OS DEMÔNIOS
Extraído do Capítulo 8 de Tempos
Modernos – O mundo dos anos 20 aos 80, de Paul Johnson, pg. 219 a 233
Biblioteca do Exército e
Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1994
Tradução de Gilda de Brito
Mac-Dowell e Sérgio Maranhão da Matta
No exato momento em que a intelligentsia
americana se voltou para a Europa totalitária em busca de apoio e liderança
espirituais em matéria de planejamento sistemático, os americanos estavam de
fato iniciando duas décadas de devastação e desolação sem precedentes,
caracterizadas por um relativismo moral que se apresentava como uma
monstruosidade. Stálin havia celebrado seu quinquagésimo aniversário em 21 de
dezembro de 1929, como senhor absoluto de uma autocracia, no que se refere à
selvageria, sem paralelo em toda a história. Algumas semanas antes, enquanto a
Bolsa de Nova Iorque entrava em colapso, ele obrigara os camponeses russos a
entrarem num processo de coletivização forçada. Tal operação implicava perdas
materiais muito grandes, bem maiores do que qualquer outra perda que pudesse
acontecer no âmbito da ação de Wall Street. Era como uma carnificina humana, em
proporções tais que nenhum governo tirano de que se tem notícia jamais
conseguiu realizar. Na época em que John Strachey escreveu sobre como fugir da
morte capitalista para encontrar a vida no mundo soviético, já tinha sido
concluída a horripilante obra de engenharia social perpetrada pelos soviéticos.
Cinco milhões de camponeses estavam mortos, e o dobro disso em campos de
trabalhos forçados. Nessa época, também Stálin tinha conseguido, na figura de
Hitler, um discípulo admirador e rival, que controlava uma autocracia
semelhante e planejava como sacrificar seres humanos à ideologia, em proporções
ainda maiores do que as adotadas por Stálin. Para os americanos, então, essa
ideia de voltar-se para a Europa totalitária era como deixar uma Arcádia ferida
e se mudar para o pandemônio. Os demônios haviam assumido o controle.
Quando Lênin morreu, em 1924, a autocracia que ele criara
havia sido completada e Stálin, na qualidade de secretário-geral do partido, já
a havia herdado. Tudo o que restava fazer era eliminar os rivais em potencial
para deter o poder exclusivo. E Stálin estava bem equipado para isso. Esse
ex-seminarista e bandido revolucionário era meio gângster, meio burocrata. Não
tinha ideais e nem posições ideológicas firmadas. Segundo o compositor
Shostakovich, Stálin queria ser alto, com mãos vigorosas. Halbandian, o pintor
da corte, satisfez esse desejo: fez-lhe um retrato de maneira a que o ângulo de
visão fosse fixado de baixo para cima e fez com que o seu senhor aparecesse com
as mãos cruzadas sobre o estômago; criou assim uma ilusão de ótica. Vários
outros retratistas foram fuzilados. Stálin media 1,62 m, era magro, moreno e
tinha o rosto cheio de marcas de varíola. Uma descrição da polícia czarista
sobre ele, feita quando estava com 22 anos, registrou que os seus segundo e
terceiro dedos do pé esquerdo eram grudados. Além disso, um acidente, quando
ele era menino, deixou o seu ombro esquerdo sem mobilidade, causando-lhe ainda
o encurtamento do braço. Sua mão esquerda era visivelmente mais volumosa do que
a direita. Como disse Shostakovich, Stálin escondia todo o tempo a mão direita.
Bukharin, dois anos antes de ser assassinado, externou sua opinião, dizendo que
Stálin sofria amargamente por causa de suas deficiências físicas e de sua incapacidade
intelectual, real ou imaginária. “Esse sofrimento é talvez o sentimento mais
humano que ele possui”, mas o leva a se vingar de qualquer pessoa que mostre
maior capacidade intelectual do que ele: “Há algo de diabólico e desumano em
sua compulsão de se vingar de todo o mundo por esses mesmos sofrimentos...
Trata-se de um homem pequeno e maléfico; não, não é um homem, mas um demônio”.
Stálin não tinha a paixão ideológica de Lênin pela violência. Era, contudo,
capaz de violência sem limites para atingir seus objetivos, ou então por
nenhuma razão especial. Algumas vezes podia nutrir sentimentos de vingança
contra indivíduos, anos antes de executá-los. Assim, passou o tempo de
aprendizado da violência em grandes proporções como presidente do Distrito
Militar do Norte do Cáucaso, em 1918, até ter decidido agir contra os
“burgueses técnicos militares”, que ele suspeitava terem falta de entusiasmo
para matar. O chefe do Estado-maior do distrito, coronel Nosovich, testemunhou:
“A ordem de Stálin era breve: ‘Fuzile-os!’... Oficiais em grande número eram
aprisionados pela Cheka e imediatamente fuzilados sem julgamento”. Na mesma
época, Stálin também se queixava dos três comandantes do Exército Vermelho da
região, enviados por Trotsky, fato que mais tarde veio a ser a causa do rancor
que Stálin nutria por ele. Todos foram assassinados entre 1937 e 39.
Entretanto, imediatamente após a incapacidade de Lênin,
Stálin, cônscio das críticas feitas a Lênin, procurou o poder, fingindo-se de
moderado e de homem de centro. Seu objetivo era o seguinte: controlar o
secretariado, que se expandia rapidamente, para assumir o controle virtual da
máquina do partido e preencher os cargos do Comitê Central com pessoas de sua
confiança. No Politburo, entretanto, quatro figuras importantes se colocavam
entre ele e seu espírito de autocrata: Trotsky, o mais famoso e feroz dos
bolcheviques, que tinha o controle do Exército; Zinoviev, que dirigia o partido
em Leningrado – e pelo qual Stálin alimentava um ódio particular -; Kamenev,
que controlava o partido em Moscou, agora o mais importante; e Bukharin, o
principal teórico do partido. Os três primeiros se inclinavam para a esquerda,
o último para a direita, e a maneira como Stálin os dividiu e os usou para que
se destruíssem mutuamente, apropriando-se depois de suas políticas quando
necessário – parece que ele não teve nenhuma política própria -, é um clássico
exercício em política de poder.
