A TRINCHEIRA DA BATALHA DA
MEMÓRIA
A VERSÃO DOS GRUPOS DE CIVIS E MILITARES DA RESERVA
Eduardo Heleno de Jesus Santos,
mestre em Ciência Política (UFF)
Vagner Camilo Alves, professor
do Programa de Pós-Graduação em Ciência
Política (UFF)
Palavras chave :
memória, militares, redemocratização
1 INTRODUÇÃO
Este
trabalho tem como base a minha dissertação de mestrado, cujo tema são os grupos
formados por civis e militares da reserva desde 1988. Do início desta década
aos dias atuais ocorre, no Brasil e demais países do cone Sul, um processo de
transformação da memória social, no qual há a revisão do papel dos militares e
das Forças Armadas na política, na sociedade e na História recente. Esta
mudança implica a criação de novos cultos e atividades que produzam a irrupção
de uma memória antes clandestina, ligada às organizações de esquerda, que
gradativamente passa ser hegemônica.
Este processo não ocorre sem resistência. No país, são criados grupos
que buscam, entre os outros objetivos, se opor a esta nova memória social.
Um perfil sumário destas entidades aponta que a maior parte dos seus
integrantes eram oficiais que participaram ativamente do golpe de 1964. No
entanto, em sua maioria, estes oficiais já estavam fora dos círculos de decisão
nas Forças Armadas quando o regime acabou. O ressentimento no discurso destes
militares é direcionado para a sociedade como um todo, que para eles, avaliou
de forma negativa o regime militar. Este trabalho tem,
como principais objetivos, mostrar como tais
entidades, formadas por militares da reserva e civis, procuram manter
suas versões da História e traçar um paralelo entre as ações destes grupos e as
iniciativas semelhantes promovidas pelas Forças Armadas.
2 RESSENTIMENTO
E REVANCHISMO
Na transição do regime militar no Brasil, em especial, o governo Sarney,
o ressentimento dos perseguidos e dos contrários ao regime teve voz nos
programas de tevê, nas músicas, nas novelas e nos jornais. Reportagens de
crimes envolvendo militares apareceram nos jornais como nunca apareceriam na
época mais repressiva do regime. Nas redações, os desdobramentos dos casos
Riocentro, Ustra e Baumgarten, entre outros, eram sinônimos de notícia. Além da
imprensa, os relatórios das entidades de Direitos Humanos mostraram para o
mundo as denúncias do que ocorria aqui e nos vizinhos Cone Sul. Um destes
documentos, que revelava os horrores da guerra entre a subversão e o governo argentino, intitulado Nunca Más, acabou dando origem ao nome do projeto e
livro preparados pela Arquidiocese de São Paulo que denunciava os
torturadores e os métodos de tortura
aplicados na ditadura brasileira.
Publicado em 1985, o livro Brasil:
Nunca Mais, reunia informações sobre o período entre 1964 e 1979, numa
pesquisa que analisou processos que transitaram na Superior Tribunal Militar
(STM).[1]
No mesmo ano, como uma reação institucional às denúncias no livro e na
imprensa, o ministro do Exército general Leônidas Pires Gonçalves encomendou ao general Agnaldo
Del Nero Augusto a redação de um livro que contasse a verdade sobre os planos e
ações da esquerda na luta armada[2].
Inicialmente intitulado “Tentativas de
tomada do poder”, e posteriormente chamado de Orvil - anagrama de livro -, o documento de
953 páginas foi concluído dois anos depois. Na introdução, o subtítulo Violência Nunca Mais! traz uma crítica
ao projeto da Arquidiocese de São Paulo:
“Os inquéritos para apuração desses atos criminosos
contra a pessoa humana também transitaram na Justiça Militar entre abril de
1964 e março de 1979. Porém, essas pessoas mortas e feridas - onde se incluem
mulheres e até crianças e, na maioria, completamente alheias ao enfrentamento
ideológico -, por serem inocentes e não terroristas, não estão incluídas na
categoria daquelas protegidas pelos "direitos humanos" de certas
sinecuras e nem partilham de uma "humanidade comum" de certas
igrejas.(...).” [3]
Também
em 1985, a atriz e deputada federal (PT)
Bete Mendes acusou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra de tê-la torturado
nos porões do DOI-CODI paulista. O caso repercutiu na imprensa brasileira e
uruguaia. Ele seria o doutor Tibiriçá, codinome que aparece repetidas vezes no livro Brasil: Nunca Mais. O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra
escreveu em 1987 o livro Rompendo o
Silêncio para se defender das acusações feitas pela atriz. Em seu livro ele
apresenta uma série de informações sobre a guerrilha, tais como os
assassinatos, assaltos, justiçamentos e seqüestros produzidos pelas
organizações de esquerda. E não foi só
Ustra que reagiu. Três anos após o início do governo civil, militares da ativa,
da reserva e civis, insatisfeitos, começaram a responder ao que eles chamavam
de revanchismo da mídia.
