A crise do Estado e o Capitanismo
Por Oliveiros S. Ferreira
A rigor,
esse artigo poderá perfeitamente ser colocado como a continuação daqueles que
já escrevi, não apenas sob o título de “A crise do Estado”, mas também sob
outros títulos sobre a crise nas Forças Armadas, a um tempo instrumento do
Estado e seu suporte.
Vamos aos fatos e às considerações.
Em 1963, uma facção daquele partido que pretendia subverter a ordem
constitucional e estabelecer um regime fosse comunista, fosse “sindicalista”
como alardeava Brizola, promoveu a “Revolta dos Sargentos”. À época, escrevi
que a sublevação respondia a uma visão deformada do processo social e político
no Brasil e do que fosse a organização militar. É que os teóricos do movimento,
pretendendo agravar a crise política e intelectual (especialmente esta), diziam
que os Sargentos representavam a “classe operária” e os Oficiais, “a
burguesia”, os dominantes.
A pronta reação sufocou o movimento no nascedouro, à custa de algumas mortes e
de um profundo abalo no meio militar. Os que viveram aquele período
recordar-se-ão de que os Oficiais, nos quartéis, passaram a dormir com as
pistolas debaixo dos travesseiros, e que os responsáveis pelo armamento
redobraram sua vigilância e seu controle para assegurar-se ao fim do dia de que
não faltava alguma arma no arsenal da unidade. Foram dias dramáticos, só
superados (na aparência) em 31 de março de 1964 e por uma severa política de
disciplinamento da tropa aplicada depois da edição do Ato Institucional nº 1.
Os Sargentos, durante o período dos Governos militares (1964-1979) não mais
causaram problemas disciplinares da envergadura daquele. O que não significou
que o mal-estar tivesse sido superado, na medida em que o motivo da revolta e
sublevação era político. Apesar do que dispunha a Constituição em vigor, a de
1946, que proibia sua candidatura, os Sargentos consideravam-se cidadãos antes
que militares e, portanto, com o direito de ser candidatos e eleitos. A
idéia-força do Soldado-Cidadão, presente na Questão Militar de 1887 e na ação
de muitos entre os que conduziram à proclamação da República, essa idéia esteve
novamente presente em 1963.
Há outro fato que convém recordar, apesar de a necessidade de manter inabalável
a disciplina fundada no Princípio do Chefe ter contribuído para que ele não fosse
recordado em muitas das análises feitas sobre os momentos que levaram ao gesto
do General Mourão: a disciplina e a hierarquia foram violentadas no dia 31 por
este General de Divisão. Mais ainda − e para isso chamo atenção − não fosse a
pressão de Capitães, Majores e Coronéis, em pequenos grupos em cada grande
unidade, e o General Mourão não teria tido condições de ver triunfar seu
movimento no mesmo dia em que deixou Juiz de Fora. Foram os Coronéis que
forçaram o General Kruel a solidarizar-se com o General Costa e Silva, que
assumira o comando no Rio de Janeiro; e foram os Capitães, organizados desde
1962 e demonstrando na sua organização profundo desprezo pela hierarquia, que
contribuíram decisivamente para que o IV Exército se colocasse ao lado da esperada
Revolução, vencendo a hesitação dos Generais em comando. Tive contato com
alguns desses Capitães em 1962, reunidos sob a orientação (talvez a liderança)
de um Capitão da Reserva; um deles, em 1965, ainda desejava fazer a revolução
contra os Generais, certo de que seria capaz de levantar a 6ª. Região
Militar.
Por que reavivo a lembrança desses dois momentos da crise? Porque a idéia-força
do Soldado-Cidadão volta a penetrar a consciência de muitos Oficiais − não
pretendendo fazer de um marxismo-leninismo de araque a teoria a orientar sua
ação, mas invocando os direitos que a Constituição assegura aos cidadãos, o que
torna a questão muito mais complicada. Refiro-me ao movimento chamado de Capitanismo.
O jornal “Folha de S. Paulo” publicou, em sua edição de 28 de dezembro último,
extensa matéria sobre o movimento. Em duas páginas! Na primeira, diz o que ele
é; na segunda, traz uma entrevista do Capitão Luís Fernando Ribeiro de Sousa,
que discorre sobre os objetivos do Capitanismo (páginas 4 e 6
daquela edição).
A primeira coisa a notar na entrevista do Capitão Luís Fernando é que, para
ele, o período 1964/1985 foi uma “ditadura militar”: “A gente não tem
nada a ver com a ditadura militar. Eu não quero entrar no mérito se foi certo
ou errado. Cabe a nós pensar para frente, somos capitães, tenentes”.
