MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964

MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964
Avião que passou no dia 31 de março de 2014 pela orla carioca, com a seguinte mensagem: "PARABÉNS MILITARES: 31/MARÇO/64. GRAÇAS A VOCÊS, O BRASIL NÃO É CUBA." Clique na imagem para abrir MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Castello Branco, o reformador - por General Raymundo Negrão Torres

Castello Branco, o reformador

por Raymundo Negrão Torres (*) em 06 de outubro de 2005

Resumo: Como um herói de Carlyle, Castello Branco iluminou sua época.

© 2005 MidiaSemMascara.org

O governo Lula ergueu como uma de suas metas a concretização de reformas sem as quais, acredita, não poderá traduzir em resultados aquilo que justificaria a esperança que tantos brasileiros depositaram nas urnas em outubro de 2002. Seu empenho faz lembrar as tais “reformas de base”, com que Jango Goulart pretendia pavimentar o caminho para a sonhada “República Sindicalista”. Alguns saudosistas ainda suspiram por elas e culpam os militares de as terem impedido com seu “golpe”, embora muitos não sejam capazes de dizer em que consistiam tais reformas, de um tempo que uma testemunha ocular descrevia como “de uma inflação violenta, reprimida pelo controle de preços; um balanço de pagamentos deficitário, com taxas cambiais supervalorizadas e o resultante desmantelamento do crédito externo; um sistema fiscal obsoleto, gerando déficits orçamentários crônicos, mas com múltiplos mecanismos de sonegação e evasão; reajustes salariais desordenados, incentivados pelo próprio governo federal, com inflação de custos e mutilação da capacidade de poupança e um mercado financeiro decadente”.

Para enfrentar essa calamitosa situação acenava-se com uma reforma agrária, pregada por um presidente latifundiário, “na lei ou na marra”, que muito faz lembrar as tropelias de hoje do MST. Como medidas concretas, havia a proposta de emenda constitucional, rejeitada pelo Congresso, abolindo preceito da Carta de 1946 que determinava o pagamento das desapropriações em dinheiro e o decreto assinado com estardalhaço no famoso comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964 que desapropriava uma faixa de terras de dez quilômetros ao longo de cada lado das rodovias federais e em torno dos açudes construídos pela União. Congelamento de aluguéis como preâmbulo da reforma urbana e a nacionalização do sistema bancário eram outros itens das apregoadas reformas. Ora, tais reformas exigem compromisso, competência, consenso e continuidade, coisas que faltavam na época.

Durante muito tempo os adversários do regime implantado a partir de 1964, por razões políticas, negaram qualquer virtude ao que tenha sido feito. Ainda hoje se atribui aos militares culpa pela crise atual. Na verdade, muitas das razões da continuidade dessa crise deve-se à vesguice política dos que, por estéril revanchismo, deixaram de aproveitar muitas das medidas saudáveis adotadas pelos governos presididos pelos generais. Mas, aos poucos, a verdade histórica irá aparecendo e a justiça, embora relutante e tardia, acabará sendo feita.

É o que já ocorreu quando da passagem de um dos aniversários da trágica morte do ex-presidente Castello Branco. Sua obra de “autocrata relutante e de modernizador entusiasta” foi relembrada e muitos brasileiros que não viveram os três anos de seu auto-limitado mandato puderam conhecer o quanto semeou aquele estadista cujo trabalho já é tempo de se estudar e repensar.

Como disse, em excelente artigo, um de seus mais diretos e eficientes colaboradores, o ex-ministro Roberto Campos, embora lento na manobra tática, Castelo era um soberbo estrategista. Vale dizer, era um grande estadista, desses que hoje nos fazem muita falta, pela acuidade administrativa e pela coragem para enfrentar as críticas em tempos difíceis de governar. Embora o ideário inicial do movimento revolucionário que o levou à presidência da República tivesse sido o combate à subversão e à corrupção, Castello Branco desenvolveu e procurou implantar um projeto econômico, um projeto social e um projeto político.

Destes, o mais rápido e mais visível foi o de modernização econômica. Tendo herdado de antecessores gastadores e meros tocadores de obras um herança de contas a pagar, Castello Branco reformou e modernizou toda a base institucional da economia. O Novo Código Tributário, o Estatuto da Terra, a criação do Banco Central, a Lei do Mercado de Capitais, o Código de Minas e a revisão da legislação sobre a energia elétrica foram feitos com surpreendente rapidez e grande apreensão para muitos privilegiados.

