Figura 1 – Localização da Península do Saí
Colonização
fourierista no sul do Brasil: o Falanstério do Saí (1841-1844)
Hoyêdo Nunes Lins –
PPGE/UFSC
Resumo: O artigo aborda um aspecto único da
história econômica e política de Santa Catarina: a efêmera iniciativa de
colonização na Península do Saí (nordeste da então Província de Santa Catarina)
por socialistas utópicos franceses na primeira metade dos anos de 1840. O
objetivo principal é, com base em fontes históricas, mas também lançando mão da
bibliografia disponível sobre o tema, captar a trajetória e compreender a
instigante derrocada dessa experiência.
Palavras-chave: Falanstério do Saí; Utopia fourierista; Província de Santa Catarina
Abstract: The article looks at an unique
aspect of the economic and political history of Santa Catarina: the short
initiative of creating an industrial colony in the Saí Peninsula (Northeast of
the Province of Santa Catarina) by French utopian socialists in the first half
of the 1840s. Based on historical sources but also on the available literature
on the subject, the main intention is to apprehend the course and specially the
challenging decline of that experience.
Key-words: Phalanstere of Saí; Fourier’s
utopian ideas; Province of Santa Catarina
1 Introdução
O
assunto deste artigo é a iniciativa de criação, nos anos 40 do século XIX, de
uma colônia industrial no nordeste da então Província de Santa Catarina, mais precisamente na Península do
Saí, no atual Município de São Francisco do Sul. Os participantes eram
imigrantes franceses seguidores das idéias do socialista utópico Fourier. O
fluxo de colonização teve início no final de 1841 e desdobrou-se em algumas
chegadas que se repetiram até 1844, período em
que a colônia já era referida em meios institucionais da província com uma
indignada mistura de frustração e reprovação.
O objetivo da
pesquisa é descortinar a trajetória da experiência, de efêmera duração,
procurando principalmente compreender as condições da sua derrocada. Essa
questão é instigante, pois outras experiências de colonização baseadas na vinda
de estrangeiros, protagonizadas à mesma época na Província de Santa Catarina, mostravam-se bem sucedidas. De
fato, em discurso proferido no início de 1844 na Assembléia Legislativa, o
Presidente provincial assinalou: “Prosperam as colônias estabelecidas na
província, menos a do Saí, que hoje, com nove homens, e sem estabelecimento
algum, quer agrícola, quer industrial, toca a sua completa aniquilação (...)”
(FALA..., 1/3/1844, p. 25).
Utiliza-se como base,
além de bibliografia acadêmica e não acadêmica, um acervo de documentos
produzidos tanto por participantes da experiência colonizadora quanto por
agentes externos, vinculados ou não à administração da província. Esses
documentos têm origens diversas. Uma parte veio da Biblioteca Nacional, como as
matérias publicadas – entre elas, diversas cartas – de 1840 a 1843 pelo Jornal do Commercio do Rio de Janeiro.
Outra parte, referente aos discursos dos presidentes da província entre 1836 e
1852, foi obtida no Center for Research Libraries. E utilizou-se também
material do Arquivo Público de Santa Catarina e do Arquivo Histórico de
Joinville.
A trajetória da colonização no Saí aqui
abordada é a que aflora desses documentos. Quer dizer, a história em questão é
“resultado” do manuseio de tais
documentos. De algum modo, esse entendimento guarda sintonia com a visão
de Michel Foucault sobre história e documentos: “[q]uando os historiadores
tratam os documentos, eles não visam a interpretá-los, ou seja, não procuram
por trás ou além deles um sentido escondido” (FOUCAULT, 2005, p. 294). A
história, na verdade,
“é o trabalho e a utilização de uma materialidade
documental (livros, textos, narrações, registros, atas, edifícios,
instituições, regulamentos, técnicas, objetos, costumes etc.) que apresenta
sempre e em toda a parte, em qualquer sociedade, formas de permanências, quer
espontâneas, quer organizadas. O documento não é o feliz instrumento de uma
história que seria em si mesma, e de pleno direito, memória; a história
é, para a sociedade, uma certa maneira de dar status e elaboração à massa
documental de que ela não se separa” (FOUCAULT, 2007, p. 7-8 – em itálico no
original).
Não é ocioso assinalar que esses
documentos se referem a acontecimento fortemente marcado pelo contexto da sua
ocorrência. Em longa carta publicada pelo Jornal do Commercio em 17 de
dezembro de 1840, o Dr. Mure, médico francês que lideraria o processo
colonizador a partir do ano seguinte, informa a sua intenção quanto à colônia
industrial e fornece detalhes sobre a idealizada iniciativa. O contexto
transparece numa frase como esta: “No estado de sofrimento e de contínuas
crises em que se acha há alguns anos a indústria da Europa, a necessidade da
emigração é ali tão vivamente sentida quanto a de atrair colonos o é nos vastos
impérios que começam a vida de nações no continente da América” (CARTA...,
17/12/1840, p. 2).
A inspiração
teórica e ideológica do empreendimento pode ser captada no seguinte trecho
dessa carta:
“(...) se a organização
do trabalho não for mudada, se as relações dos produtores entre si não forem
estabelecidas sobre outra base, tereis em breve em redor de vós as bancarrotas,
as crises da indústria, as astúcias da traficância, o sacrifício do obreiro ao
capitalista, a guerra dos trabalhadores de todas as classes, úlcera profunda e
incurável que corroi essas nações na aparência tão ricas e tão florescentes que
residem do outro lado do Atlântico. (...) É pois ao princípio da associação (...) que devemos pedir a solução das
dificuldades que tivermos de encontrar” (ibid. – ressaltado na citação).
A matriz dessa base teórica e
ideológico aparece assinalada no discurso do Dr. Mure a D. Pedro II em 18 de
dezembro de 1841, na ocasião da chegada ao Rio de Janeiro do primeiro grupo de
colonos franceses. Agradecendo a hospitalidade concedida um ano antes, quando o
médico dirigiu-se ao país no intuito de encontrar meios que possibilitassem
desenvolver um projeto de colonização nos moldes contemplados, e agradecendo
também a receptividade do governo imperial, que viabilizara a iniciativa, Mure
declarou: “Le Brésil ne sera donc pas en arrière des nations les plus éclairées
du globe, qui, en ce moment, prenant Fourier pour guide, cherchent à résoudre
le grand problème de l’organisation du travail et de la pacification des
intérêts (...)” (DISCOURS..., 21/12/1841, p. 1).
Referência
explícita a Fourier apareceria de novo seis meses mais tarde, em carta redigida
por Mure já na colônia, em 6 de junho de 1842, com descrição das realizações
dos primeiros meses. O trecho seguinte (a carta foi publicada pelo Jornal do
Commercio em 23 de junho de 1842) é sugestivo:
“Nunca se levou a efeito um grande movimento de
emigração sem um impulso moral, sem uma agitação intelectual que a precedesse.
Em uma palavra, os corpos não se agitam senão depois de estarem agitados os
espíritos. Não há efeito sem causa . (...) [A] revolução francesa foi como a da
Inglaterra. Destruiu muito e criou pouco. Prometeu muito e realizou pouco, mas
deixou nos espíritos grandes preceitos. Adiantou a ciência da humanidade, legou-nos
Fourier e seu sistema” (CARTA..., 23/6/1842, p. 1).
Tais ingredientes sugerem uma estrutura de texto que, antes de focar a
trajetória da experiência colonizadora, conceda destaque ao seu substrato
teórico e ao respectivo contexto material. Assim discorre-se, pela ordem, sobre
a inspiração fourierista dos colonizadores, sobre a situação na Europa
(contexto imediato da iniciativa e do próprio sistema de Fourier) e no Brasil
na primeira metade do século XIX e, na maior parte do artigo, sobre a colonização
na Península do Saí.
2 Fourierismo, matriz da colonização
francesa no Saí
O francês
François Marie Charles Fourier é uma das três personalidades incluídas por Marx
e Engels em seção do Manifesto do Partido
Comunista intitulada “O socialismo e o comunismo críticos e utópicos”
(MARX; ENGELS, 1973). As outras são Claude Henri de Saint-Simon, também
francês, e Robert Owen, britânico. Os autores do Manifesto não
tergiversam na crítica às idéias professadas pelo grupo, indicativas, para os
primeiros, de uma escassa percepção das possibilidades de emancipação do
proletariado. Para Marx e Engels, esses socialistas utópicos “rejeitam toda
ação política, notadamente toda ação revolucionária, (...) querem alcançar seu
objetivo por vias pacíficas e (...) tentam abrir caminho ao novo evangelho
social através de pequenas experiências (...)” (p. 49).
Mas não é
só de condenação que se trata no Manifesto, pois não se deixa de reconhecer nos
utopistas uma fecunda capacidade analítico-crítica. Em que pese as suas limitações,
escrevem Marx e Engels, esses pensadores “atacam todos os fundamentos da
sociedade estabelecida. Essa é a razão pela qual produziram material de um
valor enorme para abrir o espírito dos trabalhadores” (p. 50).