É importante compreender que, assim como Lênin foi o criador
da nova autocracia e de seus instrumentos e da prática do terror em grande
escala, também não havia inocentes entre seus herdeiros. Todos eram matadores
perversos. Mesmo Bukharin, que Lênin dizia ser “mole como cera” e que tinha
sido apresentado coo o iniciador do “socialismo com um rosto humano”, era um
denunciador inveterado dos outros, “um carniceiro dos melhores comunistas”,
como foi amargamente chamado. Zinoviev e Kamenev eram chefões completamente
inescrupulosos. Trotsky – que depois de sua queda se mostrou um adepto da
democracia partidária e foi glorificado pelo seu discípulo e hagiógrafo, Isaac
Deutscher, como a síntese de tudo o que era mais nobre no movimento bolchevique
– não passava de um gângster político sofisticado. Ele levou a cabo o putsch original de outubro de 1917 e daí
em diante chacinou os oponentes do regime com a maior tranquilidade. Foi ele
quem primeiro manteve como reféns as mulheres e os filhos dos oficiais
czaristas, ameaçando fuzilá-los por não-submissão às ordens soviéticas, técnica
logo absorvida pelo sistema Ele era igualmente cruel com os que estavam do seu
lado, e fuzilava os comissários e comandantes do Exército Vermelho que “davam
sinais de covardia” (isto é, recuavam), o que se tornou mais tarde uma outra
prática universal stalinista; os soldados rasos eram dizimados. Trotsky sempre
adotou a linha mais cruel. Defendeu a militarização do trabalho e destruiu os
sindicados independentes. Usou de
brutalidade inenarrável para debelar o motim de Kronstadt, organizado por
marinheiros comuns, e estava mesmo disposto a usar gás venenoso quando o
levante foi apaziguado. Da mesma forma que Lênin, identificava-se co a história
e argumentava que a história estava acima de toda e qualquer restrição moral.
Trotsky permaneceu até o fim um relativista moral da mais
perigosa espécie. “Problemas de moralidade revolucionária – escreveu ele em seu
último e póstumo livro – estão entrelaçados com problemas de estratégia e
tática revolucionária”. Não podem existir tais coisas como critério moral;
somente o critério de eficácia política conta. Dizia ser correto assassinar os
filhos do czar – como ele de fato o fez – porque era útil politicamente, e aqueles
que o fizessem representavam o proletariado. Stálin, por sua vez, não
representava o proletariado – ele tinha-se tornado um “exagero burocrático” –
e, consequentemente, era errado da parte dele assassinar os filhos de Trotsky.
Os seguidores de Trotsky são, é lógico, notórios pela sua ligação a esse código
de ética subjetivamente definido e por seu desprezo pela moralidade objetiva.
O termo “trotskista”, usado primeiramente por Zinoviev como
um termo ofensivo, foi definido mais tarde, por Stálin, que inventou a
distinção entre “revolução permanente” (Trotsky) e “revolução num só país”
(Stálin). Para começar, todos eles acreditavam numa revolução mundial imediata
e todos se voltaram para a consolidação do regime, uma vez que a revolução
mundial não aconteceu. Trotsky queria avançar o processo de industrialização
com mais urgência do que Stálin, mas ambos eram, do princípio ao fim,
oportunistas. Formaram-se no mesmo abatedouro e suas querelas eram
essencialmente sobre quem seria o novo sumo sacerdote. Se Trotsky tivesse saído
vencedor, provavelmente teria sido mais sanguinário do que Stálin. Mas ele não
duraria: faltava-lhe a habilidade para sobreviver.
Para Stálin foi fácil destruí-lo. As lutas internas
soviéticas, mais do que por razões políticas, foram sempre motivadas por
ambição e medo. Embora Kamenev e Zinoviev estivessem de acordo com a linha de
esquerda de Trotsky, Stálin formou com eles um triunvirato para impedir Trotsky
de usar o Exército Vermelho com o objetivo de organizar um putsch pessoal. Ele usou os dois esquerdistas para abater Trotsky e
depois os apresentou como violentamente impetuoso e a si próprio como o
servidor da moderação. Todas essas artimanhas aconteceram em 1923, enquanto
Lênin ainda estava em coma. Stálin começou a mostrar suas garras no verão, ao
fazer a OGPU prender um certo número de membros do partido por “indisciplina” e
ao persuadir seus dois aliados esquerdistas a endossar a prisão da primeira
maior vítima bolchevique, Sultan-Galiyev (Stálin não o matou senão seis anos
mais tarde). Por todo o tempo ele esteve formando equipes de seguidores de suas
ideias nas organizações locais e no CC.
Trotsky fez todos os erros possíveis. Durante uma visita à
Rússia em 1920, Bertrand Russell notou perspicazmente o contraste entre a
vaidade de Trotsky e a ausência de tal fraqueza em Lênin. Um relato de uma
testemunha ocular, nas reuniões de 1923-24 do Politburo, diz que Trotsky nunca
se incomodou de esconder seu desprezo pelos companheiros, muitas vezes
retirando-se impetuosamente do recinto, outras, dando as costas ostensivamente
para ler um livro. Desdenhava a ideia de intriga política e, mais ainda, a do
aviltante rebaixamento a que essa intriga leva. Nunca tentou usar o Exército,
uma vez que, para ele, o partido vinha na frente; mas, por outro lado, não
preparou um grupo de seguidores no partido. Ele deve ter ficado assustado,
quando, pela primeira vez, atacou Stálin e verificou quão bem entrincheirado
este estava. Trotsky queria a vitória sem sujeira, erro fatal para um gângster que
não podia apelar da máfia para o público. Ele estava sempre doente ou ausente,
nunca no lugar certo, na hora certa. Perdeu até as exéquias de Lênin, um erro
sério, porque Stálin aproveitou-se para reintroduzir na vida russa o culto da personalidade,
o que vinha fazendo muita falta desde a destruição do trono e da Igreja. Em
breve Stálin estaria ressuscitando a velha rixa Trotsky-Lênin. No XIII
Congresso do Partido, em maio de 1924, ele estigmatizou Trotsky com o termo
leninista de “fracionalista”. Trotsky se recusou a retirar suas críticas sobre
o fato de Stálin estar se tornando poderoso demais. Mas não podia questionar a
condenação de Lênin a qualquer oposição dentro do partido e, assim como um
homem acusado de heresia pela Inquisição, ele foi desarmado pela sua própria
crença religiosa. “Camaradas – admitiu ele – nenhum de nós deseja estar certo
contra o partido... eu sei que ninguém pode estar certo contra o partido.
Somente pode-se estar certo com o partido e através do partido, já que a
história não criou outros caminhos para a realização do que é certo”. Uma vez
Stálin instalado no controle do partido, as palavras de Trotsky moldaram o
furador de gelo que esmigalhou seu crânio 16 anos mais tarde.
No fim de 1924, Stálin, tendo Kamenev Zinoviev para fazer o
trabalho sujo, criou a heresia do “trotskismo” e relacionou-se às primeiras
disputas entre Trotsky e Lênin, que havia sido embalsamado e colocado numa
tumba apoteótica cinco meses antes. Em janeiro de 1925, Stálin estava assim
capacitado a tirar Trotsky do controle do Exército com o pleno consentimento do
partido. Os figurões do partido foram então informados de que a atuação de
Trotsky na Revolução foi menos importante do que ele pretendia, e sua imagem já
estava sendo apagada das fotografias relevantes – o primeiro passo da revisão
da história stalinista. O primeiro substituto de Trotsky como chefe do
Exército, Frunze, mostrou-se desastrado; tanto que, pelo que parece, Stálin
mandou assassiná-lo em outubro de 1925, durante uma intervenção cirúrgica a que
os médicos tinham sido contrários. Seu sucessor, uma criatura mais tarde
conhecida como marechal Voroshilov, mostrou-se inteiramente obediente e acetou
que a OGPU, agora controlada por Stálin, se infiltrasse rapidamente no
Exército.