Apesar da acusação de indiferença social, arrocho salarial e práticas dolorosas para o combate à inflação, sustentada durante décadas pelos economistas de esquerda e pelos sociólogos - inclusive o risonho FHC que num rasgo de despeito, finge ignorar o que se fez de bom 1 -, a verdade é que o projeto social de Castello teria evitado o que vemos hoje: a economia patinando entre a recessão e índices medíocres de desenvolvimento, o mais longo e mais grave período de desemprego de nossa História, queda violenta do salário real e pior distribuição de renda. A “democratização das oportunidades” seria obtida através do acesso à habitação com o BNH, do acesso à terra com o Estatuto da Terra, do acesso à educação com o salário-educação, as bolsas de estudo administradas pelos sindicatos, ensino público e gratuito dos 7 aos 14 anos e pago nos níveis superiores, pelos que o pudessem fazer. Infelizmente, essas medidas na área de educação, previstas na Constituição de 1967, não tiveram continuidade.

Ainda na área social, Castelo entendeu de criar “um novo trabalhismo” onde, ao invés de aumentos nominais de salários, procurar-se-ia dar salários indiretos, representados pelas cooperativas de habitação, bolsas de estudos, crédito para bens duráveis e uma política salarial que defendia as categorias menos organizadas contra a “aristocracia do proletariado” que até hoje domina os sindicatos mais politizados e os das estatais. Por fim, instituiu o FGTS, libertando o trabalhador da sujeição a uma empresa na expectativa de uma estabilidade nunca alcançada.

No projeto político, apesar do contratempo do AI-2 - que teve que aceitar e que jogou por terra sua idéia de uma sucessão civil - Castello Branco teve êxito na reforma das leis partidárias e do Código Eleitoral, e na retomada do Estado de Direito, com a Constituição de 1967, votada pelo Congresso e apontada por muitos como a melhor Carta que já tivemos.

Do extenso programa reformista de Castello Branco, a parte mais trabalhosa e a mais frustrante no longo prazo foi a reforma agrária, idealizada por meio do Estatuto da Terra.

Embora tido e havido como um país essencialmente agrícola, o Brasil durante decênios importara-se apenas com as grandes lavouras destinadas à exportação. A preocupação com a possibilidade de uma reforma agrária demagógica, os desestímulos gerados por uma política de preços desastrosa e a ausência de novas e melhores técnicas levaram ao descuido e ao descaso com a agricultura de subsistência o que ocasionara, desde o governo JK, o deprimente espetáculo das longas filas para a compra de gêneros de primeira necessidade, cuja escassez iria agravar-se na fase final do governo Goulart, quando se pregava a reforma agrária “na lei ou na marra” e se levava o desassossego ao campo. As dificuldades haviam sido grandemente agravadas pelo desemprego na área rural, conseqüente à aplicação da lei que aprovou o Estatuto do Trabalhador Rural, em março de 1962.

Ao assumir o governo, o presidente Castello Branco tinha consciência de que seu compromisso com o bem-estar do país impor-lhe-ia enfrentar esse difícil problema com medidas que não só atenuassem as dificuldades imediatas, mas também lançassem as bases de uma política de longo prazo, com vistas ao desenvolvimento agrário e à elaboração de uma lei de reforma agrária que mudasse as estruturas herdadas dos tempos coloniais e de uma economia escravocrata. E sintetizaria suas idéias com a afirmação de que “ao campo é que tocará alimentar nossa população, nunca às emissões de papel-moeda!”

E ao arregaçar as mangas para essa ingente tarefa julgou de grande valia trazer para o governo o secretário da Agricultura do Estado de São Paulo, o maior produtor agrícola do país. Ledo engano; em pouco tempo teve de substituí-lo, com melhor sorte, pelo professor Hugo de Almeida Leme, diretor da Escola de Agricultura de Piracicaba, um grande conhecedor dos problemas da terra e de seu cultivo. Resolvera-se acabar com o congelamento e com o tabelamento dos preços dos produtos agropecuários, causas de escassez e de câmbio negro, mas que eram medidas altamente impopulares nas cidades, tanto para os consumidores impacientes com a demora de seus efeitos na melhoria do abastecimento e na queda dos preços, como para os atravessadores e especuladores, os maiores beneficiários das filas.

Mas o “carvalho” a ser plantado – sabia-o o presidente – era a Reforma Agrária. E já em 18 de outubro de 1964, assinava mensagem submetendo ao Congresso proposta de emenda constitucional sobre esse tema que tanto agitara o país nos últimos tempos.

Há décadas vinham sendo apresentados projetos e propostas. Entre 1947 e 1962, haviam sido apresentadas 45 projetos de leis sobre reforma agrária, mas nenhuma conseguiu vingar e o debate tornou-se cada vez mais inflamado e radical, apaixonando as facções que representavam os interesses em jogo, cabendo à esquerda transformá-la em bandeira de agitação e de inquietação no campo, com as Ligas Camponesas e os Grupos dos Onze. A invasão de propriedades passou a ser usada como meio de intimidação e de pressão. O governo Goulart aproveitaria tudo isso com objetivos demagógicos. Propõe ao Congresso emenda constitucional excluindo a obrigatoriedade da indenização prévia e em dinheiro nas desapropriações feitas. A emenda é rejeitada e Goulart responde com o chamado “decreto da Supra”2, assinado no famoso comício da Central do Brasil no dia 13 de março de 1964, que desapropriava extensas áreas localizadas dentro da faixa de dez quilômetros ao longo de rodovias, ferrovias e açudes da União e que fossem inexploradas. Poucos dias depois, Goulart era deposto, por essa e muitas outras razões.