O Exército, para o Capitão Luís Fernando, não tem história e não é uma
organização com passado, presente e futuro. É uma organização como outra
qualquer, na qual ele e os demais que pensam como ele se encontram, não para
manter as tradições e o espírito da Força, mas para ter expressão política: o
movimento surgiu para fazer “Mudanças que poderiam melhorar as Forças
Armadas, para que ela tenha (sic) papel importante só
acontecem por meio de participação política. Qualquer coisa que a gente pode
fazer passa pela via política. Precisamos de deputados e senadores para
promover qualquer transformação. Assim começamos a nos organizar”.
Nesse espírito, o Exército é, para os membros do Capitanismo, uma
organização que lhes permite uma “situação”, e por isso o passado não conta,
nem o presente; apenas conta o futuro que querem construir. Aliás, é preciso
assinalar que o passado não apenas não conta como eles, os membros do
movimento, nada querem ter com ele. Isso apesar de que, quando ingressaram na
carreira militar tinham (ou deveriam ter) consciência do que se dizia nos meios
intelectuais à esquerda e liberais de uma maneira geral sobre o que tinha
acontecido depois de 1964. O que indica que permanecem na carreira, chegando ao
posto de Capitão, fazendo por desconhecer o passado da instituição a que
pertencem por livre escolha. O que significa que o Exército nada significa para
eles como vocação e missão.
O Capitão Luís Fernando afirma nada querer dizer sobre a “ditadura militar”,
mas usa a expressão, seguramente sabendo que, ao usá-la, toma partido na grande
crise em que se debatem as Forças Armadas. Por que digo isto? Porque há tempos,
Oficial General na Reserva, amigo meu, falou-me de sua surpresa ao ouvir de
jovens Oficiais da Marinha que eles faziam questão de desvincular-se de 1964.
Essa observação, já antiga, liga-se à “ditadura militar” do Capitão Luís
Fernando e uma e outra apenas traduzem aquilo que escrevi, para espanto de
muitos, por ocasião do infausto episódio que envolveu um Tenente do Exército no
Rio de Janeiro: que o Exército está − e agora digo as Forças Armadas estão —
vivendo um processo de anomia.
Uma das características da anomia é que a idéia que une os membros de uma dada
organização já não é a mesma para todos os seus membros. Outra, é que alguns
membros do grupo rejeitam as normas que regulam o comportamento dos que ao
grupo pertencem. Insisto em “rejeitam”, porque não se trata de discordar,
acatando as normas. Rejeitam-nas porque vêem nelas um elemento impeditivo da
afirmação de sua individualidade, que julgam estar sendo negada pela
organização. No momento em que essa consciência de rejeição se forma, os
indivíduos que vivem esse processo de afastamento das normas gerais do grupo
irão buscar fora dele, preferencialmente em outra organização ou na sociedade,
normas outras que lhe permitam justificar a rejeição e que lhes permitam ou
continuar pertencendo ao grupo ou dele se afastar.
Há mais. A anomia manifesta-se também quando o aparelho formal que controla o
grupo pouco faz para que os membros dele tenham sempre presente a história da
organização e, mais importante, sua missão. Uma organização que ao longo de sua
história teve condições de afirmar-se como grupo diferenciado na sociedade por
ter uma missão específica não se estrutura para oferecer a seus membros uma
situação que sirva de trampolim ou passagem para outra situação mais
confortável e menos onerosa em termos de compromissos e obrigações. Os partidos
políticos − sobretudo quando se corromperam enquanto instituição − são o
exemplo de organização-situação.
À medida que a história da organização se perde pela inércia do aparelho formal
que a dirige, é apenas natural que a idéia de missão tenda a desaparecer. Ela
se esvanecendo, os membros da organização não têm mais laços que os prendam a
ela ou entre si, a não ser aqueles materiais (no sentido mais rasteiro da
palavra) e se julgam com direito a invocar normas mais gerais para afirmar sua
individualidade dentro e fora da organização. Invocam essas normas seja para
alterar de cabo a rabo a organização, ou dela se afastar com glória ou
”martirizado” ao ser expulso.
A rejeição das normas é um ato individual; o esquecimento da História e do
sentido de missão é coletivo, mas a responsabilidade maior pelo fato recai
sobre os Comandos, se considerarmos as Forças Armadas.
É importante procurar estabelecer a semelhança ou diferença entre os Capitães
de 1962 e os que integram, agora, o chamado Capitanismo.
Em 1962, Capitães, Majores e até mesmo Coronéis organizavam-se para oferecer
resistência a qualquer movimento que, tendo início no Governo Goulart ou vindo
de forças políticas organizadas fora do Governo, mas contando com seu apoio,
pretendesse destruir a forma de governo e de organização da sociedade de então.
Os que viveram aqueles meses sabem que a doutrina que inspirava os grupos que
procuravam se organizar no País, sem coordenação praticamente até março de
1964, era em muitos casos defensiva − podendo, em alguns poucos deles, ser
defensivo-ofensiva, como se evidenciou na ação dos Generais Luís Carlos Guedes,
logo seguida (e sob o comando do Comandante da IV RM) pela do General Mourão.