A
combinação de crítica contundente e reconhecimento de profundidade no
pensamento perpassa outros escritos canônicos do marxismo sobre os utopistas. O
mais representativo é Socialismo Utópico
e Socialismo Científico, publicado por Engels em 1892 (ENGELS, 1974). O
ataque ao pensamento utópico permaneceu, como indica este trecho: “esses novos
sistemas sociais estavam de antemão condenados à utopia. Quanto mais eram
detalhadamente elaborados, mais se perdiam na fantasia pura” (p. 35). Mas o
reconhecimento da densidade também foi mantido: “o socialismo teórico alemão
não esquecerá jamais que se alçou nos ombros de Saint-Simon, Fourier e Owen,
três homens que, malgrado todas as suas idéias quiméricas e suas visões
utópicas, encontram-se entre os maiores cérebros de todos os tempos (...)” ( p.
38).
Saint-Simon, Owen e Fourier não formam conjunto homogêneo
quanto à teorização sobre o avanço social e às iniciativas de reforma. Há “no
socialismo ‘utópico’ (...) um elemento de edificação e planejamento orgânico
que procura reestruturar a sociedade e, isso, não após a ‘extinção’ da ditadura
do proletariado num futuro indeterminado, mas aqui e agora, a partir das
condições atuais” (BUBER, 1971, p. 27). Porém, excetuando-se o voluntarismo,
muitas vezes traduzido em experiências de “sociedades socialistas em miniatura
e dentro de redomas (...) [que visavam] propagar-se e dominar (...) a
totalidade do corpo social” (PETITFILS, 1977, p. 12), não há maiores
coincidências entre as contribuições.
Descendente
de uma antiga linhagem nobre, o que lhe garantiu uma educação de alta
qualidade, Saint-Simon foi o utopista que melhor compreendeu a maré montante da
sociedade industrial e avaliou as suas implicações. Para ele, o sentido da
história era uma inapelável (ainda que cíclica) progressão da indústria, percepção
que o inspirou a imaginar a sociedade do futuro nos moldes do funcionamento do
sistema industrial em consolidação. Consciente dos perigos do liberalismo, e
fiel à ideia de que “na sociedade as partes deviam subordinar-se ao todo”
(WILSON, 1987, p. 82), Saint-Simon exaltou a importância do conhecimento
científico para o avanço social e preconizou uma função primordial para os
industriais – entendidos como todos os que contribuem para a formação da
riqueza, de trabalhadores a empresários – na estrutura da sociedade
(hierarquizada pelo critério do mérito), em detrimento dos ociosos,
representados pelos privilegiados (como os nobres e os membros do clero) e por
aqueles que não se envolvem na produção e no comércio. A utopia saint-simonista inscreve-se nas expectativas
derivadas de tal visão sobre a sociedade: os homens se aproximariam por meio
das relações econômicas; o exercício do poder pelos industriais seria pacífica,
em quadro de ampla concórdia na sociedade; o papel do Estado sofreria, por
conta disso, forte encolhimento, quiçá desaparecimento.
Owen nada
tinha de aristocrata, e sua aprendizagem não transcendeu a prática da
fabricação de tecidos, mas suas qualidades individuais e a expansão econômica
da Grã-Bretanha no final do século XVIII favoreceram-lhe o sucesso como
produtor têxtil. Sobretudo, adquiriu reputação de grande filantropo, como
empresário adepto de medidas como redução do tempo de trabalho, introdução de
condições de trabalho mais seguras e menos insalubres, oferta de possibilidades
para educação tanto infantil quanto adulta e eliminação do trabalho para
crianças. Mas suas ideias iam além das que nutriam essa conduta de “grande
patrão esclarecido” (PETITFILS, op. cit., p. 74). Acreditava que certos
ambientes poderiam melhorar o comportamento humano, ainda que em ações
inicialmente restritas a pequenas experiências sociais. Para ele, a piora da
situação econômica e social na Grã-Bretanha, após a guerra de 1792-1815 com a
França, espelhava o funcionamento da economia, fonte de grande “concorrência”
entre máquinas e trabalhadores, gerando redução de salários e consumo e o
aumento da pobreza. Daí a necessidade de reconstruir a sociedade em outras
bases, com realce para o associativismo e o cooperativismo na esfera das
relações comunitárias – em vilas modelos ou vilas de cooperação – sob o signo
da reciprocidade, da propriedade mútua, da aproximação entre as atividades
agrícolas e industriais e da harmonia e solidariedade como principal cimento
das relações.
Fourier não teve origem nobre como Saint-Simon ou humilde
como Owen. Filho de um negociante que também exercia funções ligadas ao Estado,
foi encaminhado contra a sua vontade para atividades comerciais. Numa França
imersa nas turbulências subsequentes ao fim do Ancien Régime, isso lhe permitiu experiências decisivas à sua
formação. Adjetivos como compulsivo, contraditório, delirante, maníaco,
ranzinza, teimoso e confuso foram utilizados para referir à sua personalidade e
ao seu comportamento. Mas sua crítica das condições sociais foi reconhecida
como penetrante por Engels (1974), pois Fourier, “um dos maiores satiristas de
todos os tempos” (p. 38), “desvela sem piedade a miséria material e moral do
mundo burguês e a confronta com as promessas adocicadas dos filósofos das luzes
sobre a sociedade (...)” (ibid.).
Sua obra é
marcada por traços muito pessoais e apresenta, numa retórica cheia de
neologismos, os contornos do que é designado como uma “teoria da atração
passional”. Fourier qualificou como período da “civilização” (após sequência
contendo os períodos do “éden”, da “selvageria”, do “patriarcado” e da
“barbárie”) o estágio então vivido pela humanidade. Apesar da denominação, a
“civilização” caracterizava-se, segundo o autor, pela desordem geral e pelo
sofrimento causado pela miséria, envolvendo desemprego e baixos salários.
Reorganizar uma indústria “fragmentada”, tida como principal origem desses
problemas, e superar a “fragmentação social”, associada também à existência da
família monogâmica – considerada antinatural, propícia ao rebaixamento da
condição feminina e apta a provocar/aprofundar o individualismo e o egoísmo –,
constituíam providência indispensável para Fourier. Tal objetivo deveria ser
buscado em sistema cujo alicerce básico era a “atração passional”, uma ideia
ligada ao entendimento de que o “prazer é o objetivo final da vida: nenhuma de
suas manifestações deve ser afastada ou proibida” (PETITFILS, op. cit., p. 96).
O sonho de Fourier era nada menos que a liberdade total, o desatamento das
paixões, a ausência de censura – principalmente da auto-censura e do
auto-cerceamento –, almejando alcançar objetivos elevados.
Após a “civilização”, a humanidade evoluiria rumo à
“harmonia”, uma fase idílica, alegre, desprovida de aborrecimentos e com
trabalhos atraentes: numa palavra, o reino da “ordem passional”. Que engenharia
poderia sustentar uma tal progressão? Em livro que sintetiza a sua teoria,
publicado pela primeira vez em 1829, Fourier assinala que o “estudo da atração
passional conduz diretamente ao descobrimento do mecanismo societário (...)”
(FOURIER, 1989, p. 38), capaz de “criar a atração industrial: ver-se-á nela os
(...) ociosos, inclusive os janotas ridículos, estarem de pé às quatro da
manhã, tanto no inverno como no verão, para se entregarem com ardor aos
trabalhos úteis (...)” (p. 37). Como núcleo da organização societária,
figuraria o “falanstério” – termo cunhado por Fourier com a contração entre
“falange” e “monastério” –, uma edificação de uso diversificado e comum. Em
tais experiências, a economia teria um perfil notadamente agrícola, mesmo que
também atividades manufatureiras fossem contempladas, e os trabalhos seriam
organizados em “séries passionais”, onde o engajamento seria livre, espontâneo
e presidido pelo interesse de cada pessoa nas atividades, com participação
franqueada em tantas séries quantas se desejasse.
Esse é,
grosso modo, o sistema fourierista
aludido pelo Dr. Mure na correspondência anteriormente citada. E esta é a sua
utopia: a instalação de “falanstérios”, com o impregnado sentido de reforma
social, contaminaria a sociedade e, mesmo que na forma exposta esse “sistema
não se (...) [ocupasse] das relações entre as unidades” (BUBER, op. cit., p.
32), acabaria por suprimir a ordem capitalista. Os seguidores de Fourier se
encarregaram de testar aquelas ideias, multiplicando experiências na Europa e
em outros continentes. Entre estas figurou a tentativa dos franceses na
Península do Saí, objeto deste artigo. O que se falou do sistema fourierista,
assinale-se, é ilustrativo do que estava em jogo para os idealizadores desse
projeto de colonização. Com efeito, para Fourier,
“O industrialismo é a mais recente de nossas quimeras
científicas; é a mania de produzir confusamente, (...) sem nenhum método de
retribuição proporcional, sem nenhuma garantia, para o produtor ou o
assalariado, de participar no aumento de sua riqueza (...)” (FOURIER, 1989, p.
63).
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“Na tão
elogiada Inglaterra, a metade da população encontra-se (...) a trabalhar
dezesseis horas por dia, uma parte inclusive em oficinas infectadas, para
ganhar sete soldos de França, em um
país onde a subsistência é mais custosa que na França” (op. cit., p. 44-45 – em
itálico no original)
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“Os operários franceses são tão miseráveis que nas
províncias de alta indústria (...) os camponeses, em suas choças de terra, não
têm cama; fazem para si um leito com folhas secas que, durante o inverno,
convertem-se em esterco cheio de vermes (...). O alimento nessas choças é da
mesma elegância que o mobiliário” (op. cit., p. 65).
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[Daí que aos] “abusos da indústria [é preciso contrapor
a] (...) política societária, que tem por base a atração industrial, a
repartição proporcional, a economia de movimentos, o equilíbrio da população e
outras regras das quais se distancia em todos os sentidos o sistema
industrialista de produção desordenada e sem nenhuma garantia de justiça
distributiva” (op. cit, p. 63).