3 OS PRIMEIROS GRUPOS
Já
havia no meio militar, desde de 1971, o jornal Letras em Marcha, elaborado inicialmente por oficiais que faziam
o curso de Comunicação Social do Exército. Era uma espécie de tribuna militar,
o que a revista Veja chamou de porta-voz
da linha-dura.[4] Em
novembro de 1988, foi organizado no Rio de Janeiro o grupo Independente 31 de
março, formado por militares da reserva e civis, que viam a possibilidade de
implantação de um regime comunista no Brasil[5].
Este grupo utilizava o jornal Letras em
Marcha para difundir suas ideias através do informativo Vontade Nacional[6]
e dos artigos de seus autores, alguns deles pertencentes à direção do jornal.
Neste
mesmo ano, no dia 11 de maio, o coronel R/1 Pedro Schirmer, o tenente-coronel R/1 Antonio Gonçalves Meira,
e os civis José Augusto Galdino da Costa, Renato Osvaldo Winter e Armindo
Correa fundaram o jornal Ombro a Ombro.
Schirmer – que já tinha experiência como colaborador do Letras em Marcha, era na época chefe da Divisão de
Assuntos Internacionais da Escola Superior de Guerra (ESG)[7].
Em editorial eles afirmavam que era imperioso que o jornal se opusesse “ao
ranço ideológico esquerdista que grassa em grande parte dos órgãos formadores
de opinião.” [8] Assim
como o Letras em Marcha,
o Ombro a Ombro publicava artigos de seus colaboradores, civis
e militares, cujos temas iam da historiografia militar ao anticomunismo. Não era raro em suas edições constarem
artigos que evocavam as memórias e as versões dos autores – quase sempre
militares da reserva - sobre o regime militar. Na batalha pela memória, em um
texto sobre o 31 de março, publicado em 1990, eles afirmaram em editorial:
“Movimento que a principio empolgou a Nação, foi aos
poucos definhando pela ação da mídia e pela omissão de seus condutores.
Esqueceram-se as realizações para realçar-lhes os aspectos por ventura
negativos, que lhe foram imputados pela ótica de um liberalismo, pela qual até
os comunistas olham e falam.” [9]
O Ombro a Ombro serviu como tribuna para
uma série de grupos que se formaram desde então. Pelo menos 15 dos 23 grupos que surgiram desde 1988 contabilizados
por esta pesquisa usaram as páginas deste jornal[10] para
divulgar suas opiniões, a maior parte de caráter eminentemente político. Porém,
alguns destes grupos, apesar de produzirem manifestos contra a situação
política, se ocuparam também com a memória do regime.
Um destes grupos era o Guararapes, fundado em 1991, na cidade
de Fortaleza, por 17 militares da
reserva e que hoje conta com mais de dois mil integrantes em sua lista[11].
Até hoje é um dos grupos mais atuantes e que mais teve repercussão na mídia com
seus manifestos, em especial no governo Itamar Franco. Embora atualmente produza mais
em seu site artigos com fundo político – o grupo foi criado devido à presença
de esquerdistas no governo de Fernando Collor de Mello, o Guararapes também
participa do processo de construção da memória. Um dos livretos do grupo,
intitulado Ontem e Hoje, foi distribuído
em agosto de 2008, em um seminário[12] no
Clube Militar. A capa mostra dois uniformes
de artes marciais. O da esquerda, abaixo da palavra ontem, está marcado por elipses cobrindo pontos vitais, sugerindo
os locais onde ‘o lutador’ foi atingido. O segundo quimono, virado de costas,
mais à direita, abaixo da palavra hoje, tem apenas um quadrado desenhado.
