Estados estrangeiros eram tributários do Reino do Meio: ‘Não há dois sóis no céu; não pode haver dois imperadores na Terra’”. Como conseqüência, os chineses não mostraram apreço por “concepções de segurança multipolares nem mesmo multilaterais”. De modo geral, os asiáticos estão dispostos a “aceitar a hierarquia” nas relações internacio¬ nais, e as guerras hegemônicas do tipo europeu não aparecem na história da Ásia Oriental. Um sistema de equilíbrio de poder em funcionamento, que historicamente era típico na Europa, foi estranho à Ásia. Até a chegada dos europeus em meados do século XIX, as relações interna¬ cionais na Ásia Oriental eram sinocêntricas, com as demais sociedades 7Q6 dispostas em diferentes graus de subordinação, cooperação ou autonomia com relação a Pequim. 36 O ideal confuciano da ordem mundial, evidente¬ mente, nunca se concretizou na prática. Não obstante, o modelo asiático de relações internacionais baseadas numa hierarquia de poder contrasta de forma espetacular com o modelo europeu de equilíbrio de poder. Em conseqüência dessa imagem da ordem mundial, a propensão chinesa para atrelar-se no campo da política interna também ocorre nas relações internacionais. O grau em que isso molda a política externa de cada Estado tende a variar de acordo com o grau com que compartilham da cultura confuciana e do seu relacionamento histórico com a China. A Coréia tem muito em comum no campo cultural com a China, e historicamente se inclinou para a China, motivada em boa medida por seu antagonismo e medo em relação ao Japão. Para Singapura, a China comunista era um inimigo durante a Guerra Fria. Nos anos 80, porém, Singapura começou a mudar sua posição e, ao se chegar a meados da década de 90, tinha se tomado um dos grandes investidores na China. Seus dirigentes sustentavam de forma incisiva a necessidade de que os Estados Unidos e outros países se adaptassem às realidades do poderio chinês. A Malásia, com sua grande população chinesa e a tendência antiocidental de seus dirigentes, também se inclina fortemente na direção da China. A Tailândia manteve sua independência nos séculos X3X e XX acomodando-se ao imperialismo europeu e ao japonês, e tem demons¬ trado a firme intenção de fazer o mesmo em relação à China, numa tendência que é reforçada pela ameaça de segurança em potencial que ela vê no Vietnã. A Indonésia e o Vietnã são os dois países do Sudeste Asiático mais inclinados a contrabalançar e conter a China. A Indonésia é grande, muçulmana e está distante da China, mas, sem o auxílio de outros países, não pode impedir que a China afirme o seu controle sobre o Mar do Sul da China. No outono de 1995, a Indonésia e a Austrália estabeleceram um acordo de segurança pelo qual se comprometeram a consultas mútuas na eventualidade de “confrontações adversas” à sua segurança. Embora ambas as partes negassem que se tratava de um acordo contra a China, na realidade identificaram-na como a fonte mais provável de confrontações adversas. 37 O Vietnã possui uma cultura predominantemente confuciana, porém teve historicamente um relacionamento antagônico com a China e, em 1979, travou com ela uma curta guerra. Tanto o Vietnã como a China reivindicam a soberania sobre as Ilhas Spratly, e suas marinhas de guerra travaram escaramuças esporádicas nas décadas de 70 e 80. 7Q7 Nos anos 90, a capacidade militar do Vietnã estava em declínio em relação à da China. Consequentemente, mais do que qualquer outro país da Ásia Oriental, o Vietnã tinha motivos para buscar parceiros a fim de contrabalançar a China. Sua admissão na ASEAN e a normalização de suas relações com os Estados Unidos em 1995 representaram dois passos nessa direção. Entretanto, as dissensões no seio da ASEAN e a relutância dessa associação em confrontar a China tomam improvável que a ASEAN possa vir a ser uma aliança contra a China ou que dê muito apoio ao Vietnã numa confrontação com ela. Os Estados Unidos teriam mais disposição para conter a China, porém, em meados dos anos 90, não estava claro até que ponto iriam para contestar a afirmação do controle chinês sobre o Mar do Sul da China. No final, para o Vietnã “a alternativa menos ruim” poderia ser a de se acomodar com a China e aceitar sua finlandização, a qual, embora “ferisse o orgulho vietnamita (...) podería assegurar sua sobrevivência”. 38 Nos anos 90, praticamente todas as nações da Ásia Oriental, afora China e Coréia do Norte, expressavam seu apoio à manutenção de uma presença militar norte-americana na região. Entretanto, na prática, a não ser o Vietnã, todas elas tendiam a se acomodar com a China. As Filipinas puseram termo às bases aérea e naval norte-americanas em seu território. Em Okinawa, aumentou a oposição à enorme quantidade de efetivos militares norte-americanos baseados na ilha. Em 1994, a Tailândia, a Malásia e a Indonésia rejeitaram os pedidos norte-americanos para ancorar em suas águas seus navios de suprimento, como uma espécie de base flutuante para facilitar uma intervenção militar pelos Estados Unidos, quer no Sudeste quer no Sudoeste Asiático. Numa outra demons¬ tração de deferência, na sua primeira reunião o Foro Regional da ASEAN concordou com a solicitação chinesa de que as questões envolvendo as Ilhas Spratly fossem mantidas fora da agenda. Além disso, a ocupação pela China do Recife do Engano, ao largo da costa das Filipinas, em 1995, não suscitou protestos de nenhum outro país da ASEAN. Em 1995-96, quando a China ameaçou verbal e militarmente Taiwan, os governos asiáticos mais um vez responderam com um silêncio ensurdecedor. Michael Oksemberg sintetizou muito bem a propensão desses países para se atrelarem: “Os dirigentes asiáticos de fato se preocupam com que a balança de poder possa se inclinar a favor da China, porém, numa angustiada antecipação do futuro, não querem confrontar Pequim agora” e “não se juntarão aos Estados Unidos numa cruzada anti-China.” 39 298 A ascensão da China criará um grande desafio para o Japão, e os japoneses estão profundamente divididos quanto a que estratégia seu país deveria adotar. Será que ele déveria tentar se acomodar com a China, talvez com certa contrapartida, reconhecendo seu predomínio político- militar em troca do reconhecimento da primazia do Japão em assuntos econômicos? Será que ele deveria dar um novo significado à aliança nipo-norte-americana como o núcleo de uma coligação para contraba¬ lançar e conter a China? Será que ele deveria tentar desenvolver seu próprio poderio militar a fim de defender seus interesses contra quaisquer incursões chinesas? Provavelmente, o Japão evitará o máximo que puder dar uma resposta clara a qualquer dessas perguntas. O núcleo de qualquer esforço significativo para contrabalançar e conter a China teria que ser a aliança militar nipo-norte-americana. É concebível que o Japão possa, lentamente, assentir no redireciona- mento da aliança para essa finalidade. Se o Japão fará isso ou não, dependerá de o Japão confiar: (1) na capacidade geral dos Estados Unidos de se manterem como a única superpotência do mundo e de manterem sua liderança ativa nos assuntos mundiais; (2) no empenho dos Estados Unidos de manterem sua presença na Ásia e de comba¬ terem de forma -ativa os esforços da China por expandir sua influência; e (3) a capacidade dos Estados Unidos e do Japão de conterem a China sem altos custos em termos de recursos ou altos riscos em termos de guerra. Na ausência de uma grande e improvável demonstração de deter¬ minação e empenho dos Estados Unidos, é provável que o Japão trate de se acomodar com a China. Com exceção dos anos 30 e 40, quando adotou uma política unilateral de conquista na Ásia Oriental, com conseqüências desastrosas, historicamente o Japão buscou sua segurança através de alianças com o que ele percebia como sendo a potência dominante relevante. Mesmo na década de 30, ao se juntar ao Eixo, ele estava se alinhando com o que parecia então ser a força militar-ideológica mais dinâmica na política mundial. Mais no começo do século, o Japão havia, de modo muito consciente, estabelecido uma aliança nipo-britâ- nica porque a Grã-Bretanha era a potência líder em assuntos mundiais. Nos anos 50, o Japão analogamente se associou com os Estados Unidos como o país mais poderoso do mundo e que podia garantir a segurança do Japão. Tal como os chineses, os japoneses vêem a política internacio¬ nal em termos hierárquicos, porque assim é sua política interna. Como assinalou um estudioso japonês: Quando os japoneses pensam na sua nação dentro da sociedade internacional, muitas vezes os modelos internos japoneses oferecem analogias. Os japoneses tendem a ver uma ordem internacional expres¬ sando extemamente os padrões culturais que se manifestam intemamen- te no âmbito da sociedade japonesa, que se caracteriza pela relevância de estruturas organizadas verticalmente. Tal imagem da ordem interna¬ cional foi influenciada pela longa experiência do Japào com o relacio¬ namento sino-japonês pré-moderno (um sistema tributário). Conseqüentemente, o comportamento japonês quanto a alianças tem sido “basicamente o de se atrelar, não o de contrabalançar”, e “de alinhamento com a potência dominante”. 40 Um ocidental que vive hã muito tempo no Japão confirmou que os japoneses “mais depressa do que outros povos se curvam à force majeure e cooperam com os que eles percebem como lhes sendo moralmente superiores. (...) e mais depressa detestam abusos de uma potência hegemônica moralmente frouxa e em retirada”. À medida que o papel dos Estados Unidos na Ásia declina e o da China é cada vez mais predominante, a política japonesa se adaptará de acordo com essa evolução. Na realidade, ela já começou a se desenvolver nesse sentido. Kishore Mahbubani assinalou que a questão-chave no relacionamento sino-japonês é: “Quem é o número um? . E a resposta está ficando clara. “Não vai haver nenhuma declaração e nenhum acordo explícitos, mas foi significativo que o imperador do Japão tenha resolvido visitar a China em 1992, numa época em que Pequim ainda estava relativamente isolada no âmbito internacional.” 4 ^ Do ponto de vista ideal, os dirigentes e o povo japoneses sem dúvida prefeririam os padrões das várias décadas recentes e continuar sob o braço protetor dos Estados Unidos, que manteriam uma posição predo¬ minante. Entretanto, à medida que diminui o envolvimento norte-americano na Asia, as forças que no Japão insistem para que o país se “reasiatize” ganharão vigor e os japoneses acabarão aceitando como inevitável o renovado predomínio da China no cenário da Ásia Oriental. Assim, por exemplo, ante a indagação, em 1994, sobre que nação iria exercer maior influência na Ásia no século XXI, 44 por cento da opinião pública japonesa responderam China, 30 por cento responderam Estados Unidos e apenas 16 por cento disseram Japão 42 Como previu em 1995 um alto funcionário japonês, o Japão terá a “disciplina” de se adaptar à ascensão da China. Ele então perguntou se os Estados Unidos a teriam. Sua proposição inicial é plausível; a resposta à pergunta que se seguiu é incerta. A hegemonia chinesa reduzirá a instabilidade e os conflitos na Ásia Oriental. Ela também reduzirá a influência norte-americana e ocidental na região e obrigará os Estados Unidos a aceitarem o que eles, historicamente, tentaram impedir: a dominação de uma região-chave do mundo por outra potência. Contudo, o grau em que essa hegemo¬ nia ameaçará os interesses de outros países asiáticos ou dos Estados Unidos dependerá, em parte, do que acontecer na China. O cresci¬ mento econômico gera poder militar e influência política, mas também pode estimular um desenvolvimento político e um movimento na direção de uma forma de política mais aberta, pluralista e, pos¬ sivelmente, democrática. Pode-se admitir que isso já funcionou na Coréia do Sul e em Taiwan. Entretanto, nesses países, os líderes mais atuantes na promoção da democracia eram cristãos. O legado confuciano da China, com a ênfase que atribui autoridade, ordem, hierarquia e supremacia da coletividade sobre o indivíduo, cria obstáculos à democratização. No entanto, o crescimento econômico está criando no sul da China níveis cada vez mais elevados de riqueza, uma burguesia dinâmica, o acúmulo de poder econômico fora do controle governamental e uma classe média em rápida expansão. Além disso, o povo chinês está profundamente envolvido com o mundo exterior em termos de comércio, investimentos e instrução. Tudo isso cria uma base social para um movimento na direção do pluralismo político. Geralmente, o pré-requisito para a abertura política é a chegada ao poder de elementos reformistas dentro do sistema autoritário. Será que isso acontecerá na China? Provavelmente não na primeira sucessão depois de Deng, mas possivelmente na segunda. O novo século poderia ver a criação, no sul da China, de grupos com programas políticos, os quais, na realidade, se não no nome, seriam partidos políticos embrio¬ nários, e que têm probabilidade de ter laços estreitos com os chineses em Taiwan, Hong Kong e Singapura, e ser por eles apoiados. Se surgirem tais movimentos no sul da China e se uma facção reformista tomar o poder em Pequim, poderia ocorrer alguma forma de transição política. O resultado não seria uma democracia ocidental, mas possivelmente um sistema político pluralista e mais aberto, com o qual os Estados Unidos, o Japão e outros países poderiam coexistir com maior facilidade do que seria possível com uma ditadura opressora. Talvez, como aventou Friedberg, o passado da Europa seja o futuro da Ásia. O mais provável, porém, é que o passado da Ásia seja o futuro da Ásia. A opção para a Ásia está entre o poder contrabalançado ao custo de conflitos ou a paz obtida ao preço da hegemonia. A era que começou com as intrusões ocidentais nas décadas de 1840 e 1850 está terminando, a China está retomando seu lugar como potência hegemônica regional e o Leste está assumindo a posição que lhe cabe. Civilizações e Estados-núcleos: Alinhamentos que Surgem O mundo pós-Guerra Fria, multipolar e multicivilizacional, carece de uma divisória predominante como existia na Guerra Fria. Entretanto, enquanto prosseguirem os ímpetos demográfico muçulmano e econômico asiático, os conflitos entre o Ocidente e as civilizações desafiantes serão mais fundamentais para a política mundial do que outras linhas divisórias. É provável que os governos dos países muçulmanos continuem a ficar menos amistosos com o Ocidente e que ocorram atos violentos intermi¬ tentes, de baixa intensidade e talvez, algumas vezes, de alta intensidade, entre grupos islâmicos e sociedades ocidentais. As relações entre os Estados Unidos, de um lado, e a China, o Japão e outros países asiáticos, do outro, terão uma feição altamente conflituosa, e poderá eclodir uma grande guerra se os Estados Unidos contestarem a ascensão da China como a potência hegemônica na Ásia. Nessas condições, a conexão confuciano-islâmica será mantida e talvez se amplie e se aprofunde. Tem sido fundamental para essa conexão a cooperação entre as sociedades muçulmana e sínica na oposição ao Ocidente a respeito de proliferação de armamentos, direitos humanos e outras questões. No centro dessa conexão, situam-se as íntimas relações entre Paquistão, Irã e China. Elas se cristalizaram no início dos anos 90 com a visita do presidente Yang Shangkun ao Irã e ao Paquistão em outubro de 1991 e do presidente Rafsanjani ao Paquistão e à China em setembro de 1992, que “apontaram para o surgimento de uma aliança embrionária entre Paquistão, Irã e China”. A caminho da China, Rafsanjani declarou em Islamabad que havia “uma aliança estratégica” entre o Irã e o Paquistão e que um ataque contra o Paquistão seria considerado um ataque contra o Irã. Reforçando esse quadro, Benazir Bhutto visitou o Irã e a China logo depois de se tornar primeiro-ministro em outubro de 1993- A cooperação entre os três países incluiu diálogos regulares entre autoridades políticas, militares e burocráticas, bem como esforços conjuntos numa variedade de campos civis e militares, abrangendo produção de material bélico, além de transferências de armamentos pela China para os outros dois países. O desenvolvimento dessas relações foi apoiado com vigor por aqueles no Paquistão que pertencem às escolas de pensamento “independente” e “muçulmano” no âmbito da política externa, que visavam a um eixo Teerã-Islamabad- Pequim”, enquanto que, emTeerã, sustentava-se que “a natureza diversa do mundo contemporâneo” exigia “uma cooperação íntima e consis¬ tente” entre Irã, China, Paquistão e Casaquistão. Em meados da década de 90, tinha se estabelecido algo parecido com uma aliança de facto entre os três países, alicerçada na oposição ao Ocidente, nas preocu¬ pações de segurança quanto à índia e no desejo de se contrapor à influência da Turquia e da Rússia na Ásia Central. 43 Será que existe a possibilidade de que esses três países se tomem o núcleo de um agrupamento mais amplo, envolvendo outros países muçulmanos e asiáticos? Graham Fuller argumenta que se poderia materializar uma aliança confuciano-fundamentalista islâmica, não por¬ que Maomé e Confúcio sejam contra o Ocidente, mas porque essas culturas oferecem um veículo para a expressão de queixas pelas quais o Ocidente é em parte responsabilizado — um Ocidente cuja dominação política, militar, econômica e cultural é cada vez mais ressentida num mundo em que os países sentem que ‘não têm mais que aturar isso de ninguém’”. O chamamento mais apaixonado por uma cooperação desse tipo veio de Mu’ammar Khadafi, que declarou em março de 1994: A nova ordem mundial significa que os judeus e os cristãos contro¬ larão os muçulmanos se puderem, que eles, depois disso, irão dominar o Confucionismo e outras religiões na índia, na China e no Japão. (...) Atualmente, o que os cristãos e os judeus estão dizendo é: “Nós estávamos decididos a esmagar o comunismo, e o Ocidente agora tem que esmagar o Islamismo e o Confucionismo.” Nós esperamos agora ver uma confrontação entre a China, que encabeça o campo confucionista, e os Estados Unidos, que encabeçam o campo dos cruzados cristãos. Não temos nenhuma justificativa para não termos preconceito contra os cruzados. Estamos do lado do Confucionismo e, ao nos aliarmos com ele e lutarmos ao seu lado numa única frente internacional, eliminaremos nosso adversário mútuo. De modo que nós, como muçulmanos, apoiaremos a China na sua luta contra nosso inimigo mútuo. (...) Fazemos votos pela vitória da China. (...) 44 Entretanto, o entusiasmo por uma estreita aliança antiocidental dos países confucianos e islâmicos tem sido um tanto silencioso por parte da China, tendo o presidente Jiang Zemin declarado em 1993 que a China não estabeleceria uma aliança com qualquer outro país. É de supor-se que essa posição refletia a visão clássica chinesa de que o Reino do Meio, a potência central, a China, não precisava de aliados formais, e que os outros países veriam que era do seu interesse cooperar com a China. Por outro lado, os conflitos da China com o Ocidente significam que ela dará valor a parcerias com outros países antiocidentais, dos quais o maior número e os mais influentes provêm do Islã. Além disso, as necessidades crescentes da China em petróleo provavelmente a impelirão a expandir suas relações com Irã, Iraque e Arábia Saudita, bem como com o Casaquistão e o Azerbaijão. Um perito em assuntos de energia assinalou em 1994 que um eixo armamentos-por-petróleo desse tipo “não precisará mais acatar as ordens emanadas de Londres, Paris ou Washington”. 45 As relações de outras civilizações e seus Estados-núcleos com o Ocidente, bem como os seus desafiantes, passarão por grandes variações. As civilizações meridionais — a latino-americana e a africana — carecem de Estados-núcleos, têm sido dependentes do Ocidente e são relativa¬ mente fracas militar e economicamente (embora isso esteja mudando rapidamente no caso da América Latina). Nas suas relações com o Ocidente, provavelmente elas se moverão em direções opostas. A América Latina está culturalmente mais próxima do Ocidente. Durante os anos 80 e 90, seus sistemas político e econômico passaram a se parecer cada vez mais com os ocidentais. Os dois países latino-americanos que em certo período buscaram obter armas nucleares abandonaram essas tentativas. Apresentando níveis mais baixos de esforço militar em geral do que qualquer outra civilização, os latino-americanos podem não gostar da dominação militar dos Estados Unidos, mas não demonstram nenhuma intenção de contestá-la. A rápida ascensão do Protestantismo em muitas sociedades latino-americanas está, ao mesmo tempo, toman¬ do-as mais parecidas com as sociedades com um misto de católicos e protestantes do Ocidente e expandindo os laços religiosos entre a América Latina e o Ocidente, além daqueles que passam por Roma. Em compensação, o fluxo de ingresso nos Estados Unidos de mexicanos, centro-americanos e caribenhos, e o decorrente impacto hispânico sobre a sociedade norte-americana, também promove uma convergência cul¬ tural. As principais questões conflituosas entre a América Latina e o Ocidente, este último significando na prática os Estados Unidos, são imigração, drogas e terrorismo relacionado com drogas, e integração econômica (isto é, admissão de países latino-americanos no NAFTA versus expansão de agrupamentos latino-americanos, como o Mercosul e o Pactò Andino). Como indicam os problemas que surgiram com respeito à participação do México no NAFTA, o casamento das civilizações latino-americana e ocidental não será fácil, devendo provavelmente ir tomando forma por boa parte do século XXI e podendo jamais se consumar. No entanto, as diferenças entre o Ocidente e a América Latina continuam sendo pequenas se comparadas com as que existem entre o Ocidente e outras civilizações. As relações do Ocidente com a África deveriam envolver níveis de conflito apenas ligeiramente mais altos, basicamente por causa da fraqueza da África. Contudo, há algumas questões importantes. A África do Sul não abandonou, como o fizeram Brasil e Argentina, um programa para desenvolver armas nucleares, apenas destruiu as armas nucleares que já havia produzido. Essas armas foram fabricadas para impedir ataques do exterior contra o apartheid por um governo branco, governo esse que não queria legá-las a um governo negro, o qual poderia empregá-las para outras finalidades. Entretanto, não se pode destruir a capacidade de fabricar armas nucleares e é possível que um governo pôs-apartheid venha a produzir um novo arsenal nuclear para garantir seu papel como Estado-núcleo da África e impedir o Ocidente de intervir na África. Direitos humanos, imigração, questões econômicas e ter¬ rorismo também estão na contenda entre a África e o Ocidente. Apesar dos esforços da França para manter íntimos laços com suas ex-colônias, parece que um processo de desocidentalização a longo prazo está em andamento na África, os interesses e as influências das potências ocidentais estão diminuindo, a cultura autóctone está-se reafirmando e, na África do Sul, com o passar tempo, os componentes africâneres e ingleses da cultura estão-se subordinando aos componentes africanos. Enquanto a América Latina está ficando mais ocidental, a África está ficando menos. Não obstante, ambas permanecem, de modos diferentes, dependentes do Ocidente e incapazes, salvo nas votações nas Nações Unidas, de afetar de forma decisiva o equilíbrio entre o Ocidente e os que o desafiam. Sem dúvida não é isso que acontece com as três civilizações “oscilantes”. Seus Estados-núcleos são atores importantes nos assuntos mundiais e geralmente têm um relacionamento misto, ambivalente e variável com o Ocidente e os desafiantes. Eles também têm um relacio¬ namento variável entre si. Como expusemos, é provável que o Japão, com o passar do tempo e depois de grande ansiedade e auto-análises, se afaste dos Estados Unidos na direção da China. Tal como outras alianças transcivilizacionais da Guerra Fria, os vínculos de segurança do Japão com os Estados Unidos se enfraquecerão, embora seja provável que nunca sejam formalmente abolidos. Seu relacionamento com a Rússia continuará difícil enquanto esta se recusar a chegar a um entendimento sobre as Ilhas Kurilas, por ela ocupadas em 1945- O momento, no final da Guerra Fria, em que essa questão poderia ter sido resolvida, passou logo, com o aumento do nacionalismo russo, e não há nenhuma razão para que os Estados Unidos apoiem a reivindicação japonesa no futuro, como o fizeram no passado. Nas últimas décadas da Guerra Fria, a China jogou de forma eficaz a “carta chinesa” contra a União Soviética e os Estados Unidos. No mundo pós-Guerra Fria, a Rússia dispõe de uma “carta russa” para jogar. A Rússia e a China unidas iriam fazer pesar de forma decisiva a balança euro-asiá- tica contra o Ocidente e despertar todas as preocupações que existiam na década de 50 a respeito do relacionamento sino-soviético. Uma Rússia trabalhando intimamente com o Ocidente proporcionaria uma contrape¬ so adicional à conexão confuciano-islâmica no contexto de questões mundiais e reacenderia na China seus receios da Guerra Fria quanto a uma invasão vinda do Norte. Entretanto, a Rússia também tem problemas com ambas essas civilizações vizinhas. Com relação ao Ocidente, eles tendem a ser de mais curto prazo — conseqüência do fim da Guerra Fria e da necessidade de uma redefinição da balança de poder entre a Rússia e o Ocidente e de um acordo entre ambos sobre sua igualdade básica e suas respectivas esferas de influência. Na prática isso significaria: 1. a aceitação pela Rússia da expansão da União Européia e da OTAN, a fim de incluir os países cristãos ocidentais da Europa Central e Oriental, e um compromisso ocidental de não expandir a OTAN mais além, a menos que a Ucrânia se parta em dois países; 2. um tratado de parceria entre a Rússia e a OTAN, se comprometen¬ do à não-agressão, consultas regulares sobre questões de segurança, esforços conjuntos para evitar uma corrida armamentista e a nego¬ ciação de acordos de controle de armamentos adequados às suas necessidades de segurança pós-Guerra Fria; 3- o reconhecimento ocidental da Rússia como precipuamente responsável pela manutenção da segurança entre os países ortodo¬ xos e nas áreas em que predomine a Ortodoxia; 4. reconhecimento ocidental dos problemas de segurança, atuais e em potencial, com que a Rússia se depara diante dos povos muçulmanos ao Sul e disposição para rever o Tratado sobre Forças Convencionais na Europa, além de uma postura favorável em relação às medidas que a Rússia poderia ter que tomar a fim de lidar com essas ameaças; 5- acordo mútuo entre a Rússia e o Ocidente a fim de cooperar, em condições de igualdade, no tratamento de certas questões, como a Bósnia, que envolvam interesses tanto ocidentais como ortodoxos. Caso surja um acordo ão longo dessas linhas ou de outras análogas, não é provável que a Rússia ou o Ocidente representem uma ameaça à segurança um do outro. A Europa e a Rússia são sociedades demografi- camente maduras, com baixas taxas de nascimentos e populações em processo de envelhecimento. Esse tipo de sociedade não tem o vigor jovem para ser expansionista ou de orientação ofensiva. No período imediatamente posterior ao fim da Guerra Fria, as relações russo-chinesas ficaram muito mais cooperativas. As controvér¬ sias de fronteiras foram resolvidas, as forças armadas de ambos os lados da fronteira foram reduzidas; o comércio bilateral se expandiu; cada uma parou de programar seus mísseis nucleares para atingir alvos na outra; os respectivos ministros do Exterior conversaram sobre seus interesses comuns no combate ao Itflamismo fundamentalista. Mais importante ainda foi que a Rússia encontrou na China um cliente ansioso e de grande porte para seu equipamento e tecnologia militares, inclusive tanques, aviões de caça, bombardeiros de longo alcance e mísseis terra-ar.46 Do ponto de vista da Rússia, esse aquecimento das relações representou uma decisão consciente de trabalhar com a China como seu “parceiro” asiático, dada a frieza estagnada de suas relações com o Japão, bem como uma reação aos seus conflitos com o Ocidente a propósito da expansão da OTAN, da reforma econômica, do controle de armamentos, da assistência econômica e da admissão ã instituições internacionais do Ocidente. De seu lado, a China pode assim demonstrar ao Ocidente que não estava isolada no mundo e que poderia obter a capacidade militar necessária para implementar sua estr&tégia regional de projeção de poder. Para ambos os países, uma conexão russo-chinesa é, tal como a conexão confuciano-islâmica, um meio de contrabalançar o poderio e o univer¬ salismo ocidentais. A sobrevivência a longo prazo dessa conexão depende sobretudo, primeiro, do grau em que as relações da Rússia com o Ocidente se estabilizem numa base mutuamente satisfatória e, segundo, do grau em que a ascensão da China à hegemonia na Ásia Oriental ameace os interesses russos dos pontos de vista econômico, demográfico e militar. O dinamismo econômico da China alastrou-se para a Sibéria e homens de negócios chineses, junto com sul-coreanos e japoneses, estão ex¬ plorando e aproveitando as oportunidades aí existentes. Os russos na Sibéria cada vez mais visualizam seu futuro econômico como mais ligado à Ásia Oriental do que à Rússia européia. Mais ameaçadora para a Rússia é a imigração chinesa na Sibéria, com migrantes ilegais chineses somando em 1995, ao que consta, de três a cinco milhões, em comparação com uma população russa na Sibéria oriental totalizando sete milhões. O ministro da Defesa russo, Pavel Grachev, advertiu que “os chineses estão em processo de efetuar uma conquista pacífica do Extremo Oriente russo”. A mais alta autoridade russa na área de imigração fez eco de suas palavras, dizendo que “precisamos resistir ao expansionismo chinês”. 47 Além disso, o fato de a China estar desenvolvendo as relações econômi¬ cas com as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central pode exacerbar seu relacionamento com a Rússia. A expansão chinesa poderia também assumir uma feição militar se a China decidisse que deveria tentar retomar a Mongólia, que os russos desmembraram da China depois da I Guerra Mundial e que, durante décadas, foi um satélite soviético. Em algum momento, as “hordas amarelas” que atormentaram a imaginação russa desde as invasões mongóis podem voltar a ser uma realidade. As relações da Rússia com o Islã são moldadas pela herança histórica de séculos de expansão, por meio de guerras contra os turcos, os povos do Cáucaso Setentrional e os emirados centro-asiáticos. Atualmente, a Rússia colabora com seus aliados ortodoxos, Sérvia e Grécia, para se contrapor à influência turca nos Bálcãs, e com seu aliado ortodoxo, a Armênia, para restringir essa influência no Transcáucaso. A Rússia tentou com muito empenho manter sua influência política, econômica e militar nas repúblicas da Ásia Central, atraiu-as para a Comunidade dos Estados Independentes e mantém tropas baseadas em todas elas. No centro das preocupações russas estão as reservas de petróleo e de gás no Mar Cáspio e as rotas pelas quais esses recursos chegarão ao Ocidente e à Ásia Oriental. A Rússia está engajada numa guerra no Cáucaso Setentrional, contra o povo muçulmano da Chechênia, e numa outra guerra no Tadjiquistão, apoiando o governo contra uma insurreição que inclui fundamentalistas islâmicos. Essas preocupações de segurança constituem incentivo adicional para a cooperação com a China, a fim de conter “a ameaça islâmica” na Ásia Central, e são também parte dos motivos principais para a reaproximação da Rússia com o Irã. A Rússia vendeu ao Irã submarinos, aviões de caça sofisticados, caça-bombardeiros, mísseis terra-ar e equipamento para reconhecimento e guerra eletrônica. Além disso, a Rússia concordou em construir reatores nucleares de água leve no Irã e em fomecer-lhe equipamento para enriquecimento de urânio. Em troca, a Rússia espera, de modo muito explícito, que o Irã contenha a disseminação do fundamentalismo na Ásia Central e, de modo implícito, que coopere para deter a expansão da influência turca nessa região e no Cáucaso. Nas próximas décadas, as relações da Rússia com o Islã serão certamente moldadas por suas percepções das ameaças criadas pela explosão populacional muçulmana ao longo de sua periferia meridional. Durante a Guerra Fria, a índia, o terceiro dos Estados-núcleos “oscilantes”, era aliada da União Soviética e travou uma guerra contra a China e várias contra o Paquistão. Suas relações com o Ocidente, especialmente com os Estados Unidos, eram distantes, quando não acrimoniosas. No mundo pós-Guerra Fria, as relações da índia com o Paquistão provavelmente continuarão altamente conflituosas por causa de Caxemira, das armas nucleares e, de modo geral, da balança de poder militar no Subcontinente. Na medida em que o Paquistão consiga obter o apoio de outros países muçulmanos, as relações da índia com o Islã serão, em geral, difíceis. Para enfrentar essa situação, é provável que a índia desenvolva esforços especiais, como fez no passado, a fim de persuadir, numa base individual, países muçulmanos a se distanciarem do Paquistão. Com o término da Guerra Fria, os esforços da China para estabelecer relações mais amistosas com seus vizinhos se estenderam à índia e assim diminuíram as tensões entre as duas. É improvável, porém, que essa tendência continue por muito tempo. A China se envolveu ativamente na política da Ásia Meridional e é de se presumir que continue a agir assim: mantendo uma íntima relação com o Paquistão, reforçando a capacidade militar convencional e nuclear do Paquistão e cortejando Myanmar com assistência econômica, investimentos e ajuda militar, ao mesmo tempo em que possivelmente esteja desenvolvendo instalações navais nesse país. No momento, o poderio chinês está-se expandindo e o poderio da índia poderia crescer de modo substancial no início do século XXI. O conflito parece altamente provável. Um analista comentou que “a rivalidade subjacente de poder entre os dois gigantes asiáticos e as imagens que fazem de si mesmos, como grandes potências e centros de civilização e cultura por natureza, continuarão a levá-los a apoiar países e causas diferentes. A índia se esforçará por emergir não só como um centro de poder independente no mundo multipolar, mas também como um contrapeso ao poderio e influência da China”. 48 A índia, confrontando pelo menos uma aliança China-Paquistão, quando não uma conexão mais ampla confúciano-islâmica, considerará claramente do seu interesse manter seu íntimo relacionamento com a Rússia e coptinuar sendo um dos principais compradores de equipamen¬ to militar fusso. Em meados dos anos 90, a índia estava obtendo da Rússia quase todos os principais tipos de armamentos, inclusive um porta-aviões e tecnologia criogênica para foguetes, o que levou à aplicação de sanções pelos Estados Unidos. Além da proliferação de armamentos, outras questões entre a índia e os Estados Unidos abrangeram direitos humanos, Caxemira e a liberalização econômica. Entretanto, com o passar do tempo, as relações Estados Unidos-Paquistão e seus interesses em comum na contenção da China provavelmente aproximarão mais a índia e os Estados Unidos. A expansão do poderio indiano na Ásia Meridional não pode prejudicar os interesses dos Estados Unidos e poderia até ser-lhes útil. As relações entre as civilizações e seus Estados-núcleos são complica¬ das, muitas vezes ambivalentes, e de fato se modificam. A maioria dos países numa mesma civilização geralmente seguirão a liderança do Estado-núcleo no desenvolvimento de suas relações com os países de uma outra civilização. Porém nem sempre é assim e, obviamente, nem todos os países de uma Figura 9.1 A Política Mundial das Civilizações: Alinhamentos Emergentes mesma civilização têm relações idênticas com todos os países de uma segunda civilização. Interesses em comum, geralmente um inimigo comum de uma terceira civilização, podem gerar cooperação entre países de civilizações diferentes. Obviamente, também ocorrem conflitos dentro das civilizações, especialmente do Islã. Além disso, as relações entre os grupos situados ao longo de linhas de fratura podem diferir de modo significativo das relações entre os Estados-núcleos dessas mesmas civiliza¬ ções. Não obstante, tendências amplas ficam evidentes e podem-se fazer generalizações plausíveis a respeito do que parecem ser os alinhamentos e antagonismos que estão surgindo entre civilizações e Estados-núcleos. Eles estão resumidos na Figura 91. A bipolaridade relativamente simples da Guerra Fria está dando lugar aos relacionamentos muito mais complexos de um mundo multipolar e multicivilizacional. Mais Conflituosa Menos Conflituosa Capítulo 10 Das Guerras de Transição às Guerras de Linha de Fratura I Guerras de Transição: Afeganistão e o Golfo O destacado estudioso marroquino Mahdi Elmandjra denominou a Guerra do Golfo, quando ela ainda estava se desenrolando, de la première guerre civilizationnelle . 1 Na verdade, ela foi a segunda. A primeira foi a Guerra Soviético-afegã de 1979-89. Ambas começaram como invasões simples e diretas de um país por outro, mas se transformaram e, em grande parte, se redefiniram como guerras de civilizações. Elas foram, na realidade, guerras de transição para uma era dominada por conflitos étnicos e guerras de linha de fratura entre grupos de civilizações diferentes. A Guerra do Afeganistão começou como um esforço da Uniãc Soviética para sustentar um regime satélite^ Ela se" tom5ü'W^rra dentro da Guerra Fria quando os Estados Unidos reagiram de modo vigoroso e organizaram, financiaram e equiparam os insurgentes afegãos que resistiram às forças soviéticas. Para os norte-americanos, a derrota soviética foi a confirmação da doutrina Reagan de promover a resistência armada aos regimes comunistas, e constituiu uma tranqüilizadora humi- açao dos soviéticos, comparável à que os Estados Unidos tinham so n o no Vieüia. Ela foi também uma derrota cujas ramificações se espalharam por toda a sociedade e estrutura política soviéticas, con¬ tribuindo de modo significativo para a desintegração do império sovié¬ 312 tico. Para os norte-americanos e para os ocidentais em geral, o Afeganis¬ tão foi a vitória final e decisiva, o Waterloo da Guerra Fria. Entretanto, para aqueles que lutaram contra os soviéticos, a Guerra do Afeganistão foi algo diferente. Um estudioso ocidental assinalou 2 que ela foi “a primeira resistência bem-sucedida a uma potência estrangeira que não estava baseada em princípios quer nacionalistas quer socialistas’’, mas sim em princípios islâmicos, que foi travada como uma jihad e que deu um enorme ímpeto à autoconfiança e ao poderio islâmicos. De fato, seu impacto sobre o mundo islâmico foi comparável ao que a derrota imposta pelos japoneses aos russos em 1905 teve sobre o mundo oriental. O que o Ocidente vê como uma vitória para o Mundo Livre, os muçulmanos vêem como uma vitória para o Islã. Os dólares e os mísseis norte-americanos foram indispensáveis para a derrota dos soviéticos. Entretanto, também indispensável foi o esforço coletivo do Islã, através do qual uma variedade de governos e de grupos competiam entre si, tentando derrotar os soviéticos e produzir uma vitória que iria servir aos seus interesses. O apoio financeiro muçulmano para a guerra veio basicamente da Arábia Saudita. Entre 1984 e 1986, os sauditas deram 525 milhões de dólares à resistência; em 1989, concorda¬ ram em fornecer 61 por cento de um total de 715 milhões de dólares, ou seja, 436 milhões, ficando o saldo por conta dos Estados Unidos. Em 4993, os sauditas proporcionaram 193 milhões de dólares para o governo afegão. A soma total das contribuições sauditas durante o transcurso da guerra foi pelo menos igual, e provavelmente superior, à quantia de três a 3,3 bilhões de dólares despendidos pelos Estados Unidos. Durante a guerra, cerca de 25 mil voluntários de outros países islâmicos, basica¬ mente árabes, participaram da guerra. Recrutados em grande parte na Jordânia, esses voluntários foram treinados pela agência de inteligência integrada das três forças armadas do Paquistão. Este país também proporcionou a indispensável base no exterior para a resistência, bem como apoio logístico e de outros tipos. Além disso, o Paquistão foi o agente e o conduto para o desembolso do dinheiro norte-americano e, propositadamente, dirigiu 75 por cento desses fundos para os grupos islâmicos mais fundamentalistas, com a metade dessa parte indo para a facção fundamentalista sunita mais extremada, liderada por Gulbuddin Hekmaryar. Embora estivessem lutando contra os soviéticos, os árabes participantes da guerra eram predominantemente antiocidentais e con¬ denavam as agências ocidentais de ajuda humanitária como imorais e subversoras do Islamismo. No final, os soviéticos foram derrotados por 212 três fatores que não tinham como igualar ou neutralizar de forma eficaz: a tecnologia norte-americana, o dinheiro saudita e a devoção e de¬ mografia muçulmanas. 