Dostoievski, Lenin e Os Demônios
por Ipojuca Pontes (*) em 18 de dezembro de 2006
Resumo: Tradução de Os Demônios parece lutar contra o objetivo central do livro, que é o de denunciar a brutalidade das idéias voltadas para o materialismo, o utilitarismo e o socialismo - e não apenas o stalinismo, como sugere o tradutor.
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Nenhum escritor do século 19 profetizou com tanta clareza a miséria espiritual do socialismo quanto Fiodor Dostoievski (1821-1881), o pai do romance psicológico e criador de obra literária de valor eterno. Ele próprio um ex-conspirador socialista transformado pelo duro aprendizado da vida em declarado conservador, o escritor russo anteviu, na prática das idéias coletivistas, a completa destruição dos valores morais e religiosos que fariam do século 20 um campo devassado pela degradação, tirania e horror. De fato, Dostoievski levou ao paroxismo a discussão da liberdade individual no mundo moderno – e sua literal negação.
As obras do escritor que expõem mais de perto o flagelo socialista, na sua vasta bibliografia, são: Os Irmãos Karamazov, Diário de um Escritor e, sobretudo, Os Demônios - seguramente o maior e mais importante romance político jamais escrito na história da humanidade - exatamente a obra que elevou Dostoiévski à dimensão de profeta. Os Irmãos Karamazov, obra ciclópica, trata da questão do parricídio, incluindo-se aí o assassinato não só do pai ou qualquer ascendente, mas também da pátria e da idéia de Deus. Nela, um dos personagens mais instigantes de toda a literatura, o intelectual agnóstico Ivan Karamazov, figura emblemática do mundo contemporâneo proclama (em outras palavras), na raiz do seu desespero, que se “Deus não existe tudo é permitido”.
No Diário de um Escritor, que reúne centenas de trabalhos publicados em revistas e periódicos, fundamentais para se travar conhecimento com o pensamento de Dostoievski, o que ressalta é o combate rijo que ele travou contra o radicalismo revolucionário preconizado pela “intelligentsia” russa, em especial o destilado por gente como Bielinski, Herzen, Tchernichevski e Bakunin, responsáveis diretos pelo assentamento das idéias sobre as quais iriam germinar a virulência bolchevista.
Mas é exatamente em Os Demônios - romance que se alimenta da parábola do endemoninhado contido no Evangelho de Lucas, no qual se conta que espíritos malignos saem do corpo de um homem e se intrometem numa manada de porcos - que o autor descortina o universo soturno que, mais tarde, irá destruir a Rússia (e parte do mundo) contaminada pelo vírus do bolchevismo. Para a criação do romance o autor parte de um fato, o “justiçamento” criminoso (assassinato de um conspirador aliado) levado a cabo pelo terrorista S. Natchaiev, autor do Catecismo Revolucionário, repositório doutrinário impresso em letras de sangue que servirá de guia para Lenin materializar a fria crueldade da “ditadura do proletariado”.
Com efeito, Lenin admirava e atribuía grande importância ao Catecismo de Netchaiev. Certa vez, depois de estudar as 26 normas do panfleto que ensinava a mentir, trair, roubar, dissimular e matar, escreveu: “É um herói extraordinário. Possuía um talento especial como organizador e conspirador, bem como a habilidade de envolver seus pensamentos em formulações surpreendentes” (como, por exemplo, a de trucidar toda a Casa Romanov, coisa que mais tarde Lenin tornou realidade).
Uma vez à frente do Conselho dos Comissários do Povo, depois de seguir com determinação os métodos criminosos sistematizados por Netchaiev, Lenin retirou grande parte da obra de Dostoievski das bibliotecas e livrarias russas, especialmente Os Demônios, que traça o perfil do “herói” revolucionário Netchaiev, considerado pelo escritor como um “psicótico”. Na visão de Lenin, Os Demônios não passava de “um exemplo da imundície reacionária”, acrescentando, em seguida: “Não tenho a mínima disposição de perder meu tempo com isto. Folheei o livro e o descartei. Não me dedico a este tipo de literatura – que bem me faria?” (Valentinov, Encounters, pág. 50).
Todo o que digo acima, fruto de uma intimidade com Dostoievski que ultrapassa 40 anos, me vem à mente depois de nova leitura de Os Demônios (Editora 54, S. Paulo, 2004), agora na tradução direta do russo por Paulo Bezerra. Fui ver quem era o tradutor nos meus alfarrábios da literatura comunista. Na edição da obra de Lenin “O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia” (Abril Cultural. S. Paulo, 1982), traduzida por José Paulo Netto, Paulo Bezerra funciona como revisor “com base no original russo”. Anotei ainda que Bezerra, além de tradutor, estudou língua e literatura na Universidade de Lomonóssov, nos anos 60 do século passado, época em que o império soviético, embora problematizado pela Guerra Fria, procurava demonstrar pela propaganda comunista a inexorabilidade do sistema.
Li várias versões de Os Demônios. Em inglês, italiano e em espanhol, na magnífica tradução direta do russo pelo erudito Rafael Cansino Assens (Obras Completas, Tomo II, Aguilar, Madrid, 1949) e a competente tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes (Obra Completa, Volume III, Rio de Janeiro, 1963), para não falar do compacto, mas denso trabalho de A. Augusto dos Santos para a edição portuguesa da Livraria Progredior, Porto, 1952. Nenhuma é inferior ao trabalho de Bezerra que parece lutar contra o objetivo central do livro, que é o de denunciar a brutalidade das idéias voltadas para o materialismo, o utilitarismo e o socialismo (e não apenas o stalinismo, como sugere o sr. Bezerra). Ademais, a textura de sua tradução, se confrontada com as demais, é dura, pretensiosa, curta onde deveria ser extensa e extensa onde caberia uso de palavras e ritmos apropriados para transpor o denso mundo do “reacionário” russo.
A sintomatologia do preconceito de Bezerra, de resto, fica evidente no seu posfácio, que utiliza não para atacar Marx, Lenin, Mao ou Fidel, agressores sistemáticos da liberdade e dos direitos humanos, mas para denunciar Bush, que nada tem a ver com a história: eleito democraticamente duas vezes pelo povo americano, reagiu contra o terrorismo fundamentalista de Bin Laden e Saddam Hussein – e, ao contrário do que ocorre com os ditadores socialistas, vai sair direitinho do poder no fim do seu mandato.
(*) O autor é cineasta, jornalista, escritor e ex-Secretário Nacional da Cultura. Autor do livro "Politicamente Corretíssimos" e do filme "A Volta do Filho Pródigo", com Tereza Rachel, entre outras obras.
Fonte: https://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=43254&cat=Artigos
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