Dentro da figura sobressai uma faca enterrada. A introdução do livreto traduz
bem o ressentimento com a sociedade e explica a simbologia da capa:
Ontem, NÓS enfrentamo-LOS de frente (sic), expondo
corajosa e lealmente o nosso próprio corpo para defesa de uma democracia com
responsabilidade.
Hoje, ELES nos injuriam e nos difamam, além de
tentarem covardemente nos apunhalar
pelas costas ou de atingir mortalmente qualquer parte do nosso corpo sob o
manto de um falso ambiente democrático.[13]
O primeiro capítulo deste livreto traz uma lista das realizações do
regime militar, no qual eles se referem como “a maior revolução industrial do século XX”[14],
obras estas que impediram, segundo eles, “a implantação de uma FARC no Brasil”.
O segundo capítulo é escrito pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que utiliza
artigos de jornais e documentos do
Exército para se defender das acusações da atriz Bete Mendes. Ao final, o
Guararapes endossa o texto de Ustra e propõe um desafio aos generais de ontem e
hoje: “ter como dever a atitude e a coragem de defender aqueles que cumprem o
seu dever.”[15]
Outro grupo que publicou suas ideias no Ombro a Ombro é o Inconfidência, de Belo Horizonte. Atualmente eles
difundem sua versão da história através de seu próprio jornal, distribuído para
escolas públicas de Minas e estabelecimentos de ensino militar em todo Brasil.
Esta entidade foi fundada por civis e militares em 1º de agosto de 1993[16],
no período de forte crise institucional que resultaria no impeachment do
presidente Collor. Dos jornais acessados para esta pesquisa, o do grupo
Inconfidência é o único que promove edições especiais e periódicas sobre o 31 de
março, o 25 de agosto e o 27 de novembro.
No jornal mineiro, assim como os outros,
o que se pode observar não é apenas o culto às tradições militares, mas
a necessidade da manutenção de uma versão da história que evite o silenciamento
causado pela construção de memória iniciada pelo “outro lado”. Não somente a figura do Duque de Caxias é recordada,
mas o seu mito como pacificador e soldado, cuja imagem, quase sacralizada,
parece padecer de uma falta de identificação e empatia no meio castrense e
civil[17].
No caso da Intentona, o episódio histórico é reconstituído com artigos atuais e
de jornais da época onde se destacam os militares legalistas e seus familiares
como as principais vítimas da sublevação, deixando no silêncio a palavra dos
militares que se sublevaram. Em relação
à 1964, a construção do imaginário é feita com os relatos dos militares e civis
que atuaram pelo golpe, não com o relato daqueles que foram expulsos da
corporação ou perseguidos, ou mesmo os legalistas que foram traídos. Se houve
revolução é porque já pairavam sinais de uma revolução comunista. No caso do
especial sobre a ditadura, se há vítimas, são os que morrem ou são torturados
pelos “subversivos”. Por sinal, reclama-se o fato de estas serem menos vítimas que os do outro lado, porque
não receberam indenização ou reconhecimento da sociedade.
Para documentar sua linha argumentativa, o Inconfidência e os demais
grupos disponibilizaram aos seus leitores artigos, editoriais e matérias dos
principais jornais brasileiros, publicadas entre 1964 e 1985. Na edição
comemorativa dos 42 anos do “movimento cívico-militar de 31 de março de 1964”, os
seguintes textos foram reproduzidos de forma a mostrar o apoio da sociedade aos
militares:
- Ressurge a
democracia! - editorial de O Globo
de 2 de abril de 1964;
- Julgamento da
Revolução – por Roberto Marinho, editorial do Globo de 7 de outubro de 1984;
- 31 de março
– editorial do Norte do Piauí, 16 de
abril de 2004;
- O dever dos
militares – editorial do Estado de
Minas de 5 de abril de 1964;
- Exército:
Revolução garantiu a democracia – editorial do Estado de Minas de 31 de março de 1985.
- Basta! –
editorial do Correio da Manhã de 31
de março de 1964.