3 A guerra deixou atrás de si uma coligação instável de organizações fundamentalistas islâmicas empenhadas na promoção do Islamismo contra todas as forças não-muçulmanas. Deixou também uma herança de combatentes especializados e experimentados, acampamentos, cam¬ pos de treinamento e instalações logísticas, sofisticadas redes transislâ- micas de relacionamentos de pessoal e de organizações, considerável quantidade de equipamento militar, inclusive de 300 a 500 mísseis Stinger, de que não se tem registro, e, o que é mais importante, uma inebriante sensação de poder e autoconfiança pelo que haviam conseguido, assim como um intenso desejo de seguir adiante, rumo a novas vitórias. Uma autoridade norte-americana disse, em 1994, que “as credenciais dajihad, religiosas e políticas”, dos voluntários afegãos, “são impecáveis. Eles derrotaram uma das duas superpotências mundiais e agora estão traba¬ lhando em cima da segunda” Á A Guerra do Afeganistão tornou-se uma guerra de civilizações porque os muçulmanos em todas as partes a viram como tal e se juntaram contra a União Soviética. A Guerra do Golfo tornou-se uma guerra de (Civilizações porque o Ocidente interveio militarmente num conflito muçulmano, os ocidentais apoiaram de forma majoritária essa interven¬ ção e os muçulmanos pelo mundo afora acabaram por ver tal intervenção como uma guerra contra eles e se juntaram contra aquilo que viram como mais um exemplo do imperialismo ocidental. Inicialmente, os governos árabes e muçulmanos ficaram divididos a respeito dessa guerra. Saddam Hussein tinha violado a intocabilidade das fronteiras e, em agosto de 1990, a Liga Árabe decidiu, por uma maioria expressiva de votos (14 a favor, dois contra e cinco abstenções ou não-participação na votação), condenar sua ação. O Egito e a Síria concordaram em contribuir com uma quantidade considerável de tropas, e o Paquistão, Marrocos e Bangladesh com quantidades menores, para a formação de uma coligação contra o Iraque organizada pelos Estados Unidos. A Turquia fechou o oleoduto que atravessava seu território, indo do Iraque até o Mediterrâneo, e permitiu que a coligação utilizasse suas bases aéreas. Em troca dessas ações, a Turquia fortaleceu sua pretensão de ser admitida na Europa, o Paquistão e o Marrocos reafirmaram seu íntimo relacionamento com a Arábia Saudita, o Egito conseguiu o cancelamento da dívida externa e a Síria obteve o Líbano. Em contraste, os governos do Irã, Jordânia, Líbia, Mauritânia, Iêmen, Sudão e Tunísia, bem como organizações como a OLP, o Hamas e a FIS [Frente Islâmica de Salvação], apesar do apoio financeiro que muitas tinham recebido da Arábia Saudita, apoiaram o Iraque e condenaram a intervenção ocidental. Outros governos muçulmanos, como o da Indonésia, assumiram posições de acomodação ou tentaram evitar adotar qualquer posição. Enquanto os governos muçulmanos ficaram inicialmente divididos, a opinião pública árabe e muçulmana se mostrou, desde o princípio, maci¬ çamente antiocidental. Um observador norte-americano informou, depois de visitar o Iêmen, a Síria, o Egito, a Jordânia e a Arábia Saudita três semanas depois da invasão do Kuwait, que “o mundo árabe está (...) fervilhando de ressentimento contra os Estados Unidos, mal conseguindo disfarçar sua satisfação ante a perspectiva de um líder árabe suficientemente audaz para desafiar a maior potência da Terra”. 5 Do Marrocos à China, milhões de muçulmanos se congregaram em apoio a Saddam Hussein e “sauda¬ ram-no como um herói muçulmano”. 6 O paradoxo da democracia foi “o grande paradoxo desse conflito”: o apoio a Saddam Hussein foi “mais fervoroso e amplo” naqueles países árabes onde a política era mais aberta e a liberdade de expressão sofria menos limitações. 7 No Marrocos, Paquistão, Jordânia, Indonésia e em outros países, houve imensas demonstrações de rua condenando o Ocidente e os dirigentes políticos rei Hassan, Benazir Bhutto e Suharto, que eram vistos como lacaios do Ocidente. A oposição à coligação surgiu até na Síria, onde “um amplo espectro de cidadãos se opôs à presença de forças estrangeiras no Golfo”, e Hafez al-Assad teve que justificar seu envio de tropas como necessário para equilibrar e finalmente substituir as forças aliadas. Setenta e cinco por cento dos 100 milhões de muçulmanos da índia culparam os Estados Unidos pela guerra, e os 171 milhões de muçulmanos da Indonésia ficaram “quase unanimemente” contra a ação militar dos Estados Unidos no Golfo. Os intelectuais árabes se alinharam de modo análogo e formularam complicados raciocínios para não tomar conhecimento da brutalidade de Saddam e condenar a intervenção ocidental. 8 Os árabes e os muçulmanos de modo geral concordavam que Saddam Hussein podia ser um tirano sanguinário, porém, imitando o pensamento de Franklin Delano Roosevelt, “ele é o nosso tirano sangui¬ nário”. Na opinião deles, a invasão tinha sido um assunto de família, a ser resolvido no seio da família, e aqueles que intervieram em nome de alguma grandiosa teoria de justiça internacional estavam agindo assim para proteger seus próprios interesses egoístas e para manter a subordi- 315 nação árabe ao Ocidente. Um estudo informou que os intelectuais árabes “têm desprezo pelo regime iraquiano e lamentam sua brutalidade e autoritarismo, mas o consideram como um centro de resistência ao grande inimigo do mundo árabe, o Ocidente”. Um professor palestino disse que “o que Saddam fez estava errado, mas não podemos condenar o Iraque por enfrentar a intervenção militar ocidental”. Os muçulmanos no Ocidente e em outras áreas condenaram a presença de tropas não-muçulmanas na Arábia Saudita e a decorrente “violação” dos lugares sagrados muçulmanos. 9 Em síntese, a opinião predominante era: Saddam esteve errado ao invadir, o Ocidente esteve mais errado em intervir, por conseguinte, Saddam esteve certo em lutar contra o Ocidente e nós estamos certos em apoiá-lo. Saddam Hussein, como os participantes principais em outras guer¬ ras de linha de fratura, identificou seu regime, até então secular, com a causa que exerceria o máximo de atração: o Islamismo. Embora a Arábia Saudita seja estritamente muçulmana nas suas práticas e instituições, com as possíveis exceções do Irã e do Sudão, e embora ela tenha financiado grupos fundamentalistas islâmicos pelo mundo afora, nenhum movimen¬ to fundamentalista islâmico em qualquer país apoiou a coligação ociden¬ tal contra o Iraque e praticamente todos condenaram a intervenção ocidental. Dado o formato em U da distribuição de identidades no mundo islâmico, Saddam não tinha muita opção senão se identificar com o Islamismo. Um comentarista egípcio assinalou que essa escolha do Islamismo em vez tanto do nacionalismo árabe quanto de um vago . antiocidentalismo terceiro-mundista “demonstra o valor do Islamismo como ideologia política para mobilizar apoio”. 10 Para os muçulmanos, essa guerra rapidamente passou a ser uma guerra entre civilizações, na qual a inviolabilidade do Islã estava em jogo. Os grupos fundamentalistas islâmicos do Egito, Síria, Jordânia, Paquistão, Malásia, Afeganistão, Sudão e outros países condenaram-na como uma guerra contra “o Islã e sua civilização” por uma aliança de “cruzados e sionistas” e proclamaram seu apoio ao Iraque diante da “agressão militar e econômica contra o seu povo”. No outono de 1990, o decano do Colégio Islâmico de Meca, Safar al-Hawali, declarou numa gravação em fita, que circulou amplamente pela Arábia Saudita, que a guerra “não é o mundo contra o Iraque. Ela é o Ocidente contra o Islã”. Em termos semelhantes, o rei Hussein sustentou que ela era “uma guerra contra todos os árabes e todos os muçulmanos, e não apenas contra o Iraque”. Além disso, como ressalta Fatima Mernissi, as freqüentes invocações 316 retóricas de Deus feitas pelo presidente Bush em nome dos Estados Unidos reforçaram a percepção árabe de que era “uma guerra religiosa”, com as observações de Bush dando a aparência “dos ataques mercenários e calculistas das hordas pré-islâmicas do século VII e as cruzadas cristãs que vieram depois”. Por sua vez, os argumentos de que a guerra era uma cruzada produzida por uma conspiração ocidental e sionista justificaram, e até exigiram, a mobilização de uma jihad em resposta. 11 A definição muçulmana da guerra como sendo Ocidente versus Islã facilitou a diminuição ou a suspensão de antagonismos no seio do mundo islâmico. Velhas diferenças entre muçulmanos perderam sua importância em comparação com a diferença maior entre o Islã e o Ocidente. No decurso da guerra, governos e grupos muçulmanos se moveram sis¬ tematicamente no sentido de se afastarem do Ocidente. Como a sua antecessora no Afeganistão, a Guerra do Golfo reuniu muçulmanos que anteriormente tinham muitas vezes estado se esganando mutuamente: secularistas árabes, nacionalistas e fundamentalistas; o governo jordania- no e os palestinos; a OLP e o Hamas; Irã e Iraque; partidos de oposição e governos, de modo geral. Como colocou Safar al-Hawali, “esses ba’athistas do Iraque são nossos inimigos por algumas horas, mas Roma é nossa inimiga até o Dia do Juízo Final”. 12 A guerra também deu início ao processo de reconciliação entre o Iraque e o Irã. Os líderes religiosos xiitas do Irã condenaram a intervenção ocidental e conclamaram a uma jihad contra o Ocidente. O governo iraniano se distanciou das medidas dirigidas contra seu antigo inimigo, e à guerra seguiu-se uma melhoria gradual das relações entre os dois regimes. Um inimigo externo também reduz os conflitos dentro de um país. Em janeiro de 1991, por exemplo, informou-se que o Paquistão estava “inundado de polêmicas antiocidentais” que produziram a união, pelo menos por pouco tempo, dentro do país. “O Paquistão nunca esteve tão unido. Na província meridional de Sind, onde os sindhis autóctones e os imigrantes vindos da índia vêm se matando há cinco anos, as pessoas de ambos os lados participam de braços dados das demonstrações contra os Estados Unidos. Nas áreas ultraconservadoras da Fronteira do Noroes¬ te, até mesmo as mulheres saem às ruas para protestar, muitas vezes em locais onde as pessoas nunca se congregaram a não ser para as preces de sexta-feira.” 13 À medida que a opinião pública ficou mais decidida contra a guerra, os governos que se tinham inicialmente associado com a coligação deram marcha à ré, ficaram divididos ou desenvolveram racionalizações com- 317 plicadas para suas ações. Governos de líderes como Hafiz al-Assad que tinham contribuído com tropas argumentaram que elas eram necessárias para equilibrar e acabar por substituir as forças ocidentais na Arábia Saudita, e que, de qualquer modo, elas seriam usadas unicamente para fins defensivos e para a proteção dos lugares santos. Na Turquia e no Paquistão, os principais líderes militares condenaram publicamente o alinhamento de seus governos com a coligação. Os governos egípcio e sírio, que contribuíram com a maior parte das tropas, tinham controle suficiente sobre suas sociedades para serem capazes de reprimir e ignorar pressões antiocidentais. Os governos de países muçulmanos um tanto mais abertos foram induzidos a se afastar do Ocidente e adotar posições cada vez mais antiocidentais. No Maghreb, “a explosão de apoio ao Iraque” foi “uma das maiores surpresas da guerra”. A opinião pública tunisiana era fortemente contra o Ocidente e o presidente Ben Ali apressou-se em condenar a intervenção ocidental. O governo do Marrocos inicialmente contribuiu com 1.500 homens para a coligação, mas depois, à medida que grupos antiocidentais se mobilizaram, também endossou uma greve geral em favor do Iraque. Na Argélia, uma demonstração pró-Iraque de 400 mil pessoas levou o presidente Bendjedid, que inicialmente se inclinara para o Ocidente, a mudar sua posição, condenar o Ocidente e declarar que “a Argélia ficará ao lado do seu irmão, o Iraque”. 14 Em agosto de 1990, os três governos do Maghreb tinham votado na Liga Árabe para condenar o Iraque. No outono, respondendo aos intensos sentimentos de seus povos, votaram a favor de uma moção para condenar a intervenção norte-americana, que foi derrotada pela estreita margem de 10 a 11. O esforço militar ocidental também atraiu pouco apoio das pessoas de civilizações não-ocidentais e não-muçulmanas. Em janeiro de 1991, 53 por cento dos japoneses entrevistados se opunham à guerra, enquanto 25 por cento a apoiavam. Os hindus se dividiram exatamente ao meio entre os que culpavam Saddam Hussein e os que culpavam George Bush pela guerra, a qual, segundo alertava o The Times of índia, poderia levar a uma confrontação muito mais abrangente entre um mundo judaico- cristão forte e arrogante e um mundo muçulmano fraco, incendiado pelo fervor religioso . A Guerra do Golfo começou assim como uma guerra entre o Iraque e o Kuwait, depois se tornou uma guerra entre o Iraque e o Ocidente, depois entre o Islã e o Ocidente, e acabou sendo vista por muitos não-ocidentais como uma guerra Oriente versus Ocidente, “uma guerra do homem branco, um novo surto do imperialismo à moda antiga”. 15 318 Excetuados os kuwaitianos, nenhum povo islâmico se entusiasmou com a guerra, e a maioria deles demonstrou uma oposição majoritária à intervenção ocidental. Quando a guerra terminou, os desfiles da vitória realizados em Londres e em Nova York não foram repetidos em nenhum outro lugar. Sohail H. Hashmi assinalou que “a conclusão da guerra não deu motivos para júbilo” em meio aos árabes. Em vez disso, a atmosfera predominante foi de intensa decepção, desilusão, humilhação e res¬ sentimento. Uma vez mais o Ocidente tinha ganho. Novamente, o mais recente Saladin que havia elevado as esperanças árabes tinha caído em derrota diante do poderio maciço do Ocidente, que havia sido introdu¬ zido pela força na comunidade do Islã. Fatima Memissi indagou: “O que de pior poderia ter acontecido aos árabes do que aquilo que a guerra produziu, o Ocidente inteiro, com toda a sua tecnologia, lançando bombas sobre nós? Foi o horror definitivo.” 16 Logo após a guerra, a opinião pública árabe fora do Kuwait criticou cada vez mais a presença militar norte-americana no Golfo. A liberação do Kuwait eliminou qualquer racionalização para se opor a Saddam Hussein e deixou pouca justificativa para uma continuação da presença militar norte-americana no Golfo. Em conseqüênda, até mesmo em países como o Egito, a opinião pública ficou mais favorável ao Iraque. Os governos árabes que se haviam juntado à coligação alteraram suas posturas. 17 O Egito e a Síria, além de outros, se opuseram à imposição, em agosto de 1992, de uma zona de vôo proibido no sul do Iraque. Os governos árabes e a Turquia também objetaram aos ataques aéreos contra o Iraque em janeiro de 1993- Se o poder aéreo ocidental podia ser empregado em resposta a ataques contra muçulmanos xiitas e curdos por muçulmanos sunitas, por que ele também não era empregado para responder aos ataques contra os muçulmanos bósnios por sérvios ortodoxos? Em junho de 1993, quando o presidente Clinton ordenou um bombardeio de Bagdá em represália à tentativa iraquiana de assassinar o ex-presidente Bush, a reação internacional obedeceu estritamente às linhas civilizacionais. Israel e os governos europeus ocidentais apoiaram firmemente o ataque aéreo; a Rússia o aceitou como autodefesa “jus¬ tificada”; a China expressou sua “profunda preocupação”; a Arábia Saudita e os emirados do Golfo nada disseram; outros governos muçul¬ manos, inclusive o egípcio, o condenaram como outro exemplo dos dois pesos e duas medidas do Ocidente, enquanto o Irã classificou-o de “flagrante agressão” impulsionada pelo “neo-expansionismo e egoísmo norte-americano. 18 Reiteradamente foi feita a pergunta: por que os 319 Estados Unidos e a “comunidade internacional” (ou seja, o Ocidente) não reagem de modo análogo ao comportamento abusivo de Israel e às suas violações das Resoluções das Nações Unidas? A Guerra do Golfo foi a primeira guerra por recursos naturais no pós-Guerra Fria travada entre civilizações. Estava em jogo a questão de se as maiores reservas mundiais de petróleo ficariam sob o controle dos governos sauditas e dos emirados, dependentes do poderio militar ocidental para sua segurança, ou de regimes independentes antiociden- tais que teriam a capacidade e poderiam ter a disposição de empregar a arma do petróleo contra o Ocidente. Embora não tendo conseguido derrubar Saddam Hussein, o Ocidente, de certo modo, logrou uma vitória ao marcar a dependência do Ocidente em que estão os Estados do Golfo em matéria de segurança, bem como ao conseguir uma maior presença militar no Golfo em tempo de paz. Antes da guerra, o Irã, o Iraque, o Conselho de Cooperação do Golfo e os Estados Unidos disputavam a influência sobre o Golfo. Depois da guerra, o Golfo Pérsico virou um lago norte-americano. Características das Guerras de Linha de Fratura As guerras entre clãs, tribos, grupos étnicos, comunidades religiosas e nações predominaram em todas as eras e em todas as civilizações porque elas têm suas raízes nas identidades das pessoas. Esses conflitos tendem a ser particularistas no sentido de que não envolvem questões ideológicas ou políticas mais amplas de interesse direto para não-participantes, embora possam despertar preocupações humanitárias em grupos de fora. Esses conflitos tendem também a ser perversos e sanguinários, uma vez que estão em jogo questões fundamentais de identidade. Além disso, eles tendem a ser prolongados, podendo ser interrompidos por tréguas ou acordos, que, entretanto, tendem a se desfazer, e então os conflitos são reiniciados. Por outro lado, uma vitória decisiva por um dos lados numa guerra civil por identidade aumenta a probabilidade de um genocídio. 19 Os conflitos de linha de fratura são conflitos comunitários entre Estados ou grupos de civilizações diferentes. As guerras de linha de fratura são conflitos que se tomaram violentos. Essas guerras podem ocorrer entre Estados, entre grupos não-govemamentais e entre Estados e grupos não-govemamentais. Os conflitos de linha de fratura no seio de um mesmo Estado podem envolver grupos que estão predominante¬ mente localizados em áreas geográficas distintas, caso em que o grupo 320 que não detém o controle do governo normalmente luta pela indepen¬ dência e pode ou não estar disposto a aceitar uma solução por algo menos do que ela. Os conflitos no seio de um Estado podem também envolver grupos que estão entremeados geograficamente, caso em que as relações continuamente tensas irrompem em violência de tempos em tempos, como se dá com os hindus e os muçulmanos na índia e com os muçulmanos e os chineses na Malásia; ou então podem ocorrer lutas em larga escala, especialmente quando estão sendo estabelecidos novos Estados e suas fronteiras, podendo resultar em tentativas, muitas vezes brutais, de se separar povos pela força. Algumas vezes, os conflitos de linha de fratura são lutas pelo controle de pessoas. Com maior freqüência, a questão é o controle de território. O objetivo de pelo menos um dos participantes é conquistar território e livrá-lo de outras pessoas, expulsando-as, matando-as ou fazendo ambas as coisas, ou seja, praticando a “limpeza étnica”. Esses conflitos tendem a ser violentos e cruéis, com ambos os lados perpetran¬ do massacres, atos de terrorismo, estupros e torturas. O território em questão muitas vezes passa a ser para um ou para ambos os lados um símbolo de alto significado de sua história ou identidade, uma terra sagrada à qual eles têm um direito inviolável: a Margem Ocidental, Caxemira, Nagorno-Karabakh, o Vale do Drina, Kosovo. As guerras de linha de fratura compartilham de algumas, mas não de todas, características das guerras comunitárias em geral. Elas são conflitos prolongados. Quando elas se desenrolam no seio de um Estado, duram em média seis vezes mais do que as guerras entre Estados. Como elas envolvem questões fundamentais de poder e de identidade de grupo, são difíceis de resolver através de negociações e acomodações. Quando se chega a acordos, muitas vezes eles não são assinados por todas as partes de cada lado e geralmente não duram muito tempo. As guerras de linha de fratura são do tipo pára-e-recomeça, que pode eclodir numa imensa violência e depois ir diminuindo para uma guerra de baixa intensidade ou hostilidade soturna, para novamente eclodir. As chamas da identidade e do ódio comunitário raramente são extintas por comple¬ to, a não ser através do genocídio. Em conseqüência da sua natureza prolongada, as guerras de linha de fratura, como outras guerras comu¬ nitárias, tendem a gerar grande quantidade de mortos e de refugiados. As estimativas de uns e de outros devem ser tratadas com cautela, mas as cifras comumente aceitas de mortos em guerras de linha de fratura em curso no início dos anos 90 compreendiam: 50 mil nas Filipinas, 50 mil 321 a 100 mil em Sri Lanka, 20 mil em Caxemira, 500 mil a um milhão e meio no Sudão, 100 mil no Tadjiquistão, 50 mil na Croácia, 50 mil a 200 mil na Bósnia, 30 mil a 50 mil na Chechênia, 100 mil no Tibete, 200 mil em Timor Oriental. 20 Praticamente todos esses conflitos geraram cifras muito mais elevadas de refugiados. Muitas dessas guerras contemporâneas são simplesmente a rodada mais recente de uma longa história de conflitos sangrentos e, no final do século XX, a violência resistiu aos esforços para se acabar com ela de modo permanente. As lutas no Sudão, por exemplo, irromperam em 1956, continuaram até 1972, quando se chegou a um acordo que atribuía certa autonomia ao Sudão meridional, porém recomeçaram em 1983. A rebelião dos tâmiles em Sri Lanka começou em 1983; as negociações de paz para pôr-lhe fim se interromperam em 1991 e foram retomadas em 1994, chegando-se a um acordo sobre cessar-fogo em janeiro de 1995- Entretanto, quatro meses depois, os insurgentes, autodenominados de Tigres, romperam a trégua, se retiraram das conversações de paz e a guerra recomeçou com violência ainda maior. A rebelião dos Moros nas Filipinas começou no início da década de 70 e diminuiu em 1976, depois de se chegar a um acordo concedendo certa autonomia a algumas áreas de Mindanao. Em 1993, porém, novos atos de violência vinham ocorren¬ do com freqüência e numa escala crescente, quando grupos insurgentes dissidentes repudiaram as tentativas de pacificação. Os dirigentes russos e chechenos chegaram a um acordo de desmilitarização em julho de 1995, destinado a pôr termo à violência que começara em dezembro do ano anterior. A guerra se atenuou por algum tempo, mas logo foi reativada com ataques chechenos contra indivíduos russos ou líderes pró-Rússia, represálias russas, a incursão chechena no Daguestão em janeiro de 1996 e a maciça ofensiva russa do início de 1996. Conquanto as guerras de linha de fratura compartilhem das características de longa duração, altos níveis de violência e ambivalência ideológica que têm as outras guerras comunitárias, elas também diferem destas em dois pontos. Primeiro, as guerras comunitárias podem ocorrer entre grupos étnicos, religiosos, raciais ou lingüísticos. Entretanto, como a religião é a principal característica definitória das civilizações, as guerras de linha de fratura são travadas quase sempre entre povos de religiões diferentes. Alguns analistas minimizam a importância desse fator. Eles apontam, por exemplo, para a etnia e o idioma compartilhados, a coexis¬ tência pacífica no passado e a grande quantidade de casamentos entre sérvios e muçulmanos na Bósnia, e descartam o fator religioso com referências ao “narcisismo das pequenas diferenças” de Freud. 21 Essa avaliação, porém, está baseada numa miopia secular. Milênios de História da Humanidade demonstraram que a religião não é uma “pequena diferen¬ ça”, mas sim talvez a diferença mais profunda que possa existir entre as pessoas. A freqüência, a intensidade e a violência das guerras de linha de fratura são muito aumentadas pelas crenças em deuses diferentes. Segundo, as outras guerras comunitárias tendem a ser pluralistas e, em conseqüência, há relativamente pouca probabilidade de que se alastrem e envolvam participantes adicionais. As guerras de linha de fratura, ao contrário, são por definição travadas entre grupos que formam parte de entidades culturais maiores. No conflito comunitário costumeiro, o Grupo A está lutando contra o Grupo B, e os Grupos C, D e E não têm razão alguma para se envolver, a menos que A ou B ataquem diretamente os interesses de C, D ou E. Numa guerra de linha de fratura, ao contrário, o Grupo Al está lutando contra o Grupo BI e cada um deles tentará expandir a guerra e mobilizar apoio de grupos afins da mesma civilização — A2, A3, A4 e B2, B3 e B4 —, e esses grupos, por sua vez, se identificarão com seus afins em luta. A expansão dos meios de transporte e comuni¬ cações do mundo moderno facilitou o estabelecimento dessas conexões e, em conseqüência, a “internacionalização” dos conflitos de linha de fratura. A migração criou diásporas em terceiras civilizações. As comuni¬ cações facilitam a grupos em litígio apelarem por auxílio, e a seus grupos afins tomarem conhecimento imediatamente do destino que estão tendo aquelas partes em conflito. O encolhimento generalizado do mundo habilita assim os grupos afins a proporcionar apoio moral, diplomático, financeiro e material aos grupos em litígio — e torna muito mais difícil não fazê-lo. Desenvolvem-se redes internacionais para prestar esse apoio, e o apoio, por sua vez, dá sustentação aos participantes e prolonga o conflito. Essa “síndrome de país-afim”, para usar a expressão de H. D. S. Greenways, é uma faceta fundamental das guerras de linha de fratura do final do século XX. 22 De forma mais genérica, até mesmo pequenas doses de violência entre pessoas de civilizações diferentes têm ramificações e conseqüências que inexistem na violência intercivilizacional. Quando pistoleiros sunitas mataram 18 fiéis xiitas numa mesquita em Karachi em fevereiro de 1995, eles além disso perturbaram a paz na cidade e criaram um problema para o Paquistão. Quando, exatamente um ano depois, um colono judeu matou 29 muçulmanos que estavam rezando na Caverna dos Patriarcas, em Hebron, ele perturbou a paz no Oriente Médio e criou um problema para o mundo. INCIDÊNCIA: AS FRONTEIRAS ENSANGÜENTADAS DO ISLà Os conflitos comunitários e as guerras de linha de fratura fazem parte da História e, segundo um levantamento, durante a Guerra Fria ocorreram 32 conflitos étnicos, inclusive as guerras de linha de fratura entre árabes e israelenses, indianos e paquistaneses, muçulmanos e cristãos do Sudão, budistas e tâmiles de Sri Lanka e xiitas e maronitas do Líbano. As guerras de identidade constituíram cerca da metade de todas as guerras civis durante as décadas de 40 e 50, porém representaram cerca de três quartos das guerras civis durante as décadas seguintes, e a intensidade das rebeliões envolvendo grupos étnicos triplicou entre o começo da década de 50 e o final da de 80. 23 Entretanto, dada a abrangência predominante da rivalidade entre as duas superpotências, esses conflitos, com algumas notáveis exceções, atraíram relativamente pouca atenção e foram vistos pelo prisma da Guerra Fria. Quando se encerrou a Guerra Fria, os conflitos comunitários se tornaram mais proeminentes e, pode-se dizer, mais importantes do que tinham sido anteriormente. Na realidade, aconteceu algo muito parecido com um “surto” de conflitos étnicos. Esses conflitos étnicos e guerras de linha de fratura não se dis¬ tribuíram de maneira uniforme entre as civilizações do mundo. Os principais embates se deram entre sérvios e croatas na antiga Iugoslávia e entre budistas e hindus em Sri Lanka, enquanto que conflitos menos violentos tiveram lugar entre grupos não-muçulmanos em outros pontos. Contudo, a enorme maioria dos conflitos de linha de fratura ocorreram ao longo dos limites sinuosos que, através da Eurásia e da África, separam os muçulmanos dos não-muçulmanos. Enquanto, no nível global ou macro da política mundial, o choque central das civilizações se situa entre o Ocidente e o resto, no nível local ou micro, ele se situa entre o Islã e os outros. Intensos antagonismos e conflitos violentos se espraiam entre povos muçulmanos e não-muçulmanos em áreas localizadas. Na Bósnia, os muçulmanos travaram uma guerra sangrenta e desastrosa com os sérvios ortodoxos e se engajaram em outras ações violentas com os croatas católicos. Em Kosovo, os muçulmanos albaneses padecem, descontentes, sob a autoridade sérvia e mantêm seu próprio governo paralelo clandes¬ tino, havendo grande expectativa ante a probabilidade de violência entre os dois grupos. Os governos da Albânia e da Grécia estão às turras em relação aos direitos de suas respectivas minorias no território da outra. Os turcos e os gregos estão historicamente engalfinhados e seu relacio¬ namento é dominado pelos conflitos em torno de Chipre, das reivin¬ dicações incompatíveis de soberania no Mar Egeu e de seu poder militar relativo. Em Chipre, os turcos muçulmanos e os gregos ortodoxos mantêm Estados adjacentes hostis. No Cáucaso, a Turquia e a Armênia são inimigos históricos, e os azeris e os armênios estão em guerra pelo controle de Nagorno-Karabakh. No Cáucaso setentrional, há 200 anos, os chechenos, os ingushes e outros povos muçulmanos lutam de forma intermitente por sua independência da Rússia, uma luta que foi reiniciada de forma sangrenta pela Rússia e pela Chechênia em 1994. Também houve luta entre os ingushes e os ossécios ortodoxos. Na bacia do Volga, os tártaros muçulmanos lutaram contra os russos no passado, e chegaram atualmente a uma acomodação instável com a Rússia por uma soberania limitada. Durante todo o século XIX, a Rússia estendeu gradualmente, pela força, seu controle sobre os povos muçulmanos da Ásia Central, Na década de 80, os afegãos e os russos lutaram numa guerra de vulto e, com a retirada russa, sua seqüência prossegue no Tadjiquistão, entre forças russas, que apoiam o atual governo, e os insurgentes, em sua maioria fundamentalistas islâmicos. Em Xinjiang, os uigures e outros grupos muçulmanos lutam contra a sinificação e estão desenvolvendo suas relações com seus afins étnicos e religiosos nas ex-repúblicas soviéticas. No Subcontinente, o Paquistão e a índia travaram três guerras, uma insurreição muçulmana contesta a autoridade indiana em Caxemira, imigrantes muçulmanos lutam contra povos tribais no Assam, e muçul¬ manos e hindus se engajam periodicamente em distúrbios de rua e violência por toda a índia, em erupções alimentadas pela ascensão de movimentos fundamentalistas em ambas as comunidades religiosas. Em Bangladesh, os budistas protestam contra a discriminação pela maioria muçulmana, enquanto que, em Myanmar, os muçulmanos protestam contra a discriminação pela maioria budista. Na Malásia e na Indonésia, periodicamente os muçulmanos fazem distúrbios de rua contra os chineses, protestando contra seu domínio da economia. No sul da Tailândia, grupos muçulmanos se envolveram numa insurreição intermi¬ tente contra um governo budista, enquanto que, no sul das Filipinas, uma insurreição muçulmana luta pela independência de um país e governo católico. Na Indonésia, por outro lado, os timorenses orientais lutam contra a repressão de um governo muçulmano. No Oriente Médio, onde o conflito entre árabes e judeus na Palestina data do estabelecimento da pátria judia, ocorreram quatro guerras entre Israel e Estados árabes, e os palestinos estão engajados na intifada contra a autoridade israelense. No Líbano, os cristãos maronitas travaram uma guerra malsucedida contra os xiitas e outros muçulmanos. Na Etiópia, os amharas ortodoxos reprimiram historicamente os grupos étnicos muçul¬ manos e atualmente enfrentam uma insurreição dos oromos muçulma¬ nos. Por todo o bolsão africano, vêm se desenrolando vários conflitos entre povos árabes e muçulmanos ao norte e povos negros animistas- cristãos ao sul. A mais sangrenta das guerras muçulmano-cristãs se desenrola no Sudão, arrastando-se há décadas e tendo produzido centenas de milhares de baixas. A vida política nigeriana foi dominada pelo conflito entre fulani-hausa muçulmanos ao norte e as tribos cristãs ao sul, com freqüentes distúrbios de rua, golpes e uma guerra de vulto. No Chade, no Quênia e na Tanzânia, ocorreram lutas semelhantes entre grupos muçulmanos e cristãos. Em todos esses lugares, as relações entre os muçulmanos e os povos de outras civilizações — católica, protestante, ortodoxa, hindu, chinesa, budista, judaica — têm de modo geral sido antagônicas. A maioria dessas relações tomou-se violenta em algum momento do passado e muitas ficaram violentas nos anos 90. Para onde quer que se olhe ao longo do perímetro do Islã, os muçulmanos tiveram problemas para viver em paz com seus vizinhos. Surge naturalmente a indagação de se esse padrão de conflitos no final do século XX entre grupos muçulmanos e não-mu¬ çulmanos também se aplica às relações entre grupos de outras civiliza¬ ções. Na realidade, não. Os muçulmanos compõem cerca de um quinto da população mundial, porém, nos anos 90, eles se envolveram mais em violências entre grupos do que os povos de qualquer outra civilização. As provas são avassaladoras. 1. Os muçulmanos participaram de 26 dos 50 conflitos etnopolíticos no período de 1993-1994, analisado em profundidade por Ted Robert Gurr (Quadro 10.1). Vinte desses conflitos ocorreram entre grupos de civilizações diferentes, dos quais 15 foram entre muçul¬ manos e não-muçulmanos. Em resumo, houve três vezes mais conflitos intercivilizacionais envolvendo muçulmanos do que os que ocorreram entre todas as civilizações não-muçulmanas. O número de conflitos no seio do Islã também foi maior do que os ocorridos dentro de qualquer outra civilização, incluindo os confli¬ tos tribais na África. Em contraste com o Islã, o Ocidente se envolveu em apenas dois conflitos intracivilizacionais e dois intercivilizacio¬ nais. Os conflitos envolvendo muçulmanos também tenderam a ter Quadro 10.1 Conflitos Etnopolíticos / 1993 —1994 Intracivilizacional Intercivilizacionai Total * Dos quais 10 eram conflitos tribais na África. Fonte: Ted Robert Gurr, “Peoples Against States: Ethnopolitical Conflict and the Changing World System” [Povos Contra Estados: Conflitos Etnopolíticos e o Sistema Mundial em Mutação], International Studies Quarterly, v. 38 (setembro de 1994), pp. 347*78. Utilizei a classificação dos conflitos de Gurr, exceto ao transferir o conflito sino-tibetano, que ele classifica como não-civilizacional, para a categoria de intercivilizacionai, já que ele é claramente um conflito entre os chineses han confucionistas e os tibetanos budistas lamaístas. quantidade elevada de baixas. Dos seis nos quais Gurr avalia que 200 mil ou mais pessoas foram mortas, três (Sudão, Bósnia, Timor Oriental) foram entre muçulmanos e não-muçulmanos, dois (Somália, Iraque-curdos) foram entre muçulmanos e apenas um (Angola) envolveu apenas não-muçulmanos. 2. O New York Times identificou 48 lugares nos quais, em 1993, estavam ocorrendo cerca de 59 conflitos étnicos. Na metade desses lugares, muçulmanos estavam se batendo contra outros muçulma¬ nos ou contra não-muçulmanos. Trinta e um dos 59 conflitos se davam entre grupos de civilizações diferentes, e traçando um paralelo com os dados de Gurr, dois terços (21) desses conflitos intercivilizacionais eram entre muçulmanos e outros povos (Quadro 10.2). 3. Numa outra análise ainda, Ruth Leger Sivard identificou 29 guerras (definidas como conflitos que envolviam mil ou mais mortos num ano) em curso durante 1992. Nove dos 12 conflitos intercivilizacio¬ nais foram entre muçulmanos e não-muçulmanos e, uma vez mais, os muçulmanos estavam travando mais guerras do que os povos de qualquer outra civilização. 24 2T7 Portanto, três compilações diversas de dados produzem a mesma conclusão: no início dos anos 90, os muçulmanos estavam engajados em mais violência entre grupos do que os não-muçulmanos, e de dois terços a três quartos das guerras intercivilizacionais se travaram entre muçulma¬ nos e não-muçulmanos. As fronteiras do Islã são sangrentas, como também o são suas entranhas.* A propensão muçulmana para o conflito violento também é in¬ dicada pelo grau em que as sociedades muçulmanas são militarizadas. Na década de 80, os países muçulmanos tinham proporções de forças armadas (isto é, o número de militares por mil habitantes) e índices de esforço militar (proporção das forças armadas ajustada à riqueza do país) significativamente mais altos do que os de outros países. Em contraste, os países cristãos tinham proporções de forças armadas e índices de esforço militar significativamente mais baixos do que os de outros países. A média das proporções de forças armadas e índices de esforço militar dos países muçulmanos era aproximadamente o dobro da dos países cristãos (Quadro 10.3). James Payne conclui que, “de modo muito claro, há uma conexão entre o Islã e o militarismo”. 25 Quadro 10.3 Militarismo em Países Muçulmanos e Cristãos Média da proporção das forças armadas Média do esforço militar Países muçulmanos (n = 25) 11,8 17,7 Outros países (n = 112) 7,1 12,3 Países cristãos (n = 57) 5,8 8,2 Outros países (n = 80) 9,5 16,9 Fonte: James L Payne, l Nhy Nafíons Arm [Por que as Nações se Armam] (Oxford: Basil Blackwell, 1989), pp. 125,138*39. Os países muçulmanos e cristãos são aqueles em que mais de 80 por cento da população professa a religião respectiva. Os países muçulmanos também tiveram alta propensão a recorrer à violência em crises internacionais, empregando-a para resolver 76 crises de um total de 142 nas quais estiveram envolvidos entre 1928 e 1979. Em 25 casos, a violência foi o principal meio para lidar com a crise; em 51 Nenhum comentário isolado no meu artigo na Foreign Ajjairs provocou mais comentários críticos do que “o Islã tem fronteiras sangrentas”. Formei esse juízo com base num levantamento casual de conflitos intercivilizacionais. As provas quantitativas de todas as fontes desinteressadas demonstram, de modo conclusivo, sua validade. crises, os países muçulmanos empregaram a violência em acréscimo a outros meios. Quando empregaram a violência, os países muçulmanos adotaram violência de alta intensidade, recorrendo a guerras plenas em 41 por cento dos casos em que se empregou violência e se engajando em grandes choques em outros 38 por cento dos casos. Enquanto os países muçulmanos recorreram à violência em 53,5 por cento de suas crises, a violência foi empregada pelo Reino Unido em apenas 11,5 por cento, pelos Estados Unidos em 17,9 por cento e pela União Soviética em 28,5 por cento das crises em que cada um deles esteve envolvido. Dentre as principais potências, apenas a propensão da China para a violência excedeu a dos países muçulmanos: ela empregou a violência em 76,9 por cento de suas crises. 