Que realidade é captada pelo termo
“industrialismo”, na maneira utilizada por Fourier?
3 Conjunturas geral e específica da
iniciativa de colonização no Saí
No final do século XVIII e início do XIX, importantes
mudanças econômicas e sociais foram observadas no centro do sistema mundial. A
Holanda teve consolidada a perda da sua liderança econômica para a
Grã-Bretanha, que exibia crescente poderio comercial e progresso técnico e tecnológico
em setores industriais chaves como o têxtil (de algodão) e a manufatura de
ferro. No plano político, a Revolução Francesa afetou consideravelmente a
situação em diferentes países, uma influência que se estendeu nas décadas
subsequentes.
O quadro
geral era de crescimento econômico. De fato, Kondratieff (1949) situou na
virada para o século XIX a fase ascendente do que foi por ele identificado como
primeiro ciclo longo da economia capitalista. E Maddison (1982), embora
reconhecendo a precariedade dos dados referentes ao período anterior a 1870,
concluiu que desde 1820 os principais países europeus, entre eles,
destacadamente, a Grã-Bretanha, engajaram-se num crescimento econômico mais
rápido e sustentado do que antes.
As expressões “industrialismo” e “abusos da indústria”,
presentes nas considerações de Fourier sobre os problemas vividos pelos
trabalhadores, remetem ao substrato da conjuntura econômica daquela virada de
século. Trata-se do conjunto de mudanças, observadas precocemente e de forma mais
clara na Grã-Bretanha, enfeixadas no que se convencionou chamar de “revolução
industrial”. Assinale-se que, na forma costumeiramente utilizada, essa
expressão capta a intensificação das transformações produtivas vivenciadas no
século XVIII, inscrita, ela própria, numa sequência muito mais longa de
acontecimentos importantes no campo da produção manufatureira (MANTOUX, 1962).
São mudanças que, segundo Landes (1994),
não se restringiram à introdução de máquinas e novas técnicas na
produção industrial (a têxtil à frente) e aos grandes avanços na mecanização,
no uso de energia de origem não humana ou animal e na obtenção/preparação de
matérias primas. Para esse autor, a principal particularidade era a
“congregação de grandes corpos de trabalhadores num único lugar, para ali
executarem suas tarefas sob supervisão e com disciplina; (...) em suma, (...)
[o] que se tornou conhecido como sistema fabril” (p. 120).
As consequências sociais foram dramáticas. Observando a
realidade de Manchester, Engels (1985) produziu um pungente relato das
condições dos trabalhadores na década de 1840. De sua parte, Marx discorreu
sobre os reflexos da mecanização em termos de apropriação, pelo capital, de
forças de trabalho adicionais (mulheres, crianças), de alongamento da jornada de
trabalho e de intensificação do trabalho, antes de denunciar o “uso abusivo do
maquinismo para transformar o trabalhador, desde a sua mais tenra infância, em
parcela de uma máquina que faz, ela própria, parte de uma outra” (MARX, 1982,
p. 403). Mesmo Landes (op. cit.), entusiasmado com os “novos cenários de
conforto e prosperidade para todos os homens [abertos pela mecanização]” (p.
12), admitiu que “as vítimas da Revolução Industrial foram contadas às centenas
de milhares, ou mesmo aos milhões (...)” (ibid.).
Esses processos foram observados principalmente na
Grã-Bretanha, líder nas mudanças tecnológicas mais intensas no final do século
XVIII. Mas outros países europeus também vivenciaram essas transformações,
ainda que com defasagem temporal. A França foi um dos que exibiram essas
modificações, embora isso tenha ocorrido com alguma lentidão: em 1847, apesar
de um número de máquinas a vapor muito menor do que na Inglaterra, suas grandes
fábricas usavam mulheres e crianças na proporção de 25% e 15%, pela ordem, do
contingente total empregado (BOISSONAT, 1982).
Mas a
situação desses dois países deve ser colocada em perspectiva, invocando-se a
disputa que travaram pela hegemonia mundial no século XVIII. Foi a Grã-Bretanha
que, entre 1780 e 1840, logrou alcançar o maior destaque na produção industrial
de grande escala, com mecanização intensa e maiores benefícios econômicos. A
explicação reside no notável crescimento do mercado britânico em nível mundial
à reboque da sua expansão naval e colonial durante o século XVIII. Isso
repercutiu em onda de inovações particularmente intensa na Grã-Bretanha,
proporcionando-lhe um grande salto de eficiência produtiva na década de 1780,
sobretudo na indústria têxtil de algodão (WALLERSTEIN, 1998). A perda de
posição na disputa pela hegemonia fez a elite francesa introduzir medidas de
fortalecimento da agricultura e da indústria, em tentativa de catch up baseada principalmente na abertura do comércio colonial em
1784, na expectativa de aumentar a arrecadação de impostos (direitos
alfandegários) e fortalecer as finanças públicas. A frustração desses objetivos
levou-a a firmar tratado comercial com a Grã-Bretanha em 1786 (Tratado de
Eden), esperando mitigar (pelos impostos) a sua crise financeira e,
simultaneamente, modernizar a sua indústria em reação à concorrência britânica.
Contudo, a fragilidade relativa do aparelho produtivo francês resultou numa
“importação massiva, um ‘autêntico dilúvio’ de manufaturas de algodão
britânicas (e também de outras manufaturas)” (WALLERSTEIN, op cit., p.
125). A decorrente degradação das
condições econômicas e sociais na França, em meio à incapacidade para enfrentar
a concorrência, conduziu à Revolução Francesa.
Essa
sequência de acontecimentos, que também incluiu os desdobramentos da política
econômica na França posteriormente à Revolução e as implicações das guerras
entre 1792 e 1815, com as mal sucedidas tentativas napoleônicas para solapar o
comércio externo britânico, resultou numa Grã-Bretanha em situação de potência
hegemônica em 1815. As vantagens acumuladas desde 1763 lhe haviam proporcionado
supremacia industrial e financeira, solidificada pela incorporação de bases
marítimas que permitiam controle estratégico em escala global e um amplo e
duradouro poderio. Embora entre 1815 e 1840 a França tivesse avançado na
modernização da sua indústria, sobretudo a têxtil, isso ocorreu no marco de uma
“ruralização” das atividades e no sentido do mercado interno, sem representar
ameaça ao comércio exterior britânico.
Esse é o quadro geral em que vicejaram os ideais de
Fourier e de outros socialistas utópicos. “Industrialismo” e “abusos da
indústria” referem-se à convergência de processos implicando mecanização
aprofundada e reorganização do trabalho, tendo como síntese o sistema fabril,
com as implicações sociais. Fourier, nascido em 1772 e falecido em 1837, foi
contemporâneo dos principais reflexos da assinalada abertura comercial
francesa, origem (ou pelo menos fator de agravamento) de desestabilização
econômica que contribuiu para a deterioração das condições dos trabalhadores.
Foi também testemunha das tentativas de dinamização da indústria francesa, no
período 1815-1840, por meio da “ruralização” das atividades produtivas. As
idéias fourieristas de reforma
social estavam, desse modo, fortemente impregnadas pelo que lhe era possível
observar da realidade do seu país no rescaldo da perda da disputa pela
liderança mundial. O mesmo pode ser dito da decisão de emigrar, na década de
1840, de franceses seduzidos pelo propósito de instalar um falanstério no Brasil.
Qual era o quadro vigente no destino da
transoceânica iniciativa de colonização, em escala de país e de província?
No período
em questão, o Brasil deixara recentemente a condição colonial, na esteira dos
acontecimentos ligados à mencionada disputa pela liderança no centro do sistema
mundial. De fato, foi a investida de Napoleão sobre a Península Ibérica que
provocou a transferência da corte portuguesa para o Brasil, inaugurando
sucessão de acontecimentos que culminou na Independência. Todavia, o otimismo
do início do século XIX nesse país diluiu-se em face das crescentes
dificuldades econômicas e políticas das primeiras décadas de vida independente,
agravadas pela dramática fragilidade financeira do governo central e pela
consequente erosão da sua autoridade, refletida em escalada de revoltas e
convulsões sociais em diferentes regiões (FURTADO, 1987).
Ora, em
contexto no qual os movimentos básicos da economia assumiam não mais do que “a
forma específica de diversificação da
atividade produtiva, no interior da fazenda de escravos (...)” (RANGEL,
1981, p. 21 – em itálico no original), as promessas ligadas à criação de focos
de atividade industrial haveriam de exercer uma inegável sedução no Brasil.
Note-se que a percepção desse aspecto, pelo Dr. Mure e seus sócios,
provavelmente influenciou a própria confecção do projeto, que se chamava
“colônia industrial”, uma denominação pouco sintonizada com o ideário de
Fourier, que criticava o “industrialismo”, como assinalado.
Essa
percepção influenciou o desenho do empreendimento e também lubrificou, ao que
parece, a sua aceitação pelas autoridades brasileiras. Na já mencionada carta
de apresentação do projeto, o Dr. Mure listou as especialidades dos integrantes
da iniciativa colonizadora e exaltou as suas habilidades individuais quanto à
criação, adaptação e uso de máquinas de diferentes tipos. “Pela reunião de tais meios”, sublinhou,
“começaria a realizar-se a grande e fecunda aplicação das forças mecânicas à
agricultura” (CARTA..., 17/12/1840, p.