Além destes textos, transcritos na íntegra, foram disponibilizados trechos
de reportagens dos jornais citados e da Folha
da Tarde, Estado de São Paulo, O Jornal, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa;
das revistas Cruzeiro, Fatos e Fotos e Veja. Ainda na batalha pela memória, o grupo apresentou um interessante painel, na
edição de 31 de março de 2006, que listava os golpistas de 1964, no qual pretenderam mostrar o amplo apoio da
sociedade para a sublevação de 31 de março. Nele são citados os nomes dos
empresários e das empresas que apoiaram o movimento militar de 1964.[18]
4 O CLUBE
MILITAR
Interessante observar que alguns destes grupos, principalmente os do Rio
de Janeiro, se reuniam no Clube Militar. Um deles, o Estácio de Sá (GESá), foi
constituído em 1994, por doze
militares da reserva, liderados pelo general Hélio Ibiapina Lima, candidato à presidência do clube nas eleições do ano seguinte. O GESá atuou, entre 1994 e 2004, enviando cartas para membros e
simpatizantes do grupo. No discurso de posse do general Ibiapina no Clube Militar, em 1996, ele enfatizou a
ação e criação de grupos:
“Há muitos fatos acontecendo nos dias atuais, sobre os
quais, não é aceitável nossa omissão, ou deixar passar esta oportunidade sem
marcar nossa posição. Alguns de nós tem lutado em torno do grupo Guararapes (CE), Estácio
de Sá (RJ), Inconfidência(MG) entre tantos outros, há mais de dois anos, contra investidas injustas e de elementos
apátridas que buscam o descrédito e o isolamento das Forças Armadas”. (...)constantes tentativas de as indispor com a
sociedade a que servem e defendem, estimulando dúvidas quanto à necessidade de sua existência,
quanto às suas dimensões as incríveis
indenizações de famílias de ‘vítimas da repressão’ constituem outro aspecto injusto e de enfoque totalmente
equivocado” (...) Que pensam os
membros do ‘Tortura Nunca Mais’ quando praticam torturas contra Newton Cruz,
Ávila Neto, Ustra, Avólio e tantos outros?” [19]
Na presidência do Clube Militar, o general, que continuou presidindo o
grupo Estácio de Sá, mudou, em 1996, o
formato da revista do clube, de forma que em cada edição houvesse “um ou mais tópicos da história
recente, a partir da renúncia de Jânio Quadros, que nos levaram ao 31 de março
de 1964 e aos fatos do período em que nosso país foi governado por generais”[20]. Em
julho de 1997, o ministro do Exército enviou uma carta ao presidente do Clube
Militar, cuja transcrição segue abaixo:[21]
Caro Ibiapina,
Tem chamado a atenção o posicionamento de alguns
autores modernos, cujos livros apresentam uma visão totalmente parcial da
realidade, no que diz respeito ao movimento de 1964. Exemplo disso é o livro
“Viagem pela História do Brasil”, de Jorge Caldeira e outros. Nele, são
ressaltados apenas os aspectos negativos da Revolução.
Minha sugestão é que os sócios do Clube Militar, particularmente nossos oficiais da Reserva, tomem a
peito a tarefa de apontar aos autores e à imprensa as distorções, sejam elas
intencionais ou não. Acredito ser essa uma tarefa nobre e que constituirá um
desafio à inteligência e à cultura dos companheiros, que assim podem prestar
importante colaboração para o restabelecimento da verdade histórica.
Com um forte abraço,
General de Exército Zenildo de Lucena
Ministro de Estado do Exército.
Na capa da edição de março de 1998 da Revista do Clube Militar,
comemorativa do 31 de março, um desenho mostrava um oficial sentado em um jipe,
apertando a mão de uma senhora na calçada e sendo saudado pela multidão. Era a
imagem que eles tentavam transmitir do apoio popular ao movimento.
5 INDENIZAÇÕES NO GOVERNO FHC
Para estes grupos, a batalha pela memória não se restringia
à recuperação de suas versões sobre o
regime, como também abrangia o repúdio em relação ao pagamento de
indenizações aos perseguidos pelo regime. De forma semelhantes aos demais, o
grupo Catarina, criado em 5 de outubro de 1996, em Florianópolis, tinha, como objetivo, “rebater as ofensas, apresentar a
verdade dos fatos e tentar impedir que a imagem dos militares fosse denegrida perante o povo” [22].