26 A belicosidade e a violência muçulmanas são fatos do final do século XX que nem muçulmanos nem não-muçulmanos podem negar. Causas: História, Demografia, Política O que causou o surto, no final do século XX, das guerras de linha de fratura e o papel fundamental que tiveram os muçulmanos nesses conflitos? Primeiro, essas guerras tinham suas raízes na História. A violência intermitente de linha de fratura entre grupos civilizacionais diferentes ocorreu no passado, e continuou existindo nas lembranças atuais do passado, o que, por sua vez, gerou temores e inseguranças em ambos os lados. Muçulmanos e hindus no Subcontinente, russos e caucasianos no Cáucaso Setentrional, armênios e turcos no Transcáucaso, árabes e judeus na Palestina, católicos, muçulmanos e ortodoxos nos Bálcãs, russos e turcomanos na Ásia Central, cingaleses e tâmiles em Sri Lanka, árabes e negros pela África afora: são todos eles relacionamentos que, através dos séculos, envolveram alternâncias de coexistência des¬ confiada e violência perversa. Um legado histórico de conflitos existe para ser explorado e utilizado por aqueles que encontram razões para isso. Nesses relacionamentos, a história está viva, pujante e aterrorizadora. Entretanto, uma história de matanças intermitentes não explica por si só por que a violência voltou a imperar no final do século XX. Afinal de contas, como muitos ressaltaram, durante décadas, sérvios, croatas e muçulmanos viveram muito pacificamente juntos na Iugoslávia. O mesmo fizeram muçulmanos e hindus na índia. Os muitos grupos étnicos e religiosos coexistiram na União Soviética, com poucas exceções dignas de nota criadas pelo governo soviético. Os tâmiles e os cingaleses também viveram trariqüilamente numa ilha com freqüência descrita como um paraíso tropical. A História não impediu que esses relacionamentos relativamente pacíficos prevalecessem por consideráveis períodos de tempo. Por conseguinte, a História não pode, por si só, explicar o desmoronamento da paz. Outros fatores têm que se haver intrometido nas últimas décadas do século XX. As mudanças na balança demográfica foram um desses fatores. A expansão quantitativa de um grupo gera pressões políticas, econômicas e sociais sobre outros grupos e induz reações para contrabalançá-las. Mais importante ainda, ela produz pres¬ sões militares sobre grupos menos dinâmicos demograficamente. O colapso no começo da década de 70 da ordem constitucional que existia havia 30 anos no Líbano foi, em grande parte, fruto do aumento espetacular da população xiita em relação aos cristãos maronitas. Gary Fuller mostrou que, em Sri Lanka, o auge da insurreição nacionalista cingalesa em 1970 e da insurreição tâmil no final dos anos 80 coincidiu exatamente com os anos em que o “bolsão de jovens” de 15 a 24 anos de idade desses grupos excedeu os 20 por cento do total da população do grupo 27 (ver Fig. 10.1). Um diplomata norte-americano que serviu em Sri Lanka observou que os insurretos cingaleses tinham praticamente todos menos de 24 anos de idade, e, segundo se informou, os Tigres Tâmiles eram “singulares no fato de confiarem no que equivale a um exército de crianças”, recrutando “meninos e meninas até de 11 anos de idade”, e os que morreram em combates “ainda nem eram adolescentes quando morreram, apenas alguns com mais de 18 anos”. TheEconomist assinalou que os Tigres estavam conduzindo uma “guerra de menores Figura 10.1 Sri Lanka: Bolsões de Jovens Cingaleses e Tâmiles Pofcentagem sobre o total da população, faixa etária 15-24 de idade”. 28 De modo semelhante, as guerras de linha de fratura entre os russos e os povos muçulmanos ao sul foram alimentadas por grandes diferenças no crescimento populacional. No início dos anos 90, a taxa de fertilidade das mulheres na Federação Russa era de 1,5, enquanto que nas ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central, predominantemente muçul¬ manas, a taxa de fertilidade era de cerca de 4,4 e o índice de aumento líquido da população (taxa bruta de natalidade menos taxa bruta de mortandade) no final dos anos 80 era, nestas últimas, seis vezes maior do que na Rússia. 29 A Chechênia era um dos lugares mais densamente povoados da Rússia, suas altas taxas de natalidade produzindo migrantes e combatentes. De modo análogo, altas taxas de natalidade em Caxemira e a migração do Paquistão para lá estimularam uma resistência renovada à autoridade indiana. Os complicados processos que levaram a guerras intercivilizacionais na antiga Iugoslávia tiveram muitas causas e muitos pontos de partida. Entretanto, o fator mais importante, tomado isoladamente, que levou a esses conflitos, provavelmente foi a mudança demográfica que ocorreu em Kosovo. Kosovo era uma província autônoma dentro da República Sérvia, com os poderes de facto das seis repúblicas da Iugoslávia, exceto o direito à secessão. Em 1961, sua população se compunha de 67 por cento de albaneses muçulmanos e 24 por cento de sérvios ortodoxos. Contudo, a taxa de natalidade albanesa era a mais alta da Europa, e Kosovo se tomou a área de maior densidade populacional da Iugoslávia. Correspondendo a quatro por cento do território iugoslavo, Kosovo tinha oito por cento de iugoslavos. Ao se chegar aos anos 80, perto de 50 por cento dos albaneses tinham menos de 20 anos de idade. Defrontados com essa quantidade, os sérvios emigraram de Kosovo em busca de oportunidades econômicas em Belgrado e em outros lugares. Em conseqüência, em 1991 Kosovo tinha 90 por cento de muçulmanos e 10 por cento de sérvios. 50 Não obstante, os sérvios consideravam Kosovo como sua “terra santa”, ou “Jerusalém”, o local, entre outras coisas, da grande batalha de 28 de junho de 1389, quando foram derrotados pelos turcos otomanos e, como resultado, padeceram o regime otomano durante quase cinco séculos. No final de década de 80, a mudança na balança demográfica levou os albaneses a exigirem que Kosovo fosse elevada à condição de república iugoslava. Os sérvios e o governo iugoslavo resistiram, teme¬ rosos de que uma vez que tivesse o direito à secessão, Kosovo se separaria da Iugoslávia e possivelmente se uniria à Albânia. Em março de 1981, albaneses irromperam em protestos e distúrbios de rua com reivindicações pelo status de república. Segundo os sérvios, intensifica¬ ram-se então a discriminação, a perseguição e a violência contra os sérvios. Um croata protestante assinalou que “em Kosovo, a partir do final da década de 70, (...) ocorreram numerosos incidentes violentos, que incluíram danos à propriedade, perda de emprego, provocações, estupros, brigas e assassinatos”. Em conseqüência, “os sérvios alegaram que a ameaça a eles tinha proporções genocidas e que não iriam mais tolerar esse estado de coisas”. As agruras dos sérvios de Kosovo repercutiram em outras áreas da Sérvia e, em 1986, geraram uma declaração de 200 destacados intelectuais, personalidades políticas, líderes religiosos e oficiais das forças armadas sérvios, inclusive os editores da revista de oposição liberal Praxis , exigindo do governo medidas enérgicas para pôr fim ao genocídio dos sérvios em Kosovo. À luz de qualquer definição razoável de genocídio, essa acusação era muito exagerada, embora, segundo um observador estrangeiro simpático aos albaneses, “durante os anos 80, os nacionalistas albaneses fossem responsáveis por uma quantidade de ataques violentos contra os sérvios e pela destruição de algumas propriedades de sérvios”. 31 Tudo isso exacerbou o nacionalismo sérvio, e Slobodan Milosevic vislumbrou sua oportunidade. Em 1987, ele pronunciou importante discurso em Kosovo, apelando aos sérvios para que resgatassem sua própria terra e sua história. “Imediatamente, um grande número de sérvios — comunistas, não-comunistas e até anticomunistas — começou a se congregar ao seu redor, decididos não só a proteger a minoria sérvia em Kosovo, mas também a reprimir os albaneses e transformá-los em cidadãos de segunda classe. Em pouco tempo, Milosevic estava sendo reconhecido como líder nacional.” 32 Dois anos depois, Milosevic retor¬ nou a Kosovo, junto com de um a dois milhões de sérvios, para celebrar o 600 Q aniversário da grande batalha que simbolizava sua guerra ininter¬ rupta contra os muçulmanos. Os temores e o nacionalismo sérvios, provocados pela quantidade e poder crescentes dos albaneses, foram acentuados ainda mais pelas mudanças demográficas na Bósnia. Em 1961, os sérvios constituíam 43 por cento e os muçulmanos 26 por cento da população da Bósnia-Her- zegovina. Ao se chegar a 1991, as proporções eram quase exatamente o oposto: os sérvios tinham caído para 31 por cento e os muçulmanos tinham subido para 44 por cento. Durante esses 30 anos, os croatas passaram de 22 por cento para 17 por cento. A expansão étnica de um grupo levou à limpeza étnica do outro. “Por que matamos meninos?”, 332 perguntou em 1992 um combatente sérvio, e ele próprio respondeu: “Porque um dia eles irão crescer e nós teremos que matá-los então.” De forma menos brutal, as autoridades croatas na Bósnia agiram a fim de impedir que suas localidades fossem “ocupadas demograficamente” pelos muçulmanos. 33 Alterações de 20 por cento ou mais nas balanças demográficas e nos bolsões de jovens respondem por muitos dos conflitos interciviliza- cionais do final do século XX. Entretanto, elas não explicam todos eles. As lutas entre sérvios e croatas, por exemplo, não podem ser explicadas pela demografia e, aliás, só parcialmente pela História, já que esses dois povos viveram juntos numa forma relativamente pacífica até que os utachis croatas trucidaram sérvios na II Guerra Mundial. Aqui e ali a política também foi uma das causas da luta. O colapso dos impérios austro-húngaro, otomano e russo ao final da I Guerra Mundial estimulou os conflitos étnicos e civilizacionais entre os povos e Estados que os sucederam. O final dos impérios britânico, francês e holandês produziu resultados semelhantes depois da II Guerra Mundial. A queda dos regimes comunistas na União Soviética e na Iugoslávia fez o mesmo no final da Guerra Fria. As pessoas, que não mais podiam se identificar como comunistas, cidadãos soviéticos ou iugoslavos, necessitavam deses¬ peradamente encontrar novas identidades e as acharam nos velhos recursos habituais da etnia e da religião. A ordem opressora, mas pacífica, dos Estados devotados à proposição de que não há deus foi substituída pela violência dos povos devotados a deuses diferentes. Esse processo foi exacerbado pela necessidade das entidades políticas que surgiam de adotar procedimentos democráticos. Quando a União Soviética e a Iugoslávia começaram a se desagregar, as elites que estavam no poder não organizaram eleições nacionais. Se o tivessem feito, os líderes políticos teriam competido pelo poder no centro e poderiam ter tentado desenvolver apelos multiétnicos e multicivilizacio- nais ao eleitorado, formando assim no Parlamento coligações majoritárias de composição análoga. Em vez disso, tanto na União Soviética como na Iugoslávia, as eleições foram primeiramente organizadas no âmbito das repúblicas, o que criou o incentivo irresistível para que os líderes políticos fizessem campanha contra o centro, apelassem para o nacionalismo étnico e promovessem a independência de suas repúblicas. Até mesmo dentro da Bósnia o eleitorado votou segundo linhas estritamente étnicas nas eleições de 1990. O Partido Reformista, multiétnfco, e o antigo Partido Comunista obtiveram cada um menos de 10 por cento dos votos. Os 333 totais de votos recebidos pelo Partido Muçulmano de Ação Democrática (34 por cento), pelo Partido Democrático Sérvio (30 por cento) e pela União Democrática Croata (18 por cento) reproduziram as proporções de muçulmanos, sérvios e croatas na população. As primeiras eleições razoavelmente disputadas em quase todas as ex-repúblicas soviéticas e iugoslavas foram ganhas por líderes políticos que apelaram para os sentimentos nacionalistas e prometeram ação enérgica para defender sua nacionalidade contra outros grupos étnicos. A competição eleitoral encoraja os chamamentos nacionalistas e, desse modo, promove a intensificação dos conflitos de linha de fratura e as guerras de linha de fratura. Quando, na frase de Bogdan Denitch, “etnos se toma demof^ o resultado é polemos (guerra). Posteriormente, porém, quando uma ou mais partes em guerra se exaurem, os eleitores podem favorecer os líderes políticos que promovam as negociações e uma acomodação, como aconteceu nas eleições de 1994 em Sri Lanka. Persiste a indagação de por que, quando o século XX chega ao fim, os muçulmanos estão envolvidos em muito mais violência intergrupos do que os povos de outras civilizações. Será que sempre foi assim? No passado, cristãos mataram cristãos e outras pessoas em quantidades maciças. Avaliar a propensão para a violência das civilizações através da História exigiria imensa pesquisa, que é impossível aqui. Contudo, o que se pode fazer é identificar as possíveis causas da atual violência de grupo dos muçuknanos, tanto dentro do Islã como fora dele, e distinguir entre aquelas causas que explicam uma propensão maior para os conflitos de grupos através da História, quando ela tiver existido, daquelas que explicam uma propensão assim no final do século XX. Seis causas possíveis se apresentam. Três delas explicam apenas a violência entre muçulmanos e não-muçulmanos, e três explicam tanto essa como a violência interna do Islã. Três também explicam apenas a propensão contemporânea dos muçulmanos para a violência, enquanto as outras três explicam essa e uma propensão muçulmana histórica, caso ela exista. Entretanto, se inexiste essa propensão histórica, então suas supostas causas, que não são capazes de explicar uma propensão histórica inexistente também, supõe-se, não explicam a comprovada propensão contemporânea dos muçulmanos para a violência de grupo. Esta última só pode ser explicada por causas do século XX que não existiam nos séculos anteriores (Quadro 10.4). Em primeiro lugar, há quem sustente que o Islamismo foi, desde o seu começo, uma religião da espada e que ele glorifica as virtudes Quadro 10.4 Poss íveis Causas da Propensão Muçulmana para o Conflito ___ Conflito Extramuçulmano / Conflito Intra e Muçulmano _ Extramuçulmano Conflitos históricos e Proximidade Militarismo contemporâneos Indigestabilidade Conflitos contemporâneos Condição de vítima Bolsão demográfico __ inexistência de Estado-nucleo militares. O Islamismo se originou em meio a “tribos beduínas nômades sempre em guerra”, e “essa origem violenta está estampada na fundação do Islamismo. O próprio Maomé é recordado como um guerreiro empedernido e um hábil comandante militar”. 35 (Ninguém diria o mesmo de Cristo ou de Buda.) Argumenta-se que as doutrinas do Islamismo ditam a guerra contra os infiéis e, quando a expansão inicial do Islã se exauriu, os grupos muçulmanos, muito ao contrario da doutrina, pas¬ saram a lutar entre si. A proporção da fitna y ou conflitos internos, para a jihad mudou de forma espetacular em favor da primeira. O Corão e outros textos do credo muçulmano contêm poucas proibições à violência, e não há na doutrina e na prática muçulmanas uma concepção de não-violência. Em segundo lugar, desde as suas origens na Arábia, o Islamismo se espalhou logo pelo Norte da África e grande parte do Oriente Médio e, mais tarde, pela Ásia Central, pelo Subcontinente e pelos Bálcãs. Essa expansão pôs os muçulmanos em contato direto com muitos povos diferentes, que foram conquistados e convertidos, e o legado desse processo persiste. Na esteira das conquistas otomanas nos Bálcãs, muitas vezes os urbanizados eslavos do Sul se converteram ao Islamismo, enquanto que os camponeses das zonas rurais não se converteram, e assim nasceu a distinção entre os bósnios muçulmanos e os sérvios ortodoxos. Inversamente, a expansão do Império Russo até o Mar Negro, o Cáucaso e a Ásia Central colocou-o em conflitos ininterruptos durante vários séculos com vários povos muçulmanos. O patrocínio pelo Ociden¬ te, no auge do seu poderio em relação ao Islã, de uma pátria judaica no Oriente Médio lançou a base para um continuado antagonismo arábico- israelense. A expansão por terra de muçulmanos e não-muçulmanos resultou assim em que muçulmanos e não-muçulmanos vivam em íntima proximidade física através de toda a Eurásia. Em contraste, a expansão do Ocidente por mar em geral não levou os povos ocidentais a viverem em proximidade territorial de povos não-ocidentais, que ou ficaram submetidos à autoridade da Europa ou, com exceção da África do Sul, foram praticamente dizimados pelos colonizadores ocidentais. Uma terceira possível fonte de conflito entre muçulmanos e não- muçulmanos envolve o que um estadista, referindo-se a seu próprio país, denominou de “indigestibilidade” dos muçulmanos. Entretanto a indiges- tibilidade funciona nos dois sentidos: os países muçulmanos têm proble¬ mas com as minorias não-muçulmanas comparáveis aos que os países não-muçulmanos têm com minorias muçulmanas. Mais até do que o Cristianismo, o Islamismo é uma fé absolutista. Ela funde religião e política e traça uma linha nítida entre aqueles do Dar al-Islam e aqueles do Daral-harb. Em conseqüência, confucianos, budistas, hindus, cristãos ocidentais e cristãos ortodoxos têm menos dificuldade para se adaptar uns aos outros e viver uns com os outros do que qualquer deles tem para se adaptar aos muçulmanos e viver com os muçulmanos. Os chineses étnicos, por exemplo, são uma minoria economicamente predominante na maioria dos países do Sudeste Asiático. Eles foram assimilados com êxito nas sociedades da Tailândia budista e das Filipinas católicas; praticamente não há exemplos significativos de violência antichinesa por parte dos grupos majoritários nesses países. Em contraste, ocorreram distúrbios de rua e/ou violência antichinesa na Indonésia muçulmana e na Malásia muçulmana, e o papel dos chineses nessas sociedades continua sendo uma questão potencialmente delicada e explosiva, de uma maneira que não se observa na Tailândia nem nas Filipinas. Militarismo, indigestibilidade e proximidade de grupos não-muçul¬ manos são características persistentes do Islã, e poderiam explicar a propensão muçulmana para o conflito ao longo da História, se for o caso. Três outros fatores temporariamente limitados poderiam contribuir para essa propensão no final do século XX. Uma explicação, exposta por muçulmanos, é a de que o imperialismo ocidental e a sujeição de sociedades muçulmanas nos séculos XIX e XX produziram uma imagem de debilidade militar e econômica muçulmana e, por conseguinte, encorajam os grupos não-islâmicos a encarar os muçulmanos como um alvo atraente. Segundo esse raciocínio, os muçulmanos são vítimas de um preconceito muito difundido, comparável ao anti-semitismo que historicamente permeou as sociedades ocidentais. Akbar Ahmed afirma que grupos muçulmanos como os palestinos, os bósnios, os caxemiren- ses e os chechenos são como “os peles-vermelhas, grupos deprimidos, destituídos de dignidade, presos em reservas extraídas de suas terras ancestrais”. 36 Contudo, o argumento dos muçulmanos como vítimas não explica os conflitos entre maiorias muçulmanas e minorias não-muçul¬ manas em países como Sudão, Egito, Irã e Indonésia. Um fator mais convincente que possivelmente explica os conflitos tanto intra como extra-islâmicos é a inexistência de um ou mais Estados- núcleos no Islã. Os países que aspiram a ser líderes do Islã, como a Arábia Saudita, o Irã, o Paquistão, a Turquia e, potencialmente, a Indonésia, competem por influência no mundo muçulmano. Nenhum deles está numa posição forte para mediar os conflitos dentro do Islã. E nenhum deles é capaz de atuar com autoridade em nome do Islã ao lidar com conflitos entre grupos muçulmanos e não-muçulmanos. Finalmente, e de maior importância, a explosão demográfica nas sociedades muçulmanas e a disponibilidade de grande quantidade de homens freqüentemente desempregados, entre as idades de 15 e 30 anos, é uma fonte natural de instabilidade e violência, tanto no seio do Islã como contra não-muçulmanos. Quaisquer outras causas podem estar operando, mas esse fator sozinho muito serviria para explicar a violência nos anos 80 e 90. O envelhecimento dessa geração de filhotes de tigre ao se chegar à terceira década do século XXI e o desenvolvimento econômico das sociedades muçulmanas, se e quando ele ocorrer, poderiam conseqüentemente levar a uma redução significativa da pro¬ pensão muçulmana para a violência e, por conseguinte, a uma diminui¬ ção geral da freqüência e intensidade das guerras de linha de fratura. Capítulo 11 A Dinâmica das Guerras de Linha de Fratura IDENTIDADE: O AUMENTO DA CONSCIÊNCIA ClVILIZACIONAL A s guerras de linha de fratura passam por processos de intensificação, expansão, contenção, interrupção e, raramente, solução. Esses processos geralmente começam em forma seqüencial, porém muitas vezes também se superpõem e podem ser repetidos. Uma vez iniciadas, as guerras de linha de fratura, tal como outros conflitos comunitários, tendem a adquirir vida própria e a se desenvolver num padrão de ação e reação. Identidades que anteriormente tinham sido múltiplas e descontraídas pas¬ sam a ser intensas e enrijecidas — é muito apropriado que os conflitos comunitários sejam denominados “guerras de identidade”. 1 À medida que a violência aumenta, as questões que estavam inicialmente em pauta tendem a ser redefinidas de modo mais exclusivo como “nós” contra “eles”, e aumentam a coesão e dedicação do gmpo. Os líderes políticos ampliam e aprofundam seus apelos a lealdades étnicas e religiosas, e a consciência da civilização se reforça em relação a outras identidades. Surge uma “dinâmica de ódio”, comparável ao “dilema da segurança” nas relações internacionais, na qual os temores, a desconfiança e o ódio recíprocos se alimentam mutuamente. 2 Cada lado dramatiza e amplia a distinção entre as forças da virtude e as forças do mal, e acaba tentando transformar essa distinção na que irá ser a definitiva, entre a rapidez e a morte. À medida que as revoluções evoluem, os moderados, os girondinos e os mencheviques perdem para os radicais, os jacobinos e os bolchevi¬ ques. Um processo análogo tende a ocorrer nas guerras de linha de fratura. Os moderados, que têm metas mais limitadas, como autonomia em vez de independência, não as atingem através da negociação, que quase sempre fracassa inicialmente, e são suplementados ou suplantados por radicais dedicados a atingir metas mais extremadas através da violência. No conflito moro-filipino, o principal grupo insurreto, a Frente Moro de Libertação Nacional, foi primeiro suplementada pela Frente Moro Islâmica de Libertação, que tinha uma posição mais extremada, e depois por Abu Sayyaf, que era ainda mais extremado e rejeitou os cessar-fogo que outros grupos haviam negociado com o governo filipino. No Sudão, durante a década de 80, o governo adotou posições fun- damentalistas islâmicas cada vez mais extremadas e, no começo dos anos 90, a insurreição cristã se rachou, com um novo grupo, o Movimento de Independência do Sudão Meridional, advogando a independência em vez de apenas a autonomia. No conflito contínuo entre israelenses e árabes, à medida que a Organização de Libertação Palestina, da maioria, se movia no sentido das negociações com o governo israelense, o Hamas, da Irmandade Muçulmana, entrou em disputa com ela pela lealdade dos palestinos. Simultaneamente, o engajamento do governo israelense em negociações gerou protestos e violência por parte de grupos religiosos extremados em Israel. Quando o conflito checheno com a Rússia se intensificou em 1992-93, o governo Dudayev passou a ser dominado “pelas facções mais radicais dos nacionalistas chechenos que se opunham a qualquer acomodação com Moscou, e as forças mais moderadas foram empurradas para a oposição”. No Tadjiquistão ocorreu uma alteração semelhante. “Quando o conflito entrou numa escalada durante 1992, os grupos nacionalistas e democratas tadjiques gradualmente cederam influência para os grupos fundamentalistas islâmicos, que haviam tido mais êxito na mobilização dos pobres da zona rural e dos jovens descontentes nas áreas urbanas. A mensagem fundamentalista islâmica também se tornou progressivamente mais radicalizada, à medida que emergiam líderes mais jovens para contestar a hierarquia religiosa mais tradicional e pragmática.” Um dos líderes tadjiques declarou: “Estou fechando o dicionário da diplomacia. Estou começando a usar a lingua¬ gem do campo de batalha, que é a única apropriada, dada a situação criada pela Rússia na minha pátria.” 3 Na Bósnia, no seio do Partido Muçulmano de Ação Democrática (SDA), a facção nacionalista mais extremada, liderada por Alija Izetbegovic, passou a ter mais influência do que a facção mais tolerante, de orientação multicultural, liderada por Haris Silajdzic. 4 A vitória dos extremistas não é necessariamente permanente. A violência extremista não tem maior probabilidade do que a acomodação moderada de pôr termo a uma guerra de linha de fratura. À medida que aumentam os custos em mortes e destruição, com poucos resultados para serem mostrados em troca, há probabilidade de que reapareçam os moderados de cada lado, mais uma vez apontando a “falta, de sentido” de tudo isso e instando para que se faça outra tentativa de terminar o conflito através de negociações. No curso da guerra, as identidades múltiplas se desvanecem e a identidade mais relevante em relação ao conflito passa a predominar. Essa identidade quase sempre é definida pela religião. Psicologicamente, a religião proporciona a justificativa mais tranqüilizadora e revigorante para a luta contra as forças “sem deus”, que são vistas como ameaçadoras. Em termos práticos, a comunidade religiosa ou civilizacional é a comu¬ nidade mais ampla à qual pode recorrer, em busca de apoio, o grupo envolvido no conflito. Se, numa guerra local entre duas tribos africanas, uma tribo puder se definir como muçulmana e a outra como cristã, a primeira pode ter a esperança de ser reforçada por dinheiro saudita, mujahedim afegãos e armas e assessores militares iranianos, enquanto que a segunda pode procurar ajuda econômica e humanitária ocidental e apoio político e diplomático de governos ocidentais. A menos que um grupo possa fazer como os muçulmanos da Bósnia e se apresentar, de modo convincente, como vítima de genocídio e com isso suscitar apoio do Ocidente, ele só pode esperar receber assistência significativa de seus afins civilizacionais, e assim tem sido, com exceção dos muçulmanos da Bósnia. As guerras de linha de fratura são, por definição, guerras locais entre grupos locais com conexões mais amplas, e, portanto, promovem as identidades civilizacionais entre os que delas participam. O fortalecimento de identidades civilizacionais ocorreu entre parti¬ cipantes de guerras de linha de fratura de outras civilizações, mas aconteceu com especial intensidade entre muçulmanos. Uma guerra de linha de fratura pode ter origem em conflitos de família, clã ou tribo, mas como as identidades no mundo muçulmano tendem a ter o formato de U, à medida que a luta progride os participantes muçulmanos logo buscam ampliar sua identidade e apelar para todo o Islã. Até mesmo um antifím- damentalista secularista como Saddam Hussein, quando engajado num conflito com o Ocidente, rapidamente adota uma identidade muçulmana e tenta congregar apoio através de toda a ummah . Um ocidental assinalou que, de modo análogo, o governo do Azerbaijão recorreu ao “trunfo islâmico”. No Tadjiquistão, numa guerra que começou como um conflito regional, os insurretos cada vez mais definiram sua causa como a causa do Islã. Nas guerras do século XIX entre os povos do Cáucaso Setentrional e os russos, Shamil se intitulou um fundamentalista islâmico e uniu dezenas de grupos étnicos e lingüísticos “com base no Islamismo e na resistência à conquista russa”. Nos anos 90, Dudayev capitalizou sobre o Ressurgimento Islâmico que tinha ocorrido no Cáucaso na década de 80 para adotar uma estratégia semelhante. Ele recebeu o apoio de sacerdotes muçulmanos e de partidos fundamentalistas islâmicos, fez seu juramento de posse sobre o Corão (do mesmo modo que Yeltsin o fez sobre a Bíblia) e, em 1994, propôs que a Chechênia se tomasse um Estado islâmico governado segundo a shari*a. As tropas chechenas usavam lenços verdes, “inscritos com a palavra ‘Gavazat , que quer dizer guerra santa em checheno”, e gritavam “Allahu Akbar” quando se lançavam ao combate. 5 De maneira semelhante, a autodefinição de muçulmanos de Caxemira mudou de uma identidade regional que abrangia muçulmanos, hindus e budistas, ou uma identificação com o secularismo indiano, para uma terceira identidade que se refletia “na ascensão do nacionalismo muçulmano em Caxemira e na difusão de valores fundamentalistas islâmicos transnacionais, que fizeram com que os muçulmanos caxemi- renses se sentissem parte tanto do Paquistão islâmico como do mundo islâmico”. A insurreição de 1989 contra a índia foi originariamente liderada por uma organização “relativamente secular”, apoiada pelo governo paquistanês. O apoio do Paquistão depois passou para grupos fundamentalistas islâmicos, que passaram a predominar. Esses grupos incluíam “insurretos convictos” que pareciam “dedicados a prosseguir na sua jihad por si mesma, qualquer que fosse a esperança e o desenlace”. Um outro observador informou que “os sentimentos nacionalistas foram acentuados pelas diferenças religiosas; a ascensão mundial da militância islâmica deu estímulo aos insurretos caxemirenses e erodiu a tradição de tolerância hindu-muçulmana da Caxemira”. 6 Um acirramento espetacular de identidades civilizacionais ocorreu na Bósnia, especialmente em sua comunidade muçulmana. Historica¬ mente, as identidades comunitárias na Bósnia não foram fortes: sérvios, croatas e muçulmanos viviam juntos pacificamente como vizinhos, eram comuns os casamentos entre eles, as identificações religiosas eram tênues. Dizia-se que os muçulmanos eram bósnios que não iam à mesquita, os croatas eram bósnios que não iam à catedral e os sérvios eram bósnios que não iam à igreja ortodoxa. Contudo, quando a identidade iugoslava, mais genérica, se desfez, essas descontraídas identidades religiosas adquiriram nova relevância e, quando os combates começaram, intensificaram-se. O multicomunitarismo se evaporou e cada grupo se identificou cada vez mais com sua comunidade cultural ampla, definindo-se em termos religiosos. Os sérvios da Bósnia se tomaram nacionalistas sérvios extremados, identificando-se com a Grande Sérvia, a Igreja Ortodoxa Sérvia e toda a comunidade ortodoxa. Os croatas da Bósnia passaram a ser os mais fervorosos nacionalistas croatas, se consideraram cidadãos da Croácia, acentuaram seu Catolicismo e, junta¬ mente com os croatas da Croácia, sua identidade com o Ocidente católico. A mudança dos muçulmanos no sentido da consciência civilizacio- nal foi ainda mais marcada. Até que a guerra começasse, os muçulmanos da Bósnia eram profundamente seculares em suas concepções, se viam como europeus e eram os mais firmes defensores de uma sociedade e de um Estado bósnios multiculturais. Entretanto, isso começou a mudar com o esfacelamento da Iugoslávia. Tal como os croatas e os sérvios, nas eleições de 1990, os muçulmanos repudiaram os partidos multicomuni- tários, votando maciçamente pelo Partido Muçulmano de Ação Demo¬ crática (SDA), liderado por Izetbegovic. Trata-se de um muçulmano praticante, posto na prisão por seu ativismo fundamentalista islâmico pelo governo comunista, que num livro — The Islamic Declamtion [A Declaração Islâmica] —, publicado em 1970, sustentou “a incompatibili¬ dade do Islamismo com sistemas não-islâmicos. Não pode haver nem paz nem coexistência entre a religião islâmica e as instituições sociais e políticas não-islâmicas”. Quando o movimento islâmico for suficiente¬ mente forte, ele tem que assumir o poder e criar uma república islâmica. Nesse novo Estado, é particularmente importante que a educação e a mídia “estejam nas mãos de pessoas cujas autoridade intelectual e moral islâmica sejam indiscutíveis”. 7 Quando a Bósnia ficou independente, Izetbegovic promoveu um Estado multiétnico, no qual os muçulmanos seriam o grupo dominante, embora sem conseguir ser maioria. Entretanto, ele não era a pessoa para resistir à islamização de seu país produzida pela guerra. Ele nunca repudiou publicamente o que escrevera em The Islamic Declamtion, o que gerou temores entre os não-muçulmanos. À medida que prosseguia a guerra, sérvios e croatas da Bósnia se mudaram das áreas controladas pelo governo bósnio, e aqueles que permaneceram nelas se viram gradualmente excluídos dos empregos desejáveis e de participação nas instituições sociais. “O Islamismo adquiriu maior importância no seio da comunidade muçulmana nacional e (...) uma forte identidade nacional muçulmana se tomou parte da política e da religião.” O nacionalismo muçulmano, em contraposição ao nacionalismo multicultural bósnio, pas¬ sou a ser cada vez mais expresso na mídia. O ensino religioso se expandiu nas escolas e os novos livros didáticos enfatizavam os benefícios do regime otomano. O idioma bósnio foi promovido como distinto do servo-croata, e mais e mais palavras turcas e árabes foram a ele incorporadas. Os funcionários do governo atacavam os casamentos mistos e a transmissão de música “agressora” ou sérvia. O governo incentivou a religião islâmica e deu preferência aos muçulmanos nas admissões e promoções de pessoal. Mais importante ainda, o exército bósnio ficou islamicizado, com os muçul¬ manos constituindo mais de 90 por cento de seus efetivos em 1995. Um número cada vez maior de unidades do exército se identificou com o Islamismo, se dedicou a práticas islâmicas e fazia uso de símbolos muçulmanos, com as unidades de elite sendo as mais profundamente islamicizadas e em maior quantidade. Essa tendência levou a um protesto por cinco membros (dos quais dois croatas e dois sérvios) da Presidência da Bósnia a Izetbegovic, que o rejeitou, e levou também à renúncia em 1995 do primeiro-ministro Haris Silajdzic, 8 de orientação multicultural. No campo político, o partido muçulmano de Izetbegovic, o SDA, ampliou seu controle sobre o Estado e a sociedade bósnios. Ao se chegar a 1995, ele dominava “o exército, o serviço público e as empresas estatais”. Segundo se informou, “os muçulmanos que não pertencem ao partido, para não mencionar os não-muçulmanos, têm dificuldade para encontrar bons empregos”. Os que criticavam o partido acusaram-no de “se haver transformado no veículo de um autoritarismo islâmico marcado pelos hábitos do governo comunista”. 9 Um outro observador informou que, de forma geral, o nacionalismo muçulmano está ficando mais extremado. Atualmente ele não leva absolutamente em consideração outras sensibilidades nacionais. Ele é propriedade, privilégio e instrumento político da recém-predominante nação muçulmana. (...) O principal resultado desse novo nacionalismo muçulmano é um movimento em direção à homogeneização nacional. (...) Cada vez mais, o fiindamentalismo islâmico também está ganhando preponderância na determinação dos interesses nacionais muçulma- ZÁ2 A intensificação da identidade religiosa produzida pela guerra e pela limpeza étnica, as preferências de seus líderes e o apoio e pressão de outros Estados muçulmanos estavam, de forma lenta mas clara, transformando a Bósnia, da Suíça dos Bálcãs , no írã dos Bálcãs. Psicológica e pragmaticamente, cada lado tem incentivos para enfatizar não só sua própria identidade civilizacional como também a do outro lado. Em sua guerra local, ele se vê combatendo não apenas um outro grupo étnico local, mas uma outra civilização. A ameaça é assim ampliada e acentuada pelos recursos de uma grande civilização, e a derrota tem conseqüências não só para o grupo como para toda a sua própria civilização. Daí a necessidade imperiosa para sua própria civili¬ zação de se congregar em seu apoio no conflito. A guerra local passa a ser redefinida como uma guerra de religiões, um choque de civilizações, pleno de conseqüências para enormes segmentos da Humanidade. No começo dos anos 90, quando a religião e a Igreja Ortodoxa voltaram a ser elementos fundamentais da identidade nacional russa, que “es¬ premeram outros credos russos, dos quais o Islamismo é o mais importante”, n os russos concluíram que era do seu interesse classificar a guerra entre clãs e regiões no Tadjiquistão e a guerra com a Chechênia como partes de um choque mais amplo, que remontava a séculos atrás, entre a Ortodoxia e o Islamismo, com os seus adversários locais agora dedicados ao fundamentalismo islâmico e à jihad e representando Islamabad, Teerã, Riade e Ancara. Na antiga Iugoslávia, os croatas se consideram os valorosos guar¬ diães da fronteira do Ocidente contra o ataque da Ortodoxia e do Islamismo. Os sérvios reconhecem como seus inimigos não apenas os croatas e os muçulmanos da Bósnia, mas “o Vaticano” e “fundamentalistas islâmicos e “turcos infames” que vêm ameaçando o Cristianismo há séculos. Um diplomata ocidental disse, referindo-se ao líder dos sérvios da Bósnia: “Karadzic encara isso como a guerra antiimperialista na Europa. Ele fala de ter a missão de erradicar os últimos vestígios do império turco-otomano na Europa.” 12 Os muçulmanos da Bósnia, por sua vez, se identificam como as vítimas do genocídio, ignorado pelo Ocidente por causa de sua religião, e, portanto, merecedores do apoio do mundo muçulmano. Todas as partes envolvidas nas guerras iugoslavas e a maioria dos observadores de fora — passaram assim a considerá-las como guerras religiosas ou étnico-religiosas. Misha Glenny destacou que o conflito “assimilou cada vez mais as características de uma luta religiosa, definida pelos três grandes credos europeus — Catolicismo Romano, Ortodoxia Oriental e Islamismo — as sobras das crenças religiosas dos impérios cujas fronteiras colidiram na Bósnia”. 13 A percepção das guerras de linha de fratura como choques civili- zacionais também deu novo alento à teoria do dominó, que existira durante a Guerra Fria. Atualmente, porém, são os principais Estados das civilizações que vêem a necessidade de evitar a derrota num conflito local, que poderia desencadear uma seqüência de perdas em escalada que levaria ao desastre. A dura postura assumida pela índia a respeito de Caxemira derivou em grande parte do receio de que sua perda estimulasse outras minorias étnicas e religiosas a buscar a independência e, assim, conduzisse ao esfacelamento do índia. O ministro russo do Exterior, Kozyrev, advertiu que, se a Rússia não pusesse fim à violência política no Tadjiquistão, esta provavelmente se alastraria para o Casa- quistão e para o Uzbequistão. Argumentou-se que isso poderia então promover movimentos secessionistas nas repúblicas muçulmanas da Federação Russa, com algumas pessoas aventando a hipótese de que o resultado final poderia ser o fundamentalismo islâmico na Praça Verme¬ lha. Por conseguinte, disse Yeltsin, a fronteira tadjique-afegã é, “na realidade, a da Rússia”. Os europeus, por sua vaz, expressaram a preocupação de que o estabelecimento de um Estado muçulmano na antiga Iugoslávia criasse uma base para a disseminação de imigrantes muçulmanos e do fundamentalismo islâmico, reforçando aquilo a que Jacques Chirac se referiu como “les odeurs dlslani ’ na Europa. 14 A fronteira da Croácia é, na realidade, a da Europa. À medida que uma guerra de linha de fratura se intensifica, cada lado pinta com as piores tintas seus adversários, freqüentemente apresentando-os como subumanos e, assim, tornando legítimo matá-los^ Referindo-se às guerrilhas chechenas, Yeltsin disse que “os cães raivosos devem ser abatidos a bala”. O general indonésio Try Sutrisno, referindo- se ao massacre de timorenses orientais em 1991 disse: “Essas pessoas malformadas têm que ser abatidas a bala (...) e nós as abateremos a bala,” Os demônios do passado são ressuscitados no presente: os croatas se tornam “ustachis”; os muçulmanos, “turcos”; e os sérvios, “chetniks”. Assassinatos em massa, torturas, estupros e brutais expulsões de civis são todos justificáveis à medida que o ódio comunitário se alimenta do ódio comunitário. Os símbolos e artefatos fundamentais da cultura adversária passam a ser alvos. Os sérvios destruíram sistematicamente mesquitas e mosteiros franciscanos, enquanto que os croatas fizeram explodir mos¬ teiros ortodoxos. Como repositórios de cultura, os museus e as bibliotecas são vulneráveis. Assim, as forças de segurança cingalesas incendiaram a biblioteca pública de Jaffna, destruindo “documentos históricos e literᬠrios insubstituíveis” relacionados com a cultura tâmil, e artilheiros sérvios bombardearam e destruíram o Museu Nacional em Sarajevo. Os sérvios “limparam” a cidade bósnia de Zvomik de seus 40 mil muçulmanos e fincaram uma cruz no local da torre otomana que acabavam de mandar pelos ares e que substituíra a igreja ortodoxa arrasada pelos turcos em 1463. 