2). Na argumentação, o médico tocava estrategicamente em tema de grande apelo
no país naquele período: o trabalho escravo e as implicações da sua extinção.
“Assim ficaria resolvido o grande problema do cativeiro, e sair-se-ia desse
fatal dilema que, de um lado, rejeita o tráfico de africanos e, de outro,
estabelece a impossibilidade de cultivo das regiões inter-tropicais pela raça
branca” (ibid.).
Esses acenos
tiveram consequências. Três dias após a apresentação a D. Pedro II dos cem
primeiros colonos franceses chegados ao Rio de Janeiro, o Jornal do
Commercio concluiu editorial
manifestando entusiasmada esperança de que o Brasil pudesse testemunhar
um profícuo “espetáculo nessa terra do Saí, onde se vai tentar a grande
experiência da organização do trabalho!” (EDITORIAL..., 21/12/1841, p. 1). A
eloquência não se revelava menor na mensagem dirigida ao imperador: “Possa ela
[a experiência] servir de magnífico prelúdio a todas as prosperidades e
venturas do seu reinado!” (ibid.). A iniciativa era efetivamente cercada de
indisfarçável otimismo. Em outro editorial, o Jornal do Commercio indagava
se a utopia fourierista no Sul do Brasil revelar-se-ia frustrada ou se
daria bons frutos. Eis a posição exibida: se a colonização industrial no Saí
for bem sucedida,
“a prosperidade da
nossa pátria terá dado um grande passo para diante: na Europa toda a classe que
sofre tem os olhos fitos no Saí; prospere a colônia, e todos esses escravos dos
capitais, todas essas vítimas que um trabalho contínuo superior às forças
humanas não preserva da miséria, trar-nos-ão seus braços, sua indústria. Se não
prosperar, se o sistema desse socialista for tão quimérico como o dos mais,
ainda assim lucraremos: homens industriosos, afeitos ao trabalho, morigerados,
terão vindo aumentar nossa população. Recomendada por tão faustos auspícios, a
colônia do Saí (...) merece todas as simpatias do patriotismo (...)”
(EDITORIAL, 24/12/1841, p, 2).
A
receptividade que o empreendimento angariou no governo brasileiro adquire maior
sentido quando considerada no interior desse quadro. Perante os problemas então
vivenciados, as possibilidades sinalizadas a partir da instalação de núcleos de
atividade industrial – inclusive com a prometida fabricação de máquinas a vapor
– configurou atração irresistível, tanto que a roupagem socialista da proposta,
que poderia suscitar insanáveis resistências numa elite de latifundiários
escravistas, acabou não representando qualquer empecilho realmente
incontornável. A rigor, no Brasil do Segundo Reinado, a utopia fourierista não parece ter sido encarada
pela camada dirigente como algo distinto de um bom e grande negócio,
fundamentalmente.
A situação
não era distinta na Província de Santa Catarina. Nos altos círculos políticos
havia plena clareza sobre as carências locais. Vejam-se os termos do discurso
do Presidente da província aos deputados em 5 de abril de 1836.
“Já começaste, senhores, a legislar sobre o
estabelecimento de colônias, e eu reclamo a vossa atenção sobre este (...)
assunto, que carece de medidas mais amplas. A natureza, entre os dons de que
foi pródiga com este país abençoado, o favoreceu com um clima, além de benigno,
próprio para quase todas as produções de ambos os hemisférios. A população,
porém, não é proporcionada à extensão do território; faltam-nos braços que
façam valer este torrão precioso, até agora em grande parte improdutivo por
inculto, e faltam-nos também o socorro das artes para o uso e emprego de
máquinas que ajudem e facilitem os trabalhos agrícolas. Esses braços, esses
auxílios, só nos podem vir da Europa, onde a população superabunda e onde as
artes têm chegado ao maior apuro. Cumpre, pois, que por meio de colonizações
chamemos ao nosso país homens ativos e industriosos, e supramos com braços
livres esses inertes e aviltados pelos ferros da escravidão que nos fornecia o
abominável tráfico de carne humana” (DISCURSO..., 5/4/1836, p. 11).
O problema da escravidão era considerado especialmente espinhoso. No
discurso do ano seguinte, em 1837, o novo presidente assinalou para os
deputados: “A nossa indústria agrícola precisa de um impulso benéfico para que
não caia em desfalecimento com a cessação do tráfico de escravatura; e este
impulso só de vós pode provir, seja pela confecção de leis apropriadas à
colonização, seja em conferir meios à Administração para levar à prática tão
importante objeto” (FALA ...1/3/1837, p. 14).
O quadro
provincial era de grande adversidade em termos econômicos. Por exemplo, em 1838
dizia-se que, antes florescente e muito significativa, a produção de tecidos de
algodão e de linho encontrava-se em franco declínio, temendo-se até o seu
desaparecimento. Motivo: “tendo crescido o custo de produção, (...) não pode
este gênero concorrer com os tecidos estrangeiros, que posto inferiores sejam
em duração, vêm ao mercado por preços incomparavelmente inferiores”
(DISCURSO..., 1/3/1838, p. 16). No
discurso presidencial de março de 1840, a abordagem dos problemas econômicos é
não só mais extensa do que em ocasiões anteriores, como mais alarmante
(DISCURSO..., 1/3/1840). “A indústria fabril, entre nós, não passa de uma frase
vazia de sentido” (p. 27), disse o Presidente com ênfase na produção de
tecidos, argumentando sobre o dano causado pela concorrência externa; e a
afirmação de que “[a] indústria agrícola também não existe entre nós” (ibid.)
antecedeu considerações críticas sobre as dificuldades experimentadas pelos
cultivos.
Nesse
ambiente, é quase natural que as providências do Governo Imperial relativamente
à colonização fourierista no Saí
provocassem expectativas favoráveis. O discurso presidencial aos deputados
catarinenses no início de 1842 é eloquente a esse respeito.
“Ser-vos-á grato saber que o Governo Imperial,
autorizado pela Lei Geral nº 243, tem mandado fundar uma Colônia Industrial
Societária, no Município de S. Francisco, para a qual houve Sua Magestade o
Imperador por bem conceder duas léguas quadradas de terra devoluta na Península
do Saí por Decreto de 11 de dezembro último, que aprovou as condições do
contrato celebrado pelo Governo com o Doutor Bento Mure, empresário da colônia,
o qual no prazo de um ano deve ter nela quinhentos colonos societários. Os
primeiros, em número de cem, chegaram ao seu destino em janeiro deste ano, e
tratando-se ainda dos primeiros arranjos para o seu estabelecimento, nada se
pode dizer sobre a empresa, da qual, contudo, é permitido esperar que grandes
bens resultarão à Província, visto que os societários, devendo ser pessoas de
boa morigeração, e dotados de talento e indústria, farão avultar os nossos
produtos, e os aperfeiçoamentos materiais que introduzirem servirão de exemplo
e de estímulo aos habitantes do país para os imitarem” (FALA..., 1/3/1842, p.
27).
4 A colonização
industrial no Saí: o signo da utopia
Nos primeiros
dias de janeiro de 1842, o porto de São Francisco do Sul assistiu ao
desembarque de dezenas de franceses que, em viagem desde a cidade de Le Havre,
no litoral norte da França, vinham do Rio de Janeiro após estada na capital do
Brasil por tempo não muito maior do que duas semanas. Para bom número de recém
chegados a permanência na vila de São Francisco não foi longa. Apesar de
contratempos sobre os quais se falará depois, logo ocorreu o deslocamento para
a Península do Saí, localizada no outro lado da Baía da Babitonga. Como
assinalado, a Península do Saí fora o local escolhido, com o consentimento e o
apoio do governo brasileiro, para a instalação de uma colônia industrial na
então Província de Santa Catarina. Esses franceses integravam leva de viajantes
pioneira, entre as cinco que até o início de 1844 foram sucessivamente
organizadas para o trajeto França-Brasil com destino ao Saí (GÜTTLER, 1994).
O propósito de
criar uma colônia industrial no Brasil fez o Dr. Mure dirigir-se ao país em
novembro de 1840 (GÜTTLER, op cit.), em cuja capital passou a divulgar suas
pretensões. A estratégia incluiu o envio de uma carta ao Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, que a publicou em 17 de
dezembro de 1840. Nessa carta, Mure discorre sobre diferentes aspectos do
empreendimento almejado.