Sua criação ocorreu como uma resposta ao pagamento de indenização à família do
ex-capitão do Exército Carlos Lamarca. Em seu primeiro manifesto, eles
afirmavam estranhar como as autoridades lidavam com o julgamento dos processos
dos ex-guerrilheiros:
“Tentam agora os antigos subversivos,
hoje encastelados em importantes funções públicas do governo, transformar em
herói o ex-Capitão CARLOS LAMARCA, excluído das fileiras do Exército por crime
de deserção, ao fugir do quartel do 4º Regimento de Infantaria (...) O senhor
Hélio Gregori, Secretário-Geral do Ministério da Justiça, sob inspirações e
orientação de autoridades governamentais, credencia-se como o mentor
intelectual da Comissão dos Desaparecidos e de seu nefando ato, a conspurcar o
nome do Brasil em âmbito internacional, por ser o único País que transformou em
herói e indenizou financeiramente um oficial das Forças Armadas desertor e
traidor de sua Pátria. (...) Companheiros: Terrorismo nunca mais!”
[23]
O grupo, que chegou a ter oitenta integrantes, entre eles civis, militares
das três Forças, da Polícia e do Corpo de Bombeiros[24], está inativo atualmente. No entanto, não foi o
único formado no governo Fernando Henrique para se opor ao processo de revisão
dos crimes cometidos na ditadura. O Terrorismo Nunca Mais (Ternuma) foi criado para difundir a versão destes
militares. A entidade, cujo nome traz a referência ao livro Brasil: Nunca Mais e ao grupo Tortura
Nunca Mais, foi organizada em 1998, segundo seus integrantes, por “um punhado
de democratas civis e militares, inconformados com a omissão das autoridades
legais e indignados com a desfaçatez dos esquerdistas revanchistas”[25].
O objetivo, exposto no site do grupo, é “resgatar a verdadeira história da
Revolução de 1964 e, mais uma vez, opor-se a todos aqueles que ainda teimam em
defender os referenciais comunistas, travestidos como se fossem democráticos[26].”
Integram o Ternuma por volta de 150 pessoas, militares da reserva e civis
que se reúnem em algumas ocasiões no Clube Militar. Apesar de ter sido criado
oficialmente em 1998, o nome do grupo surge muito antes de sua fundação. A
expressão Terrorismo Nunca Mais nomeia a quinta parte do livro Rompendo o Silêncio, do coronel da
reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos fundadores do grupo[27]. Apesar
de ter sido oficialmente fundado em 1998, a ideia de formar o grupo é bem
anterior. Em um artigo publicado no Ombro
a Ombro em outubro de 1995, o coronel R/1 Sillas Bueno fez duras críticas a
Dom Evaristo Arns e citou a organização do Ternuma:
“A Igreja católica costuma canonizar os santos, não os
pecadores. D. Evaristo Arns pensa,
porém, diferente: que pôr nos altares terroristas desumanos e submeter
ao Tribunal do Santo Ofício os defensores da ordem constituída.” (...) “o ministro Jobim, da Justiça, está
laborando num grande equivoco. Afirmou que quem fala pelos militares são seus
ministros. Acontece que as corporações
têm alma própria e muitas vezes o que se diz na cúpula não está em sintonia com
o sentimento das bases. É o caso presente.
Está em organização em todo o Brasil o Grupo TERRORISMO NUNCA MAIS. Ele
informará à Nação a verdade sobre os subversivos. Dará respostas que as
Autoridades Militares gostariam de dar mas não podem.[28]
Em um editorial homônimo à entidade que seria oficializada dois anos
depois, o jornal Ombro a Ombro ressaltava que estava se esboçando o antídoto
ao Tortura Nunca Mais,“onde se amontoam revanchistas de diferentes matizes do
vermelho marxista, que lutaram para
entregar a pátria brasileira às garras de um sanguinário regime
internacionalista”.[29]
Outro registro do nome ocorre em 1995, conforme relata um artigo de Sillas Bueno, publicado na edição de julho de 1996 do
jornal Ombro a Ombro, no qual ele
relata ter decidido fazer campanha pessoal contra Dom Evaristo Arns:
“Passei a colocar
no topo dos envelopes de minhas correspondências a expressão Terrorismo
Nunca Mais. (...)A ideia desabrochou em
minha mente após a leitura de um documento circular do grupo Estácio de Sá, que
me foi remetido pelo general Hélio Ibiapina. Nele era sugerida a organização, no maior número de
líderes, de grupos patriotas, com o objetivo de levantar informações sobre
subversivos em altos postos do governo e preparar matéria para a difusão na
imprensa. A ideia foi e é notável. Permite combater os comunas com as mesmas
armas. Não podemos deixar a peteca cair...”.[30]
Em seu site, o
Ternuma publica documentos sobre
ex-militantes da esquerda, com base em arquivos dos órgãos de
inteligência, uma vez que alguns de seus integrantes atuaram no serviço de
informações. Não se sabe se todos são autênticos. Logo após as eleições de 2002, o grupo publicou a ficha de
Dilma Roussef, então secretária de Energia, Minas e Comunicações do Rio Grande
do Sul, que havia sido indicada para compor a equipe de transição do governo
Lula. A Folha On Line usou parte
destes dados para compor um perfil da nova integrante do governo[31].