Não se passariam dois meses e na primeira reunião do ministério, em 23 de abril, Castello, arrostando a má vontade dos políticos conservadores que apoiaram sua eleição, anunciava a Reforma Agrária preconizada pelo ministro Roberto Campos como uma das bases da política econômica do governo. Uma reforma com enfoque produtivista, não tisnada pelo facciosismo e pela demagogia que levariam, fatalmente, à completa desorganização das atividades agrícolas, fundamentais para as exportações que ainda constituíam uma das bases de nossa economia àquela altura. Mas a busca de uma fórmula de consenso exigiria um paciente trabalho de convencimento para contornar as grandes dificuldades opostas pelos diferentes interesses em jogo, muitos dos quais fortemente representados na base parlamentar de apoio ao governo, principalmente entre os udenistas e pessedistas de São Paulo e Minas Gerais.

Uma das maiores dificuldades era a modificação da norma constitucional que estabelecia o pagamento prévio e em dinheiro da indenização das propriedades desapropriadas para fins de reforma agrária. Outra era a maneira de usar a tributação como alternativa à indesejável expropriação e como forma de forçar o uso social da propriedade. Isto importaria, no primeiro caso, em estabelecer o pagamento em títulos da dívida agrária com cláusula de correção monetária e, no tocante ao imposto, em avocar para o âmbito da União a regulamentação das normas de tributação. Já na fase apenas de redação da emenda constitucional foram grandes as dificuldade a vencer, antes de sua remessa ao Congresso, para – como expresso em sua justificativa – “possibilitar a reforma agrária sem lesão aos princípios fundamentais de ordem jurídica e sem sobressaltos para os sentimentos democráticos da opinião pública e para os interesses legítimos do meio rural”3.

Mas Castello estava convencido da extraordinária importância para o país dessa reforma e à verdadeira tempestade desencadeada pela proposta, responderia incisivo, afirmando que “...a Revolução sempre soube que o gritar intempestivo dos demagogos, ávidos de poder, ocultava a existência de problemática real, representada pela marginalização de milhões de brasileiros”. E a emenda foi aprovada.

Nova batalha seria travada para obter a aprovação do Estatuto da Terra pelo Congresso. Os detratores que ainda hoje pululam na mídia e acusam o movimento de 1964 de ter sido uma ditadura atrabiliária, desmemoriados e falazes, fazem coro à esquerda revanchista e odienta, mas não sabem do que estão falando e, mal intencionados e arrogantes, são incapazes de ir aos anais do Congresso Nacional para conhecer as lições deixadas por aqueles episódios marcantes. Refresco-lhes a memória deformada pela ideologia ou pela estupidez de escribas mal informados.

Nenhum estatuto neste país foi tão exaustiva e democraticamente debatido, examinado e aprovado do que o Estatuto da Terra, herança deixada por um regime que tinha à mão os poderes que lhe conferiam uma revolução vitoriosa, mas que preferiu buscar o convencimento e o consenso. Tendo por base, em grande parte, estudos do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPES), revistos por homens como Mário Henrique Simonsen, Nascimento e Silva, Bulhões Pedreira e J.C. Assis Ribeiro, o trabalho foi elaborado pelo então ministro Roberto Campos que o debateu extensamente com as bancadas dos partidos majoritários, UDN e PSD, com secretários estaduais de Agricultura, com sindicatos rurais etc., eficientemente auxiliado pelo engenheiro Paulo Assis Ribeiro4. A reforma deveria ser democrática, não socialista e confiscatória, gradual, flexível, aproveitar as terras devolutas e respeitar as peculiaridades de cada região, respeitar o direito de propriedade, evitar o minifúndio e combater o latifúndio improdutivo. Em resumo, deveria fomentar a criação de uma classe média rural estável e próspera, mediante o acesso à propriedade da terra e o incremento da produtividade agrícola.5

Só após essa exaustiva discussão, enviou Castello a proposta ao Congresso, pois queria o Estatuto aprovado pelo consenso e não por um ato autoritário. E o projeto foi finalmente aprovado, após difícil tramitação e votação, visto que tinha opositores de peso, como Bilac Pinto, Carlos Lacerda, Severo Gomes 6 Herbert Levy e o jovem economista Defim Neto. Sancionado em 30 de novembro de 1964, o Estatuto da Terra, no dizer de Luís Viana Filho, arrebatava uma das bandeiras mais exploradas pela esquerda, acalmava os impacientes, tranqüilizava os temerosos e tinha os seguintes pontos básicos:

- estabelecer um diagnóstico fidedigno da situação agrária, por um cadastramento geral das terras;

- fixar o pagamento das desapropriações em títulos monetariamente corrigidos;

- utilizar o imposto territorial rural como incentivo à melhor utilização da terra e como punição ao latifúndio improdutivo;

- fixar o valor declarado pelos proprietários, para efeitos fiscais, como base para a estimativa do valor da indenização 7.