- A base seria o princípio associativo, presente na
esfera da produção e em outras esferas: por exemplo, uma módica dedução do
fruto do trabalho de cada colono permitiria operar um fundo para cobrir
situações de doença, falta ao trabalho e exigências da velhice, além de
garantir, independentemente de necessidade particular, os gastos das
famílias com a educação dos filhos;
- a educação seria integrada e orientada à formação
para o trabalho, respeitando-se as aptidões; interferências familiares nas
carreiras dos filhos (visando formá-los médicos ou advogados, por exemplo)
seriam coibidas com a perda do direito ao amparo financeiro coletivo; a
educação das crianças deveria ser atraente, implicando sessões breves e
prazeirosas, com variação nos conteúdos e combinação de temas ligados à
agricultura e à manufatura; a ênfase na educação seria grande, ainda mais
que as diferentes tarefas na colônia seriam destinadas aos membros que
demonstrassem capacidade específica de execução;
- o sentido associativo transpareceria principalmente
na habitação, pois um só imóvel preencheria todas as necessidades
correspondentes; o prédio teria aposentos de dimensões variadas (alugados
aos colonos a preços regulados pelo custo da construção) e também
refeitórios, oficinas e, mais tarde, até livraria, museu e teatro; uma
única cozinha coletiva preencheria as exigências, tanto quanto uma adega,
um armazém e um celeiro;
- pretendia-se a criação de um núcleo industrial com
destaque no cenário socioeconômico do Brasil, atraindo um generalizado
interesse e, em decorrência, estimulando a propagação do experimento; tal
propósito exigiria suficiente capacidade técnica e organizativa, um
requisito a ser considerado na seleção dos colonos em território francês:
a preferência era por trabalhadores capazes de construir máquinas a vapor,
sendo que para a primeira leva de migrantes o recrutamento já teria
privilegiado pessoas com formação em engenharia e familiarizadas com a
construção de máquinas, além de metalúrgicos, maquinistas e contramestres,
entre outros; num país de escassas atividades industriais, esses atributos
representariam benefício certo, ainda mais pelo significado das máquinas a
vapor para os transportes e comunicações num litoral tão extenso como o
brasileiro;
- as atividades produtivas seriam
sustentadas por um banco próprio, operando simultaneamente como caixa
econômica e caixa de desconto; dispondo das colheitas e mercadorias
produzidas, o banco faria adiantamentos que permitiriam aos colonos
aguardar o melhor momento para as vendas; o banco também disponibilizaria
recursos segundo a habilidade e a conduta dos demandantes, acudiria
financeiramente os necessitados e faria a distribuição da terra, pois
esta, embora indivisa, seria objeto de arrendamento anual entre colonos ou
grupos de colonos.
A parte final da carta, inegavelmente apoteótica, é eloquente sobre o
utopismo incrustado na proposta.
“Possamos em breve ver
erguer-se e florescer a primeira colônia societária! A fama da venturosa
existência que aí vivermos excitará todas as atenções, e o contágio do nosso
exemplo chamará em breve em redor de nós numerosos imitadores. As artes e a
poesia, frutos da ventura social, brotarão em breve no meio de nós; a
associação tornará fáceis todas as grandes empresas, extinguirá toda a
discórdia, e dirigirá para a produção as forças que hoje se destroem pelo
choque dos interesses. (...) Enfim, a fama de tão bela mudança atravessará o
Atlântico. Os povos da velha Europa, que sofrem, respirarão um momento em seu
leito de dores. Se atualmente atravessam eles aos milhares os mares em busca de
algum alívio a seus males, quem poderá dizer que febre de emigração os
acometerá quando souberem que o grande problema da felicidade social está entre
nós resolvido?” (CARTA..., 17/12/1840, p. 2).
Essa declaração de propósitos
repercutiu junto ao ministério imperial, tanto que, intermediado por um
ministro, o Dr. Mure logrou entregar a proposta diretamente a D. Pedro II
(então um adolescente). Na ocasião, o médico leu um memorial em que destacava o
significado da pretendida iniciativa para o Brasil e para o governo do jovem
monarca. O desdobramento mais importante foi a permissão para que Mure
embarcasse num navio da Marinha de Guerra rumo à capital da Província de Santa
Catarina, com orientação ao governo provincial para que lhe fosse concedido o
apoio necessário à escolha de um local para a colônia. De fato, em ofício de 13
de janeiro de 1841 ao Juiz de Paz de São Francisco, com cópia para as mesmas
autoridades em Porto Belo e Itajaí, o Presidente da província informa sobre a
viagem do Dr. Mure, frisando:
“manda o Governo de S. M. o Imperador recomendar para
que lhe facilitem os meios de visitar o litoral e as margens dos rios
navegáveis a fim de escolher lugar (...) para a mencionada fundação em terrenos
que estejam devolutos, e ditos à beira-mar ou rio. Recomenda a V. Mce. o dito
Doutor e lhe ordena, que quanto de sua autoridade dependa o auxílio, lhe dê
todas as indicações precisas para ele poder achar e reconhecer nas margens de
todos os rios e à beira-mar um terreno para o fim indicado” (OFÍCIO...,
13/1/1841).
De retorno
ao Rio de Janeiro, Mure encontrou-se de novo com D. Pedro II para entregar documento relatando a expedição. Com
observações sobre o alcance inclusive político da iniciativa proposta – sendo
sugerida uma repercussão positiva na grande região cujo extremo sul vivenciava
a Guerra dos Farrapos –, o relato abriu caminho à solicitação de apoio
financeiro ao governo do Brasil, indicado como indispensável à viabilização da
iniciativa colonizadora. Em julho de 1841, os parlamentares assentiram que fossem
destinados, no orçamento do Ministério Imperial, 64 dos 80 contos de réis
inicialmente pedidos por Mure, a título de auxílio para a instalação da colônia
no Saí.
Os esforços de Mure foram coroados no início de dezembro
de 1841 com a assinatura de um contrato, transcrito na íntegra em Boiteux
(1944), que estabelecia as condições para a criação e o funcionamento da
colônia. Exibindo como partes contratantes o Dr. Mure e, representando o Estado
brasileiro, o ministro encarregado dos negócios do Império, o contrato
desdobrava-se em 14 tópicos que identificavam o objeto da celebração e
apontavam as obrigações, além de discriminar e destinar os recursos
disponibilizados pelo governo. Não se tratava de recursos doados, mas de
adiantamento de fundos que passariam a ser reembolsados quando a colônia
exibisse sustentabilidade, qualquer descumprimento dos termos contratuais
devendo provocar sequestros anuais de partes da produção até a restituição
integral. Merecem realce os itens sobre proibição de compra e uso de escravos,
confinamento dos colonos ao espaço do empreendimento para fins de trabalho e
interdição ao comércio com o exterior até que os colonos se naturalizassem
brasileiros. Por último, estipulava-se que o governo poderia inspecionar a
colônia sempre que desejasse verificar o cumprimento dos termos contratuais, o
que exigia livre acesso a todos os documentos e registros existentes.
A assinatura do contrato ocorreu poucos dias antes da
chegada do navio com os cem primeiros colonos ao Rio de Janeiro. Isso pode ser
interpretado como sinal de ousadia ou imprevidência dos organizadores da
viagem, já que o embarque fora providenciado sem que tivesse ocorrido o
comprometimento formal do governo brasileiro. Logo após a chegada, o Presidente
do Tribunal do Tesouro Público Nacional “remete ao Sr. Inspetor da Tesouraria
da Província de Santa Catarina a cópia do Decreto de 11 deste mês com as
condições relativas ao estabelecimento de uma Colônia Industrial de franceses
na dita Província, a fim de que pela parte que lhe toca lhe dê o devido
cumprimento (...)” (OFÍCIO..., 23/12/1841).
5 Da utopia à frustração
Não
obstante o interesse de todas as partes envolvidas, não faltaram problemas nos
passos iniciais do projeto colonizador. Ao menos em algum grau, esses problemas
guardaram relação com o que houve na França durante a estada de Mure no Brasil.
No
primeiro semestre de 1841, a Union
Industrielle fora modificada pelos fundadores que tinham permanecido na
França. A mudança implicou a entrada de pessoas com princípios divergentes dos
de Mure (o médico dizia serem saint-simonistas,
com idéias opostas às dos fourieristas)
e ocorreu à revelia da opinião deste, que se encontrava no Brasil. Tal fato
desgostou Mure e comprometeu a sua confiança nos sócios. De outra parte, dois
destes (Jamain e Derrion), ao chegarem ao Rio de Janeiro com os primeiros
colonos (associados da Union Industrielle),
souberam que Mure conseguira a concessão das terras na Península do Saí em seu
próprio nome, e não para a Union
Industrielle. Descobriram também não terem sido informados sobre a maior
parte dos termos do contrato com o governo imperial. Isso aconteceu logo após
Mure ter partido para São Francisco do Sul sem comunicá-los, deixando-os na
capital em companhia de vários colonos, cujos pertences, porém, seguiram
viagem.
De outro
lado, uma parte dos franceses que seguiram para a Província de Santa Catarina
decidiu abandonar já na chegada o grupo sob a liderança de Mure, levando
consigo parte do material trazido a bordo, para cuja recuperação o médico
requisitou ajuda policial. O desligamento refletiu desagrado com o que ocorrera
no Rio de Janeiro e com as condições de recepção em São Francisco, que
denotavam um deficiente preparo. Note-se que a possibilidade de que pudessem
ocorrer problemas de recepção tinha sido pressentida na província. Em
correspondência de 30 de dezembro de 1841 ao Ministério do Império, o
Presidente desta advertiu: se o Dr. Mure “não tem preparado depósito de
víveres, ou não os trás ao menos, acho que houve precipitação na vinda dos
colonos, e receio algum descontentamento de parte deles, porque o país poucos
recursos oferece” (CARTA..., 30/12/1841).
Já tensa,
a atmosfera deteriorou-se com as crescentes evidências de indefinição e
desorientação sobre o comando da colônia, agravando a insatisfação dos outros
colonos, que ameaçaram com a dissidência. A chegada a São Francisco, dias
depois, dos sócios que tinham sido deixados no Rio de Janeiro (acompanhados de
outros societários que também haviam ficado), acirrou ainda mais os ânimos. Por
terem sido responsáveis pela seleção dos viajantes na França, Jamain e Derrion
mobilizaram facilmente os descontentes, os quais, a partir de uma assembléia,
passaram a desconsiderar os direitos de empreendedor de Mure. Só uma minoria
aceitou os termos do contrato com o governo brasileiro, permanecendo o restante
– a maioria de descontentes – em situação que as autoridades não sabiam como
tratar.