Recentemente, o Ternuma publicou outro documento, que seria uma ficha policial
da atual ministra no período em que ficou presa no DOPS, e que foi utilizado
pela Folha de São Paulo.
Verificou-se, posteriormente, que o documento era falso.[32] Em
2008, eles colocaram um anuncio em um outdoor
da avenida Presidente Vargas, uma das mais movimentadas do Rio, avisando
que os arquivos da ditadura haviam sido
abertos e convidando os interessados a visitar o site da entidade.
6 A TRINCHEIRA
INSTITUCIONAL
As Forças Armadas, e em especial, o Exército, não estiveram alheias a este
processo de manutenção da memória. Nas unidades do Exército é comum, passados
mais de 40 anos do deslocamento das tropas do general Olympio Mourão rumo ao
Rio de Janeiro, comemorar em formatura militar o aniversário da Revolução.[33]
Até bem pouco tempo, o aniversário da Intentona Comunista de 1935 era uma data
lembrada não só nos quartéis, como no monumento da praia Vermelha e no mausoléu
do cemitério São João Batista. Em 2008, nas comemorações do 44ª aniversário do
golpe de 1964, foi inaugurado o saguão 31 de março no palácio Duque de Caxias.
Houve uma formatura militar em homenagem à data, a apresentação de uma palestra
e um vídeo sobre o assunto. Estas atividades
tiveram apoio do Ternuma, do Rio de Janeiro, que indicou palestrantes
para o evento. Como que em sintonia, no site do CML e do Ternuma aparece a
mesma mensagem, uma frase do general-de-exército Walter Pires de Carvalho e
Albuquerque, ministro de Exército do
governo Figueiredo:
“Estaremos sempre solidários com aqueles que, na hora
da agressão e da adversidade, cumpriram o duro dever de se oporem a agitadores
e terroristas de armas na mão, para que a nação não fosse levada à anarquia.”[34]
Na livraria da Biblioteca do Exército, localizada no palácio Duque de
Caxias, sede do Comando Militar do Leste, é possível adquirir uma cópia em
preto e branco da revista O Cruzeiro de
10 de abril de 1964. Uma versão
digitalizada está disponível no site do grupo Inconfidência. Entre os livros
disponibilizados pelo serviço on-line da Bibliex, estão A Grande Mentira, de autoria do general Augusto Del Nero
Augusto, publicado em 2001 pela
Biblioteca do Exército, no qual consta sua versão sobre o movimento militar de 1964. [35]
Outro livro no catálogo da livraria, Rompendo
o Silêncio, de autoria do coronel
Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Por sua vez, a Biblioteca do Exército lançou, em 2003, uma série de 14 tomos, com 250
depoimentos dos militares e civis que participaram do golpe de 1964. A coleção 1964 – 31 de Março: o movimento
revolucionário e a sua história, faz parte do projeto de História Oral do Exército, instituído
por portaria do então ministério do Exército, em março de 1999[36].
Na quarta capa de qualquer um dos 14 tomos que fazem parte da coleção, estão
impressos trechos de editoriais e matérias jornalísticas elogiosas ao movimento
e ao regime militares. Textos publicados em O Globo, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Correio da Manhã, emolduram
os livros, passando uma ideia de que a mídia impressa deu todo o apoio às
Forças Armadas.