15 Nas guerras entre culturas, a cultura perde. CIVILIZAÇÕES QUE SE CONGREGAM: PAÍSES AFINS E DlÁSPORAS Durante os 40 anos da Guerra Fria, os conflitos foram se espalhando num sentido descendente à medida que as superpotências tentavam recrutar aliados e parceiros, bem como subverter, converter ou neutralizar os aliados e parceiros da outra superpotência. Evidentemente, a competição era mais intensa no Terceiro Mundo, onde Estados novos e fracos eram pressionados pelas superpotências para se juntarem à grande competição mundial. No mundo pós-Guerra Fria, inúmeros conflitos comunitários substituíram o conflito isolado das superpotências. Quando esses confli¬ tos comunitários envolvem grupos de civilizações diferentes, tendem a se expandir e a entrar numa escalada. À medida que o conflito se toma mais intenso, cada lado tenta reunir apoio de países e grupos que pertencem à sua civilização. Apoio de uma ou outra forma, oficial ou não-oficial, ostensivo ou clandestino, material, humano, diplomático, financeiro, simbólico ou militar, está sempre vindo de um ou mais países ou grupos afins. Quanto mais tempo durar um conflito, maior a proba¬ bilidade de que mais países afins fiquem envolvidos em papéis de apoio, de contenção e de mediação. Em conseqüência dessa “síndrome de país afim”, os conflitos de linha de fratura têm um potencial muito maior para a escalada do que os conflitos intracivilizacionais, e geralmente requerem a cooperação intercivilizacional para serem contidos ou terminados. Em contraste com a Guerra Fria, o conflito não flui de cima para baixo, mas borbulha de baixo para cima. Nas guerras de linha de fratura, os Estados e grupos têm níveis diferentes de envolvimento. No nível primário, estão as partes que efetivamente estão combatendo e matando umas às outras. Elas podem ser Estados, como nas guerras entre a índia e o Paquistão e entre Israel e seus vizinhos, mas também podem ser grupos locais, que não são Estados ou, na melhor das hipóteses, são Estados embrionários, como foi o caso na Bósnia e dos armênios em Nagorno-Karabakh. Esses conflitos também podem envolver participantes de um nível secundário, geralmente Estados diretamente relacionados com as partes primárias, tais como os governos da Sérvia e da Croácia na antiga Iugoslávia, e os da Armênia e do Azerbaijão no Cáucaso. Vinculados de modo ainda mais remoto com o conflito se encontram os Estados terciários, mais afastados dos combates em si, porém com laços civilizacionais com os participan¬ tes, tais como a Alemanha, a Rússia e os Estados islâmicos em relação à antiga Iugoslávia, e a Rússia, a Turquia e o Irã no caso da disputa armênio-azeri. Esses participantes de terceiro nível freqüentemente são os Estados-núcleos de suas respectivas civilizações. As diásporas dos participantes do nível primário, quando existem, também desempenham um papel nas guerras de linha de fratura. Dadas as quantidades pequenas de pessoas e armas geralmente envolvidas no nível primário, quantidades relativamente modestas de ajuda externa, sob a forma de dinheiro, armas ou voluntários, muitas vezes podem ter um impacto significativo no desfecho da guerra. O que as outras partes têm em jogo no conflito não é idêntico ao que têm os participantes do nível primário. O apoio mais dedicado e sincero para os participantes do nível primário normalmente vem das comunidades da diáspora, que se identificam intensamente com a causa de seus afins e se tornam “mais católicos do que o Papa”. Os interesses dos governos no segundo e no terceiro níveis são mais complicados. Geralmente, eles também proporcionam apoio aos participantes do primeiro nível e, mesmo que não o façam, os grupos adversários suspeitam que o fazem, o que justifica que estes últimos apoiem seus afins respectivos. Além disso, entretanto, os governos nos segundo e terceiro níveis têm interesse em conter os combates e não se envolver diretamente eles próprios. Por isso, embora apoiando os participantes do nível primário, eles também tentam contê-los e induzi-los a moderar seus objetivos. Geralmente, eles tentam negociar com seus correspondentes de segundo e terceiro níveis situados do outro lado da linha de fratura e, desse modo, evitar que uma guerra local se transforme numa guerra mais ampla que envolva Estados-núcleos. A Figura 11.1 delineia os relacionamentos entre os que podem ser participantes em guerras de linha de fratura. Nem todas essas guerras têm todo esse elenco de personagens, porém muitas o têm, inclusive as na antiga Iugoslávia e no Transcáucaso, e quase todas as guerras de linha de fratura poderiam se expandir para vir a envolver todos os níveis de participantes. Figura 11.1 A Estrutura de uma Complexa Guerra de Unha de Fratura Civilização A Civilização B - apoio ------ contenção -negociação De um modo ou de outro, diásporas e países afins estiveram envolvidos em todas as guerras de linha de fratura dos anos 90. Dado o amplo papel primário de grupos muçulmanos nesse tipo de guerras, os governos e associações muçulmanos são os mais freqüentes participantes secundários e terciários. Os mais atuantes foram os governos da Arábia Saudita, Paquistão, Irã, Turquia e Líbia, que proporcionaram juntos, e às vezes com outros Estados muçulmanos, diferentes graus de apoio aos muçulmanos que lutavam contra não-muçulmanos na Palestina, Líbano, Bósnia, Chechênia, Transcáucaso, Tadjiquistão, Caxemira, Sudão e Filipi¬ nas. Além do apoio governamental, muitos grupos muçulmanos do nível primário foram reforçados pela internacional fundamentalista islâmica composta, de modo informal, pelos combatentes oriundos da Guerra do Afeganistão, que participaram de conflitos que vão da guerra civil na Argélia e da luta na Chechênia até o conflito nas Filipinas. Um analista observou que essa internacional islâmica esteve envolvida “no envio de voluntários a fim de estabelecer um regime fundamentalista islâmico no Afeganistão, em Caxemira e na Bósnia; em guerras de propaganda conjunta contra governos que se opunham aos fúndamentalistas islâmicos num ou noutro país; no estabelecimento de centros islâmicos na diáspora, que servem de quartel-general conjunto para todas essas partes”.^ A Liga Árabe e a Organização da Conferência Islâmica também proporcionaram apoio e tentaram coordenar os esforços de seus membros para reforçar os grupos muçulmanos em conflitos intercivilizacionais. A União Soviética foi um participante primário na Guerra do Afeganistão e, nos anos pós-Guerra Fria, a Rússia foi um participante primário na Guerra da Chechenia, um participante secundário nas lutas no Tadjiquistão e um participante terciário nas guerras na antiga Iugoslávia. A índia tem um envolvimento primário em Caxemira e um secundário em Sri Lanka. Os principais Estados ocidentais têm sido participantes terciários nos embates iugoslavos. As diásporas desem¬ penharam papel importante em ambos os lados das longas lutas entre israelenses e palestinos, bem como ao dar apoio a armênios, croatas e chechenos em seus respectivos conflitos. Através da televisão, por faxes e pelo correio eletrônico, “os engajamentos das diásporas são revigorados e às vezes polarizados pelo contato constante com seus antigos lares; ‘antigos’ não tem mais o mesmo significado anterior”. 17 Na guerra de Caxemira, o Paquistão deu explícito apoio político e diplomático aos insurretos e, segundo fontes militares paquistanesas, considerável quantidade de armas e dinheiro, bem como treinamento, apoio logístico e um lugar de refúgio. Também fez gestões junto a governos muçulmanos em nome deles. Ao se chegar a 1995, segundo se informou, os insurretos haviam sido reforçados por 1.200 combatentes mujahedins pelo menos, provenientes do Afeganistão, Tadjiquistão e Sudão, equipados com mísseis Stinger e outras armas fornecidas pelos norte-americanos para sua guerra contra a União Soviética. 1 ® A insur¬ reição dos Moros nas Filipinas se beneficiou, durante um certo tempo, de fundos e equipamento da Malásia, governos árabes proporcionaram fundos adicionais, vários milhares de insurretos foram treinados na Líbia e o grupo insurreto extremista Abu Sayyaf foi organizado por fun¬ damentalistas paquistaneses e afegães. 1 ^ Na África, o Sudão ajudou sistematicamente os rebeldes muçulmanos da Eritréia que lutavam contra a Etiópia e, em represália, a Etiópia forneceu “apoio logístico e áreas de refúgio” para os “rebeldes cristãos” que lutavam no Sudão. Estes últimos também receberam ajuda semelhante de Uganda, o que refletia em parte “seus fortes laços religiosos, raciais e étnicos com os rebeldes sudaneses”. *49 O governo sudanês, por outro lado, recebeu do Irã armamento chinês no valor de 300 milhões de dólares e treinamento ministrado por assessores militares iranianos, que o habilitaram a lançar uma grande ofensiva contra os rebeldes em 1992. Várias organizações cristãs ociden¬ tais forneceram alimentos, medicamentos, material diverso e, segundo o governo sudanês, armas para os rebeldes cristãos. 20 Em Sri Lanka, na guerra entre os insurretos tâmiles hindus e o governo cingalês budista, o governo indiano inicialmente deu apoio considerável aos insurretos, treinando-os na índia meridional e dando- lhes armas e dinheiro. Em 1987, quando as forças governamentais cingalesas estavam prestes a derrotar os Tigres Tâmiles, a opinião pública indiana se levantou contra esse “genocídio” e o governo indiano organi¬ zou uma ponte aérea para levar alimentos para os tâmiles, “na realidade indicando ao [presidente] Jayewardene que a índia pretendia impedi-lo do esmagar os Tigres pela força”. 21 Os governos indiano e cingalês chegaram então a um acordo pelo qual Sri Lanka outorgaria um grau considerável de autonomia às áreas tâmiles e os insurretos entregariam suas armas ao exército indiano. A índia enviou 50 mil homens para a ilha a fim de garantir a implementação do acordo, porém os Tigres se recusaram a entregar as armas e os militares indianos logo se viram eles próprios engajados numa guerra contra as forças guerrilheiras que tinham apoiado anteriormente. As forças indianas foram retiradas a partir de 1988. Em 1991, o primeiro-ministro indiano, Rajiv Gandhi, foi assas¬ sinado, segundo os indianos, por uma partidária dos insurretos tâmiles, e a atitude do governo indiano para com a insurreição ficou cada vez mais hostil. Mesmo assim, o governo não podia deter a simpatia pelos insurretos e o apoio aos mesmos no meio dos 50 milhões de tâmiles da índia meridional. Refletindo essa postura, funcionários do governo de Tamil Nadu, em desobediência a Nova Délhi, permitiram que os Tigres Tâmiles operassem nesse estado com “virtual liberdade” ao longo do seu litoral de 800km e enviassem suprimentos e armas para os insurretos em Sri Lanka através do curto Estreito de Palk. 22 A partir de 1979, os soviéticos e depois os russos ficaram envolvidos em três grandes guerras de linha de fratura com seus vizinhos muçulma¬ nos ao sul: a Guerra do Afeganistão de 1979-89, sua seqüela — a guerra no Tadjiquistão —, que começou em 1992, e a guerra na Chechênia, que se iniciou em 1994. Depois do colapso da União Soviética, um governo comunista chegou ao poder no Tadjiquistão. Esse governo foi contestado, na primavera de 1992, por uma oposição composta de grupos étnicos e regionais rivais, abrangendo tanto seculares como fundamentalistas islâmicos. Essa oposição, reforçada por armas recebidas do Afeganistão, em setembro de 1992, expulsou da capital, Dushanbe, o governo pró-russo. Os governos russo e uzbeque reagiram de maneira enérgica, advertindo contra o alastramento do fundamentalismo islâmico. A 201- Divisão de Infantaria Motorizada, que havia permanecido no Tadjiquis¬ tão, forneceu armas às forças pró-govemo e a Rússia enviou mais tropas para guardar a fronteira com o Afeganistão. Em novembro de 1992, a Rússia, o Uzbequistão, o Casaquistão e a Quirguízia concordaram com a intervenção militar russa e uzbeque, ostensivamente para a manutenção da paz, mas na realidade para participar da guerra. Com esse apoio e mais as armas e o dinheiro russos, as forças do antigo governo conse¬ guiram recapturar Dushanbe e estabelecer o controle sobre grande parte do país. Seguiu-se um processo de limpeza étnica, e os refugiados e as tropas da oposição recuaram para o Afeganistão. Governos muçulmanos do Oriente Médio protestaram contra a intervenção militar russa. Irã, Paquistão e Afeganistão deram assistência à oposição, cada vez mais dominada pelos fundamentalistas islâmicos, fornecendo dinheiro, armas e treinamento. Segundo se informou, em 1993 havia muitos milhares de combatentes sendo treinados pelos mujahedins afegães e, na primavera e verão de 1993, os insurretos tadjiques desfecharam vários ataques através da fronteira, a partir do Afeganistão, matando muitos guardas de fronteira russos. A Rússia reagiu mandando mais tropas para o Tadjiquistão e lançando uma barragem “maciça de artilharia e morteiros” e ataques aéreos contra alvos no Afeganistão. Entretanto, governos árabes forneceram aos insurretos fundos para adquirir mísseis Stinger para se defender dos aviões. Ao se chegar a 1995, a Rússia tinha cerca de 25 mil homens no Tadjiquistão e estava fornecendo bem mais da metade dos fundos necessários para sustentar seu governo. Por outro lado, os insurretos estavam sendo ativamente apoiados pelo governo afegão e por outros Estados muçul¬ manos. Como acentuou Bamett Rubin, o fato de as agências internacio¬ nais ou o Ocidente não terem dado nenhuma ajuda significativa quer ao Tadjiquistão quer ao Afeganistão fez com que o primeiro ficasse total¬ mente dependente dos russos e o segundo dependente dos seus afins civilizacionais muçulmanos. “Atualmente, qualquer comandante afegão que espere por ajuda externa precisa satisfazer os desejos dos financia¬ dores árabes e paquistaneses, que querem estender a jihad para a Ásia Central, ou se juntar ao tráfico de drogas.” 23 350 351 A terceira guerra antimuçulmana dos russos, que ocorreu no Cáu- caso Setentrional contra os chechenos, teve prólogo nas lutas em 1992-93 entre os ossécios ortodoxos e os vizinhos ingushes muçulmanos. Estes últimos, junto com os chechenos e outros povos muçulmanos, foram deportados para a Ásia Central durante a II Guerra Mundial. Os ossécios permaneceram e tomaram propriedades dos ingushes. Em 1936-57, os povos deportados tiveram permissão para retornar, e as disputas come¬ çaram em torno da propriedade de terras e imóveis e do controle do território. Em novembro de 1992, os ingushes desfecharam ataques a partir de sua república para retomar a região de Prigorodny, que o governo soviético havia atribuído aos ossécios. Os russos reagiram com uma intervenção maciça, inclusive com unidades cossacas, em apoio aos ossécios ortodoxos. Um comentarista de fora fez a seguinte descrição: “Em novembro de 1992, as aldeias ingushes na Ossécia foram cercadas e bombardeadas por tanques russos. Os que sobreviveram ao bombar¬ deio foram mortos ou levados embora. O massacre foi levado a cabo por pelotões da OMON [polícia especial] ossécia, mas as tropas russas enviadas para a região ‘a fim de manter a paz’ lhes deram cobertura/’ 24 The Economist informou que era '“difícil compreender que tanta des¬ truição tivesse ocorrido em menos de uma semana”. Essa foi “a primeira operação de limpeza étnica na Federação Russa”. A Rússia recorreu a esse conflito para ameaçar os aliados chechenos dos ingushes, o que, por sua vez, “levou à imediata mobilização da Chechênia e da [majorita- riamente muçulmana] Confederação dos Povos do Cáucaso (KNK). A KNK ameaçou enviar 500 mil voluntários contra as forças russas caso elas não se retirassem do território checheno. Depois de um tenso impasse, Moscou recuou a fim de evitar a escalada do conflito entre ossécios setentrionais e ingushes, numa conflagração em toda a região”. 25 Uma conflagração mais intensa e ampla eclodiu em dezembro de 1994, quando a Rússia desfechou um ataque militar em grande escala contra a Chechênia. Os dirigentes das duas repúblicas ortodoxas, a Geórgia e a Armênia, apoiaram a ação russa, enquanto o presidente da Ucrânia se mostrou “diplomaticamente vago, apelando apenas por uma solução pacífica da crise”. A ação russa foi endossada pelo governo ortodoxo da Ossécia do Norte e por 55 a 60 por cento do povo ossécio setentrional 26 Em contraste, os muçulmanos dentro e fora da Federação Russa se puseram majoritariamente do lado dos chechenos. A interna¬ cional fundamentalista islâmica imediatamente contribuiu com comba¬ tentes do Azerbaijão, Afeganistão, Paquistão, Sudão e de outros países. 352 Os Estados muçulmanos endossaram a causa chechena e, ao que consta, a Turquia e o Ira forneceram ajuda material, dando à Rússia mais incentivo para tentar se reconciliar com o Irã. Um fluxo contínuo de armas para os chechenos começou a entrar na Federação Russa vindo do Azerbaijão, levando os russos a fechar sua fronteira com esse país, vedando desse modo a chegada à Chechênia de suprimentos de medi¬ camentos e de outros tipos 27 Os muçulmanos dentro da Federação Russa se congregaram do lado dos chechenos. Embora os chamamentos para uma guerra santa muçul¬ mana contra a Rússia em todo o Cáucaso não tenham surtido efeito, os dirigentes das seis repúblicas da região Volga-Urais exigiram que a Rússia cessasse com sua ação militar, e representantes das repúblicas muçulma¬ nas do Cáucaso conclamaram por uma campanha de desobediência civil contra a autoridade russa. O presidente da república Chuvash isentou os jovens chuvashes que estivessem prestando serviço militar de atuar contra seus co-muçulmanos. Os “maiores protestos contra a guerra” surgiram nas duas repúblicas vizinhas à Chechênia — Ingushécia e Daguestão. Os ingushes atacaram tropas russas que estavam se deslocando para a Chechênia, levando o ministro da Defesa russo a afirmar que o governo ingushe “tinha praticamente declarado guerra à Rússia”. Também no Daguestão ocorreram ataques contra forças russas. Os russos respon¬ deram com bombardeios de artilharia sobre aldeias ingushes e dagues- tanenses. 28 Depois do ataque relâmpago checheno contra a cidade de Kizlyar, em janeiro de 1996, os russos arrasaram a aldeia de Pervomaiskoye, o que acirrou ainda mais a hostilidade dos daguestanenses contra eles. A causa chechena também foi auxiliada pela diáspora chechena, que tinha sido criada, em grande parte, pela agressão russa no século XIX contra os povos das montanhas do Cáucaso. A diáspora levantou fundos, obteve armas e forneceu voluntários para as forças chechenas. Essa diáspora era particularmente numerosa na Jordânia e na Turquia, o que levou a Jordânia a assumir uma postura enérgica contra os russos e reforçou a disposição da Turquia de dar assistência aos chechenos. Em janeiro de 1996, quando a guerra se alastrou para a Turquia, a opinião pública turca manifestou sua simpatia pela captura de uma barca de travessia e de reféns russos por membros da diáspora. Com a ajuda de dirigentes chechenos, o governo turco negociou a solução da crise de um modo que agravou ainda mais as já tensas relações entre a Turquia e a Rússia. A incursão chechena no Daguestão, a reação russa e a captura da barca no início de 1996 ressaltaram a possibilidade da expansão do 353 conflito para um plano generalizado entre os russos e os povos das montanhas, seguindo as linhas da luta que durou décadas no século XIX. Fiona Hill advertiu em 1995 que “o Cáucaso Setentrional é um barril de pólvora, em que um conflito numa república tem o potencial de detonar uma conflagração regional que se alastrará para além de suas fronteiras, para o resto da Federação Russa, e conduzirá ao envolvimento da Geórgia, Azerbaijão, Turquia e Irã, bem como das diásporas dos cauca¬ sianos setentrionais. Como demonstrou a guerra na Chechênia, os conflitos nessa região não são fáceis de conter (...) e a luta se espraiou para as repúblicas e territórios adjacentes à Chechênia”. Um analista russo concordou, argumentando que se estavam desenvolvendo “coligações informais” obedecendo a linhas civilizacionais. “Geórgia, Armênia, Na- gomo-Karabakh e Ossécia do Norte — cristãs — estão-se alinhando contra Azerbaijão, Abkhásia, Chechênia e Ingushécia — muçulmanas.” A Rússia, que já estava combatendo no Tadjiquistão, estava “correndo o risco de ser envolta numa longa confrontação com o mundo muçulmano”. 29 Numa outra guerra de linha de fratura entre ortodoxos e muçulma¬ nos, os participantes primários eram os armênios do enclave de Nagor- no-Karabakh e o governo e povo azerbaidjanos, com aqueles lutando por sua independência destes. O governo da Armênia era um participante secundário, e Rússia, Turquia e Irã tinham envolvimentos terciários. Além disso, a considerável diáspora armênia na Europa Ocidental e na América do Norte desempenhou um papel importante. As lutas começaram em 1988, antes do fim da União Soviética, se intensificaram durante 1992-93 e diminuíram depois da negociação de um cessar-fogo em 1994. Os turcos e outros muçulmanos apoiaram o Azerbaijão, enquanto que a Rússia apoiou os armênios, mas depois usou da sua influência junto a eles também para contestar a influência turca no Azerbaijão. Essa guerra foi o mais recente episódio na luta que data de séculos, desde os embates entre o Império Russo e o Império Otomano pelo controle da região do Mar Negro e do Cáucaso, bem como no intenso antagonismo entre armênios e turcos, que vem desde os massacres dos primeiros pelos segundos no início do século XX. Nessa guerra, a Turquia, de maneira consistente, apoiou o Azerbai¬ jão e se opôs aos armênios. A Turquia, ao dar seu reconhecimento formal ao Azerbaijão, foi o primeiro país a reconhecer a independência de uma república soviética não-báltica. Durante todo o conflito, a Turquia deu apoio financeiro e material ao Azerbaijão e treinou soldados desse país. Quando, em 1991-92, a violência se intensificou e os armênios avançaram para o território do Azerbaijão, a opinião pública turca se inflamou e o governo turco ficou sob pressão para apoiar aquele povo com o qual tinha afinidades étnicas e religiosas. O governo turco receou também que isso iria ressaltar a divisória entre muçulmanos e cristãos, produzir uma avalanche de apoio ocidental para a Armênia e antagonizar seus aliados na OTAN. A Turquia se defrontava assim com as clássicas pressões cruzadas de um participante secundário numa guerra de linha de fratura. Entretanto o governo turco viu que era do seu interesse apoiar o Azerbaijão e confrontar a Armênia. Um funcionário turco disse que “é impossível não se sentir afetado quando seus afins são mortos”, e um outro acrescentou: “Estamos sob pressão. Nossos jornais estão cheios de fotografias de atrocidades. (...) Talvez devêssemos mostrar à Armênia que existe uma grande Turquia nesta região.” O presidente Turgut Õzal concordou, dizendo que a Turquia “devia amedrontar um pouquinho os armênios”. A Turquia, juntamente com o Irã, advertiu os armênios de que não toleraria qualquer alteração de fronteiras. Õzal impôs um bloqueio para impedir que alimentos e outros suprimentos chegassem à Armênia através da Turquia, em conseqüência do que a população da Armênia ficou à beira da fome no inverno de 1992-93. Também como resultado disso, o marechal russo Yevgeny Shaposhnikov advertiu que, “se um outro lado [ou seja, a Turquia] se envolver” nessa guerra, “estaremos à beira da III Guerra Mundial”. Um ano depois, Õzal ainda se mostrava belicoso e lançou a provocação: “O que podem fazer os armênios se acontecer de tiros serem disparados? (...) Marchar para dentro da Turquia?” Nesse caso, a Turquia “mostrará suas presas”. 30 No verão e outono de 1993, a ofensiva armênia, que estava se aproximando da fronteira iraniana, produziu mais reações tanto da Turquia como do Irã, que estava competindo por influência dentro do Azerbaijão e nos Estados muçulmanos da Ásia Central. A Turquia declarou que a ofensiva constituía uma ameaça para sua segurança, exigiu que as forças armênias se retirassem do território do Azerbaijão imediata e incondicionalmente” e enviou reforços para sua fronteira com a Armênia. Ao que consta, tropas turcas e russas trocaram tiros através dessa fronteira. A primeira-ministra da Turquia, Tansu Ciller, afirmou que solicitaria uma declaração de guerra se tropas armênias entrassem no enclave azerbaijano de Nakhichevan, próximo da Turquia. O Irã também deslocou forças para diante e para dentro do território do Azerbaijão, supostamente para estabelecer acampamentos para os refugiados que haviam fugido das ofensivas armênias. Ao que consta, a ação iraniana levou os turcos a acharem que podiam tomar medidas adicionais sem provocar contramedidas russas, e também lhes deu incentivo adicional para competir com o Irã em dar proteção ao Azerbaijão. A crise acabou sendo atenuada por negociações em Moscou entre os dirigentes da Turquia, da Armênia e do Azerbaijão, por pressão norte-americana sobre o governo armênio e por pressão do governo armênio sobre os armênios de Nagorno-Karabakh 31 Os armênios vivem num pequeno país mediterrâneo, com escassos recursos naturais, cercados por povos túrquicos hostis e, historicamente, buscaram proteção junto a seus afins ortodoxos, a Geórgia e a Rússia. Esta, em especial, tem sido vista como um irmão maior. Contudo, quando a União Soviética estava se esfacelando e os armênios de Nagorno-Ka¬ rabakh desencadearam seu movimento pela independência, o governo Gorbachev rejeitou suas exigências e enviou tropas para a região a fim de apoiar o que era considerado um governo comunista fiel em Baku. Depois do fim da União Soviética, essas considerações cederam lugar a outras mais antigas, de índole histórica e cultural, com o Azerbaijão acusando “o governo russo de dar uma volta de 180 graus” e apoiar ativamente a Armênia cristã. A ajuda militar russa aos armênios tinha, na realidade, começado antes no exército soviético, no qual os armênios eram promovidos a postos mais altos e designados para unidades de combate com muito maior freqüência do que os muçulmanos. Depois que começou a guerra, o 366 g Regimento de Infantaria Motorizado do Exército russo, baseado em Nagorno-Karabakh, teve um papel destacado no ataque armênio à cidade de Khodjali, no qual se diz que mil azeris foram massacrados. Posteriormente, tropas spetsnaz russas também tomaram parte nos combates. Durante o inverno de 1992-93, quando a Armênia padeceu devido ao bloqueio turco, foi “salva do completo colapso econômico por uma injeção de bilhões de rublos em créditos abertos pela Rússia”. Nessa primavera, tropas russas se juntaram a forças regulares armênias para abrir um corredor ligando a Armênia a Nagor¬ no-Karabakh. Uma força blindada russa de 40 tanques participou então, ao que consta, da ofensiva em Karabakh no verão de 1993- 32 Conforme assinalam Hill e Jewett, a Armênia por sua vez “praticamente não tinha opção senão se aliar intimamente com a Rússia. Ela depende da Rússia para obter matérias-primas, energia e alimentos, além de defesa contra seus inimigos históricos sobre suas fronteiras, como o Azerbaijão e a Turquia. A Armênia assinou todos os acordos econômicos e militares da CEI, permitiu que tropas russas ficassem aquarteladas em seu território e abriu mão de todas as reivindicações de bens anteriormente soviéticos em favor da Rússia.” 33 O apoio russo aos armênios aumentou a influência da Rússia junto ao Azerbaijão. Em junho de 1993, o dirigente nacionalista desse país, Abulfez Elchibei, foi derrubado por um golpe e substituído por Gaider Aliyev, ex-comunista e supostamente pró-russo. Aliyev reconhecia a necessidade de agradar a Rússia a fim de conter a Armênia. Ele abandonou a recusa do Azerbaijão de aderir à Comunidade dos Estados Independentes e de permitir o aquartelamento de tropas russas em seu território. Também abriu caminho para a participação russa num consór¬ cio internacional para desenvolver a exploração do petróleo do país. Em troca, a Rússia começou a treinar tropas azerbaijanas e pressionou a Armênia para cessar seu apoio às forças em Karabakh e induzi-las a se retirar de território azerbaijano. Mudando de um lado para o outro, a Rússia conseguiu também produzir resultados para o Azerbaijão e se contrapor à influência iraniana e turca nesse país. Assim, o apoio russo à Armênia não só fortaleceu seu melhor aliado no Cáucaso, como também enfraqueceu seus principais rivais muçulmanos nessa região. Afora a Rússia, a principal fonte de apoio da Armênia era sua diáspora grande, rica e influente na Europa Ocidental e na América do Norte, inclusive cerca de um milhão de armênios nos Estados Unidos e 450 mil na França. Eles proporcionaram dinheiro e suprimentos para ajudar a Armênia a sobreviver ao bloqueio turco, funcionários para o governo armênio e voluntários para as forças armadas armênias. As contribuições para o socorro aos armênios por parte da comunidade norte-americana totalizou de 50 a 75 milhões de dólares por ano em meados da década de 90. Os membros da diáspora também exerceram considerável influência política junto aos governos dos países onde viviam. As maiores comunidades armênias nos Estados Unidos se encon¬ tram em estados-chave como Califórnia, Massachusetts e Nova Jersey. Em conseqüência, o Congresso proibiu qualquer ajuda externa ao Azerbaijão e transformou a Armênia no terceiro maior recipiente per capita de assistência norte-americana. Esse apoio do exterior foi essencial para a sobrevivência da Armênia e lhe valeu o apropriado apelido de “Israel do Cáucaso”. 34 Do mesmo modo como os ataques russos no século XIX sobre o Cáucaso Setentrional geraram a diáspora que ajudou os chechenos a resistir aos russos, os massacres turcos de armênios no início do século XX produziram uma diáspora que permitiu à Armênia resistir à Turquia e derrotar o Azerbaijão. A antiga Iugoslávia foi o lugar do mais complexo, confuso e completo conjunto de guerras de linha de fratura do começo dos anos' 90. No nível primário, na Croácia o governo croata e os croatas combateram os sérvios da Croácia, e na Bósnia-Herzegovina, o governo bósnio combateu os sérvios da Bósnia e os croatas da Bósnia, que também lutaram entre si. No nível secundário, o governo sérvio promo¬ veu uma “Grande Sérvia”, ajudando os sérvios da Bósnia e da Croácia, e o governo croata aspirou a uma “Grande Croácia” e apoiou os croatas da Bósnia. No nível terciário, um apoio maciço de civilizações incluiu Alemanha, Áustria, Vaticano, outros países e grupos europeus católicos e, mais tarde, os Estados Unidos em favor da Croácia; a Rússia, a Grécia e outros países e grupos ortodoxos se colocaram do lado dos sérvios; o Irã, a Arábia Saudita, a Turquia, a Líbia, a internacional fundamentalista islâmica e os países islâmicos em geral ficaram a favor dos muçulmanos da Bósnia. Estes últimos receberam auxílio dos Estados Unidos, uma anomalia não-civilizacional no que, no restante, formou um padrão de afim apoiando afim. A diáspora croata na Alemanha e a diáspora bósnia da Turquia foram em apoio de suas pátrias de origem. As igrejas e os grupos religiosos estiveram atuantes em todos os três lados. As ações, pelo menos, dos governos alemão, turco, russo e norte-americano foram influenciadas de modo significativo por grupos de pressão e pela opinião pública em suas respectivas sociedades. O apoio prestado pelas partes secundárias e terciárias foi essencial para a condução da guerra, e as limitações que elas impuseram foi essencial para fazê-la cessar. Os governos croata e sérvio forneceram armas, supri¬ mentos, fundos, refúgios e, às vezes, efetivos militares para sua gente que estava combatendo em outras repúblicas. Sérvios, croatas e muçulmanos receberam, todos, ajuda substancial de seus afins civilizacionais qué estavam fora da antiga Iugoslávia, sob a forma de dinheiro, armas, suprimentos, voluntários, treinamento militar e apoio político e diplomático. Os sérvios e os croatas situados no nível primário não-govemamental eram, de modo geral, mais extremados em seu nacionalismo, irredutíveis em suas exigências e militantes na perseguição de seus objetivos. Os governos sérvio e croata, no segundo nível, inicialmente apoiaram vigorosamente seus afins do nível primário, porém depois seus próprios interesses, mais diversifica¬ dos, levaram-nos a desempenhar papéis mais de mediação e contenção. De maneira paralela, os governos russo, alemão e norte-americano, no terceiro nível, pressionaram os governos do segundo nível, que vinham apoiando, na direção da contenção e da acomodação. O esfacelamento da Iugoslávia começou em 1991, quando a Eslovênia e a Croácia se movimentaram rumo à independência e pleitearam o apoio das potências européias ocidentais. A resposta do Ocidente foi definida pela Alemanha, e essa resposta foi, em grande parte, definida pela conexão católica. O governo de Bonn foi pressionado a atuar pela hierarquia católica alemã, pelo partido União Social Cristã, da Bavária, parceiro da coalizão situacionista, e pelo FrankfurterAllgemeine Zeitung e outros órgãos da mídia. A mídia bávara em especial desempe¬ nhou um papel crucial no desenvolvimento de um sentimento pelo reconhecimento daqueles países na opinião pública alemã. Flora Lewis observou que “a TV bávara, sob grande pressão do governo bávaro ultraconservador, e a Igreja Católica bávara, muito afirmativa e que tinha íntimas ligações com a igreja da Croácia, forneceram as informações televisionadas para toda a Alemanha quando a guerra [com os sérvios] começou de fato. A cobertura foi muito parcial”. O governo alemão estava hesitando quanto a conceder seu reconhecimento, porém, dadas as pressões da sociedade alemã, não teve muita escolha. “O apoio ao reconhecimento da Croácia pela Alemanha foi empurrado pela opinião pública e não suscitado pelo governo.” A Alemanha pressionou a União Européia para que reconhecesse a independência da Eslovênia e da Croácia e depois, tendo obtido essa decisão, prosseguiu por conta própria e a reconheceu antes que a União o fizesse em dezembro de 1991- Um estudioso alemão assinalou em 1995 que, “durante todo o conflito, Bonn considerou a Croácia e seu líder Franjo Tudjman como algo parecido com um protegido da política externa alemã, o qual, apesar de um comportamento errático que causava irritação, ainda podia contar com o firme apoio da Alemanha”. 55 A Áustria e a Itália prontamente agiram no sentido de reconhecer os dois novos Estados e, com grande rapidez, o mesmo fizeram os demais países ocidentais, inclusive os Estados Unidos. O Vaticano também desempenhou um papel fundamental. O Papa declarou que a Croácia era “a muralha do Cristianismo [Ocidental]”, e apressou-se em dar reconhecimento diplomático aos dois Estados antes que a União Européia o fizesse. 56 Desse modo, o Vaticano tomou partido no conflito, o que teve suas conseqüências em 1994, quando o Papa planejava visitas às três repúblicas. A oposição da Igreja Ortodoxa Sérvia impediu-o de ir a Belgrado, e a falta de disposição da Sérvia para garantir sua segurança levou ao cancelamento de sua visita a Sarajevo. Contudo, ele foi a Zagreb, onde homenageou o cardeal Alojzieje Septinac, que era associado com o regime fascista croata na II Guerra Mundial, o qual perseguira e massacrara sérvios, ciganos e judeus. Tendo assegurado o reconhecimento pelo Ocidente de sua in¬ dependência, a Croácia começou a desenvolver seu poderio militar, apesar do boicote de armamentos imposto em setembro de 1991 pelas Nações Unidas a todas as antigas repúblicas iugoslavas. Houve um fluxo de armamentos para a Croácia proveniente de países católicos europeus, como Alemanha, Polônia e Hungria, bem como de países latino-ameri¬ canos como Panamá, Chile e Bolívia. Quando a guerra entrou numa escalada em 1991, as exportações de armamentos pela Espanha, supos¬ tamente “controladas em grande parte pela Opus Dei”, aumentaram seis vezes num curto período de tempo, a maioria delas presumivelmente chegando até Ljubliana e Zagreb. Ao que consta, em 1993 a Croácia adquiriu vários Mig-21 na Alemanha e na Polônia, com o conhecimento dos respectivos governos. As forças armadas croatas receberam centenas, e talvez milhares, de voluntários “da Europa Ocidental, da diáspora croata e dos países católicos da Europa Oriental”, que estavam ansiosos por lutar “numa cruzada cristã contra tanto o comunismo sérvio como o fundamentalismo islâmico”. Militares profissionais de países ocidentais proporcionaram assistência técnica. Em parte graças a esse auxílio de países afins, os croatas puderam fortalecer seu segmento militar e criar uma força para se contrapor ao exército iugoslavo dominado pelos sérvios. 37 O apoio ocidental à Croácia também incluiu não tomar conheci¬ mento da limpeza étnica e das violações de direitos humanos e das leis da guerra pelas quais os sérvios foram constantemente denunciados. O Ocidente ficou em silêncio quando, em 1995, o recomposto exército croata desfechou um ataque contra os sérvios de Krajina, que lã estavam havia séculos, e expulsou centenas de milhares deles para o exílio na Bósnia e na Sérvia. A Croácia também se beneficiou de sua considerável diáspora. Croatas ricos na Europa Ocidental e na América do Norte contribuíram com fundos para aquisição de armas e equipamentos. As associações de croatas nos Estados Unidos fizeram lobby no Congresso e junto ao presidente em favor de sua pátria de origem. De especial importância e influência foram os 600 mil croatas na Alemanha. Fornecen¬ do centenas de voluntários para o exército croata, “as comunidades croatas no Canadá, nos Estados Unidos, na Austrália e na Alemanha se mobilizaram para defender sua pátria recém-independente”. 38 Em 1994, os Estados Unidos aderiram, apoiando o rearmamento croata. Ignorando as numerosíssimas violações do boicote de armas das Nações Unidas, os Estados Unidos proporcionaram treinamento militar aos croatas e autorizaram generais norte-americanos reformados do mais alto nível a prestar-lhes assessoramento. Os governos norte-americano e alemão deram luz verde para a ofensiva croata sobre Krajina em 1995. Assessores militares norte-americanos participaram do planejamento desse ataque no estilo norte-americano, o qual, segundo os croatas, também se beneficiou de inteligência fornecida por satélites espiões norte-americanos. Um funcionário norte-americano declarou que a Croᬠcia se tomara “nosso aliado defactd\ Argumentou-se que esse desdo¬ bramento refletia “um cálculo de longo prazo, segundo o qual, no final, duas potências locais dominarão essa parte do mundo, uma em Zagreb e outra em Belgrado — uma vinculada a Washington e a outra presa a um bloco eslavo que se estenderá até Moscou”. 39 As guerras iugoslavas também fizeram com que o mundo ortodoxo se congregasse ao lado da Sérvia. Nacionalistas, oficiais das forças armadas, parlamentares e líderes da Igreja Ortodoxa russos abertamente expressavam seu apoio à Sérvia, menosprezavam os “turcos” bósnios e criticavam o imperialismo ocidental e da OTAN. Os nacionalistas russos e sérvios atuaram juntos para insuflar em ambos os países oposição à “nova ordem mundial” ocidental. Num grau considerável, esses senti¬ mentos eram compartilhados pelo povo russo, com mais de 60 por cento dos moscovitas, por exemplo, se opondo aos ataques aéreos da OTAN no verão de 1995- Grupos nacionalistas russos conseguiram recrutar jovens russos em várias cidades grandes para que se juntassem “à causa da fraternidade eslava”. Ao que consta, mil ou mais de mil russos, juntamente com voluntários da Romênia e da Grécia, se alistaram nas forças armadas sérvias para combater o que descreviam como “os fascistas católicos” e “os militantes fundamentalistas islâmicos”. Em 1992, informou-se que uma unidade russa “com uniformes de cossacos” estava operando na Bósnia. Em 1995, havia russos servindo em unidades militares de elite sérvias e, segundo um relatório das Nações Unidas, combatentes russos e gregos participaram do ataque sérvio contra a área protegida pelas Nações Unidas em Zepa. 40 Apesar do boicote de armamentos, os amigos ortodoxos da Sérvia lhe forneceram as armas e os equipamentos de que ela necessitava. No início de 1993, órgãos militares e de inteligência da Rússia aparentemente venderam aos sérvios tanques T-55, mísseis antimísseis e mísseis antiaé¬ reos no valor de 300 milhões de dólares. Segundo consta, técnicos militares russos foram enviados à Sérvia a fim de operar esses equipa- 361 mentos e treinar os sérvios no seu emprego. A Sérvia adquiriu armamen¬ tos de outros países ortodoxos, sendo a Romênia e a Bulgária os fornecedores “mais ativos” e a Ucrânia também figurando como fonte. Além disso, tropas russas de manutenção da paz que se encontravam na Eslavônia desviaram para os sérvios suprimentos das Nações Unidas, facilitaram os deslocamentos militares sérvios e ajudaram as forças sérvias a obter armas . 41 Apesar das sanções econômicas, a Sérvia conseguiu se sustentar razoavelmente bem em conseqüência do gigantesco contrabando de combustível e outros suprimentos de Timisoara organizado por funcio¬ nários do governo romeno e da Albânia, neste caso organizado primeiro por empresas italianas e depois por empresas gregas, com a conivência do governo grego. Os envios de alimentos, produtos químicos, compu¬ tadores e outros artigos provenientes da Grécia entravam na Sérvia através da Macedônia e por aí saíam quantidades correspondentes de exportações sérvias. 42 A combinação da atração dos dólares e da simpatia pelos afins culturais transformou em piada as sanções econômicas das Nações Unidas contra a Sérvia, assim como ocorreu com o boicote de armas das Nações Unidas contra todas as antigas repúblicas iugoslavas. Durante todas as guerras iugoslavas, o governo grego se distanciou das medidas endossadas pelos membros ocidentais da OTAN, se opôs à ação militar da OTAN na Bósnia, apoiou os sérvios nas Nações Unidas e fez lobby junto ao governo norte-americano para que suspendesse as sanções econômicas contra a Sérvia. Em 1994, o primeiro-ministro grego, Andreas Papandreou, ressaltando a importância da conexão ortodoxa com a Sérvia, atacou publicamente o Vaticano, a Alemanha e as Nações Unidas por sua pressa em conceder reco¬ nhecimento diplomático à Eslovênia e à Croácia no final de 1991. 43 Como dirigente de um participante terciário, Boris Yeltsin sofreu pressões em sentidos contrários: por um lado, pelo desejo de manter, ampliar e aproveitar as boas relações com o Ocidente e, por outro lado, pelo desejo de ajudar os sérvios e neutralizar sua oposição política, que o acusava sistematicamente de se curvar ao Ocidente. No cômputo geral, esta última preocupação se impôs e a Rússia deu aos sérvios um apoio diplomático freqüente e consistente. Em 1993 e em 1995, o governo russo se opôs energicamente a que fossem aplicadas à Sérvia sanções econô¬ micas mais severas e o Parlamento russo aprovou, quase por unanimi¬ dade, resoluções a favor da suspensão das sanções em vigor contra os sérvios. A Rússia também pressionou pelo fortalecimento do bloqueio 362 de armas contra os muçulmanos e pela aplicação de sanções econômicas contra a Croácia. Em dezembro de 1993, a Rússia instou pelo abran¬ damento das sanções econômicas contra a Sérvia a fim de que lhe fosse permitido suprir esse país com gás natural para o inverno, proposta que foi bloqueada pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha. Em 1994 e novamente em 1995, a Rússia se opôs tenazmente aos ataques aéreos contra os sérvios da Bósnia. Neste último ano, a Duma russa condenou o bombardeio por uma votação quase unânime e exigiu a renúncia do ministro do Exterior, Andrei Kozyrev, pela defesa ineficaz dos interes¬ ses nacionais russos nos Bálcãs. Ainda em 1995, a Rússia acusou a OTAN de cometer “genocídio” contra os sérvios e o presidente Yeltsin advertiu que a continuação dos bombardeios afetaria de modo drástico a cooperação da Rússia com o Ocidente, inclusive sua participação na Parceria para a Paz da OTAN. Perguntou retoricamente: “Como podemos celebrar um acordo com a OTAN, quando ela está bom¬ bardeando sérvios?” Segundo ele, o Ocidente estava claramente usan¬ do dois pesos e duas medidas: “Como pode ser que, quando os muçulmanos atacam, nenhuma ação é empreendida contra eles? Quando os croatas atacam tampouco.” 44 A Rússia também se opôs de modo consistente aos esforços por suspender o boicote de armas contra as antigas repúblicas iugoslavas, que produzia impacto principalmente sobre os muçulmanos da Bósnia, e tentou sistematicamente reforçar esse boicote. A Rússia utilizou por várias outras formas sua posição nas Nações Unidas e em outros foros para defender os interesses sérvios. Em dezembro de 1994, ela vetou uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, proposta por países muçulmanos, que teria vedado o forneci¬ mento de combustível pela Sérvia aos sérvios da Bósnia e da Croácia. Em abril de 1994, a Rússia bloqueou uma resolução das Nações Unidas que condenava os sérvios por perpetrarem limpeza étnica. Ela também impediu a designação de qualquer pessoa de país integrante da OTAN como promotor das Nações Unidas para crimes de guerra, devido a uma provável prevenção contra os sérvios, objetou à indiciação do comandante militar sérvio da Bósnia, Ratko Mladic, pelo Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, e ofereceu-lhe asilo na Rússia. 45 Em setembro de 1993, a Rússia reteve a renovação da autorização das Nações Unidas para a permanência dos 22 mil integrantes da força de paz das Nações Unidas na antiga Iugoslávia. No verão de 1995, a Rússia se opôs, porém sem recorrer ao veto, a uma resolução do Conselho de Segurança que autorizava o envio de mais 12 mil elementos para a força de paz, e atacou tanto a ofensiva 363 croata contra os sérvios em Krajina como o fato de os governos ocidentais não terem tomado qualquer medida contra essa ofensiva. A congregação civilizacional mais ampla e mais eficaz foi a do mundo islâmico em favor dos muçulmanos da Bósnia. A causa bósnia era universalmente popular nos países muçulmanos. A ajuda para os bósnios provinha de várias fontes, públicas e privadas. Os governos muçulmanos, mais notadamente os do Irã e da Arábia Saudita, competiam entre si para dar apoio aos bósnios e para obter a influência que o mesmo gerava. As sociedades sunitas e xiitas, fundamentalistas e seculares, muçulmanas árabes e não-árabes, do Marrocos à Malásia, todas aderiram. As modalidades de apoio muçulmano para os bósnios variaram de ajuda humanitária (inclusive 90 milhões de dólares levantados em 1995 na Arábia Saudita), passando por apoio diplomático e enorme assistência militar, até atos de violência, como o assassinato de 12 croatas em 1993, na Argélia, por extremistas fundamentalistas islâmicos “em resposta ao massacre de nossos confrades muçulmanos cujas gargantas foram corta¬ das na Bósnia”. Essa congregação teve grande impacto sobre o curso da guerra. Ela foi fundamental para a sobrevivência do Estado bósnio e para seu êxito em reconquistar território depois das amplas vitórias iniciais dos sérvios. Ela estimulou enormemente a islamização da socie¬ dade bósnia e a identificação dos muçulmanos da Bósnia com a comunidade islâmica mundial. E ela deu aos Estados Unidos um incentivo para ser compreensivo para com as necessidades bósnias. Os governos muçulmanos, individual e coletivamente, expressaram repetidas vezes sua solidariedade aos bósnios irmãos na religião. O Irã tomou a frente em 1992, descrevendo a guerra como um conflito religioso com sérvios cristãos engajados no genocídio dos muçulmanos da Bósnia. Fouad Ajami assinalou que, ao assumir essa liderança, o Irã fez “um pagamento inicial pela gratidão do Estado bósnio” e estabeleceu o modelo e criou o estímulo para que outras potências muçulmanas, como a Turquia e a Arábia Saudita, o seguissem. Por insistência do Irã, a Organização da Conferência Islâmica assumiu a questão e criou um grupo para empreender um lobby pela causa bósnia nas Nações Unidas. Em agosto de 1992, representantes islâmicos condenaram o alegado genocí¬ dio na Assembléia Geral das Nações Unidas e, em nome da OCI, a Turquia apresentou um projeto de resolução pleiteando a intervenção militar nos termos do Artigo 7 da Carta das Nações Unidas. No início de 1993, os países muçulmanos fixaram um prazo para que o Ocidente agisse a fim de proteger os bósnios, após a expiração do qual eles se 164 considerariam livres para fornecer armas à Bósnia. Em maio de 1993, a OCI condenou o plano montado pelas nações ocidentais e pela Rússia para proporcionar áreas de refúgio para os muçulmanos e para monitorar a fronteira com a Sérvia, mas afastando qualquer intervenção militar. Ela exigiu o término do boicote de armamentos, o emprego da força contra as armas pesadas dos sérvios, um patrulhamento agressivo da fronteira sérvia e a inclusão de tropas muçulmanas nas forças de paz. No mês seguinte, a OCI, passando por cima das objeções ocidentais e russas, fez com que a Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos aprovasse uma resolução condenando a agressão sérvia e croata e pedindo o término do boicote de armamentos. Em julho de 1993, para um certo embaraço do Ocidente, a OCI ofereceu fornecer 18 mil homens para as forças de paz das Nações Unidas, com soldados provenientes do Irã, Turquia, Malásia, Tunísia, Paquistão e Bangladesh. Os Estados Unidos vetaram o Irã e os sérvios objetaram energicamente às tropas turcas. Não obstante, estas últimas chegaram à Bósnia no verão de 1994 e, em 1995, o efetivo de 25 mil homens da Força de Proteção das Nações Unidas compreendia sete mil homens da Turquia, Paquistão, Malásia, Indonésia e Bangladesh. Em agosto de 1993, uma delegação da OCI, chefiada pelo ministro do Exterior turco, fez gestões junto a Boutros Boutros-Ghali e Warren Christopher a fim de que apoiassem ataques aéreos imediatos da OTAN para proteger os bósnios de ataques sérvios. Ao que se informou, o fato de o Ocidente não haver adotado essa linha de ação criou graves tensões entre a Turquia e seus aliados da OTAN. 47 Posteriormente, os primeiros-ministros da Turquia e do Paquistão fizeram uma visita, que teve ampla divulgação, a Sarajevo a fim de ressaltar a preocupação muçulmana, e a OCI voltou a repetir suas exigências de assistência militar aos bósnios. No verão de 1995, o fato de o Ocidente não ter defendido as áreas de refúgio contra ataques sérvios levou a Turquia a aprovar a prestação de ajuda à Bósnia e a treinar tropas bósnias, a Malásia a se comprometer a vender-lhe armas em violação do boicote decretado pelas Nações Unidas e os Emirados Árabes Unidos a concordarem em proporcionar fundos para fins militares e humanitários. Em agosto de 1995, os ministros do Exterior de nove países-membros da OCI aprovaram a assistência econômica e em armas à Bósnia. Enquanto nenhuma outra questão gerou apoio tão unânime em todo o Islã, o sofrimento dos muçulmanos da Bósnia teve especial repercussão na Turquia. A Bósnia fizera parte do Império Otomano até 1878, na prática, e até 1908 em teoria, e os imigrantes e refugiados bósnios 365 compõem aproximadamente cinco por cento da população da Turquia. A simpatia pela causa bósnia e a indignação pelo que se percebia como inação do Ocidente para proteger os bósnios se estenderam por todo o povo turco, e o Partido Fundamentalista Islâmico de Bem-Estar, de oposição, explorou essa questão contra o governo. Funcionários turcos, por sua vez, ressaltaram as responsabilidades especiais da Turquia com relação a todos os muçulmanos dos Bálcãs e o governo fez gestões de forma sistemática pela intervenção militar das Nações Unidas, a fim de salvaguardar os muçulmanos da Bósnia. 48 De longe o tipo de ajuda mais importante que a ummah deu aos muçulmanos da Bósnia foi a assistência militar: armas, dinheiro para comprar armas, treinamento militar e voluntários. Logo que a guerra começou, o governo bósnio abriu as portas para o envio de mujahedins e, ao que consta, o total de voluntários chegou a quatro mil, mais do que os estrangeiros que combateram do lado dos sérvios ou dos croatas. Aí se incluíam unidades da Guarda Republicana Iraniana e muitos que haviam combatido no Afeganistão. Dentre eles havia cidadãos do Paquis¬ tão, Turquia, Irã, Argélia, Arábia Saudita, Egito e Sudão, além de albaneses e turcos que estavam, como imigrantes temporários, trabalhando na Alemanha, Áustria e Suíça. Organizações religiosas sauditas patrocinaram muitos voluntários; mais de duas dezenas de sauditas foram mortos logo nos primeiros meses da guerra, em 1992; e a Assembléia Mundial da Juventude Islâmica transportou combatentes feridos de avião para aten¬ dimento médico em Jedah. No outono de 1992, guerrilheiros do Hezbol- lah xiita libanês chegaram a fim de treinar o exército bósnio, treinamento que foi posteriormente assumido pela Guarda Republicana Iraniana. Na primavera de 1994, serviços de inteligência ocidentais informaram que uma unidade da Guarda Republicana Iraniana, com 400 homens, estava organizando unidades extremistas de guerrilha e terrorismo. Um funcio¬ nário norte-americano disse que “os iranianos vêem nisso um meio de atingir o ventre vulnerável da Europa”. Segundo as Nações Unidas, os mujahedins treinaram de três a cinco mil bósnios para as brigadas especiais fundamentalistas islâmicas. O governo bósnio empregou os mujahedins em “atividades terroristas e ilegais e como tropas de choque”, embora essas unidades muitas vezes molestassem as populações locais e criassem outros problemas para o governo. Os acordos de Dayton exigiram que todos os combatentes estrangeiros saíssem da Bósnia, porém o governo bósnio ajudou alguns combatentes a ficar, outorgan- do-lhes cidadania bósnia e contratando homens da Guarda Republicana Iraniana como trabalhadores. Um funcionário norte-americano advertiu no início de 1996 que “o governo bósnio muito deve a esses grupos e especialmente aos iranianos. O governo se mostrou incapaz de confron¬ tá-los. Dentro de 12 meses, nós teremos partido, mas os mujahedins pretendem ficar”. 40 Os países ricos da ummah, encabeçados pela Arábia Saudita e pelo Irã, contribuíram com enormes quantias para desenvolver o poderio militar bósnio. Nos primeiros meses da guerra, em 1992, o governo saudita e fontes privadas forneceram 150 milhões de dólares em ajuda para os bósnios, ostensivamente para fins humanitários, que, porém, como se admitia amplamente, foram utilizados sobretudo para fins militares. Segundo consta, os bósnios receberam armas no valor de 160 milhões de dólares durante os primeiros dois anos da guerra. No período 1993-95, os bósnios receberam dos sauditas mais 300 milhões de dólares para comprar armas, além de 500 milhões de dólares supostamente em ajuda humanitária. O Irã também foi uma grande fonte de assistência militar e, segundo funcionários norte-americanos, despendeu centenas de milhões de dólares por ano em armas para os bósnios. Segundo um outro relatório, do valor total de dois bilhões de dólares em armas que foram para a Bósnia nos primeiros anos de luta, de 80 a 90 por cento foram para os muçulmanos. Graças a essa ajuda financeira, os bósnios puderam comprar milhares de toneladas de armamentos. Dentre os embarques interceptados, havia um de quatro mil fuzis e um milhão de tiros de munição, um segundo de 11 mil fuzis, 30 morteiros e 750 mil tiros de munição, e um terceiro com foguetes terra-terra, munição, jipes e pistolas. Todos esses embarques se originavam no Irã, que era a principal fonte de armamentos, mas a Turquia e a Malásia também eram importantes fornecedores de armas. Algumas armas foram transportadas por via aérea diretamente para a Bósnia, mas a maioria chegou através da Croácia, quer por via aérea até Zagreb e depois, por terra ou por mar, para Split e outros portos croatas, e finalmente por terra. Em troca de permitir esse procedimento, os croatas ficavam com uma parte, ao que consta um terço, das armas e, pensando na possibilidade de ter que vir a combater a Bósnia no futuro, proibiam o transporte de tanques e artilharia pesada através de seu território. 50 O dinheiro, os homens, o treinamento e as armas do Irã, Arábia Saudita, Turquia e outros países muçulmanos possibilitaram aos bósnios converter o que todos chamavam de um exército “improvisado” numa competente força militar modestamente bem equipada. Ao se chegar ao inverno de 1994, observadores de fora informaram constatar aumentos espetaculares na sua coerência organizacional e na sua eficácia militar. 51 Pondo sua nova força militar para funcionar, os bósnios romperam o cessar-fogo e desencadearam ofensivas bem-sucedidas, primeiro contra as milícias croatas e depois, mais no final da primavera, contra os sérvios. No outono de 1994, o Quinto Corpo bósnio se deslocou da área de refúgio das Nações Unidas em Bihac e fez recuar as forças sérvias, produzindo a maior vitória bósnia até então e retomando considerável parte de território dos sérvios, que foram prejudicados pela proibição imposta pelo presidente Milosevic de que lhes fosse dado auxílio. Em março de 1995, o exército bósnio tornou a romper a trégua e iniciou uma grande ação perto de Tuzla, a que se seguiu uma ofensiva em junho em torno de Sarajevo. O apoio de seu afins muçulmanos foi fator imprescin¬ dível e decisivo para possibilitar ao governo bósnio fazer essas alterações na balança de poder militar na Bósnia. A guerra na Bósnia foi uma guerra de civilizações. Os três partici¬ pantes primários provinham de civilizações diferentes e professavam religiões diferentes. Com uma exceção parcial, a participação dos atores secundários e terciários seguiu exatamente o modelo civilizacional. De maneira universal, os Estados e organizações muçulmanos se congrega¬ ram em apoio dos muçulmanos da Bósnia e em oposição aos croatas e aos sérvios. De maneira universal, os Estados e organizações ortodoxos apoiaram os sérvios e se opuseram a croatas e muçulmanos. Os governos e as elites ocidentais apoiaram os croatas, fustigaram os sérvios e, de modo geral, se mostraram indiferentes aos muçulmanos, ou temerosos. À medida que prosseguia a guerra, os ódios e as divisões entre os grupos se aprofundaram e suas identidades religiosas e cívilizacionais se inten¬ sificaram, sobretudo entre os muçulmanos. De modo genérico, as lições que se podem extrair da guerra na Bósnia são: primeiro, os participantes primários em guerras de linha de fratura podem contar com a ajuda, que pode ser considerável, de seus afins cívilizacionais; segundo, essa ajuda pode afetar de modo significativo o curso da guerra; e terceiro, os governos e povos de uma civilização não despendem sangue ou riquezas para ajudar povos de outra civilização a lutar numa guerra de linha de fratura. A única exceção pardal desse padrão civilizacional foram os Estados Unidos, cujos dirigentes favoreceram retoricamente os muçulmanos. Na prática, entretanto, o apoio norte-americano foi limitado. O governo Clinton autorizou o emprego de poder aéreo norte-americano, mas não de tropas no solo, para proteger as áreas de refúgio das Nações Unidas, 368 e advogou o término do boicote de armas. Ele não pressionou com energia seus aliados para que apoiassem essa diretriz, mas coonestou tanto os embarques iranianos de armas para os bósnios como o finan¬ ciamento saudita para as compras de armamentos pelos bósnios, e, em 1994, parou de acatar o boicote. 52 Com esse comportamento, os Estados Unidos antagonizaram seus aliados e deram lugar ao que se via de maneira geral como uma grande crise dentro da OTAN. Depois que foram assinados os acordos de Dayton, os Estados Unidos concordaram em cooperar com a Arábia Saudita e outros países muçulmanos para treinar e equipar as forças bósnias. A pergunta então é a seguinte: por que, durante e depois da guerra, os Estados Unidos foram o único país a romper com o molde civilizacional e se tornar o único país não-muçulmano a promover os interesses dos muçulmanos da Bósnia e trabalhar com os países muçulmanos em seu favor? O que explica essa anomalia norte-americana? Uma possibilidade é a de que, na realidade, não tenha sido uma anomalia, mas sim uma conduta cuidadosamente calculada de realpolitik civilizacional. Ao se pôr do lado dos bósnios e propor, sem êxito, que se terminasse o boicote, os Estados Unidos estavam tentando reduzir a influência de países muçulmanos fundamentalistas, como Irã e Arábia Saudita, junto aos bósnios, até então seculares e orientados para a Europa. Contudo, se esse foi o motivo por que os Estados Unidos assentiram à ajuda iraniana e saudita, por que não se empenharam com mais vigor para que se terminasse o boicote, que teria legitimado a ajuda ocidental? Por que os funcionários norte-americanos não fizeram advertências públicas sobre os perigos do fundamentalismo islâmico nos Bálcãs? Uma explicação alternativa para o comportamento norte-americano é que o governo norte-americano estava sob pressão de seus amigos no mundo islâmico, mais especialmente a Turquia e a Arábia Saudita, e aquiesceu aos seus desejos a fim de preservar as boas relações com eles. Entretanto, essas relações estão baseadas nas convergências de interesses que não têm nenhuma vinculação com a Bósnia, e provavelmente não seriam prejudicadas pelo fato de os Estados Unidos não ajudarem a Bósnia. Além disso, esse raciocínio não explica por que os Estados Unidos aprovaram implicitamente que enormes quantidades de armamentos iranianos en¬ trassem na Bósnia numa época em que estavam confrontando o Irã em outras frentes e a Arábia Saudita estava competindo com o Irã por adquirir influência na Bósnia. Conquanto considerações de realpolitik civilizacional possam ter tido algum papel na definição das atitudes norte-americanas, outros fatores parecem ter tido maior influência. Em qualquer conflito entre terceiros, os norte-americanos querem identificar as forças do bem e as forças do mal e se alinhar com as primeiras. As atrocidades dos sérvios no início da guerra levaram-nos a serem retratados como os “maus”, matando inocentes e perpetrando genocídio, enquanto os bósnios conseguiram promover uma imagem de si mesmos como vítimas impo¬ tentes. Durante toda a guerra, a imprensa norte-americana dedicou pouca atenção às limpezas étnicas e crimes de guerra por parte de croatas e muçulmanos, ou às violações de áreas de refúgio das Nações Unidas e de acordos de cessar-fogo pelas forças bósnias. Para os norte-americanos, os bósnios se tornaram, para usar a expressão de Rebecca West, seu “povo balcânico favorito, implantado nos seus corações como sofredores e inocentes, etemamente sendo massacrados e nunca massacradores”. 53 As elites norte-americanas tinham uma predisposição favorável para com os bósnios porque gostavam da idéia de um país multicultural e, nas etapas iniciais da guerra, o governo bósnio conseguiu promover essa imagem. Durante toda a guerra, a política norte-americana se manteve teimosamente empenhada por uma Bósnia multiétnica, apesar do fato de que os sérvios da Bósnia e os croatas da Bósnia a rejeitaram de forma ampla. Embora a criação de um Estado multiétnico fosse obviamente impossível se um grupo étnico estava cometendo genocídio contra outro, como elas também acreditavam, as elites norte-americanas combinaram em suas mentes essas imagens contraditórias para chegar a uma simpatia generali¬ zada pela causa bósnia. O idealismo, o moralismo, os instintos humani¬ tários, a ingenuidade e a ignorância dessas elites norte-americanas a respeito dos Bálcãs levaram-nas assim a serem pró-bósnios e anti-sérvios. Ao mesmo tempo, a falta tanto de significativos interesses de segurança norte-americanos na Bósnia como de qualquer conexão cultural não dava ao governo norte-americano razão alguma para fazer muito no sentido de ajudar os bósnios, a não ser permitir que os iranianos e os sauditas os armassem. Ao se recusar a identificar a guerra pelo que ela era, o governo norte-americano alienou seus aliados, prolongou a luta e ajudou a criar nos Bálcãs um Estado muçulmano fortemente influenciado pelo Irã. No final, os bósnios sentiam uma profunda amargura para com os Estados Unidos, que tinham falado bonito mas feito pouco, e uma profunda gratidão por seus afins muçulmanos, que tinham comparecido com o dinheiro e as armas necessários para que eles sobrevivessem e conseguissem vitórias militares. Bernard-Henri Lévy comentou, e um editor saudita concordou, que “A Bósnia é a nossa Espanha. A guerra na Bósnia-Herzegovina tornou-se o equivalente emocional da luta contra o fascismo na Guerra Civil Espanhola. Os que morreram são considerados mártires que tentaram salvar seus irmãos muçulmanos.” 54 A comparação é apropriada. Numa era das civilizações, a Bósnia é a Espanha de todos. A Guerra Civil Espanhola foi uma guerra entre ideologias e sistemas políticos; a Guerra da Bósnia é uma guerra entre civilizações e religiões. Democratas, comunistas e fascistas foram para a Espanha a fim de lutar ao lado de seus irmãos ideológicos, e os governos democráticos, comunistas e, de forma mais ativa, fascistas proporcionaram ajuda. As guerras iugoslavas viram uma maciça mobilização análoga de apoio externo pelos cristãos ocidentais, cristãos ortodoxos e muçulmanos em favor de seus afins civilizacionais. As principais potências da Ortodoxia, do Islã e do Ocidente ficaram todas profundamente envolvidas. Depois de quatro anos, a Guerra Civil Espanhola chegou ao seu final com a vitória das forças de Franco. As guerras entre as comunidades religiosas nos Bálcãs podem se reduzir e até cessar temporariamente, porém não há proba¬ bilidade de que qualquer lado consiga uma vitória decisiva, e a falta de vitória significa a falta de final. A Guerra Civil Espanhola foi o prelúdio da II Guerra Mundial. A Guerra da Bósnia é mais um episódio sangrento de um choque continuado de civilizações. Como se Param as Guerras de Linha de Fratura “Toda guerra tem que terminar.” Esta é a sabedoria convencional. Ela se aplica a guerras de linha de fratura? Sim e não. A violência de linha de fratura pode cessar por completo durante certo período de tempo, porém raramente ela termina de modo permanente. As guerras de linha de fratura são marcadas por freqüentes tréguas, cessar-fogos, armistícios, mas não por tratados abrangentes de paz que solucionem questões políticas fundamentais. Elas têm essa característica de pára-e-recomeça porque têm suas raízes em conflitos profundos de linha de fratura, que envolvem relações antagônicas duradouras entre grupos de civilizações diferentes. Os conflitos, por sua vez, provêm de proximidade geográfica, religiões e culturas diferentes, estruturas sociais separadas e recordações históricas das duas sociedades. No decurso de séculos, tudo isso pode evoluir e o conflito subjacente pode se evaporar. Ou o conflito pode desaparecer de forma rápida e brutal se um grupo extermina o outro. Entretanto, se nenhuma dessas duas hipóteses acontecer, o conflito prossegue, bem como os repetidos períodos de violência. As guerras de linha de fratura sào intermitentes; os conflitos de linha de fratura são intermináveis. Até mesmo uma parada temporária numa guerra de linha de fratura geralmente depende de duas ocorrências. A primeira é a exaustão dos participantes primários. Em algum momento, quando as baixas subiram a dezenas de milhares, os refugiados a centenas de milhares e as cidades _Beirute, Grozny, Vukovar — foram reduzidas a escombros, as pessoas gritam “isso é loucura, isso é loucura, já basta”, os radicais de ambos os lados já não conseguem mobilizar a fúria popular, as negociações que vinham se arrastando improdutivamente há anos recobram vitalidade e os moderados se reafirmam e chegam a algum tipo de entendimento para deter a carnificina. Ao se chegar à primavera de 1994, a guerra de seis anos em torno de Nagorno-Karabakh tinha “exaurido” tanto armênios como azerbaijanos e, por conseguinte, eles concordaram com uma trégua. No outono de 1995, analogamente noticiou-se que, na Bósnia, “todos os lados estão exaustos”, e vieram os acordos de Dayton. 55 Entretanto essas paradas são autolimitativas, elas apenas habilitam ambos os lados a descansar e recompletar seus recursos. Então, quando um dos lados vê a oportunidade de ganho, a guerra recomeça. Para se conseguir uma pausa temporária também é necessário um segundo fator: o envolvimento de participantes de outro nível que não o primário, com o interesse e a força para obrigar as partes em luta a dialogarem. As guerras de linha de fratura quase nunca são detidas por negociações diretas entre as partes primárias isoladamente e só raramente através de mediação de partes desinteressadas. O distanciamento cultural, os ódios intensos e a violência mútua que se infligiram uma à outra tornam extremamente difícil para as partes primárias sentar-se e se engajar num debate produtivo em busca de alguma forma de cessar-fogo. As questões políticas subjacentes, quem controla que território e pessoas, e em que termos, ficam vindo à tona e impedem um acordo sobre questões mais limitadas. Os conflitos entre países ou grupos com uma cultura comum podem, às vezes, ser resolvidos através da mediação por uma terceira parte desinteressada que compartilhe dessa cultura, tenha uma legitimi¬ dade reconhecida no âmbito dessa cultura e, por conseguinte, possa ter a confiança de ambas as partes de que encontrará uma solução baseada nos valores dessa cultura. O Papa pôde mediar com êxito na controvérsia de fronteira argentino-chilena. Em conflitos entre grupos de civilizações diferentes, entretanto, não há partes desinteressadas. É extremamente difícil encontrar uma pessoa, uma instituição ou um Estado que ambas as partes considerem ser de confiança. Qualquer mediador em potencial pertence a uma das civilizações em conflito ou a uma terceira civilização, ainda com uma outra cultura ou outros interesses, que não inspira confiança em nenhuma das partes em conflito. O Papa não será chamado pelos chechenos e pelos russos, ou pelos tâmiles e cingaleses. Geralmen¬ te, também os organismos internacionais não são aceitáveis porque carecem da capacidade de impor custos significativos ou de oferecer benefícios significativos às partes. As guerras de linha de fratura são terminadas não por indivíduos, grupos ou organizações desinteressados, mas sim por partes secundárias e terciárias interessadas, que acorreram em apoio de seus afins e têm a capacidade, por um lado, de negociar acordos com suas contrapartes e, por outro, de induzir seus afins a aceitarem esses acordos. Conquanto o congregar intensifique e prolongue a guerra, de modo geral é uma condição necessária, embora não suficiente, para limitar e fazer cessar a guerra. Os elementos secundários e terciários que se congregam geral¬ mente não querem ser transformados em combatentes de nível primário e por isso tentam manter a guerra sob controle. Eles também têm interesses mais diversificados do que os participantes primários, que estão exclusivamente concentrados na guerra, e se preocupam com outras questões em suas relações mútuas. Portanto, em algum momento eles provavelmente verão que é do seu interesse parar a luta. Como eles se congregaram do lado de seus afins, têm influência sobre estes. Os que se congregam se transformam assim nos que contêm e fazem parar. Guerras em que não haja partes secundárias nem terciárias têm menor probabilidade de se expandir do que as outras, mas são mais difíceis de serem paradas, como o sào as guerras entre grupos de civilizações que carecem de Estados-núcleos. As guerras de linha de fratura que envolvem uma insurreição dentro de um Estado estabelecido e que carecem de elementos significativos que se congreguem também constituem problemas especiais. Se a guerra prossegue por um determi¬ nado período, as exigências dos insurretos tendem a aumentar de alguma forma de autonomia para a independência completa, que o governo rejeita. Geralmente, o governo exige que os insurretos deponham as armas como um primeiro passo para fazer cessar a luta, o que é rejeitado pelos insurretos. O governo, também naturalmente, resiste ao envolvi¬ mento de elementos de fora no que ele considera um problema puramente interno, envolvendo “criminosos”. A definição de questão 2"72 interna também dá a outros Estados o pretexto para não se envolverem, como foi o caso das potências ocidentais em relação à Chechênia. Esses problemas se complicam quando as civilizações envolvidas carecem de Estados-núcleos. A guerra no Sudão, por exemplo, que começou em 1956, foi parada em 1972, quando as partes estavam exaustas, e o Conselho Mundial de Igrejas e o Conselho Pan-africano de Igrejas, numa conquista virtualmente única para organizações internacio¬ nais não-govemamentais, tiveram êxito em negociar o acordo de Adis- Abeba, que outorgou autonomia ao Sudão meridional. Entretanto, uma década depois, o governo revogou o acordo, a guerra recomeçou, os insurretos ampliaram seus objetivos, a posição do governo se endureceu e os esforços por negociar outra parada fracassaram. Nem o mundo árabe nem a África tinham Estados-núcleos com o interesse e a força para pressionar os participantes. Os esforços de mediação de Jimmy Cárter e diversos líderes africanos não teve resultado, como tampouco tiveram os esforços de uma comissão de Estados da África Oriental, composta por Quênia, Eritréia, Uganda e Etiópia. Os Estados Unidos, que têm relações profundamente antagônicas com o Sudão, não podiam atuar diretamente, e tampouco podiam pedir ao Irã, ao Iraque ou à Líbia, que têm estreitas relações com o Sudão, que desempenhassem papéis ativos. Em conse- qüência, eles ficaram reduzidos a recorrer à Arábia Saudita, mas a influência saudita sobre o Sudão era limitada. 5 ^ De modo geral, as negociações para um cessar-fogo são beneficia¬ das na medida em que haja um envolvimento relativamente paralelo e equilibrado das partes secundárias e terciárias de ambos os lados. Contudo, em algumas circunstâncias, um único Estado-núcleo pode ser suficientemente forte para produzir uma parada. Em 1992, a Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE) tentou mediar na guerra Armênia-Arzebaijão. Uma comissão — o Grupo de Minsk — foi criada, incluindo partes primárias, secundárias e terciárias do conflito (armênios de Nagorno-Karabakh, a Armênia, o Arzebaijão, a Rússia e a Turquia), e mais a França, a Alemanha, a Itália, a Suécia, a República Checa, a Bielo-Rússia e os Estados Unidos. Afora os Estados Unidos e a França, com consideráveis diásporas armênias, esses últimos países tinham pouco interesse, e pouca ou nenhuma capacidade, de produzir um fim para a guerra. Quando as duas partes terciárias — a Rússia e a Turquia —, além dos Estados Unidos, se puseram de acordo sobre um plano, ele foi rejeitado pelos armênios de Nagorno-Karabakh. Entretanto a Rússia patrocinou independentemente uma longa série de negociações em Moscou entre a Armênia e o Azerbaijão, que “criou uma alternativa para o Grupo de Minsk e (...) desse modo dissipou o esforço da comunidade internacional”. 57 No final, depois que os litigantes primários tinham ficado exaustos e os russos haviam obtido o apoio do Irã para as negociações, o esforço russo produziu um cessar-fogo. Na condição de partes secun¬ dárias, a Rússia e o Irã também cooperaram nas tentativas, com êxitos intermitentes, para conseguir um cessar-fogo no Tadjiquistão. A Rússia será uma presença constante no Transcáucaso e terá a capacidade de fazer respeitar o cessar-fogo por ela patrocinado enquanto ela tiver interesse em fazê-lo. Isso contrasta com a situação dos Estados Unidos em relação à Bósnia. Os acordos de Dayton foram montados sobre propostas que tinham sido desenvolvidas pelo Grupo de Contato dos Estados-núcleos interessados (Alemanha, Grã-Bretanha, França, Rús¬ sia e Estados Unidos), porém nenhuma das outras partes terciárias esteve intimamente envolvida na elaboração do acordo final, e duas das três partes primárias da guerra ficaram à margem das negociações, A impo¬ sição da observância do acordo fica a cargo de uma força da OTAN dominada pelos norte-americanos. Se os Estados Unidos retirarem suas tropas da Bósnia, nem as potências européias nem a Rússia terão incentivos para continuar a implementar o acordo; o governo bósnio, os sérvios e os croatas terão todos os incentivos para reiniciar a luta uma vez que se tenham recuperado; e os governos sérvio e croata serão tentados a aproveitar a oportunidade de concretizar seus sonhos de uma Grande Sérvia e de uma Grande Croácia. Robert Putnam salientou a medida em que as negociações entre os Estados são “jogos em dois níveis”, nos quais os diplomatas negociam simultaneamente com os grupos de interesse dentro de seu próprio país e com seus equivalentes no outro país. Numa análise paralela, Huntington demonstrou que, num governo autoritário, os reformistas que estejam negociando uma transição para a democracia com moderados na oposi¬ ção também precisam negociar com os linhas-duras de dentro do governo, ou então neutralizá-los, da mesma forma que os moderados precisam negociar com os radicais na oposição. 58 Esses jogos em dois níveis envolvem no mínimo quatro participantes e pelo menos três linhas de relacionamento entre si, e muitas vezes quatro dessas linhas. Entre¬ tanto, uma guerra de linha de fratura complexa é um jogo em três níveis, com pelo menos seis partes e pelo menos sete relações entre elas (ver Figura 11.1). As relações horizontais que atravessam as linhas de fratura existem entre pares de partes primárias, secundárias e terciárias. As relações verticais existem entre as partes nos diferentes níveis dentro de cada civilização. Assim sendo, para se conseguir uma parada na luta numa guerra de “modelo completo”, é preciso: • envolvimento ativo das partes secundárias e terciárias; • negociação pelas partes terciárias dos termos amplos para fazer parar a luta; • emprego pelas partes terciárias de recompensas e penalidades para conseguir que as partes secundárias aceitem esses termos e pressionem as partes primárias para que os aceitem; • retirada pelas partes secundárias do seu apoio às partes primárias, e, na realidade, traição a estas últimas; • como resultado dessa pressão, a aceitação dos termos pelas partes primárias, os quais, evidentemente, elas violarão quando acharem que é do seu interesse fazê-lo. O processo de paz na Bósnia envolveu todos esses elementos. Os esforços de atores individuais, dos Estados Unidos, da Rússia, da União Européia, para produzir um acordo se notabilizaram pelo fracasso. As potências ocidentais relutavam em incluir a Rússia como parceiro pleno no processo. Os russos protestaram energicamente contra sua exclusão, argumentando que tinham laços históricos com os sérvios e também interesses mais diretos nos Bálcãs do que qualquer outra das principais potências. A Rússia insistiu em participar plenamente dos esforços para resolver os conflitos e condenou energicamente a “tendência por parte dos Estados Unidos de ditar seus próprios termos”. A necessidade de incluir os russos ficou clara em fevereiro de 1994, Sem consultar a Rússia, a OTAN deu um ultimato a os sérvios da Bósnia para que retirassem seu armamento pesado do perímetro em tomo de Sarajevo sob pena de ataques aéreos. Os sérvios resistiram a essa exigência e parecia provável um encontro violento com a OTAN. Yeltsin advertiu que “algumas pessoas estão tentando resolver a questão da Bósnia sem a participação da Rússia” e “nós não permitiremos isso”. O governo russo então tomou a iniciativa e persuadiu os sérvios a retirarem seu armamento caso a Rússia colocasse tropas de manutenção de paz na área de Sarajevo. Esse golpe diplomático evitou a escalada da violência, demonstrou ao Oci¬ dente o poder russo sobre os sérvios e levou tropas russas para o coração da área em disputa entre os muçulmanos da Bósnia e os sérvios da Bósnia.59 Por meio dessa manobra, a Rússia de fato fez valer sua reivindicação de “parceria em igualdade de condições” com o Ocidente no tratamento da questão da Bósnia. Não obstante, em abril, a OTAN mais uma vez autorizou o bombar¬ deio de posições sérvias sem consultar a Rússia. Isso produziu uma imensa reação negativa em todo o espectro político russo e reforçou a oposição nacionalista contra Yeltsin e Kozyrev. Imediatamente depois disso, as potências terciárias relevantes — Grã-Bretanha, França, Alema¬ nha, Rússia e Estados Unidos — constituíram o Grupo de Contato para estruturar um acordo. Em junho de 1994, o grupo produziu um plano que atribuía 51 por cento da Bósnia a uma federação muçulmano-croata e 49 por cento aos sérvios da Bósnia. Esse plano tomou-se a base para o posterior acordo de Dayton. No ano seguinte, foi preciso acertar providências para a participação de tropas russas na imposição da Observância dos acordos de Dayton. É preciso convencer as partes secundárias e primárias dos acordos entre as partes terciárias. Como disse o diplomata russo Vitaly Churkin, os norte-americanos precisam aplicar pressão sobre os bósnios, os alemães sobre os croatas e os russos sobre os sérvios. 