Tanto a
posição do médico foi sustentada pela ação governamental, que seus ex-sócios
tiveram de comprar as terras solicitadas para os dissidentes, devido à recusa
do governo em concedê-las. Nessas terras foi instalada, em abril de 1842, a
colônia do Palmital, com cerca de 40 colonos. Mure, apesar dos problemas (ou
por causa deles, que exigiam rápida demonstração de eficiência e controle da
situação), acelerou a instalação do que ficou conhecido como colônia do Saí, de
modo que, também em abril de 1842, a maioria dos que permaneceram sob a sua
liderança se encontrava estabelecida. Cabe indicar que, de todos os imigrantes
embarcados na França, um número expressivo acabou não se engajando no
empreendimento. A maioria dispersou-se, quer na chegada ao Rio de Janeiro, quer
na região de São Francisco do Sul, tendo alguns rumado para outras paragens (o
Uruguai, por exemplo).
De toda maneira, uma vez criadas, as colônias do Saí e do
Palmital apresentaram um relativo progresso. Mais do que isso, lograram até
estabelecer, a despeito das turbulências iniciais, uma certa relação entre si,
fruto de iniciativa do governo da província em promover vínculos entre ambas.
Carta de Mure publicada pelo Jornal do Commercio em 23 de junho de 1842 dizia que em poucos
meses a colônia do Saí registrara várias iniciativas. Os trechos mais
relevantes figuram abaixo.
“Ter visto o Saí há seis meses e revê-lo hoje, não
seria por certo um espetáculo vulgar para o viajante mais indiferente. Supondo
que tomasse a estrada em frente à vila, (...) veria, em primeiro lugar, (...)
uma forja quase sempre acesa, onde se fabrica e concerta a numerosa
ferramenta que exigem os trabalhos da colônia. Os mesmos habitantes dessa
costa e os operários brasileiros que trabalham com os colonos franceses,
recorrem a essa forja (...).
Se entramos terra a dentro, acharemos em bom estado a estrada que ainda há pouco era quase
impenetrável. Uma boa parte dela já indica que uma população ativa a frequenta
(...); mas em três quartos de hora de caminho chegamos aos limites da mata
virgem. É aí que acaba a estrada antiga e que começa o novo trabalho colonial;
é aí que se abriu uma vasta estrada,
que se lançaram pontes, que se
entulharam barrancos, que subidas íngremes se tornaram suaves (...).
Depois de flanquear esta bela obra, (...) divisamos
(...) algumas casas. É o nosso primeiro campo, é o nosso primeiro estabelecimento (...).
O campo deu já uma colheita satisfatória de feijão e as dará ainda mais ricas quando
os nossos agricultores tiverem adquirido a necessária experiência local. A casa principal é de barro coberta de
palha e pode conter de 15 a 20 famílias.
Entremos porém de novo no mato virgem. É aqui que
começa o verdadeiro trabalho colonial.
O Saí pequeno com suas numerosas cascatas, (...) é bem digno de tentar a
ambição de trabalhadores europeus para quem a força motriz é tão preciosa (...). Era de mister abrir um caminho para esse rio, mas só
a idéia de o tentar era uma temeridade (...). Desanimei por um momento e
julguei que melhor seria abrir a navegação do rio até o mar, do que fazer essa
légua de estrada por cima dos precipícios (...). Principiamos portanto trabalhos hidráulicos e uma represa no Saí.
Através de escabrosos carreiros, chegamos no rio onde devíamos trabalhar (...). Esta estrada, no princípio tão terrível,
tornou-se-nos mais familiar; transitou-se, suavizou-se, atalhou-se em alguns
pontos, e por um dia disse-me um dos nossos societários: “Dai-me braços,
dinheiro e tempo, e eu farei o caminho do Saí”. Há dois meses que isto se
passou, e hoje a estrada está concluída.
Dezoito
pontes (...) foram lançadas sobre
torrentes e precipícios, e sobre quase todos os pontos pode rodar sem
obstáculos um carro de bois. (...)
Penso pois (...) que não temos perdido o nosso tempo.
Penso também que a cada instante de nossa existência colonial o terreno que
ocupamos apresentará um aumento de valor igual aos adiantamentos que temos
recebido. De cada lado da estrada que abrimos, já a exploração das madeiras nos oferece abundantes recursos, e todos os
dias preparamos novos recursos para os colonos que esperamos. O auxilio do
governo nos é necessário, mas ouso dizer que a alguma glória teremos direito se
somente com esse auxílio pudermos fazer o que em outras e melhores
circunstâncias custou quinze e vinte vezes mais.” (CARTA..., 23/6/1842, p. 1-2
– negrito na citação).
Também
em junho de 1842 o Inspetor Mafra, designado pelo governo da província para
acompanhar o andamento da colonização, enviou ao Ministro dos Negócios do
Império um relatório em que reiterava muitas dessas informações de Mure,
inclusive elogiando a qualidade do que observou e a engenhosidade dos
franceses. Mais do que isso, assinalou que, se mais recursos estivessem
disponíveis, tanto a represa quanto a serraria mecânica em implantação já
estariam prontas. O relatório também informou sobre a colônia do Palmital. O Jornal do Commercio publicou esse
relatório em 17 de julho de 1842, cujos trechos mais importantes para o
propósito do artigo estão abaixo.
“Agora direi a V. Ex. o que vi em ambos os
estabelecimentos.
Quanto ao Saí.
Como o terreno devoluto concedido para o
estabelecimento da colônia não tem saída para o mar, senão pelo rio Saí, que
não é navegável no sítio onde deve ficar a colônia, e sendo indispensável que
os colonos tivessem mais à mão os recursos de que carecessem nos primeiros
tempos, o Dr. Mure ocupou uma ilhota
deserta, denominada Alvarenga, a duzentas braças da margem esquerda do rio
de S. Francisco, e aqui erigiu duas
cabanas, que lhe servem de depósito
de víveres. No continente fronteiro a esta ilhota e à vila comprou, à
margem do rio, um sítio que tem sofrível casa
de vivenda, e algumas terras de
cultura e pastagens. Na casa
está montada, e em atividade, uma forja,
e principia a ter no pasto algum gado;
mas, achando-se os fundos deste sítio ainda distantes dos limites do terreno
concedido, arrendou por seis anos outro terreno que confronta com a colônia, e
neste erigiu uma casa bastante espaçosa,
que denomina Picot, onde há um forno, e que habitam três famílias e os
colonos empregados no desmatamento e
abertura do caminho. Em torno desta casa há uma derrubada que já tem uma horta
e um bananal, e onde se plantaram diversos grãos vindos da Europa, mas que pouco produziram (...).
Até este ponto há 450 braças de caminho, denominado Büchele, melhorado
e feito para a colônia, e transitável
por carros.
Daqui até às nascentes do Saí, onde deve ser o centro da colônia, há 2.400 braças de caminho, em continuação
daquele, chamado Mangin, todo aberto e feito de novo, e em
toda extensão de 2.850 braças, há dezoito pontes e estivas feitas com bastante solidez, ligando algumas das primeiras
às quebradas de outeiros, para estabelecer o nivelamento.
A direção deste caminho foi bem escolhida, e ele está
bem acabado; fizeram-se grandes trabalhos em arrancar e destruir rochedos que o obstruíam, e, me parece, não só
que foram bem empregadas as quantias que com ele se despenderam, como que esta
despesa é muito inferior à importância da obra; porquanto, agora já está descoberta e reconhecida grande
parte do terreno que a colônia há de ocupar; já os colonos que chegarem
penetrarão desassombrados no interior, e acharão posições à escolha onde se
estabeleçam, tendo já franca uma via para a saída dos seus produtos.
Na mesma posição, e nas nascentes do Saí, se está construindo um dique para represar
as águas vertentes das serras, e fazê-las sair pela comporta, afim não só
de aprofundar o nível (...) do rio e
torná-lo navegável desde aquele ponto, mas também de desobstruí-lo. Estão feitos os paredões
do dique, trata-se de cavar o reservatório
ou tanque, e de fazer a comporta,
cujo desenho vi, e me pareceu de uma construção engenhosa, e que desempenhará
cabalmente o fim. (...).
Todos os trabalhos que deixo referidos têm sido feitos
com o concurso de jornaleiros do país, e nem poderia ser de outro modo, visto
que o Dr. Mure só tem consigo vinte e uma pessoas (...). (...)
Inspecionei os livros de contabilidade da colônia do
Saí, que achei escriturados em regra. A receita por ora não consta senão dos
socorros dados pelo governo imperial à colônia (...). (...)
Quanto ao estabelecimento do Palmital.
Está este (...) a sete léguas da vila de S. Francisco;
mas, em razão da configuração do terreno intermédio, quase que se toca com o do
Saí, sendo praticável abrir-se entre os dois uma comunicação que está projetada
(...).
Aqui há casa de
vivenda pertencente ao sítio, algum arvoredo
e pastagens, que já existiam.
Como ligados a este estabelecimento, contam-se 42
colonos de toda idade e sexo; mas quatro continuam a residir na vila, e,
provavelmente, nunca se reuniram aos do Palmital.