7 CONCLUSÃO
Cabe ressaltar que a opinião destes militares da reserva não reflete o
pensamento dos militares da ativa e nem os da reserva. Novas gerações vão se
sucedendo nas Forças Armadas. E, neste quadro, há memórias específicas, em
movimentos nem sempre harmônicos, assim como as diferentes avaliações sobre
política. Os generais e coronéis do fim da primeira década do segundo milênio
eram oficiais que iniciaram a carreira militar quando o regime já estava em
distensão. Muitos dos tenentes-coronéis e majores de hoje, deram o primeiro
passo no portão da Academia Militar quando o país já possuía uma nova
Constituição. E a classe mais recente dos jovens capitães indica que eram
apenas crianças quando a guerra fria acabou.
No entanto, como parte da defesa da memória feita por estes grupos
reflete um caráter corporativo, de defesa de um passado da instituição no qual
ela era suporte para as crises políticas, e como alguns dos contemporâneos e
alguns dos pupilos destes integrantes ainda estão no serviço ativo, há
aproximações entre o discurso destas entidades e as iniciativas institucionais.
Um exemplo disso é o apoio que o então
ministro do Exército deu ao presidente do Clube Militar para que os associados
escrevessem artigos sobre a História recente do país e que mostrassem os
legados do período militar. Por outro lado, as próprias organizações militares
são locais de encontro entre o pessoal da reserva e da ativa. Nestas ocasiões,
os valores militares e a vivência comum podem facilitar difusão do discurso
destas entidades. Dos grupos ainda em operação, o Guararapes, o Inconfidência e
o Ternuma, são os que mais produzem
material sobre a memória do período militar e há registros de encontros
promovidos por estes grupos em unidades do Exército. Preocupados com os mais
jovens, eles tentam passar a sua versão do passado para aqueles que não viveram
os conturbados anos do período de exceção.
Não é possível ainda avaliar o grau de influência destes militares da
reserva sobre o pessoal da ativa. Mesmo assim, é importante ressaltar que,
independente desta influência, estas entidades sinalizam que há ainda uma
batalha pela memória. E a memória construída por estes grupos em cada época
também responde a uma determinada conjuntura política. O passado não é uma
imagem fixa. Suas nuanças de interpretação são pinceladas pelo presente. E
quando se fala de História, não se deve procurar a verdade absoluta. É mais
prudente procurar entender as versões de cada lado para se avaliar melhor todo
o processo.
NOTAS
[1] ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil:nunca mais. Rio de Janeiro: Vozes, 1985.,p.22.
[2] Generais da reserva defendem livro, matéria de Lucas
Figueiredo para o Correio Braziliense e
o Estado de Minas. Acesso às 21:59h
do dia 06 de março de 2008 no link
http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/clipping/maio-2007/generais-da-reserva-defendem-livro/
[3] ORVIL,
[s.l.], 1987, p.xxix. Disponível em http://www.averdadesufocada.com/images/orvil/orvil_completo.pdf, acesso em 23 de novembro de 2007, às
10h.
[4] O
BRIGADEIRO aterrissa. Veja, 22 de
junho de 1988, pp.32-37.
[5] Este
grupo existe até hoje. Já teve 1260 destinatários em sua mala direta.
[6] Letras em Marcha, junho de 1989, p.7 Este
jornal deixou de circular no ano 2000, mas o grupo ainda mantém um boletim para
os seus associados.
[7] Ombro a Ombro, edições de julho de 1988,
p.1 e abril de 2005 p.1.
[8] Ombro a Ombro, dezembro de 1988, p.3.
[9] 31 de
MARÇO de 1964 -1990, editorial, Ombro a
Ombro, março de 1990, p.1.
[10] Com a morte de Schirmer em 2004, o jornal publicou
seu último número em dezembro de 2005.
[11] A
primeira reunião, da qual compareceram os dezessete militares, foi realizada em
outubro de 1991. O grupo foi fundado um mês depois, no dia 5. GRUPO GUARARAPES,
Quem somos. Informação disponível em
http://www.fortalweb.com.br/grupoguararapes/quem_somos.asp?page=1 , acesso em 8
de março de 2009, às 16h.
[12]
Seminário “A Lei de Anistia : Alcance e
Conseqüências”, realizado em 7 de agosto de 2008, no Clube Militar.
[13] GRUPO
GUARARAPES, Ontem e Hoje , 2008, p.3.
