NADA
DEVEMOS AOS TERRORISTAS [06/08/2008]
Reinaldo
Azevedo
Uma das falácias mais bem urdidas pelas esquerdas é a de que os atos terroristas cometidos durante o regime militar eram a única forma de contestação política num ambiente sufocado pela ditadura. Trata-se de uma mentira histórica, de uma mentira política e de uma mentira moral, a que só se pode aderir ou por alinhamento ideológico ou por falta de bibliografia específica.
Mentira histórica
A
mentira é histórica porque a decisão de certas correntes de partir para a luta
armada antecede em muito a decretação do AI-5, em dezembro de 1968. Pior ainda:
antecede o próprio golpe militar de 1964. Vale dizer: correntes de esquerda
discutiam abertamente a luta
armada como opção para chegar ao poder, embaladas pela revolução cubana, embora o país fosse uma democracia. Mais: João Goulart havia levado a subversão para dentro do governo. E notem: sei que a palavra “subversão” deixa muita gente indignada. Não me refiro necessariamente à pauta da esquerda, não. Refiro-me ao desrespeito às regras do estado democrático e de direito que garantiam a legitimidade do próprio Jango.
Ora, quem rompe com as regras que garantem a sua própria legitimidade está ou não está se expondo a um golpe? Está ou não está abrindo o caminho para que outros o façam — e com pauta própria? Não são pequenas, aliás, as evidências de que Jango preparava o autogolpe.
Seja
como for, a Presidência da República optou pela desordem. Isso justifica o
golpe? A pergunta está errada. Isso explica o golpe. O primeiro dever de um
democrata é preservar as leis que garantem o seu poder e a sua legitimidade,
elegendo o foro adequado para mudá-las: o Congresso. E nem ao Congresso é dado
todo o poder, já que também não pode extinguir a base legal que o sustenta.
Leis nascem de pactos. Mas, no estado de direito, já disse um jurista de primeiro
time, nenhum Poder é soberano — ou se joga Montesquieu no lixo. “Mas a gente
não pode jogar Montesquieu no lixo?” Pode, claro. É preciso ver o que se vai
pôr no lugar.
Os remanescentes do esquerdismo revanchista agem como se forças absolutas, essencialmente puras — o Bem de um lado e o Mal de outro — tivessem quebrado lanças durante o regime militar, com a vitória temporária do Mal, para que o Bem pudesse, finalmente, triunfar.
Não
há um só documento, um miserável que seja, produzido pelas esquerdas antes ou
depois do golpe, que evidencie que faziam a defesa da democracia. Ao contrário,
sob a inspiração marxista, e leninista em particular, a democracia era vista
apenas como uma trapaça, uma
forma de a burguesia e de o imperialismo imporem a sua vontade por meio de instituições fajutas. Lamento dizer: é o que pensam, até hoje, algumas correntes do PT e alguns partidos que se dizem comunistas.
Será que se trata apenas de “algumas correntes do PT?” Não acreditem em mim quando falo deles; acredite neles quando falam de si mesmos. No vídeo convocatório para o seu Terceiro Congresso, ocorrido no fim de agosto do ano passado, o partido diz com todas as letras:
“Para extinguir o capitalismo e iniciar a construção do socialismo, é necessário realizar uma mudança política radical. Os trabalhadores precisam transformar-se em classe hegemônica e dominante no poder de estado. Não há qualquer exemplo histórico de uma classe que tenha transformado a sociedade sem colocar o poder político de estado a seu serviço.”
E mais adiante: “Não basta chegar ao governo para mudar a sociedade. É preciso mudar a sociedade para chegar ao governo.”
Ora, sei que não conseguiriam reconstruir um estado soviético nem que quisessem. Mas podem muito bem corromper a democracia, como estão fazendo com seu arremedo de estado policial.
Então não venham me dizer que a opção pelo terrorismo e pela luta armada, durante o regime militar, era o caminho possível para reagir à falta de democracia porque, de fato, não queriam democracia nenhuma — como fica evidente nos remanescentes daquelas batalhas, que não a querem até hoje. A sua “democracia” corresponde ao que chamam, apelando a Gramsci, de construção da “hegemonia”. De novo: não se trata de uma hegemonia ao velho estilo. O que procuram é tornar irrelevante o processo de alternância de poder por meio do domínio das instituições do estado. Não sou eu que os acuso disso. Eles é que o confessam.