Os colonos do Palmital, que para ali foram há 2 meses,
começaram os seus trabalhos dando-se a construções
navais, por ora em pequena escala; estavam a concluir um lindo escaler de 18 pés de quilha, e
tinham pronto o estaleiro e
preparavam as madeiras para um iate de
60 pés. Este gênero de indústria pode ser muito produtivo aos colonos e
profícuo ao país, porque entre eles há artistas hábeis, e não se negam a
admitir discípulos brasileiros. Também tratavam de construir uma olaria, de montar uma forja e fabricavam carvão; mas nada havia ainda
feito em agricultura.
Neste estabelecimento há, por ora, maior número de
obreiros, e mais perfeitos que no Saí, mas não estão tão unidos e submissos
como os deste.
Tenho concluído o presente relatório; por ele terá V.
Ex. visto que pouco temos ainda, além de esperanças, em colonização francesa;
mas estão lançados os fundamentos, existe o núcleo, e é de crer que ela
vingará, e prosperará com a chegada dos que estão engajados (...) ”
(RELATÓRIO..., 17/7/1842, p. 1 – negrito na citação).
No final de 1842 – pouco menos de um ano após o início da colônia –, um
observador louvava o que se fizera no Saí, corroborando informações de Mure e
do Inspetor Mafra. Todavia, salientava que os imigrantes – engenheiros,
maquinistas, carpinteiros, entre outras profissões “urbanas” – envolviam-se
principalmente com atividades ligadas à terra, em descompasso com suas origens
ocupacionais. Isso não só repercutia nos resultados obtidos, como representava
desperdício de capacidade e talento. As impressões desse observador, Fernando
Antonio de Miranda, foram publicadas pelo Jornal
do Commercio em 26 de fevereiro de 1843. Os principais trechos encontram-se
abaixo.
“Ofereceu-nos a colônia uma fiel imagem dos fatos
referidos pelo Illm. Inspetor da mesma, em seu último relatório, e pelo mesmo
empresário, em suas correspondências publicadas no Jornal do Commercio, porém
com a diferença, que provém do andar do tempo, de um (...) aperfeiçoamento
contínuo.
A forja que
já existia acha-se hoje muito mais animada e provida de encomendas e de meios de trabalho. O Sr. Labbé, que a dirige,
mostrou-nos grande quantidade de carvão fóssil, ferro, aço e ferramenta de toda
a qualidade. Os moradores de todo o
litoral concorrem (...) com suas encomendas, e agora vai-se dar princípio
às ferragens de um barco que um da vila
mandou construir.
Mais adiante vimos uma olaria de tijolos e vários estabelecimentos
agrícolas que o Illm. Sr. Mafra não mencionou em seu relatório por não
existirem ainda (...).
A casa
principal onde descansou o digno inspetor da colônia já não é aquela que
viu e descreveu. A abertura de caminhos,
o aumento das derrubadas, a ereção
de casas, o acréscimo da povoação tem feito dela um centro de
atividade que, no mês de junho deste ano, não se podia esperar.
Enquanto nos caminhos de que acabo de falar, não posso
deixar de manifestar minha admiração (...).
Agora o caminho
Mangin, no qual o inspetor da colônia passou a pé, dá passagem a carros que
duas vezes na semana vão além do Saí levar mantimentos aos constantes
trabalhadores que ali tratam de estabelecer uma serraria.
Na extremidade do caminho do Saí estão estabelecendo
uma serraria mecânica, que já está
muito adiantada, e que para o meio de fevereiro achar-se-á em plena atividade.
Já estaria há muito acabada, se a falta de recursos não houvesse demorado esta
empresa, do que depende a sorte da colônia.
Foi a este lugar somente, onde estavam fabricando uma represa, (...) que chegou o Sr. Mafra;
porém atualmente este ponto é apenas a metade do território aberto (...). Ali
principia um caminho de duas mil braças,
que ainda não presta para carros, mas que é muito bom para peões e até para
cavalos.
Este caminho acaba no centro da península, no cume de
um morro, [lugar] (...) destinado para a construção do núcleo principal.
Parte do caminho atravessa as imensas (...) florestas
que cobrem a península do Saí; mas (...) à direita e esquerda avistei (...) casas de famílias coloniais, feitas com
os mesmos materiais do lugar (...).
Essas casas estão circundadas de vastas derrubadas feitas pelos mesmos colonos, (...) e que já
principiam a dar colheitas; na
última daquelas vi uma grande criação de
porcos que por todos os meios o Dr. Mure procura naturalizar nos matos do
Saí.
Em toda a parte encontramos a mais franca e sincera
hospitalidade, e os colonos pareciam muito satisfeitos de sua sorte. Os mais
antigos (...) já escreveram para a França chamando seus filhos e convidando
seus conhecidos a partilharem sua sorte. Então o bom resultado da colônia já
não seria duvidoso, se o governo continuar a proteger este interessante
estabelecimento.
Depois deste ligeiro esboço, passo (...) a expor
algumas reflexões que me foram inspiradas pela minha viagem à colônia, e
indicar com franqueza não só os perigos
que ameaçam a prosperidade e até a existência da mesma, como também as
medidas que possam contribuir para seu desenvolvimento e progresso. (...)
Achei na colônia uma fonte de perdas muito sensíveis, e que me parece digna de toda a atenção
(...); e vem a ser que as capacidades e
os intentos dos indivíduos acham-se geralmente empregados de uma maneira bem
pouco vantajosa em seus resultados.
Vi na colônia do Saí carpinteiros ocupados em lavrar a
terra, curtidores em plantar, engenheiros a fazer valas, maquinistas em
derrubar paus, finalmente fabricantes de máquinas a vapor rebocando paredes. É
verdade que nisso foi algum tanto culpado o empresário, que ao princípio devia
mandar vir de França lavradores, para só depois chamar artistas e maquinistas;
porém talvez não tenha ele toda a culpa, pois que deu à sua colônia o título de
Colônia Industrial, esperando, quer do governo, quer dos particulares,
encomendas de máquinas que deviam dar um proveito muito maior que qualquer
trabalho agrícola. (...).
Entretanto, faltando
as encomendas industriais, forçoso foi dedicar-se à agricultura, e foi o
que fizeram os colonos do Saí (...); porém a isto chama em perda imensa para os
colonos que tomaram este partido, e perda maior ainda para o Brasil (...).
Esta circunstância (...) contribuiu muito para a dispersão dos colonos vindos pelo
Virginia, os quais eram, pela maior parte, artistas, e fácil era organizá-los
apresentando-lhes um emprego idôneo de seus talentos. Porém, não havendo outro
afazer que desse produtos imediatos, senão o de preparar madeiras, e demais
pouca esperança de melhor futuro, facilmente deram ouvidos a alguns espíritos
turbulentos que entre eles se achavam e ameaçavam a colônia de uma ruína
completa.
Não posso também deixar de dizer que a justiça não é
administrada na colônia como o devera ser nos princípios de um estabelecimento
onde infalivelmente encontram-se espíritos (...) descontentes. (...)
Tais são os principais perigos que ameaçam o porvir da
colônia do Saí. Enquanto às medidas que podem tender a favorecer seu
desenvolvimento, é evidente que a primeira é um suprimento mais abundante de socorros, e principalmente a encomenda de alguma construção naval ou de
qualquer outro produto industrial que a colônia pode facilmente fornecer e cujo
emprego fora necessário ao governo. O empresário espera pela primeira
embarcação vinte carpinteiros saídos do arsenal civil do Sr. C. Deirue, rico
armador de Dunkerke. Esses homens (...) podem facilmente construir um navio em
ponto grande, e introduzir no Brasil os métodos os mais aperfeiçoados da
arquitetura naval na Europa. Prouvera a Deus que à sua chegada achem que fazer!
Já se dispersou a reunião a mais completa que tinha vindo para o Brasil, de
fabricantes de máquinas a vapor, e apenas alguns foram utilizados na fazenda do
coronel Camacho, em Itapocú (...). Dispersaram-se também doze marceneiros
vindos ultimamente no bergatim Virginia. Estão para chegar construtores de
navios, e também dispersar-se-ão se não encontrarem trabalho idôneo e já
destinado para eles. Não é com os socorros atuais que a colônia do Saí pode
fazer tais preparativos. Então o governo
deve suprir ao que falta para aproveitar uma ocasião tão rara de utilizar os
homens de talento que este estabelecimento atrai no Brasil.” (CARTA...,
26/02/1843, p. 3 – negrito na citação).