[14] GRUPO
GUARARAPES, Ontem e Hoje, 2008, p.9.
[15]
Idem.p.67.
[16] Foi
formalizado um ano depois, em 26 de maio de 1994. GRUPO INCONFIDÊNCIA. Estatuto. Disponível em
http://www.grupoinconfidencia.com.br/estatuto.php, acesso em 15 de março de
2009, às 12:30h.
[17] CASTRO, Celso. A
Invenção do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2002, p. 34.
[18] Inconfidência, nº 93, de 31 de março de
2006. p.24.
[19] Discurso do general Ibiapina, Revista do
Clube Militar, n º 328, de julho/agosto/setembro de 1996,
pp. 7-8 e Ombro a Ombro, edição de julho de 1996, p.7. Grifo meu.
[20] Revista do Clube Militar,. Nº 328, edição de
julho/agosto/setembro de 1996.
[21] Letras em Marcha, setembro / outubro de 1997,
p.2. Veja também na revista do Clube Militar nº 388 de agosto de 1997.
[22] VEIGA,
Aroldo.Entrevista concedida em 28 de janeiro de 2009, por email.
[23] GRUPO
CATARINA. Manifesto à sociedade. In:ASSOCIAÇÃO DE MAGISTRADOS DAS JUSTIÇAS
MILITARES ESTADUAIS. Revista Direito
Militar Nº 02, outubro/novembro, 1996.
http://www.amajme-sc.com.br/revista2.htm, acesso em 1º de fevereiro de
2009, às 15h
[24]
Entrevista ao coronel R/1 Aroldo José Machado da Veiga, em 25 de janeiro de
2009.
[25]
TERNUMA, Apresentação.Disponível em
http://www.ternuma.com.br/apres.htm, acessado em 25 de janeiro de 2008, às
10:15h.
[26] idem
[27] ROHTER, Larry.
Groups in Brazil Aim to Call Military Torturers to Account. New York
Times, 16 de março de 2007, disponível no site
http://www.nytimes.com/2007/03/16/world/americas/16brazil.html?_r=1&scp=1&sq=ustra&st=cse,
acesso em 9 de dezembro de 2008, às 14:37h.
[28] BUENO,
Sillas. A canonização dos pecadores. Ombro
a Ombro, outubro de 1995, p.6. Grifo
meu..
[29]
Terrorismo Nunca Mais. Ombro a Ombro, setembro de 1996, p.1
[30] BUENO, Sillas. Terrorismo
Nunca Mais. Ombro a Ombro, edição de julho de 1996, p.11.Em 1964, Bueno era
aluno da ECEME.
[31]
RIPARDO, Sérgio. Veja perfil de secretária de Energia do RS, indicada para
equipe de Lula. Folha On-Line, São Paulo, 5 de novembro de 2002. Disponível
em http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u42152.shtml, acesso em 14 de
março de 2009, às 22h.
[32] AUTENTICIDADE
de ficha de Dilma não é provada. Folha de São Paulo. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2504200915.htm,
acesso em 26 de abril de 2009, às 22h.
[33] Apesar
do Exército adotar o termo Revolução, não há, entre a reserva, uma unanimidade
sobre a nomenclatura. Alguns a consideram Contra-revolução. Partem do
pressuposto que já estava em marcha uma revolução comunista no Brasil.
[34] COMANDO
MILITAR DO LESTE. Disponível em http:\\www.cml.eb.mil.br . No portal foi
utilizado o recurso de janela pop-up, ou seja, foi aberta uma caixa de texto
com a frase. O acesso foi realizado no dia 1º de agosto de 2008, às 00:16h. No
site do Ternuma, a mensagem aparece na página principal. A checagem foi feita
nos mesmos dia e horário.
[35] MACIEL,
Ayrton. Uma versão militar sobre 1964. Jornal
do Commercio, Recife, 4 de novembro de 2001, disponível em
http://www2.uol.com.br/JC/_2001/0411/po0411_9.htm e
http://www2.uol.com.br/JC/_2001/0411/po0411_7.htm, acesso em 06 de março, as
22:07h.
[36] O
ministério do Exército foi extinto logo depois, com a criação do ministério da
Defesa, no dia 10 de junho de 1999.
Nenhum comentário:
Postar um comentário