Com Trotsky destruído (ele foi expulso do Politburo em
outubro de 1926, do partido, no mês seguinte, enviado em exílio interno em 1928
e exilado da Rússia em 1929, assassinado, sob as ordens de Stálin, no México,
em 1940), Stálin se voltou então contra os seus outros aliados esquerdistas. No
princípio de 1925, roubou de Kamenev, nas suas barbas, o partido de Moscou,
subornando seu adjunto, Uglanov. Em setembro, chamou Bukharin e a direita para
ajuda-lo num ataque frontal a Zinoviev-Camenev e os derrotou decisivamente no
Congresso do Partido, em dezembro. Imediatamente depois, Stálin mandou Molotov,
seu capanga mais confiável e cruel, para Leningrado, com um esquadrão poderoso
de “brutamontes”, a fim de estraçalhar a máquina do partido de lá e assumir o
controle – essencialmente os mesmos métodos, mas numa escala maior, nos moldes
da que Al Capone estava usando para expandir seu território em Chicago e
exatamente no mesmo momento. Assustado, Zinoviev juntou forças com Trotsky, o
home que ele ajudar a derrubar. Mas era muito tarde: ambos foram imediatamente
expulsos do partido e no XV Congresso do Partido, em dezembro de 1926, o protesto
de Kamenev foi abafado pelos gritos das fileiras cerradas de stalinistas,
cuidadosamente escolhidos, que agora enchiam o partido. Repetindo Lênin
conscientemente, Stálin pôs as cartas na mesa contra seus antigos aliados:
“Basta, camaradas, este jogo tem que ter um fim... O discurso de Kamenev é o
mais mentiroso, farisaico, canalha e velhaco de todos os discursos da oposição
que jamais foram feitos nessa tribuna”.
No momento em que a esquerda foi vencida e desarmada, Stálin
começou a adotar sua política de pressão sobre os camponeses, com o objetivo de
apressar a industrialização, e preparar, assim, os meios para destruir Bukharin
e a direita. O grande embate aconteceu a 10 de julho de 1928, durante uma
reunião do Comitê Central, após o argumento de Bukharin de que, enquanto o kulak em si não apresentava qualquer
ameaça – “nós podemos fuzilá-los com metralhadoras” -, a coletivização forçada
uniria todos os camponeses contra o governo. Stálin interrompeu-o e num tom de
piedade sinistra disse: “Um sonho assustador, mas Deus é misericordioso!”. Deus
poderia sê-lo, mas não o secretário-geral. No dia seguinte, um Bukharin
apavorado, falando em nome de seus aliados Rykov, o chefe nominal do governo, e
Tomsky, o líder de aluguel dos “sindicatos”, teve uma reunião secreta com
Kamenev e se ofereceu para formar uma frente unida para deter Stálin. Ele agora
compreendia, segundo afirmou, que Stálin não estava primordialmente interessado
em política, mas unicamente no poder. “Ele nos estrangulará. Ele é um
intrigante sem princípios, que condiciona tudo ao apetite de poder. A qualquer
momento, mudará suas teorias com a finalidade de se livrar de alguém... Ele é
Genghis Khan!” Bukharin parecia haver pensado que Yagoda, da OGPU, se juntaria
a eles e aos que se opunham a Stálin, mas estava mal informado. Nenhum desses
homens nervosos tinha o apoio numérico para derrubar Stálin pelo voto; ou os
meios, na forma de homens treinados em armas, para derrubá-lo pela força; ou a
habilidade e a resolução – as quais Stálin mostrou ter em abundância – para
destruí-lo pela intriga. Em 1929, o destino de todos já estava traçado: Rykov,
destituído do cargo de primeiro-ministro; Tomsky, da liderança dos sindicatos
e, ambos, mais Bukharin, foraçados a confessar publicamente seus erros (Kamenev
e Zinoviev já o tinham feito). Eles poderiam ser agora julgados e assassinados
com calma.
Stálin já havia começado a aperfeiçoar a dramaturgia do
terror. Com base em suas lembranças monacais, ele organizava reuniões do
partido para um diálogo antifonário bem ensaiado entre ele e sua claque.
Sugeria moderação ao lidar com os “inimigos” do partido e a claque insistia na
severidade. Assim, ao pedir relutantemente a expulsão de Trotsky e Zinoviev,
Stálin disse que se opusera anteriormente à ideia dessa expulsão e que tinha
sido “amaldiçoado” pelos “bolcheviques honestos”, por ser muito indulgente. A
claque: “Sim – e nós ainda o amaldiçoamos por isso”. Em maio-julho de 1929,
Stálin encerrou o primeiro de seus julgamentos-farsas contra um grupo de
engenheiros das minas de Donbass, acusados de “sabotagem”. O texto da farsa foi
escrito pelo funcionário Y. G. Yevdokimov, da OGPU, um dos monstros de Stálin;
no julgamento, apresentava-se o filho de 12 anos de idade de um dos acusados,
denunciando seu pai e pedindo a sua execução. O verdadeiro chefe da OGPU,
Menzhinky, se opôs a esse julgamento como o fizeram alguns membros do Politburo.
Mas essa foi a última vez que Stálin enfrentou uma oposição genuína por parte
da polícia secreta ou do aparato de segurança. Mais para o fim do ano, ordenou
o fuzilamento do funcionário graduado da OGPU, Yakov Blyumkin, o primeiro
membro do partido a ser executado por um crime intrapartidário.
Daí por diante, os julgamentos aconteciam exatamente como
Stálin os planejava, até a última cena, com a multidão indignada, nos moldes de
uma gigantesca produção do cineasta soviético Sergei Eisenstein. Assim, por
ocasião do julgamento do “Partido Industrial”, no ano seguinte, o corpo do
tribunal gritava, em intervalos cuidadosamente marcados: “Morte aos
destruidores!” E, do lado de fora, nas ruas, milhares de trabalhadores passavam
marchando e gritando: “Morte, morte, morte!”. Em 1929, Stálin se apropriou do
termo de conotações múltiplas Stakhtyites
(destruidores) para usá-lo contra qualquer pessoa que ele quisesse destruir.
Como ele colocou, “Stakhyites estão
agora ocultos em todos os ramos da nossa indústria. Muitos, mas nem todos, têm
sido apanhados... Destruir é tudo o que há de mais perigoso, porque está ligado
ao capital internacional. A destruição burguesa é um sinal indubitável de que
elementos capitalistas... estão unindo forças para novos ataques à União
Soviética”. Ele estava rapidamente chegando ao ponto em que lhe bastava
mencionar uma lista de nomes ao Comitê Central e receberia instruções
instantâneas: “Prenda, julgue, fuzile!”.
Enquanto iniciava a caça às bruxas e criava a paranoia e a
histeria, Stálin planejava sua própria apoteose como herdeiro do deificado
Lênin. Já em 1924-25, as cidades de Yuzovka, Yusovo e Tsaritsyn tornaram-se
Stalino, Stalinksky e Stalingrad; mas foi a celebração de seu quinquagésimo
aniversário, no fim de 1929, que marcou o verdadeiro começo não só do livre
domínio pessoal de Stálin, mas também do culto a Stálin na sua plenitude
horripilante; nomes como Stalinabad, Stalin-Aul, Staliniri, Stalinissi,
Stalino, Stalinogrsk, Stalinsk, monte Stálin brotavam em todo o Império
Soviético; apareceram as primeiras litanias stalinistas: o Homem de Aço, o
Gênio Universal, uma forma de adoração ao governante que remontava aos faraós
do Egito. Enquanto o governo soviético se tornava mais hierático e litúrgico na
sua forma externa e mais terrorista na sua essência, a “ciência” soviética
chegava ao irracional, com grupos quase religiosos de “principais pensadores”,
conhecidos variadamente como geneticistas, teologistas, mecanicistas e
dialéticos – havia muitos outros – lutando para obter a aprovação de Stálin
para as suas teorias as mais abrangentes e progresso no campo da física. Alguns
dos especialistas da corte de Stálin estavam prontos para argumentar que, com o
“Homem de Aço” à frente, a vontade humana poderia superar qualquer coisa e o
que até então tinha sido visto como as leis da natureza ou da economia poderia
ser suspenso. S. G. Shumilin, um de seus
economistas, colocou: “Nossa tarefa não é estudar economia, porém mudá-la. Nós
não estamos atados a nenhuma lei”.
Foi contra esse fundo de irracionalidade, e portanto
emancipado de qualquer sistema de economia ou moralidade, que Stálin conduziu
seu colossal exercício de engenharia social: a destruição do campesinato
independente russo. Como já vimos, foram os camponeses que tornaram possível o putsch de Lênin; e que depois,
desafiando-o, impuseram-lhe uma capitulação que ele escondeu pelo eufemismo
Novo Planejamento Econômico (NEP). Foi em nome da continuidade do leninismo e
do NEP que Stálin destruiu a Esquerda nos anos 1924-28. Mas havia chegado a
hora de clamar vingança contra as multidões rurais que humilharam o poder
soviético.
Não havia nenhuma base teórica do marxismo, ou em qualquer
outra coisa, que permitisse a Stálin fazer o que fez... Mas havia nisso certa
lógica monstruosa. Não há estabilidade num Estado que está no processo de
socialização e que deve ou ir adiante ou retroceder. Se não for adiante, o
poder do sistema de mercado – que se expresse em certos instintos humanos
básicos de permuta e acumulação – é tal, que sempre se reafirmará, a ponto de o
capitalismo ressurgir. Então, o Estado embrionário socialista entrará em
colapso. Se for adiante, deverá promover a industrialização em larga escala. Isso
significa produtos alimentícios excedentes para os trabalhadores e para a
exportação, visando a levantar capital para investimentos. Resumindo, os
camponeses devem pagar o preço do progresso socialista. E caso relutem em pagar
esse preço voluntariamente, a força deverá ser usada em intensidade crescente,
até dobrar a vontade de todos e fazê-los entregar o que lhes é exigido. Essa é
a amarga lógica do poder socialista que Stálin compreendeu nos anos 20: não
havia um ponto de equilíbrio estável entre uma volta ao capitalismo e o uso
ilimitado da força.
Essa lógica formava um contraponto sinistro com os estágios
sucessivos da destruição de seus opositores da direita e da esquerda, levada
avante por Stálin. Trotsky, Zinoviev e Kamenev tinham sempre argumentado que os
camponeses jamais entregariam alimentos em quantidades suficientes
voluntariamente; para isso, deveriam ser coagidos ou, se necessário, esmagados.
Stálin eliminou os três usando o argumento de que eles planejavam “espoliar o
campesinato”, que era “o aliado da classe operária” e que não deveria ser
sujeito a “pressões crescentes”. Mas a colheita de 1927 foi escassa, e a lógica
do socialismo encontrou nisso campo para começar a operar. Os camponeses
esconderam todo o alimento de que dispunham; não queriam receber papel-moeda do
governo, pois, de tão desvalorizado não comprava nada do que necessitavam.
Assim, foi derrubado o acordo de Lênin, baseado na teoria de apoio aos 76,6
milhões de “médios camponeses” e aos 22,4 milhões de “pequenos camponeses”
contra os cinco milhões de kulaks ou
camponeses ricos (na verdade era impossível fazer essas distinções, exceto no
papel: todos os camponeses odiavam o governo).
Em janeiro de 1928, sem gêneros alimentícios nas cidades, sem
qualquer exportação de grãos e desprovido de moeda estrangeira, Stálin
desencadeou seu primeiro ataque aos camponeses, enviando trinta mil
trabalhadores do partido armados ao campo, uma repetição do processo de
extorsão usado em 1918. Logo chegaram relatos de atrocidades disfarçados em
frases como “competição entre organizações coletivas de grãos”, “um
esquecimento lamentável das leis soviéticas”, “um descuido nos métodos do
Comunismo de Guerra”, “erros administrativos” e assim por diante. Mais sinistra
era a tendência crescente dos porta-vozes de Stálin em misturar
indiscriminadamente todos os camponeses. Molotov falava em forçar “o camponês
médio a submeter-se aos regulamentos”; Mikoyan acusava os “pequenos camponeses”
de estar “sob a influência dos kulaks”.
Foram registrados, em 1928, 1.400 “atos terroristas” cometidos pelos camponeses
(isto é, resistência ao confisco de alimentos pela força armada). Um kulak, apanhado portando um fuzil,
zombou: “Isto é o que é a guerra de classe”. Os arquivos da região de Smolensk,
capturados pelos nazistas e mais tarde publicados, nos dão a única luz, através
de documentos oficiais não censurados, desse caldeirão fervente da agonia
campesina. Pela primeira vez, Stálin usou a palavra “liquidar”, referindo-se “à
primeira campanha séria de elementos capitalistas no campo... contra o poder
soviético”. Qualquer pessoa, observou ele cinicamente, que pensa que a política
pode ser levada adiante sem dissabores “não é um marxista e sim um idiota”.
Roubar, porém, alimentos aos camponeses teve uma
consequência: fez com que eles plantassem menos; assim, a colheita de 1928 foi
ainda pior. No outono de 1928, Stálin necessitava desesperadamente conseguir
moeda estrangeira; testemunha tal fato um acontecimento bastante isolado: as vendas
secretas, em grandes proporções, de obras de arte russa para o Ocidente. Foi em
novembro de 1928, segundo um dos curadores do museu Hermitage, em Leningrado,
Tatiano Chernavin, que “recebemos ordens para reorganizar, no menor espaço de
tempo possível, a coleção inteira do Hermitage ‘de acordo com princípios
ditados por disposições sociológicas’... e para desmembrar uma coleção que
levou mais de cem anos para se juntar”. Os quadros foram adquiridos por
milionários do mundo inteiro. O maior foi Andrew Mellon que, em 1930-31,
obteve, por US$ 6.654.053, 21 quadros, incluindo cinco Rembrandt, um Van Eyck,
dois Franz Hals, um Rubens, quatro Van Dyck, dois Rafael, um Velásquez, um
Botticelli, um Veronese, um Chardin, um Ticiano e um Perugino – provavelmente o
tesouro da melhor qualidade jamais transferido numa única tacada e tão barato.
Todas essas obras foram para a Washington National Gallery, criada virtualmente
por Mellon. Essa foi uma das muitas ironias desse período. Assim, é espantoso
que Mellon estivesse secretamente explorando as necessidades frenéticas dos
líderes soviéticos com o objetivo de formar a base de uma das mais brilhantes
coleções de arte pública da América. E tudo isso se passava no momento em que
Mellon estava sendo violentamente denunciado pela intelligentsia por sonegação de impostos e que o colapso da
economia americana estava sendo contrastado com a boa desenvoltura da planejada
economia soviética. Somente nessas aquisições o valor do dólar chegou a um
terço de todas as exportações soviéticas para a América oficialmente
registradas em 1930.
Outra ironia, que se pode qualificar de espantosa, foi o
exemplo dado a Stálin por um empreendimento bem-sucedido na América. Com base
nesse exemplo, ele decidiu abandonar sua debilitada política de extorsão de
grãos aos camponeses independentes e passou a usar métodos que utilizavam a
força para arrancar esses grãos de organizações coletivistas. Até então, Stálin
havia sempre negado a ideia de que cooperativas e organizações coletivistas fossem
diferentes; ele achava que uma fazenda Campbell, em Montana, que se estendia
por trinta mil hectares, a maior produtora individual de grãos no mundo. Ele
decidiu montar tais “fábricas de grão” na Rússia, numa escala gigantesca. Uma
de 150.000 hectares foi montada nesses mesmo ano no Cáucaso. Essa unidade
estava equipada com trezentos tratores, e o trator (em oposição ao arado de
madeira) tornou-se para Stálin um símbolo do futuro, coo a eletricidade o foi
para Lênin. Stálin fez seus homens acusarem os kulaks de estarem organizando uma campanha contra os tratores; ele
dizia que os kulaks espalhavam boatos
de que o “anti-cristo estava chegando à terra num cavalo de aço”, que os
vapores da gasolina emanados dos tratores estavam “envenenando” o solo; além
disso, era voz corrente no Volga que “o trator escava fundo e o solo então seca
completamente”. Na verdade, eram os camponeses mais ricos que estavam comprando
tratores, tão rapidamente quanto podiam pagar. Ao trazer a força para as
organizações coletivistas, o que ele chamava de “colunas de tratores” e
”estações de tratores”, Stálin provocou o que um dos poucos observadores
independentes descreveu como “a utilização irresponsável da maquinaria em todas
as terras socializadas” e como “frotas de tratores inutilizados pontilhando o
cenário russo”. Mas isso era consequência da ignorância de Stálin sobre o que
realmente acontecia no campo russo – uma ignorância, é evidente, da qual Lênin
havia compartilhado. Segundo Khruchtchev, “Stálin se alienou do povo e não foi
a lugar algum... A última vez que visitou uma aldeia foi em janeiro de 1928”.
Toda a gigantesca operação de coletivização dos camponeses, envolvendo mais ou
menos 105 milhões de pessoas, foi conduzida de seu gabinete, no Kremlin.
Não que tivesse havido um planejamento racional e
deliberativo. Muito pelo contrário. A ideia de não se usar a força para trazer
os camponeses para as fazendas estatais foi sempre vista como incontestável.
Foi baseado na máxima de Engels, no seu The
Peasant Question in France and Germany (1894): “Quando nós adquirirmos o
poder do Estado, não pensaremos em nos apoderar dos pequenos camponeses pela
força”. Muitas vezes, Lênin citava essa passagem. Mesmo Trotsky havia falado de
“acordo”, “conciliação” e “transição gradual”. Mesmo em 2 de junho de 1929, o Pravda ainda insistia: “Nem terror nem
‘deskulakização’, mas uma ofensiva socialista nos caminhos do NEP”. A decisão
de coletivizar pela força foi tomada repentinamente, sem nenhuma espécie de
debate público, nas últimas semanas de 1929. Era típico da maneira como a busca
da Utopia leva um pequeno punhado de homens no poder a atacar abruptamente uma
sociedade de séculos, a tratar os homens como formigas e pisotear no seu ninho.
Sem aviso, Stálin clamou por uma “ofensiva exaustiva contra os kulaks... Nós temos que destruir os kulaks, eliminá-los enquanto classe. Nós
temos que golpear forte os kulaks
para impedi-los de se pôr em pé outra vez... Nós temos que quebrar a
resistência dessa classe em batalha aberta”. Em 27 de dezembro de 1929, festa
de São João Apóstolo, ele declarou guerra com o slogan “Liquidar os kulaks como classe!” Foi o sinal verde
para a política de extermínio, mais de três anos antes de Hitler chegar ao
poder, 12 anos antes da “Solução Final”.
A coletivização foi uma calamidade não conhecida por qualquer
habitante do campo desde a Guerra dos Trinta Anos na Alemanha. A agência
organizadora dessa coletivização foi a OGPU, mas qualquer instrumento que
estivesse à mão foi usado. Os camponeses mais pobres foram encorajados a
saquear as casas dos kulaks
espoliados e a persegui-los pelos campos. E logo kulak passou a significar qualquer camponês que se opusesse
ativamente ao sistema de ordens. Elas foram cercadas por unidades militares e
policiais, que usavam métodos que Hitler imitou com todos os detalhes quando
recolheu os judeus; essas unidades militares ou fuzilaram os camponeses ou os
deportaram à força em caminhões. Deutscher, viajando pela Rússia, encontrou um
coronel da OGPU que soluçava, dizendo: “Eu sou um velho bolchevique. Trabalhei
na clandestinidade contra o czar e depois lutei na guerra civil. Será que fiz
tudo isso para agora cercar aldeias com metralhadoras e ordenar aos meus homens
que atirem indiscriminadamente sobre multidões de camponeses? Ah, não, não,
não!” A violência em grande escala começou no fim de 1929 e continuou até o fim
de fevereiro de 1930, quando o número de famílias coletivizadas aumentou para
mais ou menos 30% do total já alcançado. Perturbado pelo nível de resistência,
Stálin subitamente inverteu sua política, expondo-a num artigo no Pravda, em 2 de março de 1930: “Não se
podem implantar fazendas coletivas pela violência – isso seria estúpido e
reacionário”. Mas, em poucas semanas, metade das organizações coletivas votaram
pela desnacionalização; então, no início do verão, Stálin retomou sua política
de força “imbecil e reacionária”, e dessa vez levou-a até o seu amargo fim.
O resultado foi o que o grande erudito marxista Leszek
Kolakowski chamou de “provavelmente a mais maciça operação militar jamais
conduzida por um Estado contra seus próprios cidadãos”. O número de camponeses
fuzilados pelo regime não é ainda conhecido e pode nunca ser descoberto, mesmo
quando e se estudiosos tiverem acesso aos arquivos soviéticos. Churchill disse
que, em Moscou, em agosto de 1942, Stálin contou-lhe friamente que “dez milhões”
de camponeses tinham sido “despachados”. Segundo uma estimativa de estudiosos,
além daqueles camponeses executados pela OGPU ou mortos em batalha, um número
entre dez e onze milhões foi transportado para o norte da Rússia europeia, para
a Sibéria e para a Ásia Central; desses, um terço foi para os campos de
concentração, um terço para o exílio interno e outro terço foi executado ou
morreu em trânsito.
Os camponeses que permaneceram foram arrancados de suas
propriedades, mesmo que pequenas, e conduzidos para as “fábricas de grãos”.
Para impedi-los de fugir para as cidades, um sistema de passaportes internos
foi introduzido e qualquer mudança de domicílio sem permissão oficial era
punida com encarceramento. Aos camponeses não era permitido em hipótese nenhuma
o porte desse documento. Assim, eles estavam amarrados ao solo, glebae adscripti, como nas fases finais
do Império Romano ou durante a era da servidão feudal. O sistema era mais
rígido do que nos períodos mais negros da autocracia czarista e não foi
afrouxado até os anos 70.
O resultado era previsível e corresponde ao que se pode
chamar de “talvez o único caso na história de fome criada exclusivamente pelo homem”.
Em vez de entregar seus grãos, os camponeses preferiram queimá-los. Destruíram
seus implementos agrícolas. Abateram 18 milhões de cavalos, 30 milhões de
cabeças de gado (45% do total existente no país), 100 milhões de carneiros e
cabritos (2/3 do total). Mesmo segundo esses números da história oficial soviética,
a criação de gado, em 1933, era de apenas 65% do nível atingido em 1913, a
quantidade de animais tendo caído de mais de 50% e a quantidade total de
energia, incluindo tratores, não ultrapassando os níveis de 1928-1935. Apesar
da penúria de 1932-33, Stálin conseguiu exportar certa quantidade de cereais
para pagar a maquinaria importada, incluindo os instrumentos para as suas novas
fábricas de guerra. O custo, em vidas russas, foi atordoador. O estudo
demográfico de Iosif Dyadkin, “Avaliação de mortes antinaturais da população da
URSS em 1927-58”, que circulou sob a forma de samizdat (boletim informativo clandestino) no fim dos anos 70,
calcula que durante o período de coletivização e “eliminação de classes”, 1929-1936,
dez milhões de homens, mulheres e crianças tiveram morte antinatural.
A refeudalização do campesinato soviético, que então compunha
três quartos da população, teve um efeito calamitoso no moral do soldado raso
comunista que a efetuou. Como afirmou Kolakowski: “O partido inteiro se tornou
uma organização de torturadores e opressores. Ninguém era inocente, e todos os
comunistas eram cúmplices na coação da sociedade. Assim, o partido adquiriu um
nova espécie de unidade moral e embarcou num caminho sem volta”. Exatamente a
mesma coisa aconteceria aos nacional-socialistas da Alemanha alguns anos
depois: foi Stálin quem mostrou o caminho a Hitler. Todas as pessoas do partido
sabiam o que estava acontecendo. Bukharin resmungava em particular que a “aniquilação
em massa de homens, mulheres e crianças completamente indefesos” estava
aclimatando os membros do partido na violência e obediência cruel,
transformando-os “em peças da engrenagem de uma máquina infernal”. Apenas uma
única pessoa protestou frente a Stálin. Sua segunda mulher, Nadezhda, o havia
deixado em 1926, com seus dois filhos ainda pequenos, Vasily e Svetlana. Stálin
persuadiu-a a voltar, mas a mantinha sob vigilância da OGPU. Quando ela se
queixou, ele localizou os informantes dela e os mandou prender. A 7 de novembro
de 1932, diante de testemunhas, ela protestou violentamente contra o tratamento
que ele dispensava aos camponeses, foi para casa e se suicidou com um tiro.
Esse foi o segundo drama familiar – seu primeiro filho, Yakov, tentou suicídio
por desespero em 1928 – e Svetlana escreveu mais tarde: “Acredito que a morte
de minha mãe, que ele tomou como uma traição pessoal, despojou a sua alma dos
últimos vestígios de calor humano”.
A resposta de Stálin foi fazer com que a OGPU assumisse o
controle de sua casa. Ela contratava e treinava os empregados, supervisionava
sua comida e fiscalizava o acesso a sua pessoa. Stálin governava agora através
de seu secretariado pessoal e não mais através dos canais de governo normais ou
dos órgãos do partido. Através de seu secretariado pessoal criou uma polícia
secreta própria dentro da polícia oficial, chamada Departamento Político
Secreto Especial de Segurança do Estado. Encasulado dessa maneira, ele se
sentia invulnerável; certamente, os outros o percebiam como tal. Apesar de o
estado da Rússia ser tão desesperador em 1932, a pondo de o regime de Stálin
ter chegado à beira do naufrágio, como aconteceu com Lênin no início de 1921,
ninguém chegou perto para matar Stálin.
Quanto
ao planejamento, tido como modelo para o mundo, era, em sua essência, um
exercício escrito. Nenhum de seus números jamais foi verificado
independentemente, de 1928 até os nossos dias. Os controles de auditoria
não-governamentais, que são parte indispensável a cada Estado constitucional
sob o império da lei, não existem na União Soviética. Havia, desde o princípio,
qualquer coisa suspeita sobre o seu primeiro plano quinquenal. Foi aprovado
pelo Comitê Central em novembro de 1928, adotado formalmente em maio de 1929 e
depois declarado em vigor retroativamente, desde outubro de 1928! Desde o final
de 1929 o país inteiro estava revirado de cabeça para baixo em função da
decisão repentina de coletivizar a agricultura; o Plano de 1928, então (presumindo
que ele tenha de fato existido), tornou-se totalmente irrelevante. Contudo, em
janeiro de 1933, o mês em que Hitler assumiu o poder, Stálin subitamente
anunciou que o plano havia sido completado em quatro anos e com “a máxima
satisfação” em vários aspectos.
O plano, tido pela sofisticada sociedade ocidental coo modelo
de processo civilizado, foi na verdade uma fantasia bárbara. A Rússia é u país
rico, com uma opulência e uma variedade de matérias-primas sem paralelo em
qualquer outro lugar do mundo. O regime soviético herdou uma população em
expansão e uma base industrial em rápido crescimento. Como a Alemanha dos
Guilhermes havia pressuposto, nada poderia impedir a Rússia de se tornar uma
das grandes potências, em breve tempo talvez a maior potência industrial sobre
a terra. A política de Lênin e, mais ainda, a de Stálin – ou melhor, a série de
expedientes apressados que passavam por política – teve o efeito preciso de
diminuir a velocidade dessa inevitável expansão, assim como danificou
enormemente, e nesse caso para sempre, a agricultura florescente da Rússia.
Entretanto, houve progresso. Grandes projetos foram completados, como a represa
do Dnieper em 1932, a fábrica de tratores de Stalingrado, a usina de aço de
Magnitogorsk, nos Urais, as minas da bacia de Kuznetsk, na Sibéria, o canal que
une o Báltico ao mar Branco e muitos outros projetos. Algumas construções, tais
como a do canal, utilizaram inteiramente, ou em parte, o trabalho escravo. Como
já vimos, o uso de escravos políticos fizera parte do regime de Lênin desde o
início, mas, inicialmente, só um pequeno contingente dessa mão-de-obra fora
utilizado. O sistema expandiu-se sob Stálin, a princípio lentamente, depois com
terrível velocidade. Uma vez iniciada a coletivização forçada, em 1930-33, a
população dos campos de concentração subiu para dez milhões e, depois do começo
de 1933, ela nunca caiu abaixo desse número, até bastante tempo depois da morte
de Stálin. Entre as indústrias que empregavam regularmente o trabalho escravo
em grande escala estavam as minas de ouro, a silvicultura, o carvão, a
agro-indústria e o transporte – especialmente a construção de canais, estradas
de ferro, aeroportos e estradas de rodagem. A OGPU fazia as transações de
trabalho escravo para várias agências do governo, exatamente da mesma maneira
que os S.S. nazistas alugariam mais tarde esse tipo de trabalhadores para os
Krupps, a I.G. Farben e outras firmas alemãs. Para o imenso canal Báltico-Mar
Branco, uma das obras que Stálin exibia, foram usados trezentos mil escravos. O
trabalho escravo deixou de ser marginal, como no tempo de Lênin, e se tornou
uma parte integrante e importante da economia stalinista, com a OGPU
administrando imensas áreas da Sibéria e da Ásia Central.
No caso alemão, a taxa de mortalidade nos campos totalitários
do trabalho escravo parece ter sido de 10% ao ano. Na Rússia, pode ter sido mais
alta porque muitos dos campos estavam localizados dentro das regiões árticas e
subárticas. De qualquer maneira, a necessidade de manter o suprimento de
víveres para a força de trabalho escravo era, indubitavelmente, uma das
principais razões das inúmeras prisões de trabalhadores não pertencentes ao
partido durante os anos 1929-33. Periodicamente eram feitos julgamentos com
grande encenação teatral, tais como o de Menshevik, em março de 1931, ou o dos
engenheiros da Metro-Vickers, em abril de 1933. Esses acontecimentos, altamente
divulgados, revelavam nos mínimos detalhes a existência de uma série de
conspirações diabólicas, que supostamente fariam parte de uma gigantesca
conspiração contra o regime e o povo da Rússia. Sem tais encenações não se podia
criar o clima de xenofobia e histeria necessário à manutenção da união do
Estado stalinista. Mas, obviamente, esses eventos constituíam uma fração mínima
do processo, a explicação pública das prisões e desaparecimentos que aconteciam
em todo o país, numa escala sem precedentes.
A maioria dos “julgamentos” não era registrada, apesar de
muitas vezes grandes grupos de pessoas estarem envolvidos, classificados de
acordo com a profissão. Muitos nem foram julgados. A natureza arbitrária das
detenções era primordial para criar o clima de medo que, ao lado da necessidade
de mão-de-obra, era o principal motivo do terror dos não-pertencentes ao
partido. Um membro da OGPU admitiu ao correspondente do Manchester Guardian em Moscou que pessoas inocentes eram
aprisionadas naturalmente – caso contrário ninguém teria medo. Se as pessoas,
disse ele, fossem presas apenas por contravenções específicas, todas as outras
se sentiriam seguras e, assim, estariam prontas para a traição. Este argumento
parecia carecer de qualquer padrão de lógica ou de sentido em várias
circunstâncias. Um velho bolchevique relatou o caso de um técnico em energia
que, no período de 18 meses, foi preso, condenado à morte, perdoado, enviado a
um campo, posto em liberdade, reabilitado e finalmente condecorado, tudo sem
razão aparente. Mas a maioria esmagadora dos prisioneiros passou o resto de
suas vidas nos campos.
No mundo exterior, a magnitude da tirania de Stálin – ou a
sua própria existência – era absolutamente mal compreendida. A maioria dos que
viajavam para a Rússia era ou de homens de negócio, ansiosos para fazer
comércio e sem a menor vontade de investigar ou criticar o que não lhes dizia
respeito, ou de intelectuais que iam para admirar e, mais tarde, para
acreditar. Se o declínio do cristianismo criou o político moderno fanático e
seus crimes, também a volatilização da fé religiosa entre as pessoas cultas
deixou um vácuo no espírito dos intelectuais ocidentais, facilmente preenchido
pela superstição secular. Não há outra explicação para a credulidade com que
cientistas, acostumados a avaliar as evidências, e escritores, cuja única
função era estudar e criticar a sociedade, aceitaram, sem espírito crítico, a mais
grosseira propaganda stalinista. Eles precisavam acreditar, eles queriam ser
enganados. Amabel Williams-Ellis, por exemplo, escreveu uma introdução a um
livro sobre a construção do canal do Mar Branco, mais tarde descrito com tanta
angústia por Alexander Solzhenitsyn, contendo a seguinte frase: “Essa estória
sobre a construção de uma obra arriscada, no meio de florestas antigas, levada
a efeito por dezenas de milhares de inimigos do Estado, ajudados – ou seria vigiados?
– por apenas 37 oficiais da OGPU, é uma das mais excitantes que já se
publicaram”. Sidney e Beatrice Webb disseram do mesmo projeto: “É agradável
pensar que manifestações de apreço calorosas foram expressas oficialmente sobre
o sucesso do feito da OGPU, não apenas pelo desempenho de um grande feito de
engenharia, mas pela conquista de um triunfo da regeneração humana”. Harold
Laski elogiava as prisões soviéticas por darem oportunidade aos condenados de
levar “uma vida plena e com dignidade”; Anna Louise Strong registrou: “Os
campos de trabalho na União Soviética angariaram a grande reputação de locais
onde dezenas de milhares de homens foram recuperados”. “Os métodos soviéticos
de recuperar os seres humanos são tão conhecidos e eficientes – acrescentou ela
– que os criminosos, ocasionalmente, pedem para ser admitidos nos campos de
trabalho”. Enquanto que na Grã-Bretanha, segundo George Bernard Shaw, um homem
entra na prisão como um ser humano e sai como criminoso, na Rússia ele entrava “como
um tipo criminoso e sairia como um ser humano, não fosse a grande dificuldade
de convencê-lo a sair da prisão. Pelo que eu depreendi, os criminosos poderiam
permanecer na prisão tanto tempo quanto desejassem”.
A fome de 1932, a pior da história russa, não foi praticamente
divulgada. No seu auge, Julian Huxley, biólogo que visitava o país, achou a
população “num nível de saúde geral muito acima daquele que se podia encontrar
na Inglaterra”. Shaw atirou duas reservas de alimentos para fora da janela do
trem, justamente antes de cruzar a fronteira russa, “convencido de que não
havia escassez na Rússia”. “Onde você vê escassez de comida?”, perguntou ele
lançando o olhar sobre os pratos existentes no restaurante reservado a
estrangeiros na metrópole de Moscou. Em um de seus artigos, Shaw diz o
seguinte: “Stálin vem distribuindo bens numa quantidade que parecia impossível
há dez anos atrás, e eu tiro o meu chapéu para ele”. Mas Shaw e sua companheira
de viagem, lady Astor, tinham
conhecimento da existência de prisioneiros políticos, já que lady Astor havia pedido clemência a
Stálin em nome de uma mulher que queria juntar-se ao marido na América (Stálin
prontamente entregou-a à OGPU). E lady
Astor perguntou a Stálin: “Por quanto tempo o senhor continuará matando pessoas?”
Diante da resposta de Stálin – “Enquanto for necessário” – ela mudou de assunto
e pediu-lhe para arranjar uma babá russa para seus filhos.
As apreciações sobre Stálin escritas nos anos 1929-34 são
leituras curiosas. H.G. Wells disse que “nunca havia encontrado homem mais
cândido, justo e honesto... ninguém tinha medo dele e todos confiam nele”. Os
Webbs argumentavam que ele tinha menor poder do que um presidente americano e
estava apenas agindo sob as ordens do Comitê Central e o Presidium. Hewlett Johnson, o deão de Canterbury, descreveu-o como
aquele que conduz “seu povo por novas e desconhecidas avenidas da democracia”.
O embaixador americano, Joseph E. Davies, por sua vez, referia-se a Stálin
dizendo que ele havia “insistido na liberalização da Constituição” e “elaborado
o projeto do verdadeiro sufrágio secreto universal”; disse ainda que “seus
olhos castanhos são extraordinariamente criteriosos e suaves” e “uma criança
gostaria de sentar-se no seu colo e um cachorro caminharia a seu lado”. Emil
Ludwig, o famoso biógrafo, achou-o um homem “aos cuidados de quem eu confiaria,
sem hesitação, a educação de meus filhos”. Ele era, disse o escritor chileno
Pablo Neruda, “um homem de princípios e de boa índole”; “um homem de bondosa
afabilidade”, ecoou o deão.
Alguns desses elogios podem ser explicados de várias formas:
corrupção, vaidade ou pura loucura. Davies, por exemplo, deturpou de forma bem
consistente a natureza da Rússia de Stálin nas informações para o governo de
seu país; para isso era subornado pelo regime soviético, que lhe permitia
comprar ícones e cálices para a sua coleção particular a preços abaixo do mercado.
Quanto a Anna Louise Strong, Malcolm Muggeridge a descreve como “uma mulher
enorme, com um rosto muito vermelho, muitos cabelos brancos, uma expressão de
imbecilidade tão assustadora que equivalia a uma beleza estranha”. A ilusão era
obviamente o fator maior que existia na apresentação de um despotismo mal sucedido
como uma Utopia em desenvolvimento. Mas havia também, por outro lado, a fraude
consciente por parte de homens e mulheres que se diziam idealistas. Acreditavam
honestamente, na época, que, ao deturpar e mentir sistematicamente, estavam a
serviço de um objetivo humano mais alto. Se a Grande Guerra, com sua violência
sem precedentes, brutalizou o mundo, a Grande Depressão o corrompeu, limitando
as opções que se ofereciam à humanidade e apresentando-as em termos
ostentosamente contrastantes. Os ativistas políticos achavam que deveriam fazer
escolhas terríveis e, uma vez feitas, ater-se a elas desesperadamente. Os anos
30 foram uma época de mentiras heroicas. A mentira santa era a virtude mais
apreciada. A Rússia torturada de Stálin era a principal beneficiária dessa
falsificação santificada. A competição para enganar tornou-se mais acirrada
quando o stalinismo adquiriu um rival mortal na Alemanha de Hitler.
Havia um elemento de ilusão no centro da rivalidade, entre as
formas comunistas e fascistas de totalitarismo. Elas se ligavam organicamente
ao processo de evolução histórica. Então, assim como a guerra havia tornado possível
a violenta tomada de poder por parte de Lênin, e o “Socialismo de Guerra”
alemão lhe havia inspirado uma política econômica, da mesma forma a própria
existência do Estado leninista, com seu controle unipartidário sobre todos os
aspectos da vida pública e seu relativismo moral sistemático, servia de modelo
para todos aqueles que odiavam a sociedade liberal, a democracia parlamentar e
o Estado de direito. Ele inspirou a imitação e gerou o medo; aqueles que mais o
temiam eram os que mais propendiam a imitar seus métodos ao tentarem construir
contramodelos defensivos próprios. O totalitarismo da esquerda criou o
totalitarismo da direita, o comunismo e o fascismo eram o martelo e a bigorna
pelos quais o liberalismo foi despedaçado. O aparecimento da autocracia de
Stálin mudou a dinâmica da corrupção, não em forma, mas em nível. Isto se deu
porque Stálin “encarnava o pensamento do velho Lênin, proém numa dimensão muito
maior”. As prisões, os campos de concentração, o alcance, a brutalidade e a
violência da engenharia social – nada disto tinha sido visto antes, nem mesmo
imaginado até então. O contramodelo se tornou, assim, mais monstruosamente
ambicioso, e o medo, que ativou sua construção, foi mais intenso. Se o
leninismo gerou o fascismo de Mussolini, foi o stalinismo que tornou possível o
leviatã nazista.
Trabalho forçado dos Kulaks e "inimigos" do Estado Soviético
MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964
http://felixmaier1950.blogspot.com/2020/09/memorial-31-de-marco-de-1964-textos.html
HISTÓRIA ORAL DO EXÉRCITO – 31 MARÇO 1964
http://felixmaier1950.blogspot.com/2020/09/historia-oral-do-exercito-31-de-marco.html
Ainda:
Baixe o livro “Arquipélago Gulag” em https://www.docdroid.net/BUe5N4M/aleksandr-solzhenitsyn-arquipelago-gulag-pdf.
Veja 741 fotos dos Gulags em https://www.gettyimages.pt/fotos/gulag?phrase=gulag&sort=mostpopular
Veja 63.080 imagens e fotos do Comunismo em https://www.gettyimages.pt/fotos/comunismo?phrase=comunismo&sort=mostpopular
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