Pré e pós-64, até o esmagamento das forças terroristas, as esquerdas ambicionavam chegar ao poder pela luta armada — e a democracia que se danasse. Depois da redemocratização, lutam pelo controle absoluto da burocracia do estado, usando como esbirros os tais movimentos sociais — e a democracia que se dane de novo.
Mentira moral
O vitimismo de que se fazem caudatários é uma mentira moral porque pretendem que o horror da tortura era mais condenável do que o horror do terrorismo: sequestros, assassinatos, justiçamentos. Um torturador vagabundo que submeteu um prisioneiro a sevícias não nos livrou do comunismo e ainda corrompeu a luta de quem a ele se opunha com dignidade. Mas e o coronel da PM que teve a cabeça esmagada a coronhadas por esquerdistas? Lustra “atos revolucionários”? Temo que sim. Na verdade, tenho a certeza de que, para eles, sim. Porque aquelas esquerdas, afinal de contas, nunca se opuseram à tortura nos estados comunistas. E as remanescentes, vejam que curioso, jamais criticaram o regime cubano pela tortura de presos políticos. Pior do que isso: aplaudiram Fidel Castro quando executou três prisioneiros sem direito de defesa. Crime: tentaram fugir da ilha. O facinoroso, aliás, é 2.700 vezes mais assassino, já provei [o endereço do artigo a respeito encontra-se ao fim deste texto], do que os ditadores brasileiros.
Isso justifica moralmente os torturadores nativos? Não! Mas o país encontrou um caminho para sair daquela cilada: a Lei da Anistia, que decidiu ignorar os execráveis excessos de todos os porões: os do regime e os das esquerdas. Foi uma escolha política. Inicialmente, de fato, foi negociada por um Congresso ainda não plenamente livre. Mas, depois, na prática, foi adotada pela sociedade e, de fato, no que concerne à política, pacificou o país. De tal modo passamos a encarar a democracia como um imperativo, que, três anos depois da primeira eleição direta para presidente pós-ditadura, depôs-se o eleito. E sem crise de qualquer natureza.
Mas a mentira moral não se esgota no conteúdo ideológico do que pretendiam — ou pretendem — as esquerdas. Aceitar que o terrorismo era a única forma de luta contra a ditadura implica supor que a ação pacífica para depor o regime era uma tolice, uma inutilidade ou um capricho. E, claro, tal versão é uma indignidade. O que preparou o terreno para a volta da democracia foi a resistência pacífica dos que aqui ficaram e daqueles que, não podendo voltar ao país, endossaram a boa conspiração dos pequenos atos que foram fraturando o regime — finalmente quebrado sob os auspícios de uma crise econômica.
Mistificadores e ignorantes adoram afirmar que devemos as liberdades que temos ao sangue das vítimas que tombaram... MENTIRA! Lamento pelas vítimas que tombaram de um lado e de outro. Lamento por aqueles que foram submetidos a sevícias depois de presos — como ocorre hoje, habitualmente, nas cadeias brasileiras, sem que Paulo Vannuchi ou Tarso Genro soltem um pio —, mas não devemos as nossas liberdades aos mortos ou torturados do PCdoB, aos mortos ou torturados da ALN; aos mortos ou torturados do MR-8. Se essa gente tivesse vencido, nós lhe deveríamos, isto sim, é o paredão. Devemos a nossa liberdade a gente como Ulysses Guimarães, como Alencar Furtado, como Franco Montoro, como Mário Covas, como Fernando Henrique Cardoso. Ah, sim, como Petrônio Portella, vindo lá da ditadura. E, acreditem, até como Golbery do Couto e Silva.
Aos terroristas mortos ou vivos? Não devemos nada! Assim como não devemos aos torturadores a derrota do comunismo. Devemos às esquerdas, isto sim, a mentira, ainda em curso, de que queriam o nosso bem, o que dá a seus herdeiros políticos licença para trapacear, para roubar, para mentir. Tudo em nome de um novo amanhã. Não deixem que prospere a falácia.
(Endereço do texto citado
neste artigo: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/os-revanchistas-brasileiros-anistia-cuba/)
Obs.:
Trecho extraído do livro de Reinaldo
Azevedo, “O País dos Petralhas II – O inimigo agora é o mesmo”, Record, Rio de
Janeiro e São Paulo, 2012, pg. 273-276. Disponível no endereço virtual https://docs.google.com/file/d/0B7Kmav1S0xnaNVh6WHNFdnZTUmM/view?resourcekey=0-G7QMUgoP-4QaOPeFEd9dwQ, pg. 185-187.
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