60 Nas etapas iniciais das guerras iugoslavas, a Rússia fez uma monumental concessão ao concordar com as sanções econômicas contra a Sérvia, Na qualidade de país afim, no qual os sérvios podiam confiar, a Rússia também foi algumas vezes capaz de impor limitações aos sérvios e pressioná-los a aceitar acomodações que de outro modo eles rejeitariam. Em 1995, por exemplo, a Rússia, juntamente com a Grécia, intercedeu junto aos sérvios da Bósnia para obter a libertação de soldados holandeses da força de paz que tinham sido tomados como reféns. Em algumas ocasiões, porém, os sérvios da Bósnia voltaram atrás em acordos que tinham feito sob pressão russa, com o que criaram embaraços para a Rússia, por não ter sido capaz de levar seus afins a cumprirem o acordado. Em abril de 1994, por exemplo, a Rússia obteve a concordância dos sérvios da Bósnia para cessarem seu ataque a Goradze, mas depois os sérvios violaram o acordo. Os russos ficaram furiosos. Um diplomata russo disse que os sérvios da Bósnia “tinham ficado loucos pela guerra”, Yeltsin insistiu que “a liderança sérvia precisa cumprir com a obrigação que assumiu com a Rússia” e a Rússia retirou suas objeções aos ataques aéreos pela OTAN 61 Embora apoiassem e fortalecessem a Croácia, a Alemanha e outros Estados ocidentais também eram capazes de conter o comportamento croata. O presidente Tudjman estava profundamente empenhado em que seu país católico fosse aceito como um país europeu e admitido em organizações européias. As potências ocidentais exploraram o apoio diplomático, econômico e militar que davam à Croácia e o desejo croata de ser aceito no “clube” para induzir Tudjman a aceitar acomodações em relação a muitas questões. Em março de 1995, foi dito a Tudjman que, se ele queria fazer parte do Ocidente, precisava permitir que a Força de Proteção das Nações Unidas permanecesse em Krajina. Um diplomata ocidental comentou que “é muito importante para Tudjman poder juntar-se ao Ocidente. Ele não quer ser deixado sozinho com os sérvios e os russos”. Ele também foi advertido a restringir a limpeza étnica quando suas tropas conquistassem território em Krajina e em outras áreas habitadas por sérvios e a abster-se de estender sua ofensiva à Eslavônia Oriental. Numa outra questão, foi dito aos croatas que, se eles não integrassem a federação com os muçulmanos, “a porta para o Ocidente lhes será fechada para sempre”, nas palavras de um funcionário norte- americano.^ 2 Na condição de principal fonte externa de apoio financeiro da Croácia, a Alemanha estava numa posição particularmente forte para influir sobre o comportamento croata. O estreito relacionamento que os Estados Unidos haviam desenvolvido com a Croácia também ajudou a evitar, pelo menos durante 1995, que Tudjman implementasse seu desejo, freqüentemente expressado, de efetuar a partição da Bósnia-Herzegovina entre a Croácia e a Sérvia. Ao contrário da Rússia e da Alemanha, os Estados Unidos careciam de aspectos culturais em comum com seu cliente bósnio e por isso estavam numa posição fraca para pressionar os muçulmanos a aceitarem uma acomodação. Além disso, à parte a retórica, os Estados Unidos apenas ajudaram os bósnios fazendo vistas grossas às violações do boicote de armas pelo Irã e por outros Estados muçulmanos. Conseqüentemente, os muçul¬ manos da Bósnia se sentiam cada vez mais gratos à comunidade islâmica em geral e cada vez mais identificados com ela. Ao mesmo tempo, condenavam os Estados Unidos por adotar “dois pesos e duas medidas” e não repelir a agressão contra eles como haviam feito no Kuwait. O fato de se fazerem de vítimas tomou ainda mais difícil para os Estados Unidos pressioná-los a acederem a acomodações. Nessas circunstâncias, eles puderam rejeitar as propostas de paz, aumentar seu poderio militar com a ajuda de seus amigos muçulmanos e acabaram por tomar a iniciativa e retomar parte considerável do território que haviam perdido. A resistência à acomodação é intensa entre as partes primárias. Na Guerra do Transcáucaso, a ultranacionalista Federação Revolucionária Armênia (Dashnak), que tinha muita força na diáspora armênia, dominou a entidade Nagomo-Karabakh, rejeitou a proposta de paz turco-russo- norte-americana de maio de 1993 — aceita pelos governos da Armênia e do Azerbaijão —, empreendeu ofensivas militares que provocaram acusações de limpeza étnica, suscitaram a perspectiva de uma guerra mais ampla e pioraram seu relacionamento com o governo armênio, mais moderado. O êxito da ofensiva em Nagorno-Karabakh causou problemas para a Armênia, que estava ansiosa por melhorar suas relações com a Turquia e o Irã a fim de atenuar a escassez de alimentos e energia resultante da guerra e do bloqueio turco. Um diplomata ocidental comentou que “quanto melhor vão as coisas em Karabakh, mais difícil fica para Yerevan”. 63 O presidente da Armênia, Levon Ter-Petrossian, tal como o presidente Yeltsin, tinha que equilibrar as pressões dos na¬ cionalistas em sua legislatura com os interesses mais amplos da política externa em apaziguar outros países e, no final de 1994, seu governo expulsou da Armênia o partido Dashnak. Do mesmo modo que os armênios de Nagorno-Karabakh, os sérvios da Bósnia e os croatas da Bósnia adotaram posições de linha-dura. Em conseqüência, quando os governos croata e sérvio foram pressionados para ajudar no processo de paz, surgiram problemas nas suas relações com seus afins na Bósnia. Com os croatas esses problemas foram menos graves, quando os croatas da Bósnia concordaram na forma, senão na prática, em se juntar à federação com os muçulmanos. Em contraste, o conflito entre o presidente Milosevic e o líder sérvio da Bósnia, Radovan Karadzic, se tomou mais intenso e público, impelido por antagonismo pessoal. Em agosto de 1994, Karadzic rejeitou o plano de paz que havia sido aprovado por Milosevic. O governo sérvio, ansioso para que acabassem as sanções, anunciou que estava cortando todo o comércio com os sérvios da Bósnia, com exceção de alimentos e medicamentos. Em troca, as Nações Unidas atenuaram suas sanções contra a Sérvia. No ano seguinte, Milosevic permitiu que o exército croata expulsasse os sérvios de Krajina, e forças croatas e muçulmanas os forçaram a retornar para o noroeste da Bósnia. Ele também concordou com Tudjman para permitir o restabelecimento gradual do controle croata sobre a Eslavônia Oriental, ocupada pelos sérvios. Com a aprovação das grandes potências, ele então de fato “levou” os sérvios da Bósnia para as negociações de Dayton, incorporando-os à sua delegação. As ações de Milosevic conduziram ao fim das sanções das Nações Unidas contra a Sérvia. Elas também lhe valeram a aprovação de uma comunidade internacional um tanto surpresa. O belicoso nacionalista, agressivo, promotor da limpeza étnica e da Grande Sérvia de 1992 transformara-se no promotor da paz de 1995. Entretanto, para muitos sérvios, ele havia se transformado num traidor. Ele foi condenado em Belgrado por nacionalistas sérvios e líderes da Igreja Ortodoxa e foi duramente acusado de traição pelos sérvios da Bósnia e de Krajina. Nisso, é claro, eles reproduziram as acusações dos colonos da Margem Ociden¬ tal desferidas contra o governo israelense por seu acordo com a OLP. A traição dos afins é o preço da paz numa guerra de linha de fratura. A exaustão da guerra e os incentivos e pressões de partes terciárias obrigam a mudanças nas partes secundárias e primárias. Ou os modera¬ dos substituem no poder os extremistas, ou os extremistas, como Milosevic, vêem que é do seu interesse tomar-se moderados. Eles o fazem, porém, correndo certos riscos. Aqueles que são vistos como traidores despertam ódio muito mais apaixonado do que os inimigos. Os líderes dos muçulmanos de Caxemira, dos chechenos e dos cingaleses em Sri Lanka tiveram o destino de Sadat e Rabin por trair a causa e tentar encontrar uma solução de acomodação com o arquiinimigo. Em 1914, um nacionalista sérvio assassinou um arquiduque austríaco. Na esteira de Dayton, seu alvo mais provável seria Slobodan Milosevic. Um acordo para pôr termo a uma guerra de linha de fratura terá êxito, ainda que apenas temporário, na medida em que refletir o equilíbrio de poder local entre as partes primárias e os interesses das partes terciárias e secundárias. A divisão da Bósnia em 51 e 49 por cento não era viável em 1994, quando os sérvios controlavam 70 por cento do país. Ela se tornou viável quando as ofensivas croata e muçulmana reduziram o controle sérvio a quase a metade. O processo de paz também foi auxiliado pela limpeza étnica que foi realizada, com os sérvios reduzidos a menos de três por cento da população da Croácia e membros de todos os três grupos ficando separados dentro da Bósnia, violenta ou voluntariamente. Além disso, as partes secundárias e terciárias, estas últimas muitas vezes os Estados-núcleos das civilizações, precisam ter reais interesses de segurança ou comunitários numa guerra, a fim de patrocinarem uma solução viável. Os participantes primários não podem, sozinhos, fazer parar guerras de linha de fratura. Fazê-las parar ou impedir sua escalada em guerras globais depende precipuamente dos interesses e das ações dos Estados-núcleos das principais civilizações do mundo. As guerras de linha de fratura borbulham de baixo para cima, as pazes de linha de fratura escorrem em gotas de cima para baixo. 380 0 Futuro das Civilizações Capítulo 12 O Ocidente, as Civilizações e a Civilização A RENOVAÇÃO DO OCIDENTE? A história chega ao fim pelo menos uma vez e, ocasionalmente, com maior freqüência na história de cada civilização. Quando surge o Estado universal de uma civilização, seu povo fica cego pelo que Toynbee denominou “a miragem da imortalidade”, e convicto de que a sua é a forma definitiva da sociedade humana. Assim foi com o Império Romano, o Califado dos Abassidas, o Império Mogol e o Império Otomano. Os cidadãos de um desses Estados universais, “desafiando fatos aparentemente óbvios, (...) tendem a considerá-lo não apenas como um abrigo noturno no descampado, mas como a Terra Prometida, a meta dos empreendimentos humanos”. O mesmo se aplicava no auge da Pax Britannica . Para a classe média inglesa em 1897, “a História, tal como a viam, tinha terminado. (...) E tinham todos os motivos para se felicitar pelo estado permanente de felicidade ante essa conclusão que a História lhes havia outorgado”. 1 Entretanto, as sociedades que supõem que a sua história chegou ao fim geralmente são as sociedades cuja história está prestes a entrar em declínio. Será o Ocidente uma exceção a esse padrão? As duas indagações- chave foram formuladas por Melko: 383 Primeira: será a civilização ocidental uma nova espécie, numa categoria própria, incomparavelmente diferente de todas as outras civilizações que existiram até hoje? Segunda: será que sua expansão por todo o mundo apresenta o risco (ou a promessa) de acabar com a possibilidade de desenvolvimento de quaisquer outras civilizações ? 2 Muito naturalmente, a inclinação da maioria dos ocidentais é de respon¬ der afirmativamente a ambas as perguntas. E talvez tenham razão. Entretanto, no passado, os povos de outras civilizações pensaram da mesma forma, e pensaram errado, É óbvio que o Ocidente difere de todas as outras civilizações anteriores pelo fato de que ele produziu um impacto avassalador sobre todas as outras civilizações que existiram a partir de 1500. Ele também inaugurou os processos de modernização e de industrialização, que se tornaram mundiais, e, em conseqüência, as sociedades em todas as outras civilizações têm tentado alcançar o Ocidente em riqueza e modernidade. Contudo, será que essas características do Ocidente significam que os seus padrões prevaleceram em todas as outras civilizações? As provas da História e os julgamentos dos estudiosos da história comparativa das civilizações sugerem algo diferente. O desenvolvimento do Ocidente até hoje não se afastou de modo significativo dos padrões evolutivos comuns às civilizações ao longo da História. O Ressurgimento Islâmico e o dinamismo econômico da Ásia demonstram que outras civilizações estão vivas e atuantes e, pelo menos em termos potenciais, constituindo uma ameaça para o Ocidente. Uma guerra de grandes proporções entre o Ocidente e os Estados-núcleos de outras civilizações não é inevitável, mas poderia ocorrer. Alternativamente, o declínio gradual e irregular do Ocidente, que se iniciou no começo do século XX, poderia continuar durante as próximas décadas ou os próximos séculos. Ou o Ocidente poderia passar por um período de revitalização, inverter o declínio de sua influência nos assuntos mundiais e reconfirmar sua posição de líder que as outras civilizações seguem e emulam. Carroll Quigley, na que provavelmente é a mais útil periodização da evolução das civilizações históricas, vê um padrão comum de sete fases 3 (ver p. 49). Segundo sua argumentação, a civilização ocidental começou gradualmente a tomar forma entre 370 e 750 d.C., através da mescla de elementos das culturas clássica, semítica, sarracena e bárbara. Seu período de gestação, que durou de meados do século VIII até o final do século X, foi seguido por um movimento, incomum entre as civiliza- 384 ções, de alternância das fases de expansão e fases de conflito. Segundo os seus termos, bem como os de outros estudiosos das civilizações, o Ocidente parece atualmente estar saindo de sua fase de conflito. A civilização ocidental tornou-se uma zona de segurança. As guerras “internas” no Ocidente, afora uma guerra fria ocasional, são virtualmente impensáveis. Como se argumentou no Capítulo 2, o Ocidente está desenvolvendo o seu equivalente de um império universal sob a forma de um complexo sistema de confederações, federações, regimes e outros tipos de instituições cooperativas que encarnam, no nível civilizacional, sua dedicação à política democrática e pluralista. Em suma, o Ocidente tornou-se uma sociedade madura que está entrando no que as gerações futuras, segundo o padrão repetitivo das civilizações, considerarão como uma “idade de ouro”, um período de paz decorrente, nos termos de Quigley, “da ausência de quaisquer unidades competidoras dentro do âmbito da própria civilização e do distanciamento, ou até mesmo inexistência, de lutas com outras sociedades de fora”. É também um período de prosperidade que decorre “do fim da destruição pela belige¬ rância interna, da redução das barreiras ao comércio interno, do es¬ tabelecimento de um sistema comum de pesos, medidas e moeda e de um extenso sistema de gastos governamentais associado com o es¬ tabelecimento de um império universal”. Em civilizações anteriores, essa fase de uma feliz idade de ouro, com suas visões de imortalidade, terminou de forma dramática e rápida com a vitória de uma sociedade externa, ou lentamente e de modo igualmente doloroso pela desagregação interna. O que acontece dentro de uma civilização é tão crucial para sua capacidade de resistir à destruição proveniente de fontes externas como para conter a deterioração vinda de dentro. Quigley argumentou em 1961 que as civilizações crescem porque dispõem de um “instrumento de expansão”, ou seja, organização militar, religiosa, política ou econômica que acumula os excedentes e os investe em inovações produtivas. As civilizações entram em declínio quando cessa “a aplicação dos excedentes a novas maneiras de fazer as coisas. Em termos modernos, dizemos que a taxa de investimentos diminui”. Isso acontece porque os grupos sociais que controlam os excedentes têm um interesse próprio em utilizá-los para “fins não-produtivos, mas que satisfazem ao ego (...), os quais destinam os excedentes para o consumo mas não proporcionam métodos de produção mais eficazes”. As pessoas vivem do seu capital e a civilização passa do estágio de Estado universal para o estágio de decadência. É um período de 385 depressão econômica aguda, padrões de vida em declínio, guerras civis entre os diversos interesses próprios e uma crescente falta de cultura. A sociedade fica cada vez mais fraca. Fazem-se em vão tentativas de parar com o desperdício através de legislação. Mas o declínio continua. Os segmentos religioso, intelectual, social e político da sociedade começam a perder a lealdade das massas em larga escala. Novos movimentos religiosos começam a se espalhar pela sociedade. Há uma relutância crescente em lutar pela sociedade ou até mesmo em sustentá-la pelo pagamento de impostos. A decadência leva então ao estágio da invasão, “quando a civilização, que já não é capaz de se defender porque não está mais disposta a se defender, fica inteiramente aberta a ‘invasores bárbaros’”, que muitas vezes provêm de “uma outra civilização, mais nova e mais poderosa”. 4 Entretanto, a lição mais importante da história das civilizações é a de que muitas coisas são prováveis, mas nada é inevitável. As civilizações podem se reformar e se renovar, como de fato já aconteceu. A questão fundamental para o Ocidente é se, inteiramente à parte de quaisquer desafios externos, ele é capaz de sustar e inverter os processos internos de decadência. Será o Ocidente capaz de se renovar ou a deterioração interna simplesmente acelerará o seu fim e/ou sua subordinação a outras civilizações mais dinâmicas econômica e demograficamente?* Em meados dos anos 90, o Ocidente tinha muitas características identificadas por Quigley como as de uma civilização madura à beira da decadência. Economicamente, o Ocidente era muito mais rico do que qualquer outra civilização, mas ele também tinha baixas taxas de crescimento econômico, de poupança e de investimentos, especialmente em comparação com as sociedades da Ásia Oriental. O consumo individual e coletivo tinha prioridade sobre a criação da capacidade para futuro poder econômico e militar. O crescimento natural da população era baixo, especialmente em comparação com o dos países islâmicos. Entretanto, nenhum desses problemas teria inevitavelmente conseqüên- cias catastróficas. As economias ocidentais ainda estavam crescendo. De * Numa previsão que bem pode estar correta, mas que, na realidade, não é sustentada por sua análise teórica e empírica, Quigley conclui: “A civilização ocidental não existia por volta de 500 d.C, existia em pleno vigor por volta do ano 1500 d.C. e certamente terá deixado de existir em algum ponto do futuro, talvez antes de 2500 d.C..” Segundo ele, novas civilizações na China e na índia, que substituirão as que o Ocidente destruiu, passarão então para seus estágios de expansão e ameaçarão as civilizações ocidental e ortodoxa. Carroll Quigley, The Evolution of Civilizations: An Introduction to Historical Analysis [A Evolução das Civilizações: uma Introdução à Análise Histórica] (Indianápolis: Liberty Press, 1979; inicialmente publicada por Macmillan em 1961), pp. 127, 164-66. 386 forma gerai, os povus uuuciu«fa estavam vivendo melhor. O Ocidente ainda era o líder em pesquisa científica e inovação tecnológica. Era improvável que as baixas taxas de nascimento fossem sanadas pelos governos (cujos esforços nesse sentido geralmente são ainda menos bem- sucedidos do que os esforços para reduzir o crescimento populacional). A imigração, porém, era uma fonte em potencial de novo vigor e capital humano, desde que fossem satisfeitas duas condições: a primeira, que se desse prioridade às pessoas capazes, qualificadas e empreendedoras, com os talentos e os conhecimentos de que necessitasse o país anfitrião; a segunda, que os novos imigrantes e seus filhos fossem assimilados nas culturas do país respectivo e do Ocidente. Os Estados Unidos tinham uma proba¬ bilidade de ter problemas para satisfazer a primeira condição e os países europeus para satisfazer a segunda. No entanto, adotar diretrizes regendo os níveis, fontes, características e assimilação de imigrantes está perfei¬ tamente dentro da experiência e competência dos governos ocidentais. Muito mais importantes do que a economia e a demografia são os problemas de declínio moral, suicídio cultural e desunião política no Ocidente. As manifestações freqüentemente apontadas de declínio moral abrangem: 1. aumento de formas de comportamento anti-social, como crime, uso de drogas e violência em geral; 2. decadência da família, inclusive índices mais elevados de divór¬ cio, ilegitimidade, gravidez de adolescentes e famílias de pai ou mãe sozinhos; 3- pelo menos nos Estados Unidos, um declínio de “capital social”, isto é, participação em associações voluntárias e confiança entre as pessoas ligadas a essa participação; 4. um debilitamento generalizado da “ética de trabalho” e aumento do culto à satisfação pessoal; 5. diminuição no empenho pelo aprendizado e pela atividade intelectual, manifestado nos Estados Unidos por níveis mais baixos de realização acadêmica. A futura saúde do Ocidente e sua influência sobre outras sociedades dependem, em grau considerável, do êxito que tenha em lidar com essas tendências, as quais, é claro, dão lugar a afirmações de superioridade moral por parte de muçulmanos e asiáticos. 387 A cultura ocidental é contestada por grupos dentro das sociedades ocidentais. Uma dessas contestações vem de imigrantes de outras civili¬ zações, que repudiam a assimilação e continuam a esposar e propagar os valores, costumes e culturas de suas sociedades de origem. Esse fenômeno é mais notável entre os muçulmanos na Europa, que cons¬ tituem, contudo, pequena minoria. Ele também se manifesta, em menor grau, entre os hispânicos nos Estados Unidos, que compõem uma grande minoria. Neste caso, se a assimilação fracassar, os Estados Unidos se tornarão um país rachado, com todo o potencial para a discórdia e a desunião internas que isso acarreta. Na Europa, a civilização ocidental também pode ser solapada pelo enfraquecimento de seu componente fundamental, o Cristianismo. Uma quantidade cada vez menor de euro¬ peus professa crenças religiosas, respeita práticas religiosas e participa de atividades religiosas. 5 Essa tendência reflete não tanto hostilidade para com a religião, mas sim uma indiferença por ela. Não obstante, os conceitos, práticas e valores cristãos permeiam a civilização européia. Um sueco comentou que “os suecos provavelmente são o povo menos religioso da Europa, mas não se pode de modo algum compreender esse país a menos que se perceba que nossas instituições, práticas sociais, famílias, política e estilo de vida são essencialmente moldados por nossa herança luterana”. Os norte-americanos, ao contrário dos europeus, de forma preponderante acreditam em Deus, se consideram um povo religioso e freqüentam a igreja em grande número. Embora não houvesse indícios de um ressurgimento da religião nos Estados Unidos em meados da década de 80, a década seguinte pareceu testemunhar uma intensifi¬ cação da atividade religiosa.^ A erosão do Cristianismo entre os ocidentais provavelmente será, na pior das hipóteses, uma ameaça de muito longo prazo para a saúde da civilização ocidental. Nos Estados Unidos, há um desafio mais imediato e mais perigoso. Do ponto de vista histórico, a identidade nacional norte-americana foi definida culturalmente pelo legado da civilização ocidental e politicamen¬ te pelo Credo norte-americano com o qual os norte-americanos concor¬ dam amplamente: liberdade, democracia, individualismo, igualdade pe¬ rante a lei, constitucionalismo, propriedade privada. No final do século XX, ambos os componentes da identidade norte-americana passaram a sofrer o ataque concentrado e contínuo de um número pequeno, porém influente, de intelectuais e editores. Em nome do multiculturalismo, atacaram a identificação dos Estados Unidos com a civilização ocidental, negaram a existência de uma cultura comum norte-americana e promo¬ veram outras identidades e agrupamentos raciais, étnicos e de outras culturas subnacionais. Nas palavras de um de seus relatórios, eles*' condenaram “o viés sistemático em direção à cultura européia e seus derivados” na educação e “o predomínio da perspectiva monocultural europeu-norte-americana”. Como disse Arthur Schlesinger Jr., os mul- ticulturalistas são “muitas vezes separatistas etnocêntricôs, que vêem pouca coisa no legado ocidental além dos crimes ocidentais”. Seu “estado de espírito é livrar os norte-americanos da pecaminosa herança européia e buscar infusões redentoras de culturas não-ocidentais”. 7 A tendência multicultural também se manifestou em vários dis¬ positivos legais que se seguiram às leis sobre direitos civis da década de 60 e, nos anos 90, o governo Clinton fez do estímulo à diversidade uma de suas metas principais. O contraste com o passado é impressionante. Os Pais da Pátria viam a diversidade como uma realidade e como um problema: daí o lema nacional — e pluribus unum — escolhido por um comitê do Congresso Continental composto por Benjamin Franklin, Thomas Jefferson e John Adams. Líderes políticos posteriores, que também receavam os perigos da diversidade racial, sectária, étnica, econômica e cultural (a qual, na verdade, produziu a maior guerra do século entre 1815 e 1914), responderam ao chamamento para que “nos unamos”, e fizeram da promoção da unidade nacional sua responsabilidade fundamental. Theo- dore Roosevelt advertiu que “o único meio seguro de levar este país à ruína, de impedir de forma absoluta qualquer possibilidade de que ele continue sendo uma nação, seria permitir que ele se tornasse um emaranhado de nacionalidades em querelas”. 8 Entretanto, nos anos 90, os dirigentes dos Estados Unidos não só permitiram como promoveram assiduamente a diversidade em vez da unidade do povo que governam. Como vimos, os dirigentes de outros países tentaram algumas vezes repudiar sua herança cultural e mudar a identidade de seu país de uma civilização para outra. Eles não tiveram êxito em nenhum caso até hoje e, em vez disso, criaram esquizofrênicos países divididos. De modo análogo, os multiculturalistas norte-americanos rejeitam a herança cultu¬ ral de seu país. Em vez de tentar identificar os Estados Unidos com outra civilização, porém, eles desejam criar um país de muitas civilizações, o que equivale a dizer um país que não pertence a nenhuma civilização e que carece de um núcleo cultural. A História mostra que nenhum país constituído desse modo pode manter por muito tempo uma sociedade coerente. Uns Estados Unidos multicivilizacionais não serão os Estados Unidos, e sim as Nações Unidas. Os multiculturalistas também contestaram um elemento funda¬ mental do Credo norte-americano, ao substituir os direitos dos indivíduos pelos direitos dos grupos, definidos sobretudo em termos de raça, etnia, sexo e preferência sexual. Na década de 40, Gunnar Myrdal disse, reforçando os comentários de observadores estrangeiros recuando até Hector St. John de Crèvecoeur e Alexis de Tocqueville, que o Credo tinha sido “o cimento na estrutura dessa grande e diversificada nação”. Richard Hofstader concordou, dizendo que “foi nosso destino como nação não ter ideologias, mas ser uma ideologia”. 9 O que acontecerá, então, aos Estados Unidos se essa ideologia for repudiada por uma parcela signifi¬ cativa de seus cidadãos? O destino da União Soviética, o outro grande país cuja unidade, mais ainda do que a dos Estados Unidos, foi definida em termos ideológicos, é um exemplo que deveria incutir sensatez nos norte-americanos. O filósofo japonês Takeshi Umehara aventou que “o completo fracasso do marxismo (...) e o espetacular esfacelamento da União Soviética são apenas os precursores do colapso do liberalismo ocidental, a principal corrente da modernidade. Longe de ser a alternativa do marxismo e a ideologia dominante no final da História, o liberalismo será a próxima pedra de dominó a cair”. 10 Numa era em que, por toda parte, os povos se definem em termos culturais, que lugar haverá para uma sociedade desprovida de um núcleo cultural e definida apenas por um credo político? Os princípios políticos são uma base volúvel para que sobre ela se construa uma comunidade duradoura. Num mundo multicivilizacional em que a cultura faz diferença, os Estados Unidos poderiam simplesmente ser o último remanescente de um mundo ocidental em que a ideologia fazia diferença, e que se está apagando. O repúdio do Credo e da civilização ocidental significa o fim dos Estados Unidos como nós o conhecemos. Ele também significa de fato o fim da civilização ocidental. Se os Estados Unidos forem desocidenta- lizados, o Ocidente ficará reduzido à Europa e a alguns países ultrama¬ rinos de colonização européia, de escassa população. Sem os Estados Unidos, o Ocidente se torna uma parte minúscula e em declínio da população mundial, numa península pequena e inconseqüente na extre¬ midade da massa continental eurasiana. O choque entre os multiculturalistas e os defensores da civilização ocidental e do Credo norte-americano é, para usar a expressão de James Kurth, “o choque verdadeiro ” dentro do segmento norte-americano da civilização ocidental. 11 Os norte-americanos não podem se esquivar da pergunta: somos um povo ocidental ou somos alguma outra coisa? O futuro dos Estados Unidos e o do Ocidente dependem de os norte-ame¬ ricanos reafirmarem sua dedicação à civilização ocidental. Internamente, isso implica rejeitar os divisivos cantos de sereia do multiculturalismo. Intemacionalmente, isso implica rejeitar os chamamentos enganosos e ilusórios para identificar os Estados Unidos com a Ásia. Quaisquer que sejam as conexões econômicas que possam existir entre eles, o hiato cultural fundamental entre as sociedades asiática e norte-americana impede que elas se unam num lar comum. Os norte-americanos cultu¬ ralmente fazem parte da família ocidental. Os multiculturalistas podem prejudicar e até destruir esse relacionamento, mas não podem substituí- lo. Quando os norte-americanos buscam suas raízes culturais, eles as encontram na Europa. Em meados da década de 90, ocorreu um novo debate sobre a natureza e o futuro do Ocidente, surgiu um reconhecimento renovado de que tal realidade existia e aumentou a preocupação com o que podería assegurar a continuidade de sua existência. Em parte isso germinou da percepção da necessidade de expandir a principal instituição ocidental, a OTAN, para incluir os países ocidentais do Leste, e da séria divisão que surgiu dentro do Ocidente sobre como responder ao esfacelamento da Iugoslávia. Isso também refletiu, de modo mais amplo, a ansiedade sobre a unidade futura do Ocidente na ausência de uma ameaça soviética e, em especial, o que isso significava para o engajamento dos Estados Unidos na Europa. À medida que os países ocidentais interagem cada vez mais com sociedades não-ocidentais cada vez mais poderosas, eles adquirem maior consciência do núcleo cultural ocidental em comum que os mantém unidos. Líderes de ambos os lados do Atlântico ressaltaram a necessidade de rejuvenescer a comunidade atlântica. No final de 1994 e em 1995, os ministros da Defesa alemão e britânico, os ministros do Exterior francês e norte-americano, Henry Kissinger e diversas outras figuras destacadas esposaram todos essa causa. Sua situação foi resumida pelo ministro da Defesa da Grã-Bretanha, Malcolm Rifkind, que, em novembro de 1994, sustentou a necessidade de “uma Comunidade Atlântica”, apoiada em quatro pilares: defesa e segurança corporificadas na OTAN, “crença compartilhada no império da lei e na democracia parlamentar”, “capitalismo liberal e livre comércio” e “a herança cultural européia compartilhada que emanou da Grécia e de Roma, passando pelo Renascimento, até os valores, crenças e civilização compartilhados de nosso próprio século”. 12 Em 1995, a Comissão Euro¬ péia lançou um projeto para “renovar” o relacionamento transatlântico, que levou à assinatura de um amplo pacto entre a União Européia e os Estados Unidos. Simultaneamente, muitos líderes políticos e empresariais europeus endossaram a criação de uma zona de livre comércio transa¬ tlântica. Embora a AFL-CIO se opusesse ao NAFTA e a outras medidas liberalizantes do comércio, seu dirigente apoiou calorosamente um acordo transatlântico de livre comércio desse tipo, que não ameaçaria os empregos norte-americanos com a competição vinda de países de baixos salários. Ele também foi apoiado por conservadores europeus (Margaret Thatcher) e norte-americanos (Newt Gingrich), assim como por líderes canadenses e britânicos. Como se argumentou no Capítulo 2, o Ocidente passou por uma primeira fase européia de desenvolvimento e expansão que durou vários séculos, e depois por uma segunda fase norte-americana no século XX. Se a América do Norte e a Europa renovarem sua vida moral, ampliarem seus aspectos culturais em comum e desenvolverem formas estreitas de integração econômica e política para suplementar sua colaboração em matéria de segurança na OTAN, elas poderiam gerar uma terceira fase euramericana de afluência econômica e influência política ocidental. Uma integração política significativa deteria de algum modo o declínio relativo da quota do Ocidente na população, no produto econômico e na capacidade militar do mundo, e revitalizaria o poderio do Ocidente aos olhos das outras civilizações. O primeiro-ministro Mahatir advertiu os asiáticos de que, “com seu poderio comercial, a confederação UE-NAFTA podería ditar suas condições para o resto do mundo”. 13 Entretanto o Ocidente vir a se unir política e economicamente dependerá sobretudo de os Estados Unidos reafirmarem sua identidade como uma nação ocidental e definirem seu papel global como líder da civilização ocidental. O Ocidente e o Mundo Um mundo no qual as identidades culturais — étnicas, nacionais, religiosas, civilizacionais — são fundamentais e as afinidades e diferenças culturais moldam as alianças, os antagonismos e as políticas dos Estados tem três implicações amplas para o Ocidente em geral e os Estados Unidos em particular. Em primeiro lugar, os estadistas só podem alterar a realidade de modo construtivo se a reconhecerem e a compreenderem. A política de cultura que está surgindo, o crescente poderio das civilizações não-oci- dentais e a atitude cada vez mais afirmativa dessas sociedades em termos de sua cultura indicam as forças culturais que estão fazendo os povos se juntarem e as que os estão separando. As elites norte-americanas, contudo, têm demorado a aceitar essas realidades que estão emergin¬ do e a lidar com elas. Os governos Bush e Clinton deram apoio à unidade da União Soviética, da Iugoslávia, da Bósnia e da Rússia multicivilizacio- nais, em vãs tentativas de deter as poderosas forças étnicas e culturais que impeliam para a desunião. Eles promoveram planos de integração econômica multicivilizacional que ou são inócuos, como a APEC, ou que envolvem grandes custos econômicos e políticos imprevistos, como aconteceu com o NAFTA e o México. Eles tentaram desenvolver íntimas relações com os Estados-núcleos de outras civilizações sob a forma de uma “parceria global” com a Rússia ou um “engajamento construtivo” com a China, desafiando os naturais conflitos de interesses entre os Estados Unidos e esses países. Ao mesmo tempo, o governo Clinton deixou de incluir a Rússia de forma plena na busca pela paz na Bósnia, apesar dos grandes interesses da Rússia nessa guerra na sua condição de Estado-núcleo da Ortodoxia. Perseguindo a quimera de um país multici¬ vilizacional, o governo Clinton negou a autodeterminação às minorias sérvia e croata e ajudou a que se formasse nos Bálcãs um parceiro do Irã, com um sistema de partido único fundamentalista islâmico. De modo semelhante, o governo norte-americano também apoiou a sujeição de muçulmanos à autoridade ortodoxa, sustentando que “é fora de questão que a Chechênia faz parte da Federação Russa”. 14 Embora os europeus reconheçam de forma universal a importância fundamental da linha divisória entre a Cristandade Ocidental, de um lado, e a Ortodoxia e o Islã, do outro, os Estados Unidos, como disse seu secretário de Estado, “não reconheceriam a existência de qualquer divisória fundamental entre as partes católica, ortodoxa e islâmica da Europa”. Entretanto, aqueles que não reconhecem divisórias funda¬ mentais estão fadados a serem frustrados por elas. O governo Clinton pareceu inicialmente não dar importância às mudanças na balança de poder entre os Estados Unidos e as sociedades da Ásia Oriental e, em conseqüência, repetidas vezes proclamou objetivos relativos a comércio exterior, direitos humanos, proliferação nuclear e outras questões que foi incapaz de concretizar. De modo geral, o governo norte-americano vem tendo extraordinária dificuldade para se adaptar a uma era na qual a política mundial é moldada pelas marés culturais e civilizacionais. Em segundo lugar, o pensamento norte-americano sobre política externa também padeceu de uma relutância em abandonar, alterar ou, às vezes, até mesmo reconsiderar diretrizes adotadas para atender a 393 necessidades da Guerra Fria. Em alguns casos, isso assumiu a forma de ainda enxergar uma União Soviética ressurrecta como uma ameaça em potencial. De maneira mais generalizada, as pessoas tendiam a endeusar as alianças e os acordos de controle de armamentos da Guerra Fria. A OTAN precisa ser mantida tal como era na Guerra Fria, O Tratado de Segurança Japão-Estados Unidos é fundamental para a segurança da Ásia Oriental. O tratado ABM é intocável. O tratado CFE precisa ser respeitado. Evidentemente, nenhuma dessas ou outras heranças da Guerra Fria deveria ser impensadamente descartada. Nem, tampouco, será neces¬ sariamente do interesse dos Estados Unidos ou do Ocidente que eles continuem sob a forma que tinham durante a Guerra Fria. As realidades de um mundo multicivilizacional sugeririam que a OTAN deveria ser expandida a fim de incluir outras sociedades ocidentais que desejem integrar-se a ela, e deveria reconhecer a falta absoluta de sentido em ter como membros dois países que são os piores inimigos um do outro e que carecem, ambos, de afinidade cultural com outros membros. Um tratado ABM destinado a atender à necessidade, durante a Guerra Fria, de assegurar a vulnerabilidade recíproca das sociedades soviética e norte-americana, e assim evitar uma guerra nuclear soviético-norte-ame- ricana, bem pode criar obstáculos para a capacidade dos Estados Unidos e de outras sociedades de se protegerem contra as imprevisíveis ameaças ou ataques nucleares por movimentos terroristas e ditadores irracionais. O tratado de segurança Japão-Estados Unidos ajudava a dissuadir uma agressão soviética contra o Japão. Qual se supõe que seja sua finalidade na era pós-Guerra Fria? Conter e dissuadir a China? Retardar uma acomodação japonesa com uma China em ascensão? Impedir uma maior militarização japonesa? No Japão, estão sendo suscitadas dúvidas cada vez maiores quanto à presença militar norte-americana naquele país e, nos Estados Unidos, quanto à necessidade de um compromisso sem reciprocidade de defender o Japão. O acordo sobre Forças Convencionais na Europa (CFE) se destinava a moderar a confrontação OTAN-Pacto de Varsóvia na Europa Central, que desapareceu por completo. O principal impacto do acordo agora é o de criar dificuldades para a Rússia para lidar com o que ela percebe como ameaças de segurança provenientes dos povos muçulmanos ao sul. Em terceiro lugar, a diversidade cultural e civilizacional contesta a crença ocidental — e particularmente norte-americana — da relevância universal da cultura ocidental. Essa crença é expressada de maneira tanto descritiva como normativa. De modo descritivo, ela sustenta que as 394 pessoas em todas as sociedades querem adotar os valores, as instituições e as práticas ocidentais. Caso pareçam não ter esse desejo e estar dedicadas a suas próprias culturas tradicionais, elas estão sendo vítimas de uma “percepção falsa” comparável àquela que os marxistas encontra¬ ram entre proletários que apoiavam o capitalismo. De modo normativo, a crença universalista ocidental sustenta que as pessoas em todo o mundo deveriam abraçar os valores, as instituições e a cultura ocidentais porque elas encarnam a mais elevada, mais esclarecida, mais liberal, mais racional, mais moderna e mais civilizada forma de pensamento humano. No mundo que está surgindo de conflitos étnicos e choques civilizacionais, a crença ocidental na universalidade da cultura ocidental padece de três problemas: ela é falsa, ela é imoral e ela é perigosa. Que ela é falsa constituiu a tese central deste livro, tese bem resumida por Michael Howard: “(...) a pressuposição comum ocidental de que a diversidade cultural é uma curiosidade histórica que está sendo rapida¬ mente erodida pelo crescimento de uma cultura mundial comum, orientada para o Ocidente e anglófona, que está moldando nossos valores básicos (...) simplesmente não corresponde à verdade.” 