Apesar da entusiasmada descrição de
Mure e do otimismo do Inspetor Mafra, e principalmente dos avanços registrados
por Fernando Antonio de Miranda, os meses seguintes foram difíceis. É
ilustrativo que já no começo de março, portanto logo após a publicação da carta
deste último pelo Jornal do Commercio,
o Presidente da província assim se dirigisse à Assembléia Legislativa:
“Às fagueiras esperanças de que vos dei parte no meu
último relatório, acerca da fundação da colônia industrial francesa na
Península do Saí, sucederam sérias apreensões de que não seria bem sucedido o intento,
as quais, desgraçadamente, vemos quase realizadas. O Doutor Bento Julio Mure,
empresário desta colônia, a quem se não pode negar variada instrução, modos
afáveis e eloquência persuasiva, não se tem mostrado hábil fundador, ou não tem
sido feliz na escolha dos meios a esse fim conducentes. (...) Tantas vantagens,
tantos sacrifícios, a proteção constante do governo provincial, pois que eu,
assim como muita gente, anteolhando-se-me grandes bens, que à Província e ao
Império deviam resultar desta fundação, a tenho sempre desveladamente
favorecido; tudo tem sido infrutífero. Os primeiros cem colonos societários,
desembarcados em janeiro de 1842, logo se desouveram entre si e com o
empresário (...). Os membros desses mesmos dois grupos, mal avindos, inconstantes,
incapazes pela maior parte de qualquer trabalho permanente e penoso, têm-se
dispersado, hoje poucos existem na colônia e mesmo na Província dos do primeiro
transporte” (FALA..., 1/03/1843, p. 16-17)
A
intuição do Presidente se confirmou, tanto que em setembro foi solicitado ao
Inspetor Mafra um relato sobre o quadro na colônia. Impossibilitado de se
deslocar à região, Mafra enviou a Charles Leclerc – societário que Mure deixou
como seu representante quando se mudou para o Rio de Janeiro em agosto – um
questionário com dezesseis perguntas específicas sobre os empreendimentos no
Saí e no Palmital. As respostas, que compõem o “Relatório Leclerc”, foram
apresentadas em novembro ao Presidente da província. O extrato abaixo dá uma
ideia sobre o tom do documento. Perguntado sobre as oficinas existentes na
colônia, Leclerc respondeu o seguinte, enfeixando outras observações:
“Eu vo-lo direi uma vez por todas. No Saí não há nada.
Os trabalhos que se fazem são à beira mar na casa Picot. Uma forja junto à praia,
em atividades. Um rancho e um forno para cozer pão. Uma olaria abandonada. Um
rancho ocupado por um estranho. A casa denominada Garillant – onde mora o que
faz trabalhar a fábrica de socar, (...) em muito mau estado. (...) Em cima do
morro [há] um rancho em bom estado, onde mora o empresário da serraria. (...)
Segue-se a estrada, que começa à beira mar e vai até o Rio Saí (...). Esta
estrada não tendo serventia, cada dia se deteriora mais, já pela ruína das
pontes, já pela vegetação e queda contínua de árvores que a atravancam”
(RELATÓRIO..., 1843).
No final de 1843 o quadro era, de
fato, desolador. Os dois grandes ranchos construídos perto do rio estavam em
ruínas e a oficina próxima encontrava-se imprestável. Também a olaria tinha
vindo abaixo, e nenhuma outra forja existia além daquela instalada à beira mar
nos primeiros meses. Além disso, as áreas em que a mata havia sido derrubada se
encontravam em estado de capoeiras, por terem sido abandonadas em grande parte.
Já no Palmital, Leclerc informou existirem tão somente “mecanistas e um
material considerável”.
Pouco
mais de um ano depois, Derrion, um dos ex-sócios de Mure que tinham liderado a
cisão do primeiro grupo de colonos, instalando a colônia do Palmital, enviou um
relatório ao Presidente da província (datado de 30 de dezembro de 1844)
descrevendo a situação na Península do Saí (RELATÓRIO..., 1844). Redigido em
francês, sua elaboração cumpriu ordem da administração provincial para que um
inventário da colônia fosse apresentado. Para o objetivo deste artigo cabe
assinalar que o documento confirma o essencial das indicações de Mure, do
Inspetor Mafra e de Fernando Antônio de Miranda quanto à existência de: uma
forja à beira mar em atividade; cultivos de “milho e diversos legumes”, assim
como “uma grande roça de cana e uma outra de feijões”, além de arroz; alguns
animais como bois e cavalos; casas, entre elas a casa Picot, e outras
construções cobertas de palha; equipamento para socar movido a força hidráulica
provida por um pequeno curso d’água; e uma serraria mecânica, terminada
recentemente, igualmente movida a força hidráulica.
Mas Derrion
também assinalou que próximos à casa Picot estavam “os restos abandonados de
uma fundição”. E à beira do rio Saí, no vale correspondente ao essencial das
terras dadas à colônia,
“se vêem ainda os restos dos materiais para a
construção de uma eclusa que não foi terminada [e] se vêem também, nas margens,
as ruínas de grandes e numerosas cabanas cobertas de palha invadidas e
sufocadas pela vegetação, tendo a umidade feito apodrecer quase todas as
estruturas. (...) Neste momento o terreno da concessão não está habitado;
alguns colonos dirigem-se a ele periodicamente para colher o que plantaram, mas
a distância da baía e a dificuldade dos transportes provocou o abandono
sucessivo de todos os locais que haviam sido utilizados”.
Sobre a infraestrutura,
especificamente, é sugestiva esta passagem: “O caminho que liga o vale do Saí à
casa Picot é pouco praticável, a não ser que a pé. As numerosas pontes feitas
de palmeiras, que atravessam as ravinas, construídas desde cerca de três anos,
caem completamente ou em parte, e a recuperação seria custosa, e a manutenção,
dispendiosa”. Conservar caminhos e pontes em terrenos tão íngremes seria
certamente uma tarefa quase impensável para os poucos remanescentes do sonho falansteriano na Península do Saí:
Leclerc repertoriou, no seu relatório, não mais que 38 colonos (16 na colônia
do Saí e 22 na do Palmital), entre eles 11 crianças; Derrion, no seu relato,
apontou a presença de 24 ao todo, 11 dos quais eram homens.
6 Considerações finais
Foram
esses os traços mais importantes da trajetória exibida pela colonização fourierista no Saí. Gallo (2002) e
Güttler (1994) sugerem que, no conjunto de viagens entre o final de 1841 e o início
de 1844, mais ou menos 500 colonos deixaram a França para a referida
experiência, embora Charles Leclerc tenha afirmado no seu relatório de novembro
de 1843 que totalizaram 236 os colonos chegados a São Francisco. No final de
1844, quando Derrion fez o relatório exigido pela administração provincial,
menos de três dezenas encontram-se na área. Gallo (2002) avalia que a
experiência terminou no começo de 1846, com a ida de Derrion para o Rio de
Janeiro, repetindo o movimento de Mure quase três anos antes. Mas,
verdadeiramente, o fim ocorrera mais cedo, haja vista um acúmulo de problemas
que, praticamente insolúveis, provocaram debandada que não deixou de incluir o
próprio Mure.
Os
desentendimentos iniciais tinham sido decisivos para a quebra de confiança em
todos os níveis: entre os colonos, entre as lideranças e por parte do governo
(tanto no Rio de Janeiro como na província). Muitos colonos sofreram perdas
materiais, e as dissidências representaram a dispersão da maioria dos
imigrantes em precárias condições, provocando escassez de braços para
desenvolver a colonização. Mas parece ter sido decisiva a incerteza sobre o
escoamento dos produtos da colônia. Sem que o governo se envolvesse como
comprador, tornaram-se insustentáveis, por exemplo, os planos de fabricação de
máquinas a vapor em local tão distante das áreas de maior concentração
populacional no país (algo que mostrou, assinale-se, quão aguda havia sido a
percepção de Fernando Antonio de Miranda no início de 1843). O resultado da
escalada de dificuldades, após período inicial que parecia promissor, foi,
assim, um dramático e irreversível declínio.
Na capital do Império, o Embaixador da França no Brasil,
atormentado pelo assédio de colonos franceses frustrados – Gallo (2002) indica
que mais algumas dezenas chegaram ao Rio de Janeiro no primeiro semestre de
1844 –, reivindicou em maio de 1844 a interrupção do processo migratório junto
ao governo imperial. Essa iniciativa provocou o término do fluxo e pode ser
vista como símbolo do encerramento da saga fourierista
na Península do Saí. Os cinco chefes de famílias presentes na área até agosto
de 1844, remanescentes dos societários chegados no início do processo, tentaram
convencer o governo da província de que poderiam, sob um novo contrato – mas
preservando os princípios de Fourier –, retomar as atividades na direção
originalmente proposta. Contudo, tiveram recusado o intento, saindo quase todos
da região. Somente permaneceram, segundo S. Thiago (1995), o médico Deyrolles
e, como o único a deixar descendência, o escultor e marceneiro Ledoux.
A trajetória da colonização no Saí, marcada por
desavenças desde os primeiros passos e caracterizada pela brevidade e pela
frustração generalizada, deixou um travo bastante amargo na memória da
Província de Santa Catarina. Coelho, em livro sobre aspectos da história
provincial – livro antigo, reimpresso em 1877 (COELHO, 1877) –, culpou
duramente o Dr. Mure, a quem acusou de ter iludido os colonos franceses com
“grandes vantagens e um decantado comunismo” (p. 92). Nas entrelinhas, criticou
também o governo, salientando que “concorreu o Estado com soma avultada de
dinheiro e concessões de terras” (ibid.). E nem os colonos foram poupados:
“tudo (...) foi infrutuosamente empregado, e assim era
de esperar, por isso que não é com relojoeiros, ourives, modistas, etc., mas
sim com outros homens, que podem ser povoados os nossos sertões. A abertura de
estradas e canais, a navegação de rios, arroteamento de terras, o corte de
madeiras, que tudo exige insanos trabalhos e incômodos, antes dos demorados
gozos, não se obtêm com homens nascidos entre as delícias de Paris e
Versailles” (COELHO, 1877, p. 92-93).
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Relatório
de Michel Marie Derrion sobre a situação do Saí, produzido (com redação em
francês) por ordem do Presidente da Província de Santa Catarina, datado de
30/12/1844. (Arquivo Histórico de Joinville)
Leia, ainda:
"UMA UTOPIA SOCIALISTA EM SANTA CATARINA: TESTEMUNHO DE UMA JORNALISTA MILITANTE", de cris ambrosio: