MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964

MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964
Avião que passou no dia 31 de março de 2014 pela orla carioca, com a seguinte mensagem: "PARABÉNS MILITARES: 31/MARÇO/64. GRAÇAS A VOCÊS, O BRASIL NÃO É CUBA." Clique na imagem para abrir MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

A FILOSOFIA DE THOMAS HOBBES NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS - Publicado por Lúcia Helena Albino Pereira



A FILOSOFIA DE THOMAS HOBBES NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS

FILOSOFIA

Contexto histórico da época de Thomas Hobbes e sua influência em Machado de Assis.

ÍNDICE

1. INTRODUÇÃO

No contexto da história da Filosofia Política podemos observar a existência de inúmeras explicações e teorias sobre a melhor maneira de se viver em sociedade, sobre quem é o ser humano, o que é ser justo, como isto se interliga a arte de governar, bem como ao surgimento e estabelecimento do Estado enquanto instituição. Dessa forma, Thomas Hobbes aparece nesse contexto e busca explicitar em sua obra Leviatã as origens do Estado e as causas que levaram os indivíduos a firmarem um Contrato Social. Nessa obra o autor revela como o ser humano procura defender seus próprios interesses de forma egoísta e ego centrada, abrindo mão de sua liberdade somente quando isso lhe trouxer maiores benefícios (HOBBES,1651). A várias obras da literatura de Machado de Assis, e em especial as obras Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, onde é exposta a filosofia Humanistista de Quincas Borba, mantém intertextualidade implícita com o pensamento Hobbesiano, posto que na filosofia Humanitista apresentada por Quincas Borba, podemos observar uma leitura da obra de Hobbes, principalmente em relação ao homem ser o lobo do homem. Logo, nosso objetivo, nas linhas que se seguem, é traçar a relação entre a filosofia de Hobbes e os escritos machadianos, o que concerne à natureza humana e sua forma de ser, estar e agir no mundo.

Pode-se afirmar que todo ser humano é influenciado pelo momento histórico em que está inserido, e recebe também influências de outras épocas através de leituras e contatos com outras diferentes perspectivas artísticas. Dessa maneira, este trabalho de conclusão de curso (TCC) se constitui uma tentativa de interligar a filosofia de Thomas Hobbes à literatura realista de Machado de Assis, de forma específica na obra Quincas Borba e sua filosofia Humanitista. Partimos da hipótese de que Machado de Assis teve contato com a obra de Hobbes e foi por ela influenciado. Esta influência aparece de forma implícita em várias obras de Machado de Assis, como A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, onde o autor discute os direitos da ambição e o intenso desejo de lutar contra a hierarquia social, já na Filosofia Humanista elaborada pelo personagem Quincas Borba, podemos perceber que “o homem é o lobo do homem”, e que em cada luta, batalha, competição, etc., o vencedor comemora a vitória e a eliminação do outro, como algo perfeitamente natural, sem remorsos ou compaixões. Sobre isso afirma Silva (2015) que:

Para Magalhães Azeredo, autor de uma longa crítica publicada em O Estado de S. Paulo, o Humanitismo ditou que ―todas as complicações se resolvem pela regra de Hobbes: o mais forte devora o mais fraco; logo, a maior felicidade é ser forte, descender do peito ou dos rins de Humanitas; a única desgraça é não ter nascido‖. 158 A identificação realizada por um leitor contemporâneo entre o Humanitismo e a filosofia de Thomas Hobbes exposta em Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil (1651) é sugestiva. A despeito da simplificação da tese hobbesiana realizada por Azeredo, de fato, existem alguns pontos em comum entre a tese do filósofo fictício de Machado de Assis e a filosofia política de um dos principais teóricos do Absolutismo, sobretudo, no que concerne à composição da sociedade (p 81).

Partindo desse princípio norteador, será possível entender que toda e qualquer obra artística, científica, filosófica, etc. pode ser melhor compreendida se for contextualizada, procurando-se os meios necessários para desvendar o local e as conjecturas psicossociais que envolveram o indivíduo e influenciaram seus pensamentos e ações, através do contato social com outros seres e suas mais diferenciadas relações sociais, bem como o seu contato com obras de outros tempos e locais, que são tão influenciadoras quanto o próprio contato social. Dessa forma, o objetivo principal deste TCC é traçar as características do escrito machadiano que nos faz crer que se trata de uma literatura influenciada por Hobbes.

Para tanto, abordaremos no primeiro capítulo o contexto histórico da época de Thomas Hobbes, para melhor compreendermos a influência deste contexto histórico na vida e obra do filósofo, abordaremos o contexto histórico desde a Guerra das Duas Rosas até o ano de 1679. No segundo capítulo iremos descrever a biografia de Thomas Hobbes para que assim, no terceiro capítulo, possamos abordar especificamente a Filosofia Hobbesiana contida na obra Leviatã, escrita em 1651. No quarto capítulo abordaremos o contexto histórico brasileiro, para melhor compreender as influências vividas por Machado de Assis e, por fim, no quinto capítulo, apresentaremos a filosofia humanista de Quincas Borba, personagem criado por Machado de Assis, procurando interligá-la à Filosofia Política de Thomas Hobbes. Enfim, este é o percurso que nos orientará durante o desenvolvimento desse trabalho.

2. CAPÍTULO 1

2.1. O Contexto Histórico

Todo o indivíduo é filho de seu tempo e, portanto, é influenciado e influencia, ou seja, pertence a um contexto histórico, social e político que, de certa maneira, criam e moldam sua maneira de ser, sentir e estar no mundo. Thomas Hobbes, assim acreditamos, teve sua filosofia Política extremamente influenciada pelas Guerras contínuas que antecederam seu nascimento, tanto quanto pelas disputas de poder vivenciadas por ele ao longo de toda a sua existência.

Assim, vamos traçar no primeiro capítulo um apanhado geral do contexto histórico inglês, que monta como pano de fundo a trajetória do pensamento de Thomas Hobbes o levam a afirmar que “O homem é o lobo do homem” (HOBBES,1651), e o mundo humano é uma Guerra de todos contra todos. Por um longo período a Idade Média esteve mergulhada em guerras e a Inglaterra guerreou contra a França pela conquista de território e poder econômico. Embora muitas outras guerras tenham sido travadas antes, iniciaremos com a Guerra das Rosas, que instaura a dinastia Tudor na Inglaterra no ano de 1485. É de extrema importância este contexto para o entendimento da Filosofia de Thomas Hobbes, principalmente porque esse foi preceptor de vários condes ingleses e vivenciou de perto as crises políticas e econômicas.

Como afirma Weffort (2011, p.9):

“Quanto a Hobbes e Locke, seria necessário lembrar, por mais estranho que isso possa parecer quando falamos da Inglaterra que nos habituamos a ver como uma paisagem de ordem e de estabilidade, que eles viveram em uma Inglaterra tempestuosa e revolucionária. Hobbes é contemporâneo da revolução de 1640, de Oliver Cromwell, e Locke vive na época da Revolução Gloriosa, de 1688. O que talvez nos ajude a entender por que eles têm tantas coisas a dizer a brasileiros e latino-americanos”.

2.2. Guerras das Rosas (1455-1487)

A Guerra das Rosas ocorreu no período de 1455 a 1487 e envolveu os membros da Casa Lancaster contra os da Casa York, ambos pretendentes ao trono inglês. Segundo Stella Titotto Castanharo (2011) essa guerra foi uma disputa entre “as famílias York e Lancaster. Henrique II assumiu a posição do rei ao adquirir a coroa no campo de batalha e promoveu paz ao reino inglês após 30 anos de muitas mortes e destruição na Inglaterra. Essa guerra civil ocorreu de 1455 a 1485” (p. 7).

Vale dizer que essas casas (York e Lancaster) eram descendentes do rei Eduardo III. A guerra foi denominada de duas Rosas pois os Lancaster utilizavam uma rosa vermelha enquanto os Yorks faziam uso de uma rosa branca em seus brasões e bandeiras. Daí a denominação posterior criada pelos historiadores de Guerra das Duas Rosas.

Segundo Anderson (2004, p. 117):

“A amarga consequência do colapso final do poder inglês na França seria a eclosão das Guerras das Duas Rosas, dentro do país. Uma vez que não mais existia uma autoridade real vitoriosa para manter unida a alta nobreza, a arcaica máquina de guerra medieval volta-se sobre si própria, enquanto as rivalidades entre os grandes senhores feudais liberavam por todo país os seus embrutecidos dependentes e bandos de soldados contratados, e usurpadores rivais engalfinhavam-se na luta pela sucessão. ”

O antagonismo entre as duas casas teve início quando Henrique Bolingbroke destronou o Rei Ricardo II em 1399. Henrique VI havia perdido muitas terras no continente europeu, principalmente na França. Além disso, ele sofria de demência, o que levou muitas pessoas a considerarem-no incapaz para o comando do reino, fortalecendo assim a pretensão ao trono pela Casa York. O descontentamento civil se agrava ainda mais devido aos casos de corrupção da corte e com o fortalecimento de exércitos privados.

Segundo Somervell (1941) “As guerras das Rosas tiveram muitas causas (...) o duque de York que, não podendo assegurar a sua posição de principal conselheiro do rei, se recordou de que era ele o legítimo possuidor do trono” (p.34).

Ricardo de York, após um episódio da enfermidade de Henrique VI, em 1453, iniciou sua campanha ao trono, mas esta foi frustrada pela recuperação de Henrique. Em 1459, Margarida de Anjou, esposa de Henrique, faz alianças com nobres da corte. A frustração de Ricardo com a recuperação de Henrique VI e as influências agressivas da rainha levaram à Primeira Batalha de Sant Albans, onde os Lancaster sofreram sua primeira derrota. Os Yorks retomam sua influência, e ambos os lados se esforçam por uma reconciliação. Henrique VI sofre um novo ataque de demência e o Duque de York é designado seu protetor, deixando em segundo plano Margarida de Anjou.

Em 1460 é assinada uma Ata de Acordo onde fica estipulado que o filho de Henrique VI seria deserdado do trono e que Ricardo seria o sucessor do rei. Margarida de Anjou não aceita o acordo e junto com o Príncipe Eduardo forma um grande exército, o que dá início à batalha de Waterfield, onde o Duque de York é morto, passando o trono para seu filho.

Eduardo de York trava luta contra a rainha Margarida de Anjou na batalha de Towton, esta foi a mais sangrenta das batalhas na Guerra das Duas Rosas. Eduardo de York sai vitorioso, enquanto os Lancaster foram praticamente dizimados, com a maioria de seus líderes mortos.

Eduardo IV foi coroado rei em 1461, governando com certa tranquilidade por dez anos. Em 1471 Eduardo IV derrota Warnick a batalha de Barnet, mais tarde, neste mesmo ano, põe fim às forças dos Lancaster na Batalha de Tewkesbury.

Eduardo IV morre repentinamente em 1483, deixando o trono para seu filho de 12 anos, Eduardo V, como este não poderia assumir, Ricardo, Duque de Gloucester é designado como Lorde Protetor do Rei. Ricardo reivindica o trono, captura o Rei e seu irmão e os prende na Torre de Londres. De Lorde Protetor passa a Rei Ricardo III.

2.3. Dinastia Tudor - Henrique VII

Ainda em 1483 o futuro rei Henrique uniu-se a seu primo, Henrique de Stafford, Duque de Buckingham, contra Ricardo III. Ricardo vence e Henrique foge da Inglaterra.

Anderson (2004, p.117) assegura que: “uma geração de guerra civil acabou, finalmente, com a fundação da nova dinastia Tudor em 1485, no campo de Bosworth”.

Em 1485, com apoio financeiro do Duque da Bretanha, Henrique retoma a luta contra Ricardo III. Ricardo é derrotado e morto na Batalha de Bosworth, Henrique é coroado rei, colocando fim à Guerra das Rosas e iniciando a Dinastia Tudor. Nas palavras de Somervell (1941):

“O primeiro Tudor, Henrique VII, era uma pessoa avisada e cuidadosa que fez mais bem e menos mal do que geralmente se pode lançar na conta de mais brilhantes figuras. Restabeleceu um governo forte com a ajuda da sua excelente Star Chamber que, depois de ter dispensado os júris, podia fazer justiça sem medo dos poderosos […] Morreu rico em 1509, depois de reinar 24 anos”. (p. 42)

No entanto, nem todos os historiadores concordam com Somervell, Guedes (2015) destaca: “Henrique VII não foi um rei popular, utilizou ao máximo os impostos já existentes, inclusive aqueles que já haviam caído em desuso. Para suas finanças tembém se apropriou das terras daqueles nobres falecidos durante a guerra das Rosas.” (p.126-127).

Faleceu em 1509, passando o trono para seu filho Henrique VIII, que contava com apenas 18 anos de idade e havia se tornado sucessor ao trono devido ao falecimento prematuro de seu irmão Artur. Artur fora casado com Catarina de Aragão, com o falecimento do filho, Henrique VII consegue permissão junto ao Papa Júlio II para casar Henrique, que na época estava com 11 anos, com a viúva de Artur.

Como salienta Anderson (2004, p. 115):

“A nobreza da Inglaterra na Idade Média constituía uma classe tão militarizada e predatória como qualquer outra da Europa: na verdade, distinguia-se entre as suas parceiras pela amplitude de suas agressões externas. ”

2.4. HENRIQUE VIII

Henrique VIII, nascido em 28 de julho de 1491, filho de Henrique VII e Elizabeht de York, foi considerado o monarca representante do divino e chefe da igreja em meados do século XVI. É como afirma Stella Titotto Castanharo (2011):

Filho de Henrique VII e Elizabeth de York, Henrique VIII nasceu em 28 de julho de 1491, sendo o segundo filho homem de uma família de quatro filhos, além do segundo monarca da Dinastia Tudor. Seus pais colocaram um fim à Guerra das Duas Rosas a se casarem e fundarem a Dinastia Tudor que teria como emblema a junção da rosa branca dos York e da rosa vermelha dos Lancaster. Aos 18 anos, foi coroado juntamente com a princesa espanhola Catarina de Aragão, sua primeira consorte, como Rei da Inglaterra e França. Os acontecimentos mais marcantes de seu longo reinado (38 anos) foram suas relações com as seis esposas, sua intempestuosidade e a ruptura com a Igreja Católica. Com a formação da Igreja Anglicana, passou-se a considerar o monarca o representante divino e chefe da Igreja, modificando significativamente a Inglaterra do século XVI (p. 7)

De 1509 a 1511 os assuntos de Estado foram controlados pelo bispo de Winchester, Richard Fox, de 1511 em diante o poder de decisão nos assuntos de Estado ficou a cargo do Cardeal Thomas Wolsey. Em 1511 Henrique VIII uniu-se à liga Católica, formada por dirigentes europeus contrários ao rei Luís XII da França. Anderson (2004, p.118) destaca que: “os primeiros vinte anos do governo de Henrique VIII trouxeram poucas mudanças à posição de segurança interna da monarquia Tudor. A administração polícia de Wolsey não foi marcada por inovações relevantes”.

O maior desejo do Rei Henrique VIII era ter um sucessor homem, mas sua esposa até então só lhe dera filhas. Henrique VIII era amante de Maria Bolena, mas sentindo-se atraído por Ana Bolena, a quem queria desposar, apelou à Santa Sé pedindo a anulação de seu casamento com Catarina. Porém o Papa Clemente VII era praticamente prisioneiro do Imperador Carlos V, o sobrinho de Catarina, e fez com que o Papa negasse o pedido de Henrique VIII. Impossibilitado de realizar um novo matrimônio pelas leis Católicas, Henrique VIII instaura a Igreja Inglesa Anglicana. Conforme afirma Guedes (2015, p.129):

“Em 1526, Henrique VIII fiou motivado a separar-se de Catarina não só pelo fato dela não poder lhe dar mais filhos, mas também porque sentia-se muito atraído por Ana Bolena, irmã de Maria Bolena (uma de suas amantes). Sem informar ao cardeal Wolsey, Henrique VIII apelou diretamente à Santa Sé (...) que lhe desse a permissão de casar-se com qualquer mulher.”

É nesse período conturbado que Thomas Cromwell é designado primeiro Conde de Essex e secretário de Estado da Inglaterra. Com a ajuda de Thomas Cromwell, Arcebispo de Cantuária, Henrique VIII consegue o divórcio, devido à declaração parlamentar que afirmava que o direito divino do rei, substituía a autoridade eclesiástica da Igreja Católica. Devido a este fato, Henrique VIII foi excomungado da Igreja Católica e se proclamou Chefe Supremo da Igreja Anglicana. Para provar seu poder, dissolveu os mosteiros católicos, “os monges foram torturados e executados, entre eles o filósofo Thomas More, e as terras se tornaram parte integrante da coroa” (GUEDES, 2015, p.130), Henrique VIII consolida assim na Inglaterra o absolutismo.

Em janeiro de 1533 Henrique VIII casa-se com Ana Bolena, mas o tão esperado varão não nasce, em setembro a rainha deu a luz a uma menina que se chamou Elizabeth (futura rainha Elizabeth I). Sem dar à luz o tão esperado herdeiro de Henrique VIII, Ana Bolena é acusada de traição, condenada e decapitada em Londres em 1536.

Conforme afirma GUEDES (2015, p. 130): “Ana começou a perder o favor do rei, depois do nascimento da princesa Isabel, Ana teve dois abortos e enquanto isso, Henrique começava a prestar atenção em outra mulher, Jane Seymour.”

Henrique VIII casa-se com Jane Seymour onze dias após a execução de Ana Bolena. Jane dá à luz ao primeiro filho homem de Henrique VIII em 12 de outubro de 1537. Jane faleceu logo depois em 24 de outubro.

Henrique VIII casou-se mais três vezes, teve três filhos homens, todos subiram ao trono. Eduardo VI em 1547, ajudado por seu tio, Eduardo Seymour, com a morte prematura de Eduardo VI, aos 17 anos, em 1553, a coroa é assumida por Maria I, filha de Catarina de Aragão. Maria I era católica devota e manda queimar diversos protestantes. Esse, dentre outros eventos, levou-a à impopularidade.

Em 1558 o trono passa a pertencer a Isabel I, que ficou conhecida como Rainha Elizabeth I, esta enfrentou graves crises e protestos. Com a morte de Isabel I, o trono passa para Jaime VI da Escócia, que foi proclamado novo rei da Inglaterra com o nome de Jaime I em 1603. Sobre isso Somervell (1941) destaca:

“O século XVII ou dos Stuarts é todo ocupado pela luta entre o rei e o Parlamento. Começamos com Jaime I, que acreditava tão firmemente no seu direito divino que escreveu sobre o assunto um livro que dizia o seguinte: ‘Assim como disputar sobre o que Deus pode fazer é uma blasfêmia, assim também é sedição entre os súditos disputar sobre o que o rei pode fazer. Não me agradará que haja discussões sobre o meu poder’”. (p.42).

Logo no início de seu reinado enfrentou conflitos religiosos. Em 1604 colocou fim à Guerra anglo-espanhola, assinando o Tratado de Londres. Em 1605 enfrentou extremistas católicos liderados por Robert de Catesby, elaborador do plano conhecido como Conspiração da Pólvora, tinham a pretensão de explodir a Câmara dos Lordes e destronar Jaime I, mas foram descobertos, julgados e executados. No início de 1625 Jaime I sofre com vários ataques de artrite e gota, ficando seriamente debilitado, em março sofre derrame e falece em 27 de março.

Assume o trono Carlos I, que enfrenta a Espanha na Guerra dos Trinta Anos. Em 1629 dissolve o Parlamento, iniciando onze anos de governo absolutista.

De 1642 a 1649 duas Guerras Civis assolam a Inglaterra.

Em 1647 Oliver Cromwell se elege líder dos militares, Carlos I foge da Inglaterra e firma acordo com os escoceses em troca de apoio militar, prometendo estabelecer o presbiterianismo na Inglaterra.

Em 1648 Cromwell derrota os escoceses, em julho invade a Escócia. Carlos I é acusado de traição e julgado e decapitado em 30 de janeiro de 1649. A monarquia é abolida e instaura-se a República.

Com a abolição da monarquia, Cromwell assumiu a Chefia de Estado, sob o título de Lorde Protetor. Em 1650 ataca a Escócia e sai vitorioso, ocupando Edimburgo e Glasgow. Efetiva a união com a Escócia em 1654.

Após a vitória contra a Escócia, novas guerras foram travadas, o Parlamento foi perdendo seu poder e o apoio popular e acabou por dissolver-se

Em 1658, Oliver Cromwell nomeia seu filho Richard como seu sucessor, com o falecimento de Oliver, instaurou-se na Inglaterra um caos político e econômico que levou ao anseio do retorno da monarquia, em 1660 a República cai.

A monarquia retorna com Carlos II, que reina de 1660 a 1685, sendo rei da Inglaterra, Escócia e Irlanda durante este período. Após o relato do contexto histórico que circundou Hobbes, vejamos, agora, como essas guerras influenciaram o pensamento do filósofo.

3. CAPÍTULO 2

3.1. Thomas Hobbes

Thomas Hobbes faleceu aos 91 anos, vivenciou neste longo período de existência diversas guerras e pôde observar as motivações humanas nas mais diversas áreas e na defesa dos mais diferentes interesses, tanto pessoais quanto coletivos. Hobbes nasceu em Westport, Inglaterra, no dia 5 de Abril do ano de 1588 e faleceu no dia 4 de Dezembro de 1679. Seu pai, também chamado Thomas Hobbes, era o vigário de Charlton e Westport, perto de Malmesbury, em Wiltshire. Thomas Hobbes pai tinha um irmão mais velho, Francis Hobbes, que era um rico mercador. Muitos diziam que Thomas Hobbes pai era extremamente ignorante e bruto, e talvez fosse realmente verdade o que diziam, em um certo dia ele discutiu com um outro vigário na porta da igreja, e acabou fugindo, abandonando a família. Hobbes estava com sete anos quando esse fato aconteceu, e passou a morar com o tio Francis. Sobre isso diz SCARAMAL (2009) que: “seu pai, também Hobbes era clérigo da igreja anglicana, por causa de uma desavença pessoal acontecida na porta da igreja, ele abandonou a esposa e os três filhos”. (p.2)

Aos sete anos Hobbes possuía proficiente em leitura e aritmética, pois havia frequentado desde os quatro anos a escola da igreja de Westport. Passa a frequentar a escola em Malmesbury, e mais tarde Robert Latimer escola particular em Westport. Após deixar a escola Robert Latimer, entrou no Colégio Magdalen Hall, Oxford, em 1603, onde continuou os estudos graças ao apoio financeiro do tio Francis. Naquela época o ensino em Oxford, foi dominado por um estudo de Aristóteles, por quem Hobbes não apresentou grande interesse, porém era extremamente interessado no estudo dos clássicos.

Graduou-se em 1608, e com uma recomendação de Sir James Hussey, Diretor do Magdalen Hall, passou a ser o tutor de William Cavendish, que se tornaria depois o segundo conde de Devonshire. Conforme diz SCARAMAL (2009): “Quando acabou os estudos tornou-se preceptor do futuro primeiro conde de Devonshire, William Cavendish, iniciando a sua longa relação com a família Cavendish”. (p.2). Willian era apenas um pouco mais jovem que Hobbes, eles se tornaram bons amigos, iniciando assim uma duradoura relação social com esta família. Hobbes passa a ser secretário de William Cavendish e em 1610, e diante desta estreita relação, juntos viajaram à França, Alemanha e à Itália, durante a viagem aproveitou para aprender francês e italiano, e acabou por reacender seu desejo de conhecimento sobre os estudos clássicos. Ao retornar à Inglaterra, Hobbes retoma os estudos clássicos, começou a estudar grego e latim novamente.

Em 1626, devido à de seu pai, William Cavendish herdou o título de conde de Devonshire, após apenas dois anos, William faleceu e Hobbes perde tanto um querido amigo, quanto o cargo de tutor.

De 1628 a 1631 Hobbes passa a ser tutor do filho do senhor Gervásio Clinton de Nottinghamshire, em 1629, ele publica sua tradução de Tucídides, tradução que já vinha sendo realizada há vários anos. Como destaca FRAZÃO (2018) “Em 1628, com a morte de seu aluno, Hobbes voltou a viajar como preceptor do filho de Sir Gervase Clifton. Durante sua estada na França, entre 1629 e 1631, Hobbes estudou Euclides e despertou o interesse pela matemática” (e-biografia).

De 1631 a 1642 Hobbes presta serviços à família Cavendish novamente, é estabelecido como guardião do terceiro Duque de Devonshire, conforme afirma TRINDADE NETO (2011): “entre 1631 e 1642, Hobbes novamente passa a prestar serviços à família Cavendish, na condição de guardião do terceiro Duque de Devonshire” (p. 12). Nesse período faz viagens acompanhando a família Cavendish, na França entra em contato com o círculo intelectual do Padre Mersenne , com quem estabelece um forte laço de amizade. Em 1636, Thomas Hobbes teve a oportunidade de conhecer Galileu Galilei.

Em 1637 Hobbes retorna à Inglaterra e dá ênfase aos estudos sobre política.

Em 1640, quando explode a Guerra Civil, Hobbes temendo por sua vida, principalmente por defender a monarquia, acaba fugindo para Paris. Em Paris publica a primeira versão de De Cive, que trata sobre a questão das relações entre Igreja e Estado. Hobbes defende que a igreja cristã e o estado cristão formavam um mesmo corpo, cuja cabeça era o monarca, possuindo assim o direito de interpretar as Escrituras e decidir sobre questões religiosas, podendo até mesmo presidir o culto.

RIBEIRO (2011) ressalta que:

“Em 1640, o confronto entre o rei Carlos I e o Parlamento envolveu o país numa sangrenta guerra civil que só terminou em 1649 com a vitória das forças parlamentares. A Revolução Puritana, como foram denominados esses eventos, culminou com a execução de Carlos I e a implantação da república na Inglaterra. Foi após os horrores da guerra civil, da consumação do regicídio e da instauração da férrea ditadura de Cromwell, que Thomas Hobbes, refugiado na França, publicou em 1651 o Leviatã. ” (p.65)

Em 1651 Hobbes escreve a principal obra que nos interessa, O Leviatã, onde expõe sua filosofia política. Logo após a publicação do Leviatã e a restauração da paz por Cromwell, Hobbes retorna à Inglaterra, onde é acusado de ter escrito o livro para cair nas graças do novo governo.

Após a apresentação da biografia de Hobbes podemos então compreender a sua filosofia. Logo, no próximo capítulo, o leitor terá acesso ao pensamento filosófico desenvolvido por Hobbes.

4. Capítulo 3

4.1. Filosofia Política de Hobbes - O Leviatã

Podemos dizer que Hobbes foi um estudioso de diversas áreas do conhecimento humano, mas de forma mais específica se dedicou a estabelecer as bases de uma Filosofia moral e política, ou seja, estabelecer bases fixas, seguras para que a sociedade se mantivesse estável e progredisse, elevando o espírito humano. Hobbes viveu em uma época de violência e guerras, impressionou-se principalmente com as violentas guerras cujo pano de fundo era a divergência religiosa e a luta pelo poder político e econômico. Hobbes era adepto da monarquia e pretendia restabelecer o direito divino de forma inquestionável, tal como um método matemático pode responder a uma questão sem deixar dúvidas.

Hobbes havia traduzido as obras de Euclides, e foi influenciado pela geometria euclidiana, ao ponto de utilizá-la como eixo base para suas teorias sobre a sociedade humana. Assim, toma a geometria como movimento básico para o entendimento da física, a física como base para compreender o ser humano e este como base para a compreensão da sociedade e para a formulação da ética e da política. É desta maneira que estrutura suas obras: De natura, De homine e De cive, inserindo a natureza na ordem divina, o homem como parte da natureza e, a partir desse, a política.

Observemos a imagem da capa da obra Leviatã:

Frontispício da obra Leviatã mostra o soberano com a espada e o cetro: a força e a glória. Disponível em: . Acesso: 15 jul 2018.

Podemos observar que da parte superior, surge por trás das montanhas um homem, ele não é comum, é enorme, barbado e possui longos cabelos, traz uma coroa na cabeça, uma espada na mão direita e na esquerda um cetro. Seu tronco parece ser formado por uma vestimenta que contém vários seres humanos, todos voltam o olhar para sua face; ele se encaminha para a vila, onde há muitas casas. Na parte central temos o que parece ser uma cortina com fartos babados, e está pendurada pelas pontas, com a inscrição LEVIATHAN em destaque, seguida do subtítulo: matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Várias imagens estão em destaque nos lados direito e esquerdo da cortina, do lado esquerdo podemos observar: um castelo, uma coroa, um canhão, várias armas, e soldados montados em seus cavalos. Do lado direito há uma igreja, logo abaixo uma Mitra, que segundo o Vaticano simboliza a santidade e a coroa da glória, mais abaixo diferentes armas e na última imagem pessoas do clero. O que nos leva a dedução que um Estado forte deve ter o apoio tanto da Igreja quanto do povo.

Para Hobbes todos os homens são iguais em estado de natureza, pois

A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. (HOBBES, 2006, pg. 45).

Não é uma igualdade física, diferenças de tamanho, força, habilidades corporais, etc. que subsistem, mas todos possuem as mesmas necessidades, e, portanto, almejam os mesmos bens materiais e espirituais. Hobbes (2006) segue dizendo que:

“O desprezo ou pouca preocupação com a desgraça alheia é o que os homens chamam crueldade, que deriva da segurança da própria fortuna. Pois considero inconcebível que alguém possa tirar prazer dos grandes prejuízos alheios, sem que tenha um interesse pessoal no caso” (pg. 26).

Então por que são diferentes na sociedade? Possuem as diferenças sociais porque através do pacto social concordaram em abdicar de algumas coisas em troca de segurança e da garantia de sobrevivência, algo que acaba sendo um bem maior para toda a sociedade. Segundo Hobbes, essa igualdade entre os homens levam-nos a querer a mesma coisa, ao mesmo tempo e não medem forças, nem artimanhas para derrotar os outros, tornando-se inimigos mortais e causando um caos geral, ou seja, uma luta de todos contra todos, “o homem é o lobo do homem”, essa guerra de todos contra todos, se torna contínua; para conservar seus bens e sua própria vida, cada homem precisa correr riscos, planejar estratégias, pois o outros possuem o que ele deseja, e ele possui o que os outros almejam, assim a disputa é geral e constante, o homem é por natureza, segundo Hobbes, um ser egoísta e agressivo. “Se à prudência se acrescentar o uso de meios injustos ou desonestos, como aqueles a que os homens são levados pelo medo e pela necessidade, temos aquele perverso talento a que se chama astúcia, e é um sinal de pusilanimidade”. (HOBBES, 2006, pg. 30).

Para garantir a sobrevivência é necessário antecipar e atacar, sem vacilar, sem piedade. Essa guerra constante, generalizada leva à destruição ou à dominação do outro, que se acomoda para garantir a sobrevivência, mas assim que vê sua força restabelecida, se põe novamente à luta. Vive por um tempo sob o jugo do vencedor, que de forma despótica estabelece as condições de rendição. Essa condição constante de guerra impede o desenvolvimento da sociedade e do próprio homem, não há como estabelecer conceitos sobre bem, mal, justiça, etc. O que se pode perceber, é que nesta forma o homem é um ser insociável, solitário, sem noção de justiça, age com liberdade sem limites, fazendo o que quer, quando e como quer, sem nenhuma restrição ética ou moral, não há como estabelecer códigos de conduta, a única coisa que prevalece é a autopreservação. “A competição pela riqueza, a honra, o mando e outros poderes leva à luta, à inimizade e à guerra, porque o caminho seguido pelo competidor para realizar seu desejo consiste em matar, subjugar, suplantar ou repelir o outro” (HOBBES, 2006, pg.38).

No entanto, com o passar do tempo, o homem foi percebendo que um estado de paz é muito melhor do que a guerra, procura estabelecer com os outros um acordo, todos devem renunciar à essa liberdade natural, que causa danos a todos e estabelecer um Contrato social, que dá poderes a um terceiro, este deverá estabelecer os limites, que serão aceitos como leis morais e políticas, e garantirão a segurança e sobrevivência de todos aqueles que aceitarem o pacto. Este terceiro que estabelece, em consenso com todos, as leis, é o soberano e cabe a ele governar a sociedade assim formada. Cada novo participante nascido depois do pacto, deve se adequar a ele. Como afirma o autor:

Uma multidão de homens é transformada em uma pessoa quando é representada por um só homem ou pessoa, de maneira a que tal seja feito com o consentimento de cada um dos que constituem essa multidão. Porque é a unidade do representante, e não a unidade do representado, que faz que a pessoa seja una. E é o representante o portador da pessoa, e só de uma pessoa. Esta é a única maneira como é possível entender a unidade de uma multidão (HOBBES, 2006, pg. 58).

Agora o homem passa a viver em sociedade, o direito natural se estabelece com regras e se torna direito positivo, necessário e inquestionável. O soberano é aquele que detém todo o poder e tem o direito do uso da força e da violência como instrumentos do poder mantenedor da organização social. Poder este que foi estabelecido através de um pacto, ou seja, o poder é consentido por aqueles que se submetem. O governo é soberano e deve organizar as instituições segundo seus critérios.

O homem continua sedento de desejo pelo poder, apenas abre mão por uma questão de segurança, mas sempre que pode e quando a circunstância lhe permite, faz uso de seu poder pessoal, seja subjugando outros menos favorecidos, seja com a intenção de conquistar adeptos à sua causa ou apreciadores à sua personalidade. Desde da mais tenra idade, podemos perceber esse jogo de poder e os conflitos de interesse, o mais frágil cederá, e o mais forte terá seus desejos satisfeitos. “Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte. ” (HOBBES, 2006 pg. 37). Enfim, essa é a estrutura do pensamento hobessiano que consideramos que influenciou diretamente os escritos de Machado de Assis. Dessa forma, no próximo capítulo, iremos relatar o pensamento machadiano afim de, ao final, relacionar as duas teorias.

Não pare agora... Tem mais depois da publicidade ;)

5. Capítulo 4

5.1. Machado de Assis

Joaquim Maria Machado de Assis faleceu aos 69 anos, no dia 29 de setembro de 1908, na cidade do Rio de Janeiro cidade onde nasceu em 21 de junho de 1839. Ao longo de sua existência enfrentou muitas adversidades, a começar por sua etnia. Machado era mulato vivendo em uma sociedade escravista, logo, sofreu as adversidades daquele momento. Seu pai, Francisco José de Assis, descendente de escravos alforriados, era pintor e dourador, sua mãe Maria Leopoldina Machado de Assis, era lavadeira. Vivenciou o preconceito racial e todas as dificuldades advindas dele.

Quiçá por isso, tenha elaborado a filosofia Humanitista de Quincas Borba, onde procura defender a tese de que todo ser humano é egoísta e pragmático, ou seja, não sente tristeza pela derrota dos outros. Ao contrário, sente prazer em sair vitorioso, ao longo de sua existência sente mais prazer em ajudar o outro do que por esse ser ajudado, não por altruísmo utilitarista, mas porque ao ajudar o outro pode salientar para si mesmo tudo o que possui a mais do que o outro, sendo tanto bens materiais, quanto capacidades e habilidades individuais.

Podemos entrelaçar as histórias de vida de Thomas Hobbes com a de Machado de Assis e até tecer a hipótese de que o meio social e histórico vivenciado por eles influenciou de forma decisiva o ponto de vista sobre si mesmo e sobre os seres humanos, bem como determinou a identidade literária e filosófica contida em seus textos. Tanto Hobbes quanto Machado de Assis perderam seus pais muito cedo e foram influenciadas por outras figuras masculinas, que podem ter ajudado na formação de um caráter introspectivo e reflexivo, fator que leva o ser humano a ser mais crítico consigo mesmo e com os indivíduos que compartilham de sua existência.

Assim como Hobbes, Machado de Assis ficou órfão dos pais muito cedo e acabou sendo educado por sua madrasta, Maria Inês. Ainda na infância apresentou sintomas de gagueira e epilepsia, que o acompanharam durante toda a sua vida, o que pode ter sido causa de sua timidez, tornando-o reservado. Sem condições financeiras, estudou os anos iniciais em uma escola pública, graças ao amigo Silveira Sarmento pode receber gratuitamente aulas de francês e latim. Impossibilitado por questões financeiras e de saúde, não pode frequentar a escola regular, tornando-se um autodidata.

Sobre a vida de Machado de Assis Petrônio (2008) destaca:

“Na vida pessoal, Machado de Assis teve uma série de problemas. Era gago, epilético, neto de escravos alforriados, filho de pai mulato em uma sociedade escravista e vindo de extração humilde, em um mundo cada vez mais capitalista e liberal.” (p. 235)

Hobbes e Machado compartilham entre si o fado de uma infância e adolescência repleta de desafios emocionais: a perda dos pais, a adaptação à madrasta (no caso de Machado), a falta do pai (no caso de Hobbes), um verdadeiro turbilhão de dificuldades que poderia muito bem ter encaminhado ambos para outro estilo de vida, causando depressão, angústia e ansiedade, mas que, no entanto, serviu de mola propulsora para alavancar sua existência, promovendo reflexões múltiplas que englobam a existência humana no mundo em suas mais diferentes vertentes e facetas, fazendo-os questionadores das relações humanas e promovendo reflexões filosóficas que permeiam a vida social e cultural dos indivíduos tanto em sua época histórica quanto hoje e com certeza continuará em épocas vindouras, o que torna suas obras atemporais

Na época de Machado de Assis o Brasil tinha como base de sua economia o setor agrário, com ênfase para o cultivo da cana-de-açúcar e do café. Os latifundiários tinham em suas mãos o poder econômico e político. A pouco tempo havia sido criado o Banco do Brasil, a 12 de outubro de 1808, no Rio de Janeiro, nesta época de efervescência de inovações tecnológicas por todo o mundo, podemos destacar a inauguração da primeira estrada de ferro, do telégrafo e o aparecimento da luz elétrica, que só viria a se tornar possível em larga escala no próximo século, com os avanços e invenções de Tesla e Thomas Edison. A estrutura social também passava por transformações drásticas, a introdução de imigrantes italianos, a Abolição da Escravatura, a expulsão dos maçons da irmandade religiosa da Igreja e a Guerra do Paraguai, culminaram em um novo cenário político: a República.

O que se pode observar é que em meio a uma sociedade extremamente desigual, marcada por divisões sociais bem rígidas, o indivíduo nasce com seu futuro social, de certa maneira, determinado por sua origem, etnia, possibilidade de escolarização, etc. Deve implementar uma luta diária. Não foi diferente com Machado de Assis, menino nascido pobre, desejoso de vivenciar o mundo intelectual da corte. À época de Machado a efervescência social acontecia nos chiques cafés da Rua do Ouvidor, onde a elite branca carioca se divertia, exibindo suas roupas e ideias importadas da Europa. É fácil imaginar o quanto seria difícil para Machado de Assis firmar-se como um intelectual nesse contexto, principalmente tendo em perspectiva as teorias racistas que se espalhavam pelo século XIX, onde se sustentava a ideia de superioridade natural e intelectual dos brancos sobre os negros, índios e mestiços. Vale lembrar que Machado era mulato e pobre.

De acordo com Facioli (1982, p.17 apud Jean-Michel Massa):

“Já não se tratava mais da chácara do Livramento ou do Engenho Novo, onde vivia seu pai. Lá o ritmo de via era diferente, raras as visitas, inexistentes a vida intelectual ou quase inexistente. Machado de Assis não descobria a cidade do alto ou de longe, mas lá passava as horas do seu tempo, sua jornada de trabalho. Ainda que se ignore a exata natureza de sua atividade, parece que verossímil que a publicação dos seus primeiros poemas (no começo de 1855) corresponde justamente à sua vinda para a cidade, para exercer uma ocupação remunerada”. (p.17).

Com uma disposição ferrenha, uma força de vontade hercúlea e um senso irônico diante das adversidades da existência humana, e possuidor de um talento cunhado no esforço e na paixão por livros, pela arte literária, tanto nacional quanto europeia, fez-se a ascensão intelectual, muitos diriam que rápida, aos 16 anos, em 1855 publica o primeiro de seus poemas “A palmeira”, onde reconhece e deixa transparecer a dificuldade e os rigores de uma sociedade de classes:

“Tenho a fronte amortecida

Do pesar acabrunhada!

Sigo os rigores da sorte

Nesta vida amargurada.”

O poema foi publicado na editora Marmota Fluminense, local onde Machado de Assis passou a trabalhar aos dezesseis anos, como aprendiz de tipógrafo, entrou na Imprensa Nacional, devido ao seu grande interesse e empenho, ao completar 18 anos passou a fazer parte do quadro de funcionários da Editora de Francisco de Paula Brito e escreveu seus primeiros poemas, editando-os na revista A Marmota. Faciolo (1982) destaca que: O círculo de amigos ampliava-se e incluía boa parte dos colaboradores da Marmota Fluminense”. (p.17). Pouco tempo depois passa a trabalhar na redação do Correio Mercantil, onde teve a possibilidade de conhecer e manter contato com os poetas e prosaístas românticos: Casimiro de Abreu, Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida, Pedro Luís e Quintino Bocaiuva. Quintino, em 1860, convida Machado de Assis para trabalhar no Diário do Rio de Janeiro, onde seria o resenhista dos debates do Senado, como destaca Bosi (2017, p.184).

A partir daí suas poesias foram publicadas também em outros jornais e sua carreira começou a deslanchar, Machado deixou para trás a vida do subúrbio e adentrando a intelectualidade da elite carioca, frequentando a corte e conhecendo mais pessoas influentes.

No caso de Machado de Assis o amor não lhe foi indiferente, além do amor à literatura que o consagrou como um dos melhores escritores do Brasil, Machado encontrou sua alma gêmea na pessoa de Carolina Novais, moça de origem portuguesa, erradicada no Brasil, o romancista irônico, tímido se viu apaixonado por uma mulher mais velha e rendeu-se de forma plena e total, como não poderia deixar de ser, posto que faz parte do estado de natureza de todo ser humano e enlevado pelo amor Machado confessa:

(...) tu não te pareces nada com as mulheres vulgares que tenho conhecido. Espírito e coração como os teus são prendas raras; alma tão boa e tão elevada, sensibilidade tão melindrosa, razão tão reta não são bens que a natureza espalhasse às mãos cheias pelo teu sexo. Tu pertences ao pequeno número de mulheres que ainda sabem amar, sentir e pensar. Como te não amaria eu? Além disso tens para mim um dote que realça os mais: sofreste.
(...) A responsabilidade de fazer-te feliz é decerto melindrosa; mas eu aceito-a com alegria, e estou que saberei desempenhar este agradável encargo. (NOVA ESCOLA).

Para deleite de ambos com o amor foi correspondido o enlace matrimonial aconteceu a 12 de novembro de 1869. Após 35 anos de vida conjugal sua amada imortal chega enfim ao “eterno aposento”, é o ano de 1904 e Machado de Assis viu seu mundo ruir, e declarou: “Foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou só no mundo (...)” (ARANHA, 2003, p.79.). Somente a literatura e o conforto de amigos através de cartas deram alento à sua dor, mantendo-o vivo por mais quatro anos.

Em 29 de setembro 1908 após publicar seu último romance, Memorial de Aires encontra a morada eterna, ou como ele dizia “o eterno aposento”.

Feita as devidas apresentações biográficas de Machado de Assis, vejamos como há uma relação direta entre os escritos machadianos e a filosofia de Thomas Hobbes.

6. Capítulo 5

6.1. A filosofia de Thomas Hobbes na obra de Machado de Assis

É importante ressaltar que o panorama político, econômico e social do Brasil machadiano não apresenta grande diferenciação do de Hobbes, poucos detém o poder de decisão política, a maioria da população é analfabeta e vê seu mundo social ser definido e direcionado pelos detentores do poder político e econômico.

Machado de Assis em suas crônicas, romances e poemas denunciava em tom irônico e mordaz esse entranhado universo de relações sociais, permeado pelo egoísmo e pela ganância do ser humano, o que nos leva a admitir o contato com as obras de Hobbes, amante que era dos pensadores europeus. Para dar uma ideia geral de sua ironia e de como Machado estava atento às questões sociais, observemos sua crônica 19 de maio de 1888, publicada após a assinatura da Lei Áurea, a crônica foi primeiramente publicada no jornal Gazeta de Notícias.

[...]No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as ideias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado. [...] Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.

Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre. (BOSI, 1982, p. 107).

Machado descreve acima a ação humana despida dos trajes da tão proclamada civilização, a ação em estado bruto e brutal, onde prevalece as regras do vencedor. É interessante até mesmo a percepção de que um mesmo ser humano pode ser tranquilo e sereno na vida privada e mordaz e irônico em suas criações artísticas, que têm como finalidade demonstrar o lado vil e pragmático do ser humano, podemos dizer o ser humano em estado de natureza, onde o que prevalece acima de tudo é a sobrevivência do mais forte sobre o mais fraco. Aranha (2014) ressalta:

“Por isso, a leitura da obra ficcional de Machado de Assis, especialmente quando feita por especialista concentrado em sua análise, ordinariamente provoca esta indagação: como puderam conviver no mesmo indivíduo o cidadão comum, tímido, cordial e ordeiro diante das convenções sociais, e o escritor que, sem ruído nem gestos eloquentes de denúncia, surpreendia e expunha a face sórdida do ser humano na encenação banal da vida cotidiana? ”. (p.16)

Interligando à filosofia de Hobbes, podemos reafirmar a partir da crônica que o homem é o lobo do homem, o que importa é defender com unhas e dentes os membros de sua própria matilha, ainda que para isso a eliminação do outro, ou sua humilhação seja necessária. É o que nos mostra novamente Machado em sua crônica Pai contra mãe, Cândido Neves viverá de recompensas e gratificações, caçando escravos fugidos, quando sua esposa Clara engravida, Cândido sem uma profissão fixa e remunerada não tem condições financeiras de sustentar o rebento, aconselhado pela tia de Clara Cândido está pronto para colocar o menino na roda dos enjeitados, quando agarra a oportunidade de ganhar cem mil réis pela captura de uma escrava fugida. Cândido apanha a escrava, essa lhe pede que não lhe devolva ao dono pois está grávida, “-Estou grávida, meu senhor! Exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte” (BOSI, 1982, p. 205), sua suplica não é ouvida, afinal Cândido quer ter o direito de criar sua prole, arrasta a escrava até a casa de seu Senhor e dono.

“Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinquenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou. [...] Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. -Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração. ” (BOSI, 1982, p.205).

Também na obra A mão e a luva ambição e egoísmo humano se faz presente, Guiomar é fria e calculista, tinha uma madrinha rica que a queria como a uma filha e segundo o narrador: “Guiomar correspondia aos sentimentos daquela segunda mãe; havia talvez em seu afeto, aliás sincero, um tal encarecimento que podia parecer simulação. O afeto era espontâneo; o encarecimento é que seria voluntário”. (ASSIS, p. 15). Guiomar foi morar com a madrinha, e como afirma o narrador:

“Ao mesmo tempo que ia provando os sentimentos de seu coração, revelava a moça, não menos, a plena harmonia de seus instintos com a sociedade em que entrara. A educação, que nos últimos tempos recebera, fez muito, mas não fez tudo. A natureza incumbira-se de completar a obra,- melhor diremos, começá-la. Ninguém adivinharia nas maneiras finamente elegantes daquela moça, a origem mediana que ela tivera; a borboleta fazia esquecer a crisálida.” (ASSIS, p. 16).

Guiomar segue em frente com sua ambição e pretende obter um bom casamento, conquista Jorge, sobrinho de sua madrinha.

“Guiomar amava deveras. Mas até que ponto era involuntário aquele sentimento? Era-o até o ponto de lhe não desbotar à nossa heroína a castidade do coração, de lhe não diminuirmos a força de suas faculdades afetivas. Até aí só; daí por diante entrava a fria eleição do espírito” (ASSIS, p. 45).

E em um comentário no estilo de Hobbes o narrador assegura: “A vontade e a ambição, quando verdadeiramente dominam, podem lutar com outros sentimentos, mas hão de sempre vencer, porque elas são as armas do forte, e a vitória é dos fortes.”. (ASSIS, p.51).

Em outro romance Helena, a protagonista Helena para subir de classe social será capaz de abandonar o próprio pai e ir morar com a família do amante de sua mãe, após este expressar no testamento que era desejo seu que a recebessem como a uma filha e irmã. Helena astuciosa nada conta à nova família, deixa-os acreditarem que era filha do comendador, e às escondidas fazia visitas ao verdadeiro pai.

Em Iaiá Garcia, Machado escreveu: “Há duas naturezas, e a natureza social é tão legítima e tão imperiosa como a outra. Não se contrariam, completam-se; são as duas metades do homem. (ASSIS, p. 25).

Machado de Assis com seus romances acabou por revelar que a ambição humana leva o indivíduo a triunfar socialmente, enquanto que a ingenuidade e delicadeza levam-no à morte. É assim que Guiomar e Iaiá Garcia, ambas ambiciosas, capazes de sacrificar a madrasta, triunfam, enquanto que Helena, apesar de calculista, é delicada, se apaixona pelo pseudo-irmão, passa a amar a família deste e acaba por morrer de amor.

Em suas obras Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, Machado de Assis revelará o princípio da filosofia Humanitista:

ESTE QUINCAS BORBA, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência, que ali aparece, mendigo, herdeiro inopinado, e inventor de uma filosofia” (ASSIS, 1994. pg. 3).

A Filosofia referida acima é justamente a que nos interessa, a saber, a Filosofia Humanitista de Quincas Borba, que muito tem em comum com a filosofia hobbesiana, por trazer à tona os aspectos mais sórdidos da natureza humana.

Quincas Borba, personagem machadiana, em diálogo com Brás Cubas no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, revela a condição da natureza:

“Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal” (ASSIS, 1994, p.11).

Na literatura machadiana vemos desfilar um número de personas que primam por defender seus interesses próprios, ainda que ao fazê-lo acabam por prejudicar outros indivíduos ao longo do caminho. Como em uma guerra de todos contra todos, os tipos humanos surgem, carregados de certo pessimismo e ironia, mostrando de forma nua e crua a natureza humana.

"Para Magalhães Azeredo, autor de uma longa crítica publicada em O Estado de S. Paulo, o Humanitismo ditou que ―todas as complicações se resolvem pela regra de Hobbes: o mais forte devora o mais fraco; logo, a maior felicidade é ser forte, descender do peito ou dos rins de Humanitas; a única desgraça é não ter nascido” (GUIMARÃES, 2012 p. 356 Apud SILVA, 2017 p. 154).

Podemos entender essa temática a partir da crônica Pai contra mãe acima citada, Cândido Neves fica feliz com sua vitória, ainda que tenha causado dor e sofrimento a outro ser humano, levando inclusive à morte um ser indefeso antes mesmo deste ter a oportunidade de vivenciar o mundo. No Humanitismo não existe o indivíduo, existe o todo, a sobrevivência da espécie é o que importa.

A primeira vez que Machado de Assis expôs a filosofia Humanistista foi em seu romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881, quando Brás Cubas reencontra Quincas Borba, um antigo colega do tempo de colégio, agora um mendigo, Brás Cubas lhe oferece emprego, Quincas desdenha, na despedida Quincas rouba o relógio de Brás Cubas, tempos depois ao receber uma pequena herança de um tio, Quincas consegue se restabelecer na corte e envia uma carta devolvendo um outro relógio como pagamento por aquele que havia roubado, dias depois ao se encontrar pessoalmente com Brás Cubas inicia a explicitação de sua filosofia:

“Humanitas, dizia ele, o princípio das coisas, não é outro senão o mesmo homem repartido por todos os homens. Conta três fases Humanitas: a estática, anterior a toda a criação; a expansiva, começo das coisas; a dispersiva, aparecimento do homem; e contará mais uma, a contrativa absorção do homem e das coisas. A expansão, iniciando o universo, sugeriu a Humanitas o desejo de o gozar, e daí a dispersão, que não é mais do que a multiplicação personificada da substância original”. (ASSIS, 1994, p. 116).

É interessante perceber Humanitas como um único organismo, bem próximo da imagem de Hobbes para o Leviatã, “Sendo cada homem uma redução de Humanitas, é claro que nenhum homem é fundamentalmente oposto a outro homem, quaisquer que sejam as aparências contrárias.” (ASSIS, 1994, p. 116). O importa é a continuidade da existência. Comparemos a definição de Humanitas com os escritos de Hobbes no Leviatã:

“A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele”. (HOBBES, 2006, pg. 45).

Há que se admitir que são bem próximas. Quincas continua sua explicação demonstrando como vivemos o tempo todo dependendo da ação de outros seres humanos, e ressalta o fato de que a destruição de um é fator decisivo para o sustento e sobrevivência do outro:

“Mas eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema, senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou doze homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao meu apetite.” (ASSIS, 1994, p. 117). 

Em sua obra Hobbes destaca que o homem abre mão de sua liberdade pela garantida de segurança que lhe assegura a vida, e dá ao Estado poder de decisão, entregando-se de forma total às decisões tomadas por este:

“Porque é a unidade do representante, e não a unidade do representado, que faz que a pessoa seja una. E é o representante o portador da pessoa, e só de uma pessoa. Esta é a única maneira como é possível entender a unidade de uma multidão”. (HOBBES, 2006, pg. 58).

A filosofia Humanitista destaca, de certa forma, esta mesma ideia central:

“porque sendo Humanitas a substância criadora e absoluta, cada indivíduo deveria achar a maior delícia do mundo em sacrificar-se ao princípio de que descende; 2o porque, ainda assim, não diminuiria o poder espiritual do homem sobre a terra.” (ASSIS, 1994, p. 118).

Outras proximidades entre as obras podem ser estabelecidas, como no caso da descrição de Hobbes para o Estado, conforme Silva (2017) destaca:

“Segundo Hobbes, a sociedade ou Estado é um corpo artificial complexo; ele usa a metáfora do Leviatã, monstro marinho citado na Bíblia, um gigante coroado e com o corpo formado por milhares de homenzinhos. Com a mão direita, o monstro segura uma espada, simbolizando o poder temporal, e com a direita, uma cruz episcopal, símbolo do poder espiritual. Tal figura é bem semelhante à descrição de Humanitas no capítulo CXVII de Memórias Póstumas: a distribuição dos homens conforme as diferentes partes do corpo de Humanitas, seguindo para tanto a “grande lei do valor pessoal”. Assim, “descender do peito ou dos rins de Humanitas [...] é ser um forte”, o que é diferente de “descender dos cabelos ou da ponta do nariz” (ASSIS, 1997, p. 158 Apud Silva, p. 155).

Já na obra Quincas Borba publicada primeiramente em forma de folhetim na revista “A Estação”, entre junho de 1886 e setembro de 1891, a versão em livro seria publicada pela primeira vez somente em 1891, o romance tem como tela de fundo o período de nascimento e início do crescimento do capitalismo, e com ele o aumento da ambição humana e das diferenças e desigualdades sociais entre os indivíduos, extremamente entrelaçadas com o fator econômico e social, a trama faz-se em meio a uma sociedade onde os indivíduos são analisados conforme seu poder aquisitivo e posse de bens materiais. Prevalecendo a lei do mais forte como algo indestrutível, inerente ao ser humano, Quincas expõe que “esse princípio indestrutível é que é Humanitas. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o homem”, não o homem singular que pode ser exterminado, mas o organismo que permanece através da reprodução e perpetuação da espécie, como bem explica Quincas:

“Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.” (ASSIS, 1994, p.6-7)

Uma guerra de todos contra todos, onde o mais apto vence. Não há remorsos, não há tristeza. Há somente a vitória e a garantia da continuidade da espécie, de Humanitas. Rubião questiona sobre o extermínio, mas Quincas garante que somente o singular desaparece, a totalidade da forma permanecerá. Como as garantias do contrato social, onde o grande corpo que é o Estado, garantirá a sobrevivência, porque afinal de contas os indivíduos são apenas bolhas transitórias, e o que deve prevalecer é a sociedade. “Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias. ” (ASSIS, 1994, p.7).

Vale ressaltar que Rubião no início fica não compreende e fica indignado com tal filosofia, mas que após receber a herança e retornar para casa com o cão, Rubião se recorda da explicação do amigo sobre o que seria Humanitas, e agora de posse de uma fortuna, começa a ver sentido na filosofia do amigo:

“Tão simples! tão claro! Olhou para as calças de brim surrado e o rodaque cerzido, e notou que até há pouco fora, por assim dizer, um exterminado, uma bolha; mas que ora não, era um vencedor. Não havia dúvida; as batatas fizeram-se para a tribo que elimina a outra, a fim de transpor a montanha e ir às batatas do outro lado. Justamente o seu caso. Ia descer de Barbacena para arrancar e comer as batatas da capital. Cumpria-lhe ser duro e implacável, era poderoso e forte” (ASSIS, 1994, pg.16)

Porém Rubião não terá a força necessária e será enganado por Sofia e Palha, estes sim poderíamos dizer que descendem do peito de Humanitas, e como disse Brás Cubas: “Tão certo é que a paisagem depende do ponto de vista, e que o melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão” (ASSIS, 1994, p. 16).

7. CONCLUSÃO

As pesquisas para a elaboração desse trabalho proporcionaram a aquisição de conhecimento tanto na área da filosofia política, quanto na compreensão desta interligada à produção literária das obras de Machado de Assis.

A proposta de interligar de forma específica a filosofia de Thomas Hobbes às obras do autor brasileiro Machado de Assis, estabelecendo uma analogia entre a obra Leviatã com a filosofia Humanitista da personagem Quincas Borba enriqueceu o cabedal cultural e fez desvelar de que maneira o contexto histórico e social, bem como o contato com obras de outros autores, interfere e molda a maneira de ser e estar no mundo, promovendo alterações importantes no desenvolvimento de capacidades e habilidades tanto individuais quanto coletivas, posto que um indivíduo não vive sozinho, entra em contato direto com outros através das relações sociais, recebe influência e influencia a sociedade, em sua época e em épocas que entram em contato direto ou indireto com suas linhas de pensamento.

8. Referências

ARANHA, Graça (org.). Correspondência Machado de Assis & Joaquim Nabuco.Disponível em: . Acesso: 10 out. 2018.

ASSIS, Machado de. A mão e a luva. Domínio público. Disponível em: < http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000027.pdf>. Acesso: 13 out 2018.

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Obra Completa. vol. I, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro. Disponível em: . Acesso: 15 jun 2018.

ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia. Domínio público. Disponível em: < http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000205.pdf>. Acesso: 13 out 2018.

ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Obra Completa. vol. I, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro. Disponível em: . Acesso: 15 jun 2018.

ASSIS, Machado de. Relíquias de Casa Velha. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1906. Disponível em: . Acesso em: 03 set. 2018.

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 51. ed. - São Paulo: Cultrix, 2017.

BOSI, Alfredo... et al. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982.

CASTANHARO, Stella Titotto. As faces do Rei: Henrique VIII e suas representações histórica e audiovisual. 2011. 91 f. Monografia. Universidade Federal do Paraná. Curitiba-PR. Disponível em: . Acesso: 06 out 2018.

COSTA, Fernandes, Daniel. A política externa da Inglaterra: análise histórica e orientações perenes. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011. 136 p. Disponível em: . Acesso: 09 jul 2018.

FACIOLO, Valentim. Várias histórias para um homem célebre. In. BOSI, Alfredo... et al. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982.

FRAZÃO, Dilva. Biografia de Thomas Hobbes. Disponível em: < https://www.ebiografia.com/thomas_hobbes/>. Acesso: 10 ago 2018.

GUEDES, Maria Helena. A Nova Inglaterra!. Clube de Autores: 2015.

HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo: Martin Claret, 2006

HOBBES, Thomas. O Leviathan - Disponível em: . Acesso: 08 jun 2018.

HUME, David. História da Inglaterra - Da invasão de Júlio César à Revolução e 16882ª ed. São Paulo: UNESP, 2017.

MAUROIS, André. História da InglaterraSão Paulo: Flamboyant, 1966

MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Machado de Assis - Estudo crítico e biográfico - Brasiliana eletrônica. Disponível em: . Acesso: 28 ago 2018.

NOVA ESCOLA. Machado de Assis – Minha Querida C. Disponível em: . Acesso: 10 out 2018.

PERRY, Anderson. Linhagens do Estado Absolutista - São Paulo: Brasiliense, 2004.

PETRONIO, Rodrigo. Diários de um clássico, contextualização histórica e suplemento de atividades. In. ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Saraiva, 2008.

PÓLVORA, Hélio. Graciliano, Machado, Drummond e outros - São Paulo: Francisco Alves, 1975.

REALE, Miguel. A filosofia na obra de Machado de Assis - Disponível em: . Acesso: 15 ago 2018.

RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes, o medo e a esperança. In. WEFFORT, Francisco C. (org.). Os clássicos da política, 1. - 14.ed. – São Paulo: Ática, 2011.

SCARAMAL, Angela Aparecida. O início da era contratualista: Thomas Hobbes, pensamentos, ideias e leis de uma sociedade com homens cumpridores de pactos celebrados. Disponível em: . Acesso: 06 out 2018.

SERIACOPI, Gislane Campos Azevedo. História: volume único. São Paulo: Ática, 2005.

SILVA, Hélio Alexandre da. As paixões humanas em Thomas Hobbes: entre a ciência e a moral, o medo e a esperança – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. Disponível em: . Acesso: 21 jul 2018.

SILVA, Laila T. Correia e. A política imperial em Quincas Borba : um diálogo entre a história e a literatura. Disponível em: . Acesso: 11 out 2018.

SOMERVELL, David. Pequena história da Inglaterra. Editorial “Inquérito” Ltda. Lisboa. Disponível em: . Acesso em: 09 out. 2018.

TRINDADE NETO, João Alberto da. Thomas Hobbes: jusnaturalista ou juspositivista? – elementos de ambas as doutrinas na filosofia. Monografia. UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA. CAMPUS DE CAMPINA GRANDE. 2011. Disponível em: < http://dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/bitstream/123456789/6247/1/PDF%20-%20Jo%C3%A3o%20Alberto%20da%20Trindade%20Neto.pdf>. Acesso: 13 jun 2018.

WEFFORT, Francisco C. (org.). Os clássicos da política, 1. - 14.ed. – São Paulo: Ática, 2011.  


Publicado por: Lúcia Helena Albino Pereira

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Monografias. O Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor. Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: http://www.brasilescola.com.

Fonte: https://monografias.brasilescola.uol.com.br/filosofia/a-filosofia-de-thomas-hobbes-na-obra-de-machado-de-assis.htm

Nenhum comentário:

Postar um comentário