Não se invocavam direitos constitucionais para legitimar qualquer ação contra
as autoridades da época; invocava-se, isto sim, o sentido de missão das Forças
Armadas, sobretudo do Exército. Para os que se organizavam, as Forças Armadas
não poderiam permitir uma transformação abrupta da ordem social e política,
muito menos da essência da organização militar, como se evidenciara na revolta
dos marinheiros e na reunião no Automóvel Clube do Rio de Janeiro no dia 30 de
março de 1964.
Houve, ao longo do processo que se estendeu de 1965, quando se editou o Ato
Institucional nº 2, até o início do Governo Figueiredo, tensões de vulto nas
Forças Armadas, a maior delas se refletindo na edição do AI-5 em dezembro de
1968. A causa delas, se podemos dizer assim, nunca foi o reclamo de direitos
constitucionais, direitos-cidadãos por parte dos jovens Oficiais e Coronéis que
conduziram o processo, sem comandá-lo. A pressão que se exercia, e que por
vezes esteve a ponto de, mais uma vez, quebrar a hierarquia e o General-Presidente
ser ultrapassado, decorria da sensação de que a organização militar estava
faltando a seu dever, à sua missão, e de que o Estado corria, por isso, risco
de ser empolgado pelos mesmos homens contra cuja ação se fizera o movimento de
março de 1964.
O Capitanismo é totalmente diferente; assemelha-se mais ao
movimento dos Sargentos de 1963 (ainda que mais no pensamento do que na ação)
do que ao dos Capitães de 1962. Pelo que se depreende da entrevista do Capitão
Luís Fernando, o movimento tem distintos objetivos. Um é eleger militares para
que as Forças Armadas, especialmente o Exército, tenha quem as represente no
Congresso. Sendo assim, o Capitanismo inscreve-se no
corporativismo consagrado pela Constituição de 1988: os advogados com a OAB, as
Polícias Militares, os Corpos de Bombeiros militares, a Polícia Militar
Rodoviária, a Polícia Militar Ferroviária (federais) e outras organizações
presentes enquanto tal na Constituição.
Realizado o objetivo primeiro do Capitanismo, as Forças Armadas
seriam, de fato, uma corporação igual às outras, com objetivos próprios e
específicos, elegendo seus representantes para defender seus interesses
corporativos − portanto, exclusivos — no que são apoiados por confusos e
desavisados Oficiais Superiores da Reserva.
O Capitanismo, no entanto, não se limita à pretensão eleitoral. Se
assim fosse, não seria necessário organizar movimento algum; bastaria que os
Capitães que desejassem eleger-se seguissem a Constituição, que lhes garante
esse direito como, aliás, a qualquer Oficial da Ativa. O objetivo real é
transformar as relações entre superiores e subordinados nas Forças Armadas de
tal forma que a disciplina interna não seja mais regida pelo RDE, mas pelo
artigo da Constituição que confirma os direitos individuais, cuidando, em
especial, de como se deve dar a detenção ou prisão de quem viola as normas
disciplinares. Em outras palavras, que a detenção ou prisão de militares seja
decidida por um Juiz de Direito.
O que caracteriza as Forças Armadas e as torna, enquanto organização,
diferentes das organizações civis é que se regem por normas disciplinares que
têm em vista as condutas individuais numa situação de combate. O Capitanismo pretende
uma inversão: as normas disciplinares devem ser regidas pela Constituição que
é, concordamos todos, elaborada para situações de paz. Na situação de combate,
as ordens devem ser obedecidas sem interpretação de qualquer tipo, porque é da
obediência delas que se espera garantir a vida da maior parte dos que se
engajaram na luta armada. Dessa perspectiva, a vigência das normas
disciplinares na paz tem função pedagógica, isto é, as normas vigoram para que
aqueles que a ela estão submetidos se habituem (esta a expressão) a um tipo de
relação que será vital para a organização (e para os indivíduos que a compõem)
quando da paz se passar à guerra, da inércia guerreira para o confronto armado.
Sendo assim, pretender que o Poder Judiciário seja chamado a dizer da adequação
da pena à Constituição é decretar por antecipação o fim das Forças Armadas
enquanto organização voltada para a guerra. É transformá-las de fato numa
corporação civil como as outras, ou fazer delas uma corporação idêntica àquelas
outras, policiais, que por ação política de seus membros conseguiram que na
Constituição fossem designadas como “militares”.
Este é, a meu ver, o sentido maior do movimento chamado de Capitanismo.
Ele se insere no quadro mais geral da grande manobra dos que pretendem fazer
das Forças Armadas nada mais do que um instrumento político do Governo sem
condições de exercer, quando necessário (como o foi nos anos 1960), a função de
garante do Estado.
Fonte: http://www.oliveiros.com.br/a-crise-do-estado-e-o-capitanismo/
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