15 Um leitor que, a esta altura, ainda não esteja convencido do acerto da observação de Sir Michael está vivendo num mundo muito afastado do que é descrito neste livro. A crença de que os povos não-ocidentais deveriam adotar os valores, as instituições e a cultura ocidentais é imoral devido ao que seria necessário fazer para que isso pudesse acontecer. O alcance quase universal do poderio europeu no final do século XIX e o predomínio global dos Estados Unidos no final do século XX espalharam muito da civilização ocidental pelo mundo afora. Entretanto o globalismo europeu não existe mais. A hegemonia norte-americana está retrocedendo, quanto mais não seja porque ela não é mais necessária para proteger os Estados Unidos contra uma ameaça militar soviética no estilo da Guerra Fria. Como sustentamos, a cultura acompanha o poder. As sociedades não-ocidentais só poderiam ser uma vez mais moldadas pela cultura ocidental como resultado da expansão, do desdobramento e do impacto do poderio ocidental. O imperialismo é a conseqüência lógica necessária do universa¬ lismo. Além disso, na condição de uma civilização madura, o Ocidente não mais dispõe do dinamismo econômico ou demográfico exigido para impor sua vontade a outras sociedades, e qualquer esforço nesse sentido também é contrário aos valores ocidentais de autodeterminação e democracia. A medida que as civilizações asiática e muçulmana começam cada vez mais a afirmar a relevância universal de suas respectivas culturas, os ocidentais irão dar cada vez mais valor à vinculação entre universalismo e imperia¬ lismo. O universalismo ocidental é perigoso para o mundo porque ele poderia levar a uma grande guerra intercivilizacional entre Estados-nú cleos, e é perigoso para o Ocidente porque poderia levar à derrota dc Ocidente. Com o colapso da União Soviética, os ocidentais vêem sua civilização numa posição de predomínio sem precedente, enquanto, ac mesmo tempo, as sociedades asiática, muçulmana e outras, mais fracas estão começando a ganhar força. Por conseguinte, eles poderiam ser levados a aplicar a conhecida e poderosa lógica de Brutus: Nossas legiões estão cheias até a borda, nossa causa madura. O inimigo aumenta a cada dia; Nós, no cimo, estamos prontos a entrar em declínio. Há uma maré nos negócios dos homens, Que, tomada na cheia, leva à fortuna; Omitida, toda a viagem de suas vidas Está presa aos baixios e misérias. Numa tal maré cheia estamos agora flutuando, E precisamos pegar a corrente quando ela é boa, : Ou perder nossas empreitadas. Essa lógica, porém, produziu a derrota de Brutus em Filipéia, e o curso prudente para o Ocidente não é o de tentar fazer parar a alteração do poder, mas aprender a navegar nos baixios, suportar as misérias, moderar suas empreitadas e salvaguardar sua cultura. Todas as civilizações passam por processos análogos de surgimen¬ to, ascensão e declínio. O Ocidente difere de outras civilizações não na maneira como se desenvolveu, mas no caráter próprio de seus valores e instituições. Aqui se incluem principalmente seu Cristianismo, pluralismo, individualismo e império da lei, que tornaram possível para o Ocidente inventar a modernidade, expandir-se por todo o mundo e tomar-se alvo da inveja de outras sociedades. No seu conjunto, essas características são peculiares ao Ocidente. Como disse Arthur Schlesinger Jr., a Europa “é a fonte a fonte singular* das “idéias de liberdade individual, democracia política, império da lei, direitos humanos e liberdade cultural. (...) Essas são idéias européias , não idéias asiáticas, nem africanas, nem do Oriente Médio, a não ser por adoção”. 16 Elas tomam a civilização ocidental única, e a civilização ocidental é valiosa não porque seja universal, mas porque é única. Conseqüentemente, a responsabilidade principal dos líderes oci¬ dentais não é a de tentar reformular outras civilizações à imagem do Ocidente, o que está fora do seu poderio em declínio, mas preservar, proteger e renovar as qualidades únicas da civilização ocidental. Como os Estados Unidos são o mais poderoso país ocidental, essa responsa¬ bilidade lhes cabe de forma absolutamente preponderante. Para preservar a civilização ocidental ante um poderio ocidental em declínio, é do interesse dos Estados Unidos e dos países europeus: conseguir maior integração política, econômica e militar e coordenar suas políticas de modo a impedir que Estados de outras civilizações explorem as diferenças entre eles; incorporar à União Européia e à OTAN os países ocidentais da Europa Central, ou seja, os países de Visegrad, as repúblicas bálticas, a Eslovênia e a Croácia; estimular a “ocidentalização” da América Latina e, no máximo que for possível, um estreito alinhamento dos países latino-americanos com o Ocidente; restringir o desenvolvimento do poder militar convencional e não-con¬ vencional dos países islâmicos e sínicos; retardar o deslocamento do Japão para longe do Ocidente e na direção de uma acomodação com a China; aceitar a Rússia como o Estado-núcleo da Ortodoxia e uma grande potência regional, com legítimos interesses de segurança em suas fronteiras meridionais; manter a superioridade tecnológica e militar ocidental sobre as outras civilizações; e, o que é mais importante, reconhecer que a intervenção ocidental nos assuntos de outras civilizações provavelmente constitui a mais perigosa fonte de instabilidade e de um possível conflito global num mundo multicivilizacional. No período pós-Guerra Fria, os Estados Unidos ficaram consumidos por imensos debates sobre o curso adequado para a política externa norte-americana. Nessa era, porém, os Estados Unidos não podem nem dominar o mundo nem escapar dele. Nossos interesses não serão mais bem servidos nem pelo internacionalismo nem pelo isolacionismo, nem pelo multilateralismo nem pelo unilateralismo. O que os servirá da melhor forma será evitar esses extremos contrapostos e, ao contrário, adotar uma política atlanticista de íntima cooperação com seus parceiros europeus a fim de proteger e promover os interesses e valores da singular civilização de que compartilham. Guerra e Ordem Civilizacional Uma guerra global que envolva os Estados-núcleos das principais civilizações do mundo é altamente improvável, mas não impossível. Como sugerimos, uma guerra desse tipo poderia surgir da escalada de uma guerra de linha de fratura entre grupos de civilizações diferentes, mais provavelmente envolvendo muçulmanos de um lado e não-muçul¬ manos do outro. A probabilidade da escalada será maior se Estados-nú¬ cleos muçulmanos ambiciosos estiverem competindo para dar assistência a povos da mesma religião que estejam em luta. A probabilidade será menor em função dos interesses que países afins secundários e terciários possam ter em não se envolver profundamente eles próprios nessa guerra. Uma fonte mais perigosa de uma guerra intercivilizacional global é a alteração da balança de poder entre as civilizações e seus Estados- núcleos. Se ela continuar, a ascensão da China e a atitude cada vez mais afirmativa desse “maior ator da História da Humanidade” exercerão tremenda pressão sobre a estabilidade internacional no começo do século XXI. O surgimento da China como potência dominante na Ásia Oriental e no Sudeste Asiático seria contrário aos interesses norte-americanos tal como eles foram concebidos através da história. 17 Dados esses interesses norte-americanos, como seria possível que se desenvolvesse uma guerra entre os Estados Unidos e a China? Suponhamos o ano 2010. As tropas norte-americanas saíram da Coréia, que foi reunificada, e os Estados Unidos reduziram enormemente sua presença militar no Japão. Taiwan e a China continental chegaram a uma acomodação, segundo a qual Taiwan continua a ter a maior parcela de >ua independência de facto, porém reconhece explicitamente a suserania ie Pequim e, com o patrocínio da China, foi admitida como membro das ''lações Unidas segundo o modelo da Ucrânia e da Bielo-Rússia em 1946. A exploração dos recursos petrolíferos do Mar do Sul da China prosseguiu em bom ritmo, sobretudo sob os auspícios chineses, mas com algumas áreas sob controle vietnamita sendo exploradas por companhias norte- americanas. Com sua confiança aumentada por sua nova capacidade de projeção de poder, a China anuncia que vai implantar seu controle integral sobre todo esse mar, sobre o qual ela sempre reivindicou soberania. Os vietnamitas resistem e há combates entre belonaves chinesas e vietnamitas. Os chineses, ansiosos por se vingar da humilhação sofrida em 1979, invadem o Vietnã. Os vietnamitas pedem a ajuda norte-americana. Os chineses advertem os Estados Unidos para que não se metam. O Japão e outras nações da Ásia ficam temerosamente indecisos. Os Estados Unidos dizem que não podem aceitar a conquista do Vietnã pela China, advogam sanções econômicas contra a China e enviam uma das poucas forças-tarefas de porta-aviões que lhes restam para o Mar do Sul da China. Os chineses qualificam esse ato como uma violação das águas territoriais chinesas e lançam ataques aéreos contra a força-tarefa. Os esforços do secretário-geral das Nações Unidas e do primeiro-ministro japonês para negociar um cessar-fogo fracassam, e a luta se espalha para outras partes da Ásia Oriental. O Japão proíbe o uso das bases norte-americanas nesse país para ações contra a China, os Estados Unidos resolvem ignorar essa proibição e o Japão anuncia sua neutralidade e impõe uma quarentena às bases. Submarinos e aviões baseados em terra chineses, operando de Taiwan e da parte continental, infligem graves danos a navios e instalações norte-americanos na Ásia Oriental. Enquanto isso, forças terrestres chinesas entram em Hanói e ocupam grandes áreas do Vietnã, Como tanto a China quanto os Estados Unidos possuem mísseis capazes de transportar ogivas nucleares até o território um do outro, dá-se um impasse tácito e essas armas não são usadas nas fases iniciais da guerra. Entretanto, em ambas as sociedades existe o receio de tais ataques, que é especialmente intenso nos Estados Unidos. Isso leva muitos norte-americanos a começar a se perguntar por que estão sendo submetidos a esse perigo. Que diferença faz se a China controlar o Mar do Sul da China, o Vietnã ou todo o Sudeste Asiático? A oposição à guerra é especialmente vigorosa nos estados do sudoeste dos Estados Unidos, dominados pelos hispânicos; e suas populações e governos dizem que “essa guerra não é nossa” e tentam ficar de fora segundo o modelo da Nova Inglaterra na guerra de 1812. Depois que os chineses consolidam suas vitórias iniciais na Ásia Oriental, a opinião pública norte-americana começa a se mover na direção que o Japão esperou que ela escolhesse em 1942: os custos para derrotar essa mais recente afirmação de poder hegemônico são demasiado elevados; vamos nos contentar com uma solução negociada para os combates esporádicos ou “guerra de mentiri¬ nha” que está atualmente ocorrendo no Pacífico Ocidental. Nesse meio tempo, porém, a guerra está tendo um impacto sobre os principais Estados de outras civilizações. A índia aproveita a oportu¬ nidade de a China estar engajada na Ásia Oriental para desfechar um ataque devastador contra o Paquistão, visando a degradar inteiramente a capa¬ cidade militar nuclear e convencional desse país. Ela tem êxito inicial¬ mente, mas a aliança militar entre Paquistão, Irã e China é posta em funcionamento, e o Irã vem em auxílio do Paquistão com forças armadas modernas e sofisticadas. A índia fica atolada lutando contra tropas iranianas e guerrilhas paquistanesas formadas de vários grupos étnicos diferentes. Tanto o Paquistão como a índia apelam aos países árabes por apoio — a índia advertindo sobre o perigo da dominação do Sudoeste Asiático pelo Irã —, porém os êxitos iniciais da China contra os Estados Unidos estimularam grandes movimentos antiocidentais nas sociedades muçulmanas. Um a um, os poucos governos pró-ocidentais que restavam em países árabes e na Turquia são derrubados por movimentos fundamentalistas islâmicos impulsionados pelas últimas coortes do bolsão de jovens muçulmanos. O surto de antiocidentalismo provocado pela fraqueza ocidental leva a um ataque maciço dos árabes contra Israel, que a Sexta Esquadra norte-americana, muito reduzida, não é capaz de deter. A China e os Estados Unidos tentam congregar apoio de outros Estados-chave. À medida que a China consegue êxitos militares, o Japão começa nervosamente a se atrelar à China, alterando sua posição de neutralidade formal para uma neutralidade positiva pró-chinesa, e, depois, cedendo às solicitações da China e se tornando um co-beligeran- te, manda suas forças ocuparem as remanescentes bases norte-america¬ nas no Japão, enquanto os Estados Unidos retiram suas tropas apres¬ sadamente. Os Estados Unidos declaram um bloqueio do Japão, e belonaves norte-americanas e japonesas se engajam em duelos es¬ porádicos no Pacífico Ocidental. No começo da guerra, a China propôs um pacto de segurança mútua à Rússia (lembrando vagamente o pacto Hitler-Stalin). Os êxitos chineses, porém, têm sobre a Rússia o efeito diametralmente oposto ao que tiveram sobre o Japão. A perspectiva da vitória chinesa e de uma completa dominação chinesa na Ásia Oriental aterroriza Moscou. À medida que a Rússia se move numa direção antichinesa e começa a reforçar suas tropas na Sibéria, os numerosos colonos chineses na Sibéria interferem com essa movimentação. A China então intervém militarmente para proteger seus cidadãos e ocupa Vladivostok, o vale do Rio Amur e outras áreas-chave da Sibéria Oriental. Enquanto os combates se espalham entre tropas russas e chinesas na Sibéria Central, ocorrem levantes na Mongólia, que a China havia anteriormente colocado numa condição de “protetorado”. O controle do petróleo e o acesso a ele é de importância fun¬ damental para todos os combatentes. Apesar de seus enormes inves¬ timentos em energia nuclear, o Japão ainda é altamente dependente das importações de petróleo, e isso reforça sua inclinação a se acomodar com a China e garantir o fluxo de petróleo do Golfo Pérsico, da Indonésia e do Mar do Sul da China. Durante o curso da guerra, quando os países árabes passam a ficar sob o controle dos militantes fundamentalistas islâmicos, os suprimentos de petróleo do Golfo Pérsico para o Ocidente se reduzem a um filete e, conseqüentemente, o Ocidente fica cada vez mais dependente das fontes russas, do Cáucaso e da Ásia Central. Isso leva o Ocidente a intensificar seus esforços para ter a Rússia do seu lado e para apoiar a extensão pela Rússia de seu controle sobre os países muçulmanos ao sul, ricos em petróleo. Enquanto isso, os Estados Unidos estiveram ansiosamente tentando mobilizar o pleno apoio de seus aliados europeus. Embora dêem assistência econômica e diplomática, eles se mostram relutantes em se envolver militarmente. Contudo, a China e o Irã receiam que os países ocidentais acabem por se congregar do lado dos Estados Unidos, do mesmo modo como os Estados Unidos foram em apoio da Grã-Bretanha e da França em duas guerras mundiais. A fim de impedir que isso aconteça, eles transferem secretamente mísseis de alcance médio, com capacidade de portar ogivas nucleares, para a Bósnia e para a Argélia, e advertem as potências européias para que se mantenham fora da guerra. Como quase sempre se deu com as tentativas chinesas de intimidar outros países, exceto o Japão, essa ação tem conseqüências exatamente opostas ao que desejava a China. Os serviços de inteligência norte-americanos detectam o desdobramento dos mísseis e informam ao Conselho da OTAN, que declara que os mesmos têm que ser retirados imediatamente. Entretanto, antes que a OTAN possa agir, a Sérvia, desejando retomar seu papel histórico de defensora do Cristianismo contra os turcos, invade a Bósnia. A Croácia se junta a ela e os dois países ocupam e partilham a Bósnia, capturam os mísseis e passam a se empenhar por completar a limpeza étnica que tinham sido obrigadas a sustar nos anos 90. A Albânia e a Turquia tentam ajudar os bósnios, a Grécia e a Bulgária lançam invasões da Turquia européia e o pânico irrompe em Istambul quando os turcos fogem para o outro lado do Bósforo. Nesse ínterim, um míssil com uma ogiva nuclear, lançado da Argélia, explode nos arredores de Marselha, e a OTAN retalia com ataques aéreos devastadores contra alvos no Norte da África. 400 401 Os Estados Unidos, a Europa, a Rússia e a índia ficaram assim engajados numa luta verdadeiramente global contra a China, o Japão e a maior parte do Islã. Como iria terminar uma guerra assim? Os dois lados possuem grande capacidade nuclear e, evidentemente, se ela fosse empregada além de um nível mínimo, os principais países de ambos os lados poderiam sofrer uma destruição substancial. Se a dissuasão mútua funcionasse, a exaustão mútua poderia levar a um armistício negociado, o qual, entretanto, não resolveria a questão fundamental da hegemonia chinesa na Ásia Oriental. Alternativamente, o Ocidente poderia tentar derrotar a China com o emprego do poder militar convencional. O alinhamento do Japão com a China, porém, deu a esta a proteção de um cordão sanitário insular, que impediria os Estados Unidos de empregar seu poder naval contra os centros populacionais e industriais chineses ao longo do litoral. A alternativa é avançar sobre a China do Oeste. A luta entre a Rússia e a China leva a OTAN a acolher a Rússia como membro da organização e a cooperar com ela para conter as incursões chinesas na Sibéria, mantendo o controle russo sobre o petróleo e o gás dos países muçulmanos da Ásia Central, promovendo insurreições contra o regime chinês por parte de tibetanos, uigures e mongóis, e gradualmente mobilizando e desdobrando forças ocidentais e russas rumo ao Leste na Sibéria, para o ataque final através da Grande Muralha até Pequim, a Manchúria e o coração da terra han. Qualquer que fosse o desenlace final dessa guerra civilizacional global — devastação nuclear mútua, cessação negociada como resultado da exaustão mútua ou eventual marcha das forças russas e ocidentais até a Praça de Tiananmen —, o resultado mais amplo a longo prazo seria quase inevitavelmente o drástico declínio do poderio econômico, demo¬ gráfico e militar de todos os principais participantes da guerra. Em conseqüência, o poder global que havia, ao longo dos séculos, se deslocado do Leste para o Oeste, e depois tinha começado a se deslocar de volta do Oeste para o Leste, iria agora se deslocar do Norte para o Sul. As grandes beneficiárias da guerra das civilizações são aquelas civilizações que se abstiveram de entrar nela. Com o Ocidente, a Rússia, a China e o Japão devastados, em graus diferentes, o caminho está aberto para a índia, se ela tivesse escapado a essa devastação, embora tivesse sido um dos participantes, para tentar reformular o mundo segundo linhas hindus. Grandes segmentos do povo norte-americano culpariam pelo extremo enfraquecimento dos Estados Unidos a míope orientação ocidental das elites WASP, e os líderes hispânicos chegariam ao poder apoiados por promessas de uma ampla ajuda do tipo Plano Marshall dos prósperos países latino-americanos, que ficaram postados à margem da guerra. A África, por outro lado, tem pouco a oferecer para a reconstrução da Europa e, em vez disso, despeja hordas de pessoas mobilizadas socialmente para pilhar o que restou. Na Ásia, se a China, o Japão e a Coréia estão devastados pela guerra, o poder também se desloca para o Sul, com a Indonésia, que se mantivera neutra, se tomando o país dominante e, sob a orientação de assessores australianos, atuando para conduzir o curso dos acontecimentos da Nova Zelândia, a leste, até Myanmar e Sri Lanka, a oeste, e o Vietnã, ao norte. Tudo isso pressagia um futuro conflito com a índia e uma revitalizada China. De qualquer modo, o centro da política mundial se move para o Sul. Caso esse cenário pareça ao leitor uma fantasia alucinadamente nada plausível, tanto melhor. Esperemos que nenhum outro cenário de guerra civilizacional global tenha plausibilidade maior. Contudo, o que esse cenário tem de mais plausível e, portanto, de mais inquietante, é a causa da guerra: intervenção pelo Estado-núcleo de uma civilização (Es¬ tados Unidos) numa disputa entre o Estado-núcleo de outra civilização (China) e um Estado-membro dessa civilização (Vietnã). Para os Estados Unidos, uma intervenção assim teria sido necessária para manter o respeito ao Direito Internacional, repelir uma agressão, proteger a liberdade dos mares, manter seu acesso ao petróleo do Mar do Sul da China e impedir a dominação da Ásia Oriental por uma única potência. Para a China, essa intervenção teria sido uma tentativa totalmente intolerável, mas tipicamente arrogante, do principal Estado ocidental para humilhar e intimidar a China, provocar oposição à China dentro de sua legítima esfera de influência e negar à China o papel a que tem direito nos assuntos mundiais. Em resumo, na era que se aproxima, para se evitarem grandes guerras intercivilizacionais, será preciso que os Estados-núdeos se abs¬ tenham de intervir em conflitos no interior de outras civilizações. Esta é uma verdade que muitos países, especialmente os Estados Unidos, terão sem dúvida dificuldade para aceitar. Essa regra de abstenção , que determina que os Estados-núcleos se absterão de intervir em conflitos em outras civilizações, é o primeiro requisito da paz num mundo multicivilizacional e multipolar. O segundo requisito é o da regra de mediação conjunta , pela qual os Estados-núcleos negociarão entre si para conter ou fazer cessar guerras de linha de fratura entre Estados ou grupos de suas próprias civilizações. A aceitação dessas regras e de um mundo com mais igualdade entre as civilizações não será fácil para o Ocidente ou para aquelas civilizações que podem estar visando a suplementar ou suplantar o Ocidente em seu papel dominante. Em tal mundo, por exemplo, os Estados-núcleos bem podem considerar prerrogativa sua possuir armas nucleares e negá-las a outros membros da sua civilização. Fazendo uma retrospectiva de seus esforços para dotar o Paquistão de "plena capacidade nuclear”, Zulfikar Ali Bhutto os justificou da seguinte maneira: “Sabemos que Israel e a África do Sul têm plena capacidade nuclear. Só a civilização islâmica não a tinha, mas essa situação estava prestes a mudar.” 18 A competição pela liderança dentro das civilizações que carecem de um único Estado-núcleo pode também estimular a competição por armas nuclea¬ res. Embora tenha um relacionamento altamente cooperativo com o Paquistão, o Irã nitidamente considera que necessita de armas nucleares tanto quanto o Paquistão. Por outro lado, o Brasil e a Argentina abandonaram seus programas nessa direção, e a África do Sul destruiu suas armas nucleares, embora ela bem possa desejar voltar a tê-las se a Nigéria começar a desenvolver capacidade desse tipo. Como Scott Sagan e outros assinalaram, conquanto a proliferação nuclear obviamente acarrete riscos, um mundo no qual um ou dois Estados-núcleos em cada civilização principal tivessem armas nucleares e nenhum outro Estado as tivesse seria um mundo razoavelmente estável. A maioria das instituições internacionais data de pouco depois da II Guerra Mundial e sua conformação obedeceu aos interesses, valores e práticas ocidentais. À medida que o poderio ocidental se reduzir em relação ao de outras civilizações, se desenvolverão pressões para a reformulação dessas instituições a fim de que atendam também os interesses dessas civilizações. A questão mais óbvia, mais importante e provavelmente mais controvertida se refere à posição de membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Essa posição pertence às principais potências vitoriosas na II Guerra Mundial e guarda cada vez menos relação com a realidade do poder no mundo. A mais longo prazo, ou se introduzem modificações na participação atual ou outros procedimentos menos formais provavelmente se desenvolverão para lidar com questões de segurança, do mesmo modo como as reuniões do G-7 têm tratado de questões econômicas mundiais. Num mundo multicivilizacional, o ideal seria que cada civilização principal tivesse pelo menos um assento permanente no Conselho de Segurança. Atualmente apenas três têm. Os Estados Unidos endossaram a participação japonesa e alemã, mas está claro que eles serão membros permanentes apenas se outros países também passarem a sê-lo. O Brasil sugeriu cinco novos membros permanentes, ainda que sem poder de veto — Alemanha, Japão, índia, Nigéria e ele próprio. Isso, porém, deixaria sem repre¬ sentação um bilhão de muçulmanos do mundo, salvo na medida em que a Nigéria pudesse assumir essa responsabilidade. Do ponto de vista cívilizacíonal, é claro que o Japão e a índia deveriam ser membros permanentes, e a África, a América Latina e o mundo islâmico deveriam ter assentos permanentes, que poderiam ser ocupados numa base rotativa pelos principais Estados dessas civilizações, com as seleções sendo feitas pela Organização da Conferência Islâmica, pela Organi¬ zação da Unidade Africana e pela Organização dos Estados Americanos (com os Estados Unidos se abstendo). Seria também apropriado que se consolidassem os lugares da Grã-Bretanha e da França num único assento da União Européia, cujo ocupante rotativo seria selecionado pela União. Dessa maneira, sete civilizações teriam cada uma um assento permanente e o Ocidente teria dois, numa distribuição de forma amplamente representativa da distribuição das pessoas, da riqueza e do poder no mundo. CIVILIZAÇÃO: OS ASPECTOS EM COMUM Alguns norte-americanos promoveram o multiculturalismo em seu país, alguns promoveram o universalismo no exterior, e alguns fizeram ambas as coisas. O multiculturalismo doméstico ameaça os Estados Unidos e o Ocidente. O universalismo externo ameaça o Ocidente e o mundo. Ambos negam a singularidade da cultura ocidental. Os multiculturalistas globais querem fazer o mundo ser como os Estados Unidos. Os multiculturalistas domésticos querem fazer os Estados Unidos serem como o mundo. Estados Unidos multiculturais são impossíveis porque os Estados Unidos não-oci¬ dentais não são os Estados Unidos. Um mundo multicultural é inevitável, porque o império global é impossível. A preservação dos Estados Unidos e do Ocidente requer a renovação da identidade ocidental. A segurança do mundo requer a aceitação da multiculturalidade global. Será que a futilidade do universalismo ocidental e a realidade da diversidade cultural global conduzem inevitável e irrevogavelmente ao relativismo moral e cultural? Se o universalismo legitima o imperialismo, isso quer dizer que o relativismo legitima a repressão? Mais uma vez, a resposta a estas perguntas é sim e não. As culturas são relativas, a moralidade é absoluta. Como sustentou Michael Waltzer, as culturas são “espessas”, elas prescrevem instituições e padrões de comportamento para guiar os seres humanos pelos caminhos que são os corretos dentro de uma determinada sociedade. Entretanto, acima, além e brotando dessa moralidade maximalista existe uma “delgada” moralidade minimalista, que encarna “aspectos reiterados das moralidades espessas ou maximalis¬ tas”. Conceitos minimalistas morais de verdade e justiça são encontrados em todas as moralidades espessas e não podem ser divorciados delas. Há também “injunções negativas” de moralidade minimalista, “mais provavel¬ mente regras contra assassinato, fraude, tortura, opressão e tirania”. O que as pessoas têm em comum é “mais o sentido de um inimigo [ou mal] comum do que uma dedicação a uma cultura comum”. A sociedade humana é “universal porque ela é humana, particular porque é uma sociedade”. Às vezes caminhamos com os outros, na maioria das vezes caminhamos sozinhos. 19 No entanto, uma moralidade minimalista “delgada” deriva da condição humana comum, e em todas as culturas se encontram “dis¬ posições universais”. 20 Em vez de promover os aspectos supostamente universais de uma civilização, os requisitos para a coexistência cultural exigem uma busca do que é comum à maioria das civilizações. Num mundo multicivilizacional, o caminho construtivo reside em renunciar ao universalismo, aceitar a diversidade e buscar os aspectos em comum. Uma tentativa de identificar tais aspectos em comum num lugar muito pequeno foi feita em Singapura no início dos anos 90. O povo de Singapura se compõe de aproximadamente 76 por cento de chineses, 15 por cento de malaios e muçulmanos e seis por cento de indianos hindus e sikhs. No passado, o governo tentou promover os “valores confucianos” entre seu povo, mas também insistiu em que todos deveriam estudar em inglês e ser fluentes nesse idioma. Em janeiro de 1989, o presidente Wee Kim Wee, no seu discurso de abertura do Parlamento, assinalou a ampla exposição dos 2,7 milhões de singapurianos às influências culturais forâneas do Ocidente, que “os haviam colocado em íntimo contato com novas idéias e tecnologias do exterior”, mas que também os “haviam exposto a estilos de vida e valores estranhos a eles”. Ele advertiu que “as idéias asiáticas tradicionais de moralidade, dever e sociedade, que nos sustentaram no passado, estão cedendo lugar a uma visão da vida mais ocidentalizada, individualista e egocêntrica”. Ele argumentou que era necessário identificar os valores fundamentais que as diferentes comuni¬ dades étnicas e religiosas de Singapura tinham em comum e que “captavam a essência de ser singapuriano”. O presidente Wee aventou quatro desses valores: “colocar a socie¬ dade acima de si mesmo, sustentar a família como o elemento básico de construção da sociedade, resolver as principais questões através do consenso em vez da contestação e acentuar a tolerância e a harmonia religiosas.” Seu discurso levou a um amplo debate dos valores singapurianos e, dois anos depois, a um Livro Branco que expunha a posição do governo. O Livro Branco endossou todos os quatro valores aventados pelo presidente, porém acrescentou um quinto em apoio do indivíduo, em grande parte devido à necessidade de enfatizar a prioridade atribuída ao mérito individual na sociedade singapuriana, em oposição aos valores confucia¬ nos de hierarquia e família, que levariam ao nepotismo. O Livro Branco definiu os “Valores Compartilhados” dos singapurianos como sendo: A Nação antes da comunidade [étnica] e a sociedade acima do indivíduo; A Família como a unidade básica da sociedade; Respeito pelo indivíduo e apoio da comunidade a ele; Consenso em vez de contestação; Harmonia racial e religiosa. Embora citasse a dedicação de Singapura à democracia parlamentar e à excelência no governo, a declaração dos “Valores Compartilhados” excluía explicitamente de seu âmbito os valores políticos. O governo ressaltou que Singapura era “em aspectos cruciais uma sociedade asiáti¬ ca”, e devia continuar como tal. “Os singapurianos não são norte-ameri¬ canos ou anglo-saxões, embora possamos falar inglês e usar roupas ocidentais. Se, a mais longo prazo, os singapurianos não pudessem se distinguir de norte-americanos, britânicos ou australianos, ou, pior ainda, se tornassem uma pobre imitação deles [ou seja, um país dividido], perderíamos nossa margem de vantagem sobre essas sociedades ociden¬ tais, a qual nos permite manter nossa posição internacionalmente.” 21 O projeto singapuriano foi uma tentativa ambiciosa e iluminada de definir uma identidade cultural singapuriana, que fosse compartilhada por suas comunidades étnicas e religiosas e que as distinguisse do Ocidente. Certamente uma declaração de valores ocidentais — e, es¬ pecialmente, norte-americanos — atribuiria muito mais peso aos direitos do indivíduo sobre os da comunidade, à liberdade de expressão e à verdade brotando da contestação de idéias, à participação e à competição políticas e ao império da lei em contraposição à autoridade de governan¬ tes capazes, sábios e responsáveis. No entanto, mesmo assim, embora pudessem suplementar os valores singapurianos e atribuir a alguns uma 407 prioridade mais baixa, poucos ocidentais rejeitariam esses valores como desprezíveis. Pelo menos num nível básico de moralidade “delgada”, há alguns aspectos em comum entre a Ásia e o Ocidente. Além disso, como muitos assinalaram, qualquer que fosse o grau em que dividiam a Humanidade, as principais religiões do mundo — Cristianismo Ocidental, Ortodoxia, Hinduísmo, Budismo, Islamismo, Confucionismo, Taoísmo, Judaísmo — também compartilhavam de valores-chaves comuns. Se os seres humanos irão algum dia desenvolver uma civilização universal, ela surgirá gradualmente através da exploração e da expansão desses aspectos em comum. Assim sendo, além da regra de abstenção e da regra de mediação conjunta, uma terceira regra para a paz num mundo multicivilizacional é a regra dos aspectos em comum, os povos de todas as civilizações deveríam buscar e tentar expandir os valores, instituições e práticas que têm em comum com os povos de outras civilizações. Esse esforço contribuiria não só para limitar o choque das civiliza¬ ções, mas também para reforçar a Civilização no singular (daqui por diante com maiuscula para fins de clareza). A Civilização no singular supostamente se refere a uma mescla complexa de níveis superiores de moralidade, religião, conhecimento, arte, filosofia, tecnologia, bem-estar material e provavelmente outras coisas mais. Tudo isso não varia necessariamente em conjunto. No entanto, os estudiosos identificam pontos altos e pontos baixos no nível de Civilização nas histórias das civilizações. A questão então é: como se podem traçar os altos e baixos do desenvolvimento da Civilização pela Humanidade? Existirá uma tendência geral, secular, que transcende as civilizações individuais, rumo a níveis mais elevados de Civilização? Se existe tal tendência, será ela fruto dos processos de modernização que aumentam o controle dos seres humanos sobre seu meio ambiente e daí geram níveis cada vez mais altos de sofisticação tecnológica e de bem-estar material? Na era contemporânea, será assim um nível mais alto de modernidade um pré-requisito para um nível mais alto de Civilização? Ou será que o nível de Civilização varia precipua- mente dentro da história das civilizações individuais? Essa questão é uma outra manifestação do debate sobre a natureza linear ou cíclica da História. Supostamente, a modernização e o desen¬ volvimento moral humano produzidos por melhor educação, percepção e compreensão da sociedade humana e de seu meio ambiente natural geram um movimento continuado rumo a níveis cada vez mais elevados de Civilização. Alternativamente, os níveis de Civilização podem simples¬ mente refletir fases da evolução das civilizações. Quando as civilizações começam a surgir, sua gente geralmente é vigorosa, dinâmica, brutal, móvel e expansionista. Ela é relativamente não-Civilizada. À medida que a civilização evolui, ela fica mais assentada e desenvolve técnicas e habilidades que a tomam mais Civilizada. À medida que a competição entre seus elementos constituintes se esvai e surge um Estado universal, a civilização atinge seu mais alto nível de Civilização, sua “idade de ouro”, com um desabrochar de moralidade, arte, literatura, filosofia, tecnologia e competência marcial, econômica e política. À medida que ela entra em decadência como civilização, seu nível de Civilização também declina, até que desaparece sob o ataque de uma civilização diferente e impe¬ tuosa, com um nível mais baixo de Civilização. De modo geral, a modernização melhorou o nível material de Civilização em todo o mundo. Mas será que ela também melhorou as dimensões moral e cultural de Civilização? Isso parece ser verdade em alguns aspectos. Escravidão, tortura, abuso cruel das pessoas ficaram cada vez menos aceitáveis no mundo contemporâneo. Entretanto, será isso apenas o resultado do impacto da civilização ocidental sobre outras culturas e, portanto, irá ocorrer uma inversão moral à medida que decline o poderio ocidental? Na década de 90, há muitos indícios da relevância do paradigma do “puro caos” dos assuntos mundiais: uma quebra no mundo inteiro da lei e da ordem, Estados fracassados e anarquia crescente em muitas partes do mundo, uma onda global de criminalidade, máfias transnacionais e cartéis de drogas, crescente número de viciados em drogas em muitas sociedades, um debilitamento generalizado da família, um declínio na confiança e na solidariedade social em muitos países, violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revólver predominam em grande parte do mundo. Numa cidade atrás da outra — Moscou, Rio de Janeiro, Bangcoc, Xangai, Londres, Roma, Varsóvia, Tóquio, Johan- nesburgo, Délhi, Karachi, Cairo, Bogotá, Washington —, a criminalidade parece estar subindo vertiginosamente, e os elementos básicos da Civilização estão-se esvanecendo. Fala-se de uma crise global de gover¬ nabilidade. A ascensão das corporações transnacionais que produzem bens econômicos está cada vez mais sendo igualada pela ascensão de máfias criminosas transnacionais, cartéis de drogas e gangues terroristas que estão atacando violentamente a Civilização. A lei e a ordem são o primeiro pré-requisito da Civilização e em grande parte do mundo — na África, na América Latina, na antiga União Soviética, na Ásia Meridional, no Oriente Médio — elas parecem estar evaporando, estando sob séria ameaça na China, no Japão e no Ocidente. Numa base mundial, a Civilização parece, em muitos aspectos, estar cedendo diante da barbárie, gerando a imagem de um fenômeno sem precedente, uma Idade das Trevas mundial, que se abate sobre a Humanidade. Na década de 50, Lester Pearson advertiu que os seres humanos estavam entrando “numa era em que as diferentes civilizações terão que aprender a viver lado a lado num intercâmbio pacífico, aprendendo umas com as outras, estudando a história e os ideais e a arte e cultura umas das outras, enriquecendo-se mutuamente com as vidas umas das outras. A alternativa, nesse pequeno mundo superpovoado, é a incompreensão, a tensão, o choque e a catástrofe.” 22 O futuro da paz e o futuro da Civilização dependem da compreensão e da cooperação entre os líderes políticos, espirituais e intelectuais das principais civilizações do mundo. No choque das civilizações, a Europa e os Estados Unidos se juntarão ou serão destruídos separadamente. No choque maior, o “choque verdadeird\ global, entre a Civilização e a barbárie, as grandes civiliza¬ ções do mundo, com suas ricas realizações em religião, arte, literatura, filosofia, ciência, tecnologia, moralidade e compaixão, também se junta¬ rão ou serão destruídas separadamente. Na era que está emergindo, os choques das civilizações são a maior ameaça à paz mundial, e uma ordem internacional baseada nas civilizações é a melhor salvaguarda contra a guerra mundial. Notas Capítulo 1 1. Henry A. Kissinger, Diplomacy (Nova York: Simon & Schuster, 1994), pp. 23-24. 2. Expressão de H. D. S. Greenway, Boston Globe, 03/12/92, p. 19- 3. Václav Havei, “The New Measure of Man”, New York Times , 08/07/94, p. A27; Jacques Delors, “Questions Conceming European Security”, Palestra, Instituto Internacional para Estudos Estratégicos, Bruxelas, 10/09/93, p. 2. 4. Thomas S. Kühn, The Structure of Scientific Revolutions (Chicago, Universíty of Chicago Press, 1962), pp. 17-18. 5. John Lewis Gaddis, “Toward the Post-Cold War World”, Foreign Affairs , 70 (primavera de 1991), 101; Judith Goldstein e Robert O. Keohane, “Ideas and Foreign Policy: An Analytical Framework”, em Ideas and Foreign Policy: Beliefs, Institutions and Political Change ; org. Goldstein e Keohane (Ithaca: Comell Universíty Press, 1993), pp. 8-17. 6. Francis Fukuyama, “The End of History”, The National Interest, 16 (verão de 1989), 4, 18. 7. “Mensagem ao Congresso Informando sobre a Conferência de Ialta”, 01/03/45, em Public PapersandAddressesofFranklinD. Roosevelt , org. Samuel I. Rosenman (Nova York: Russeíl & Russell, 1969), XIII, 586. 8. Ver Marx Singer e Aaron Wildavsky, The Real World Order.- Zones ofPeace, Zones ofTurmoil (Chatham, Nova Jersey: Chatham House, 1993); Robert O. Keohane e Joseph S. Nye, “Introduction: The End of the Cold War in Europe”, em After the Cold War, International Institutions and State Strategies in Europe, 1989-91 , org. Keohane, Nye e Stanley Hoffmann (Cambridge: Harvard Universíty Press, 1993), p- 6; e James M. Goldgeier e Michael McFault, “A Tale of Two Worlds: Core and Periphery in the Post-Cold War Era”, International Organization, 46 (primavera de 1992), pp. 467-491. 9. Ver F. S. C. Northrop, The Meeting of East and West: An Inquiry Conceming World Understanding (Nova York, Macmillan, 1946). 10. Edward W. Said, Orientalism (Nova York: Pantheon Books, 1978), pp. 43-44. 11. Ver Kenneth N. Wa Itz, “The Emerging Structure of International Politics”, 18 (outono de 1993), 44-79; John J. Mearsheimer, “Back to the Future: Instability in Europe after the Cold War”, International Security ; 15 (verão de 1990), 5-56. 12. Stephen D. Krasner questiona a importância de Westfália como ponto divisor. Ver seu “Westphalia and All That”, em Ideas and Foreign Policy ; org. Goldstein e Keohane, pp. 235-264. 13. Zbigniew Brzezinski, Out of Control: Global Turmoil on the Eve of the Twenty-first Centuty (Nova York: Scribner, 1993); Daniel Patrick Moynihian, Pandaemonium: Ethnicity in Inter¬ national Politics (Oxford: Oxford Universíty Press, 1993); ver tb. Robert Kaplan, “The Corning Anarchy”, Atlantic Afonthly, 273 (fev./44), 44-76. 14. Ver New York Times, 07/02/93, pp. 1, 14; e Gabriel Schoenfeld, “Outer Limits”, Post-Soinet Prospects , 17 (jan./93), 3, citando dados do Ministério da Defesa russo. 15. Ver Gaddis, “Toward the Post-Cold War World”; Benjamin R. Barber, “Jihad vs. Mc World”; Atlantic Monthly, 269 (mar./92), 53-63, e Jihad vs Mc World (Nova York: Times Books, 1995); Hans Mark, “After Victory in the Cold War: The Global Village or Tribal Warfare”, em Europe 411 in Transition: Folitical, Economic and Security Prospccts for the 1990s, org. J. J. Lee e Walter Korter (LBJ Schocí of Public Affairs, University of Texas em Austin, mar./90), pp. 19-27. 16. John J. Mearsheimer, “The Case for a Nuclear Deterrent”, Foreign Affairs , 72 (verão de 1993), pp- 82-83. 17. kester B. Pearson, Democracy in World Politics (Princeton: Princeton University Press, 1955), pp. 82-83. 18. De maneira completamente independente, Johan Galtung desenvolveu uma análise que segue de perto um rumo paralelo à minha no que se refere à relevância para a política mundial das sete ou oito civilizações principais e seus Estados-núcleos. Ver seu “The Emerging Conflict Formations”, em Restructuringfor World Peace: On the Threshold of the Twenty-First Century ; org. Katharine e Majid Tehranian (Cresskill, Nova Jersey: Hampton Press, 1992), pp. 23-24. Galtung vê sete agrupamentos regionais emergindo, dominados por países hegemônicos: os Estados Unidos, a Comunidade [União] Européia, o Japão, a China, a Rússia, a índia e um “núcleo islâmico”. Dentre outros autores que, no início dos anos 90, expuseram argumentos análogos, estão os seguintes: Michael Lind, “America as an Ordinary Country”, American Enterprise, 1 (set.-out./90), 19-23; Barry Buzan, “New Pattems of Global Security in the Twenty-First Century”, International Affairs, 67 (1991), 441, 448-449; Robert Gilpin, “The Cycle of Great Powers: Has It Finally Been Broken?” (Princeton University, monografia não publicada, 19/05/93), p. 6 e ss.; William S. Lind, “North-South Relations: Retuming to a World of Cultures in Conflict”, Current World Leaders, 35 (dez./92), 1073-1080, e “Defending Western Culture”, Foreign Policy, 84 (outono de 1994); “Looking Back from 2992: A World History, cap. 13: The Disastrous 21 st Century”, Economist , 26/dez.-08/jan./93, pp. 17-19; “The New World Order: Back to the Future”, Economist, 08/01/94, pp. 21-23; “A Survey of Defence and the Democracies”, Economist, 01/09/90; Zsolt Rostovanyi, “Clash of Civilizations and Cultures: Unity and Disunity of World Order” (monografia não publicada, 29/03/93); Michael Vlahos, “Culture and Foreign Policy”, Foreign Policy, 82 (primavera de 1991), 59-78, DonaldJ. Puchala, “The History of the Future of International Relations”, Ethics and International Affairs, 8 (1994), 177-202; Mahdi Elmandjra, “Cultural Diversity: Key to Survival in the Future” (monografia apresen¬ tada no Primeiro Congresso Mexicano sobre Estudos do Futuro, Cidade do México, set./94). Em 1991, Elmandjra publicou em árabe um livro que apareceu em francês no ano seguinte, intitulado Première Guerre Civilisationnelle (Casablanca: Ed. Toubkal, 1994). 19- Femand Braudel, On History (Chicago: University of Chicago Press, 1980), pp. 210-212. Capítulo 2 1 - “World history is the history of large cultures.” Oswald Spengler, Decline ofthe West (Nova York: A. A. Knopf, 1926-1928), II, 170. Os principais trabalhos desses estudiosos que analisam a natureza e a dinâmica das civilizações abrangem os seguintes: Max Weber, The Sociology ofReligion( Boston: Beacon Press, trad. Ephraim Fischoff, 1968); Emile Durkheim e Marcei Mauss, “Note on the Notion of Civilization”, Social Research, 38 (1971), 808-813; Oswald Spengler, Decline ofthe West; Pitrim Sorokin, Social and Cultural Dynamics (Nova York: American Book Co., 4 v., 1937-1985); Amold Toynbee, Study of History (Londres: Oxford University Press, 12 v., 1934-1961); Alfred Weber, Kulturgeschichte aisKultursozio- logie (Leiden: A. W. Sijthoff s Uitgervermaatschappij N. V., 1935); A. L. Kroeber, Configu- rations of Culture Growth (Berkeley: University of Califórnia Press, 1944) e Style and Civilizations (Westport, Connecticut: Greenwood Press, 1973); Philip Bagby, Culture and History: Prolegomena to the Comparative Study of Civilizations (Londres: Longmans, Green, 1958); Carrol] Quigley, The Evolution of Civilizations: An Introduction toHistoriçalAnalysis (Nova York: Macmillan, 1961); Rushton Couíbom, The Origin of Civilized Societies 412 (Princeton: Princeton University Press, 1959); S. N. Eisenstadt, “Cultural Traditions and Political Dynamics: The Origins and Modes of Ideological Politics”, British Journal of Sociology , 32 (jun./81), 155-181; Femand Braudel, History of Civilizations (Nova York: Allen Lane-Penguin Press, 1944) e On History (Chicago: University of Chicago Press, 1980); William H. McNeiíl, The Rise ofthe West: A History of the Human Community (Chicago: University of Chicago Press, 1963); Adda B. Bozeman, “Civilizations Under Stress”, Virginia Quarterly Review, 51 (inverno de 1975), 1-18; Strategic Intelligence and Statecrafi (Was¬ hington: Brasseys [US], 1992) e Politics and Culture in International History: From the Ancient Near East to the Opening of the Modem Age (Nova Brunswick, Nova Jersey: Transaction Publishers, 1994); Christopher Dawson, Dynamics of World History ( LeSalie, Illinois: Sherwood Sugden Co., 1978) e The Movement of World Revolution (Nova York: Sheed and Ward, 1959); Immanuel Wallerstein, Geopolitics and Geoculture: Essays on The Changing World-system (Cambridge: Cambridge University Press, 1992); Felipe Femández- Armesto, Millenium: A History of the Last Thousand Years (Nova York, Scribners, 1995). A esses trabalhos poderia ser acrescentado o último e tragicamente marcado trabalho de Louis Hartz, A Synthesis of World History (Zurique: Humanity Press, 1983), o qual, segundo comentou Samuel Beer, “prevê com admirável presciência uma divisão da humanidade muito parecida com o padrão atual do mundo pós-Guerra Fria, em cinco grandes ‘áreas de cultura’: cirstã, muçulmana, hindu, confuciana e africana”. Memorial Minute, Louis Hartz, Harvard University Gazette, 89 (27/05/94). Uma visão resumida e introdução à análise das civilizações está em Matthew Melko, The Nature of Civilizations (Boston: Porter Sargent, 1969). Também fico agradecido pela úteis sugestões feitas sobre o meu artigo na Foreign Affairs na monografia de crítica de autoria de Hayward W. Alker Jr.: “If Not Huntingtoris ‘Civilizations’, Then Whose?” (monografia não publicada, Massachusetts Institute of Tech¬ nology, 25/03/94). 2. Braudel, On History, pp. 177-181, 212-214, e History of Civilization, pp. 4-5; Gerrit W. Gong, The Standard of “Civilization” in International Society (Oxford: Clarendon Press, 1984), p. 81 e ss., 97-100; Wallerstein, Geopolitics and Geoculture, p. 160 e ss. e 215 e ss.; ArnoldJ. Toynbee, Study of History, X, 274-275, e Civilization on TriaKNova York: Oxford University Press, 1948), p. 24. 3. Braudel, On History, p. 205. Para um exame extenso das definições de cultura e de civilização, principalmente a distinção alemã, ver A. L. Kroeber e Clyde Kluckhohn, Culture: A Criticai Review of Concepts and Definitions (Cambridge: Papers of the Peabody Museum of American Archaelogy and Ethnology, Harvard University, v. XLVII, n. 1,1952), em geral, mas especialmente pp. 15-29- 4. Bozeman, “Civilizations Under Stress”, p. 1. 5. Durkheim e Mauss, “Notion of Civilization”, p. 811; Braudel, On History, pp. 177, 202; Melko, Nature of Civilizations, p. 8; Wallerstein, Geopolitics and Geoculture, p. 215; Dawson, Dynamics of World History, pp. 51, 402; Spengler, Decline ofthe West, I, p. 31. É interessante notar que a International Encyclopedia of the Social Sciences (Nova York: Macmillan and Free Press, organizada por David L. Sills, 17 v., 1968) não contém nenhum item sobre a “civilização” de “civilizações”. O “conceito de civilização” (no singular) é tratado numa subseção do item denominado “Revolução Urbana”, enquanto as civilizações (no plural) são mencionadas de forma passageira num item denominado “Cultura”. 6. Heródoto, The Persian Wars (Harmondsworth, Inglaterra: Penguin Books, 1972), pp. 543-544. 7. Edward A. Tiryakian, “Reflections on the Sociology of Civilizations”, Sociological Analysis, 35 (verão de 1974), 125. 8. Toynbee, Study of History, I, 455, citado em Melko, Nature of Civilizations, pp. 8 e 9; e Braudel, On History, p. 202. 9. Braudel, History of Civilizations, p. 35, e On History, pp. 209-210. 10. Bozeman, Strategic Intelligence and Statecraft, p. 26. 413 11. Quigley, Evolution of Civilizations, p. 146 e ss.; Melko, Nature of Civilizations, p. 101 e ss. Ver D. C. SomervelI, “Argument”, na sua versão resumida de Amold J. Toynbee, A Study of History, v. I-VT (Oxford: Oxford University Press, 1946), p. 569 e ss. 12. Lucian W. Pye, “China: Erratic State, Frustrated Society”, Foreign Affairs, 69 (outono de 1990), 58. 13. Ver Quigley, Evolution of Cimlizations, cap. 3, especialmente pp. 77, 84; Max Weber, “The Social Psychology of the World Religions”, em From Max Weber: Essays in Sociology (Londres: Routledge, transcrito e org. H. H. Gerth e C. Wright Mills, 1991), p. 267; Bagby, Culture and History, pp. 165-174; Spengler, Decline of the West, II, 31 e ss.; Toynbee, Study ofHistory ; I, 133; XII, 546-547; Braudel, History of Civilizations, vários trechos; McNeill, The Rise of the West , vários trechos; e Rostovanyi, “Clash of Civilizations”, pp. 8-9- 14. Melko, Nature of Civilizations, p. 133- 15. Braudel, On History, p. 226. 16. Para obter um acréscimo importante, na década de 90, aos trabalhos sobre a matéria por alguém que conhece bem ambas as culturas, ver Cláudio Véliz, The New World of the Gothic Fox (Berkeley: University of Califórnia Press, 1994). 17. Ver Charles A. e Mary R. Beard, The Rise of American Civilization (Nova York: Macmillan, 2 v., 1927) e Max Lerner, America as a Civilization (Nova York: Simon & Schuster, 1957). Com jactância patriótica, Lerner diz que, “para o bem ou para o mal, a América do Norte é o que ela é — uma cultura em si mesma, com muitas linhas características de poder e de significado próprio, alinhando-se com a Grécia e Roma como uma das grandes civilizações distintas da História”. Contudo, ele reconhece que, “quase sem exceção, as grandes teorias da História não encontram espaço para qualquer concepção da América do Norte como uma civilização por si mesma” (pp. 58-59). 18. Sobre o papel de fragmentos da civilização européia criando novas sociedades na América do Norte, América Latina, África do Sul e Austrália, ver Louis Hartz, The Founding ofNew Societies: Studies in the History of the United States , Latin America, South África, Canada, and Australia (Nova York: Harcourt, Brace & World, 1964). 19- Dawson, Dynamics of World History, p. 128. Ver tb. Mary C. Bateson, “Beyond Sovereignty: An Emerging Global Civilization” [Além da Soberania: uma Civilização Global Emergente], em Contending Sovereignties: Redefining Political Community, org. R. B. J. Walker e Saul H. Mendlovitz (Boulder: Lynne Rienner, 1990), pp. 148-149. 20. Toynbee classifica o Budismo Theravada e o Lamaísta como civilizações fósseis — Study ofHistory, I, 35, 91-92. 21. Ver, por exemplo, Bemard Lewis, Islam and the West (Nova York: Oxford University Press, 1993); Toynbee, Study of History, cap. IX, “Contacts between Civilizations in Space (Encounters between Contemporaries)”, VIII, 88 e ss; Benjamin Nelson, “Civilizational Complexes and Intercivilizational Encounters”, Sociological Analysis, 34 (verão de 1973) 79-105. 22. S. N. Eisenstadt, “Cultural Traditions and Political Dynamics: The Origins and Modes of Ideological Politics”, Bntish Journal of Sociology, 32 (jun./1981), 157, e “The Axial Age: The Emergence of Transcendental Vision and the Rise of Clerics”, Archives Européennes de Sociologie, 22 (n. 1, 1982), 298. Ver tb. Benjamin I. Schwartz, “The Age of Transcendence in Wisdom, Revolution, and Doubt: Perspectives on the First Milennium B. C”, Daedalus, 104 (primavera de 1975), 3. O conceito da Era Axial se deriva de Karl Jaspers, Vom Ursprung und Ziel der Geschichte (Zurique: Artemisverlag, 1949). 23. Toynbee, Civilization on Trial, p. 69. Cf. Wüliam H. McNeill, The Rise of the West, pp. 295-298, que enfatiza o grau em que o advento da Era Cristã “organizou as rotas de comércio, tanto por terra como por mar, (...) ligou as quatro grandes culturas do continente”. 24. Braudel, On History, p. 14: “(...) a influência cultural veio em pequenas doses, retardadas pela extensão e lentidão das jornadas que tinham que empreender. Se dermos crédito aos historiadores, as modas chinesas do período Tang (618-907) se deslocaram tão lentamente que só chegaram à ilha de Chipre e à brilhante corte de Lusignan no século XV. Dali se espalharam, na velocidade maior do comércio do Mediterrâneo, para a França e para a excêntrica corte de Carlos VI, onde chapéus femininos antigos e sapatos com longos bicos pontudos se tomaram imensamente populares, a herança de um mundo há muito desaparecido — de forma muito semelhante a como a luz ainda nos chega vinda de estrelas já extintas.” 25. Ver Toynbee, Study of History, VIII, 347-348. 26. McNeill, Rise of the West, p. 547. 27. D. K. Fieldhouse, Economics and Empire , 1830-1914 (Londres: Macmillan, 1984), p. 3; F. J. C. Heamshaw, Sea Power and Empire (Londres: George Harrap and Co., 1940), p. 179- 28. 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Palmer, “Frederick the Great, Guibert, Bulow: From Dynastic to National War”, em Makers of Modem Strategyfrom Machiãvelli to the Nuclear Age, org. Peter Paret (Princeton: Princeton University Press, 1986), p.119. 32. Edward Mortimer, “Christiany and Islam”, International Affairs, 67 (jan./1991), 7. 33. Hedley Buli, The Anarchical Society (Nova York: Columbia University Press, 1977), pp. 9-13. Ver tb. Adam Watson, The Evolution of International Society (Londres: Routledge, 1992) e Barry Buzan, “From International System to International Society: Structural Realism and Reime Theory Meet the English School”, International Organization, 47 (verão de 1993) , 327-352, que distingue entre modelos “civilizacional” e “funcional” de sociedade internacional e conclui que “parece não haver nenhum caso de socidedade internacional funcional” (p. 336). 34. Spengler, Decline of the West, I, 93-94. 35. Toynbee, Study of History, I, 149 e ss., 154, 157 e ss. 36. Braudel, On History, p. xxxii. Capítulo 3 1. V. S. Naipaul, “Our Universal Civilization”, The 1990 Wriston Lecture, The Manhattan Institute, New York Review of Books, 30/10/1990, p. 20. 2. Ver James Q. Wilson, The Moral SenseÇNovz York: Free Press, 1993); Michael Walzer, Thick and Thin: Moral Argument at Home and Abroad (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1994), especialmente os capítulos 1 e 4; e, para um breve resumo, Francês V. Harbour, “Basic Moral Values: A Shared Core”, Ethics and International Affairs, 9 (1995), 155-170. 3. Václav Havei, “Civilizatiorís Thin Venner”, Harvard Magazine, 97 (jul.-ago./1995), 32. 4. Hedley Buli, The Anarchical Society: A Study of Order in World Politics (Nova York: Columbia University Press, 1977), p. 317. 5. John Rockwell, “The New Colossus: American Culture as Power Export”, e vários autores, “Channel-Surfing Through U.S. Culture in 20 Lands”, New York Times, 30/01/1994, seção 414 415 2, p. 1 e ss.; Davied Rieff, “A Global Culture”, WorldPolicyJournal, 10 (inverno de 1993-94), 73-81. 6. Michael Vlahos, “Culture and Foreign Policy”, Foreign Policy, 82 (primavera de 199D, 69; Kishore Mahbubani, “The Dangers of Decadence: What the Rest Can Teach the West”, Foreign Affaírs, 72 (set.-out./1993), 12. 7. Aaron L. Friedberg, “The Future of American Power”, Political Science Quarterly, 109 (primavera de 1994), 15. 8. Richard Parker, “The Myth of Global News”, New Perspectives Quarterly, 11 (inverno de 1994), 41-44; Michael Gurevitch, Mark R. Levy e Itzhak Roeh, “The Global Newsroom: convergences and diversities in the globalization of television news”, em Communications and Citizensbp: Joumalism and the Public Sphere in the New Media, org. 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Sarvepalli Gopal, “The English Language in índia”, Encounter , 73 (jul.-ago./1989), p. 16, que estima que 35 milhões de indianos “falam e escrevem algum tipo de inglês”. Banco Mundial, World Development Report 1985, 1991 (Nova York: Oxford University Press), quadro 1. 14. Kapoor e Gupta, “Introduction”, em English in índia , org. Gupta e Kapoor, p. 21; Gopal, “English Language”, p. 16. 15- Fishman, “Spread of English as a New Perspective”, p. 115. 16. Ver Newsweek, 19/07/1993, p. 22. 17. Citado por R. N. Srivastava e V. P. Sharma, “Indian English Today”, em English in índia , org. Gupta e Kapoor, p. 191; Gopal, “English Language”, p. 17. 18. New York Times, 16/07/1993, p. A9; Boston Globe, 15/07/1993, p.13. 19. Além das projeções na World Christian Encyclopedia , ver as de Jean Bourgeois-Pichat, “Le nombre des hommes: État et prospective”, em Albert Jacquard etal., LesScientifiquesParlent (Paris: Hachette, 1987), pp. 140, 143, 151, 154-156. 20. Edward Said sobre V. S. Naipaul, citado por Brent Staples, “Con Men and Conquerors”, New York Times Book Review, 22/05/1994, p. 42. 21. A. G. Kenwood e A. L. Lougheed, The Growth of the International Economy 1820-1990 (Londres: Routledge, 3. ed., 1992), pp. 78-79; Angus Maddison, Dynamic Forces in Capitalist Development (Nova York: Oxford University Press, 199D, pp. 326-327; Alan S. Blinder, New York Times, 12/03/1995, p. 5E. 22. David M. Rowe, “The Trade and Security Paradox in International Politics” (manuscrito não publicado, Ohio State University, 15/09/1994), p. 16. 23. Dale C. Copeland, “Economic Interdependence and War: A Theory of Trade Expectations”, International Security 20 (primavera de 1996), 25. 24. William J. McGuire e Claire V. McGuire, “Content and Process in the Experience of Self’, Advances in Experimental Social Psychology, 21 (1988), 102. 25. Donald L. Horowitz, “Ethnic Conflict Management for Policy-Makers”, em Conflict and Peacemaking in Multiethnic Societies, org. Joseph V. Montville e Hans Binnendijk (Lexing- ton, MA: Lexington Books, 1990), p. 121. 416 26. Roland Robertson, “Globalization Theory and Civilizational Analysis”, Comparative Civili- zations Review, 17 (outono de 1987), 22; Jeffery A. Shad Jr., “Globalization and Islamic Resurgence”, Comparative Studies in Society and History, 9 (abr./1967), 292-293. 27. Ver Cyril E. Black, The Dynamics of Modemization: A Study in Comparative History (Nova York: Harper & Row, 1966), pp. 1-34; Reinhard Bendiz, “Tradition and Modemity Reconsidered”, Comparative Studies in Society and History, 9 (ab.r/1967), 292-293. 28. Femand Braudel, On History (Chicago: University of Chicago Press, 1980), p. 213. 29. Os trabalhos sobre as características que distinguem a civilização ocidental são, evidente¬ mente, muito numerosos. Ver, entre outros, William H. McNeill, Rise of the West: A History of the Human Community (Chicago: University of Chicago Press, 1963); Braudel, On History, e outras obras anteriores; Immanuel Wallerstein, Geopolitics and Geoculture: Essays on the Changing World System (Cambridge: Cambridge University Press, 1991). Karl W. Deutsch fez uma comparação abrangente, sucinta e muito sugestiva do Ocidente e de nove outras civilizações em termos de 21 fatores geográficos, culturais, econômicos, tecnológi¬ cos, sociais e políticos, ressaltando o grau em que o Ocidente difere das outras civilizações. Ver Karl W. Deutsch, “On Nationalism, World Regions, and the Nature of the West”, em Mobilization, Center-Periphery Stmctures, and Nation-building: A Volume in Commemo- ration of Stein Rokkan, org. PerTorsvik (Bergen: Universitetforlaget, 1981), pp. 51-93. Para um resumo sucinto dos aspectos principais e específicos da civilização ocidental em 1500, ver Charles Tilly, “Reflections on the History of European State-making”, em TbeFormation of National States in Western Europe, org. Tilly (Princeton: Princeton University Press, 1975), p. 18 e ss. 30. Deutsch, “Nationalism, World Religions, and the West”, p. 77. 31. Ver Robert D. Putnam, Making Democracy Work: Civil Traditions in Modem Italy (Princeton: Princeton University Press, 1993), p. 12 e ss. 32. Deutsch, “Nationalism, World Religions, and the West”, p. 78. Ver tb. Stein Rokkan, “Dimensions of State Formation and Nation-building: A Possible Paradigm for Research on Variations within Europe”, em Charles Tilly, The Formation of National States in Western Europe (Princeton: Princeton University Press, 1975), p. 576, e Putnam, Making Democracy Work, pp. 124-127. 33- Geert Hofstede, “National Cultures in Four Dimensions: A Research-based Theory of Cultural Differences among Nations”, International Studies of Management and Organization , 13 (1983), 52. 34. Harry C. Triandis, “Cross-Cultural Studies of Individualism and Collectivism”, in Nebraska Symposium on Motivation, 1989 (Lincoln: University of Nebraska Press, 1990), 44-133, e New York Times, 25/12/1990, p. 41. Ver também. Ideology and National Competitiveness: An Analysis of Nine Countries, org. George C. Lodge e Ezra F. Vogei (Boston: Harvard Business School Press, 1987), várias. 35. É quase inevitável que surjam debates sobre a interação das civilizações com algumas variações dessa tipologia de respostas. Ver Amoíd J. Toynbee, Study of History (Londres: Oxford University Press, 1935-61), II, pp. 187 e ss., VIII, 152-153, 214; John L. Esposito, The Islamic Threat: Myth or Reality (Nova York: Oxford University Press, 1992), pp. 53-62; Daniel Pipes, In the Path of God: Islam and Political Power (Nova York: Basic Books, 1983), p. 105-142. 36. Pipes, Path ofGod, p. 349. 37. William Pfaff, “Reflections: Economic Development”, New Yorker ; 25/12/1978, p. 47. 38. Pipes, Path ofGod, pp. 197-198. 39- Ali Al-Amin Mazrui, Cultural Forces in World Politics (Londres: James Currey, 1990), pp. 4-5. 40. Esposito, Islamic Threat, p. 55; ver, de modo geral, pp. 55-62; e Pipes, Path of God, pp. 114-120. 41. Rainer C. Baum, “Authority and Identity — The Invariance Hypothesis II”, Zeitschrift für Soziologie, 6 (out./1977), 368-369. Ver tb. Rainer C. Baum, “Authority Codes: The Invariance Hypothesis”, Zeitschrift für Soziologie, 6 (jan./1977), 5-28. 417 42. Ver Adda B. Bozeman, “Civilizations Under Stress”, Virgínia Quarterly Review, 51 (inverno de 1975), 5 e ss.; Leo Frobeníus, Paideuma: Utnrisse einerKultur- und Seelenlehre (Munique: C.h. beck, 1921), p. 11 e ss.; Oswald Spengler, The Decline of the West (Nova York: Alfred A. Knopf, 2 vs., 1926, 1928), II, 57 e ss. 43. Bozeman, "Civilizations Under Stress”, p. 7. 44. William E. Naff, “Reflections on the Question of ‘East and West’ from the Point of View of Japan”, Comparative Civilizations Review, 13/14 (outono de 1985 e primavera de 1986), 222 . 45. David E. Apter, “The Role of Traditionalism in the Political Modemization of Ghana and Uganda”, World Politics, 13 (out,/1960), 47-68. 46. S. N. Eisenstadt, 'Transformarion of Social, Political, and Cultural Orders in Modemization", American Sociological Review , 30 (out71965), 659-673. 47. Pipes, Path of God, pp. 107, 191. 48. Braudel, On History, pp. 212-213- Capítulo 4 1. Jeffery R. Bamett, “Exclusions as National Security Policy”, Parameters; 24 (primavera de 1994), 54. 2. Aaron 1. Friedberg, “The Future of American Power”, Political Science Qaarterly\ 109 (primavera de 1994), 20-21. 3. Hedley Buli, “The Revolt Against the West”, em Expansion of International Society , org. Hedley Buli e Adam Waltson (Oxford: Oxford University Press, 1984), p. 219. 4. Barry G. Buzan, “New Pattems of Global Security in the Twenty-first Century”, International Affairs, 67 (jul./1991), 451. 5. Project 2025 (minuta) 20/09/1991, p. 7; Banco Mundial, World Development Report 1990 (Oxford: Oxford University Press, 1990), pp. 229, 244; The World Almanac and Book of Facts 1990 (Mahnaw, NJ: Funk & Wagnalis, 1989), p. 539. 6. 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Sobre alguns desses problemas, ver Ivan P. Hall, “Japaris Asia Ca rd”, National Interest, 38 (inverno de 1994-95), 19 e ss. 10. Casimir Yost, “America’s Role in Asia: One Year Later” (Asia Foundation, Center for Asian Pacific Affairs, Report n. 15, fev./1994), p. 4; Yoichi Funabashi, “The Asianization of Asia”, Foreign Affairs, 72 (nov.-dez./1993), 78; Anwar Ibrahim, International Herald Tribune, 31/01/1994, p. 6. 11. Kishore Mahbubani, “Asia and a United States in Decline”, Washington Quarterly, 17 (primavera de 1994), 5-23; sobre uma contra-ofensiva, ver Eric Jones, “Asia’s Fate: A Response to the Singapore School”, National Interest, 35 (primavera de 1994), 18-28. 12. Mahatir bin Mohamad, Marejirenma (O Dilema Malaio) (Tóquio: Imura Bunka Jigyo, trad. Takata Masayoshi, 1983), p. 267, citado em Ogura Kazuo, “A Call for a New Concept of Asia”, Japan Echo, 20 (outono de 1993), 40. 13. Li Xiangiu, “A Post-Cold War Alternative from East Asia”, Straits Times, 10/02/1992, p. 24. 14. 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A semelhança entre a Turquia e o México nesse aspecto foi assinalada por Barry Buzan, “New Pattems of Global Security in the Twentieth-first Century”, International Affairs, 67 (jul./1991), 449, ejagdish Bhagwati, The World Trading System at Risk (Princeton: Princeton University Press, 1991), p. 72. 18. Ver Marquês de Custine, Empire of the Czar: A Joumey Through Eternal Rússia (Nova York: Doubleday, 1989, originalmente publicado em Paris em 1844), várias. 19- P. Ya. Chaadayev, Artigos e Cartas [ Statyi i pisma] (Moscou: 1989), p. 178, e N. Ya. Danilevskiy, Rússia e Europa [ Rossiya I Yevropa] (Moscou: 1991), pp. 267-268, citados em Sergei Vladislavovich Chugrov, “Rússia Between East and West”, em MEMO 3: In Search ofAnswers in the Post-Soviet Era, org. Steve Hirsch (Washington, D.C.: Bureau of National Affairs, 1992), p. 138. 20. Ver Leon Aron, “The Battle for the Soul of Russian Foreign Policy”, The American Enterprise, 3 (nov.-dez./1992), 10 e ss.; Alexei G. 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Cl; general indiano citado por Les Aspin em “From Deterrence to Denuking: Dealing with Proliferation in the 1990’s”, Memorando, 18/02/1992, p. 6. 3. Lawrence Freedman, “Great Powers, Vital Interests and Nuclear Weapons”, Survival, 36 (inverno de 1994), 37; Les Aspin, Comentários, National Academy of Sciences, Committee on International Security and Arms Control, 07/12/1993, p. 3. 4. Stanley Norris citado, Boston Globe , 25/11/1995, p. 1, 7; Alastair Iain Johnson, “China’s New ‘Old Thinking’: The Concept of Limited Deterrence”, International Security ; 20 (inverno de 1995-96), 21-23- 5. Philip L. Ritcheson, “Iranian Military Resurgence: Scope, Motivations, and Implications for Regional Security”, Armed Forces and Society, 21 (verão de 1995), 575-576; Discurso de Warren Christopher, Kennedy School of Government, 20/01/1995; Time, 16/12/1991, p. 47; Ali Al-Amin Mazrui, Cultural Forces in World Politics (Londres: J. Currey, 1990), pp. 220, 224. 6. New York Times , 15/11/1991, p. 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Os dados e citações são de Myron Weiner, Global Migration Crisis (Nova York: Harper Collins, 1995), pp. 21-28. 22. Weiner, Global Migration Crisis, p. 2 23. Stanley Hoffmann, “The Case for Leadership”, Foreign Policy, 81 (inverno de 1990-91), 30. 24. Ver B. A. Robertson, “Islam and Europe: An Enigma or a Myth?”, Middle East Journal, 48 (primavera de 1994), p. 302; New York Times, 05/12/1993, p. 1; 05/05/1995, p. l;Joel Klotkin e Andries van Agt, “Bedouins: Tribes That Have Made It”, New Perspectives Quarterly, 8 (outono de 1991), p. 51; Judith Miller, “Strangers at the Gate”, New York Times Magazine, 15/09/1991, p. 49- 25. International Herald Tribune, 29/05/1990, p. 5; New York Times, 15/09/1994, p. A21. A pesquisa de opinião francesa foi patrocinada pelo governo francês, a alemã pelo Comitê Judeu Norte-americano. 26. Ver Hans-George Betz, “The New Politics of Resentment: Radical Right-Wing Populist Parties in Western Europe”, Comparative Politics, 25 (jul./1993), 413-427. 27. 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Buzan e Segai, “Rethinking East Asian Security”, p. 7; Richard K. Betts, “Wealth, Power and Instability: East Asia and the United States After the Cold War”, International Security, 18 (inverno de 1993-94), 34-77; Aaron L. Firedberg, “Ripe for Rivalry: Prospects for Peace in Multipolar Asia”, International Security, 18 (inverno de 1993-94), 5-33. 20. Can China's Armed Forces Win the Next War?, trechos traduzidos por Munro em “Eavesdropping on the Chinese (...)”, p. 355 e ss.; New York Times, 16/11/1993, p. A6; Friedberg, “Ripe for Rivalry”, p. 7. 21. Desmond Bali, “Arms and Affluence: Military Acquisitions in the Asia-Pacific Region”, International Security, 18 (inverno de 1993-94), 95-111; Michael T. 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Yilmaz, “Turkey’s New Role”, pp. 94, 97. 49. Janusz Bugajski, “Joy of War”, p. 4; New York Times, 14/11/1992, p. 5; 05/12/1992, p. 1; 15/11/1993, p. 1; 18/02/1995, p. 3; 01/12/1995, p. A14; 03/12/1995, p. 1; 16/12/1995, p. 6; 24/01/1996, p. Al, A6; Susan Woodward, Balkan Tragedy: Chãos andDissolution afterthe Cold War (Washington, D.C.: Brookings Institution, 1995), pp. 356-357; Boston Globe, 10/11/1992, p. 7; 13/07/1993, p. 10; 24/06/1995, p. 9; 22/09/1995, p. 1, 15; Bül Gertz, Washington Tintes, 02/06/1994, p. Al. 50. Jane’s Sentínel, citado em Economist, 06/08/1994, p. 41; Economist, 12/02/1994, p. 21; Ato York Times, 10/09/1992, p. A6; 05/12/1992, p. 6; 26/01/1993, p. A9; 14/09/1993, p. A14; 14/04/1994, p. 6; 15/04/1995, p. 3; 15/06/1995, p. A12; 03/02/1996, p. 6; Boston Globe, 14/04/1995, p. 2; Washington Post, 02/02/1996, p. 1. 51. Ato York Times, 23/01/1994, p. 1; Boston Globe, 01/02/1994, p. 8. 52. Sobre a aquiescência norte-americana aos embarques de armas para os muçulmanos, ver New York Times,, 15/04/1995, p. 3; 03/02/1996, p. 6; Washington Post, 02/02/1996, p. 1; Boston Globe, 14/04/1995, p. 2. 53. Rebecca West, Black Lamb and Grey Falcon: The Record of ajoumey through Yugoslavia in 1937 (Londres: Macmillan, 1941), p. 22, citada em Charles G. Boyd, “Making Peace with the Guilty: The Truth About Bosnia”, Foreign Affairs, 74 (set.-out./1995), 22. 54. Citado em Timothy Garton Ash, “Bosnia in Our Future”, New York Review of Books, 21/12/1995, p. 27; New York Times, 05/12/1992, p. 1. 55. New York Times, 03/09/1995, p. 6E; Boston Globe, 11/05/1995, p. 4. 56. Ver U.S. Institute of Peace, Sudan: Ending the War, Moving Talks Forward (Washington, D.C.: U.S. Institute of Peace Special Report, 1994); New York Times, 26/02/1994, p. 3. 57. John J. Maresca, Warin the Caucastis (Washington: United States Institute of Peace, Special Report, sem data), p. 4. 58. Robert D. Putnam, “Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two Levei Games”, International Organization , 42 (verão de 1988), 427-460; Samuel P. Huntington, The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century (Norman, OK: University of Oklahoma Press, 1991), pp. 121-163- 59. New York Times, 27/01/1993, p. A6; 16/02/1994, p. 47. Sobre a iniciativa russa de fevereiro de 1994, ver, de modo geral, Leonard J. Cohen, “Rússia and The Balkans: Pan-Slavism, Paitnership and Power”, International Journal, 49 (ago./1994), 836-845. 60. Economist, 26/02/1994, p. 50. 61. New York Times, 20/04/1994, p. A12; Boston Globe, 19/04/1994, p. 8. 62. Ato York Times, 15/08/1995, p. 13- 63 . HilI and Jewett, Back in the USSR, p. 12; Paul Henze, Geórgia and Armênia — Toward Independence (Santa Monica, CA: RAND P-7924, 1995), p. 5; Boston Globe, 22/11/1993, p. 34: Capítulo 12 1. Amold J. Toynbee, A Study of History (Londres: Oxford University Press, 12 vols., 1934-1961), VII, 7-17; Civüization on Trial: Essays (Nova York: Oxford University Press, 1948), 17-18; Study of History, IX, 421-422. 2. Matthew Melko, The Nature of Civilizations (Boston: Porter Sargent, 1969), p- 155. 3. Carroll Quigley, The Evolution of Civilizations: An Introduction to Historícal Analysis (Nova York: Macmillan, 1961), p. 146 e ss. 4. Quigley, Evolution of Civilizations, pp. 138-139, 158-160. 435 5. Mattei Dogan, ‘‘The Decline of Religious Beliefs in Western Europe”, International Social Science Journal , 47 (set./1995), 405-419. 6. Robert Wuthnow, “índices of Religious Resurgence in the United States”, em Religious Resurgence: Contemporary Cases in Islam, Christianity, and Judaism, org. Rochard T. Antoun e Mary Elaine Hegland (Syracuse: Syracuse University Press, 1987), pp. 15 34; Economist ; 08/07/1995, pp. 19-21. 7. Arthur M. Schlesinger, Jr., The Disuniting of America: reflections on a Multicultural Society (Nova York: W. W. Norton, 1992), pp. 66-67, 123. 8. Citado em Schlesinger, Disuniting of America, p. 118. 9. Gunnar Myrdal, An American Dilemma (Nova York: Harper & Bros., 1994), I, 3. Richard Hofstadter citado em Hans Kohn, AmericanNationalism: AnInterpretiveEssay (Nova York: Macmillan, 1957), p. 13- 10. Takeshi Umehara, “Ancient Japan Shows Post-Modemism the Way”, New Perspectives Quarterfy, 9 (primavera de 1992), 10. 11. James Kurth, “The Real Clash”, National Interest, 37 (outono de 1994), 3-15. 12. Malcolm Rifkind, discurso, Pilgrihi Society, Londres, 15/11/1994 (Nova York: British Information Services, 16/11/1994), p. 2. 13- International Herald Tribune , 23/05/1995, p. 13. 14. Richard Holbrooke, “America: A European Power”, Foreign Affairs , 74 (mar.-abr./1995), 49. 15. Michael Howard, America and the World (St. Louis: Washington University, a Annual Lewin Lecture, 05/04/1984), p. 6. 16. Schlesinger, Disuniting of America, p. 127. 17. Sobre uma declaração dos anos 90 a respeito desse interesse, ver “Defense Planning Guidance for the Fiscal Years 1994-1999”, minuta, 18/02/1992; New York Times, 08/03/1992, p. 14. 18. Z. A. Bhutto, If IAm Assassinated (Nova Délhi: Vikas Publishing House, 1979), pp. 137-138, citado em Louis Delvoie, “The Islamization of Pakistan’s Foreign Policy”, International Journal, 51 (inverno de 1995-96), 133. 19. Michael Walzer, Thick and Tbin: Moral Argument at Home and Abroad (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1994), pp. 1-11. 20. James Q. Wilson, The Moral Sense (Nova York: Free Press, 1993), p. 225. 21 Governo de Singapura, Shared Values (Singapura: Cmd. n. 1 of 1991, 02/01/1991), pp. 2-10. 22. Lester Pearson, Democracy in World Politics (Princeton: Princeton University Press, 1955), pp. 83-84. índice Remissivo A Abdullah, Príncipe Herdeiro da Arábia Saudita — 147 absolutismo — 84, 295, 336 Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio — ver GATT Afeganistão— 139, 165, 210, 221, 263, 269, 314, 325, 340, 345, 348, 349, 350, 351, 366 África do Sul — 53, 54, 115, 154, 168, 224, 256, 304-305, 335, 404 africana, civilização — 50, 53, 56, 58, 72, 80, 227, 229, 239, 250, 256, 265, 304, 326, 335, 349, 396, 401, 403, 409, 457 estrutura política da — 167, 168, 170 identidades e valores culturais na — 34, 77, 157, 241, 244 indigenizaçao na — 115, 125 modernização e a — 90, 92 população da — 102-103 Ahmed, Akbar — 336 Aja mi, Fouad — 141, 364 al-Assad, Hafiz — 318 al-Hawali, Safar — 317 al-Turabi, Hassan — 119, 123, 137, 221 Albânia — 147, 149, 155, 159, 170, 324, 331, 332, 362, 366, 401 Alemanha (unificada) — 28, 74, 97, 107, 108, 127, 167, 180, 195, 196, 204, 209, 289, 391, 405, identidade cultural da — 154, 155, 159 em conflitos de linha de fratura — 347, 358, 359, 360, 366, 374, 375, 377, 383 imigração na — 42, 183, 248, 249, 250, 251, 252 Alexandre II, Tzar da Rússia — 174 Ali, Ben — 143, 318 Ali, Muhammad — 88 Aliyev, Gaider — 357 América do Norte — 52, 58, 101, 160 relações do México com a — 156, 165, 172, 185, 186-188 ver também Canadá; Estados Unidos América do Sul — 58, 186, 254 ver ta mbém países específicos Angola — 327 Apter, David E. — 93 árabe, civilização — ver islâmica, civilização árabe, idioma — 71, 73, 343 Arábia Saudita — 17, 21, 93, 117, 132, 135, 139, 140, 144, 147, 156, 182, 219, 220, 221, 223, 229, 232, 234, 247, 263, 269, 271, 304, 313, 314, 318, 319, 337, 339 congregação a países afins pela — 348, 358, 364, 366, 367, 369, 370, 374 Arbatov, Georgi — 228 Área de Livre Comércio da Centro-Européia — 165 Argélia — 108, 114, 123, 139, 142, 147, 148, 154, 221, 230, 234, 244, 247, 250, 252, 269, 270, 318, 348, 364, 366, 401 Argentina — 165, 167, 305, 372, 404 Armênia — 41, 75, 155, 178, 204, 205, 308, 325, 329, 347, 349, 352, 354-357, 372, 374, 379 ASE AN — ver Associação das Nações do Sudeste Asiático Ásia — 58, 93, 409 capacidade militar na — 41, 108, 109, 228, 231-237, 238-239 choques dentro da — 21, 156, 161, 162 desenvolvimento econômico na — 125-134, 160, 162-163, 165, 188-191 hegemonia chinesa na — 274-294, 402 imigração proveniente da — 253, 254, 258 poderio em expansão da — 19, 20, 28, 34, 98, 99, 125-134, 148, 149, 241-242, 273-293, 396 população da — 102-103 436 437
MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964
http://felixmaier1950.blogspot.com/2020/09/memorial-31-de-marco-de-1964-textos.html
HISTÓRIA ORAL DO EXÉRCITO – 31 MARÇO 1964
http://felixmaier1950.blogspot.com/2020/09/historia-oral-do-exercito-31-de-marco.html
Ainda:
Baixe o livro “Arquipélago Gulag” em https://www.docdroid.net/BUe5N4M/aleksandr-solzhenitsyn-arquipelago-gulag-pdf.
Veja 741 fotos dos Gulags em https://www.gettyimages.pt/fotos/gulag?phrase=gulag&sort=mostpopular
Veja 63.080 imagens e fotos do Comunismo em https://www.gettyimages.pt/fotos/comunismo?phrase=comunismo&sort=mostpopular
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