Ciente de que tão ou mais importante do que dar terra a quem não a tem é dar incentivos a quem já produz, Castello empenhou-se em uma política de estímulo à produtividade, mediante facilidades de crédito, preços mínimos, assistência técnica e uso de fertilizantes e sementes selecionadas.

Hoje, decorridos quarenta anos daquilo que, no pensar de Castello Branco, poderia ter sido uma verdadeira revolução democrática nos campos, verificamos com pesar que o Estatuto da Terra foi uma das nossas leis que “não pegaram” e a bandeira voltou para as mãos dos agitadores do MST que usam a reforma agrária como pretexto para seus intentos socialistas de tomada do poder.

Por outro lado, em 1964, uma das áreas mais infiltradas pelos comunistas e seus agentes eram os sindicatos, praticamente dominados pelo Partido Comunista. O Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) era a principal central da agitação e tinha em Dante Pelacani seu poderoso secretário-geral, a cujas ordens curvava-se o próprio ministro Amauri Silva que não realizava nenhuma nomeação para cargo de direção sem a aprovação de Pelacani. Este gráfico de profissão julgava-se com tal prestígio que, certa vez, interrompeu uma reunião do presidente Goulart, entrando em mangas de camisa em uma das salas do Palácio do Planalto. Além disso, era Diretor-Geral do Departamento Nacional de Previdência Social e tinha o comando das autarquias previdenciárias e da “pelegada” que as dirigia e as inchava.

Outro comunista, Clodismith Riani, era o presidente do CGT, cargo que acumulava com o de presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria, ao qual fora guindado com o apoio do próprio Goulart. E a lista de comunistas no CGT era longa: Hércules Correia, Benedito Correia, Tenório de Lima, Demístocles Batista, o ex-deputado Roberto Morena e Osvaldo Pacheco, estivador que organizara o Pacto de Unidade e Ação (PUA), reunindo portuários, estivadores, marítimos e ferroviários. Nunca a infiltração e o domínio dos sindicatos e dos órgãos ligados ao Ministério do Trabalho fora tão longe, inclusive com o controle e a manipulação dos dinheiros públicos para fomentar a luta de classes e enriquecer os corruptos que vicejavam à sombra da máquina sindical.

Situação sintetizada pelo dirigente comunista Jacob Gorender à página 71 de seu livro Combate nas Trevas 8, onde assinala:

“Segundo penso, o período 1960-1964 marca o ponto mais alto da luta dos trabalhadores brasileiros neste século, até agora. O auge da luta de classes, em que se pôs em xeque a estabilidade institucional da ordem burguesa sob os aspectos do direito de propriedade e da força coercitiva do Estado. Nos primeiros meses de 1964, esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista definiu-se, por isso mesmo, pelo caráter contra-revolucionário preventivo. A classe dominante e o imperialismo tinham sobradas razões para agir antes que o caldo entornasse”.

Árduo e longo seria, pois, o trabalho para retomar o comando da área trabalhadora e fazê-lo agir em proveito dos operários. As impopulares e austeras medidas de correção da frouxa e demagógica política salarial e de recuperação da economia certamente dificultariam esse objetivo. Já nas comemorações de 1º de maio de 64, em São Paulo, o presidente Castello Branco diria:

“A Revolução não foi feita contra os direitos sociais dos trabalhadores. Pouco importa o que assoalhem os ainda inconformados por haverem perdido os cofres públicos com que levavam vida de nababos com sacrifício dos pobres, numa artificiosa luta de classes. A verdade, porém, é que estamos interessados não apenas em conservar, mas também em aprimorar as normas de proteção aos trabalhadores, promovendo os meios e os instrumentos adequados à sua efetiva aplicação”.

Em outra ocasião diria: “Não desejamos desamparar o operário, mas manter e melhorar os sindicatos, melhorar as condições do trabalho com casa, assistência à saúde e à educação, o direito de greve, a defesa do salário adequado ao trabalho e ao custo de vida e participação nos lucros”.

Poucos eram os que acreditavam nisso e pensavam como os operários da Metalúrgica Independência onde trabalhava o jovem nordestino Luiz Inácio da Silva e que, como ele, confiavam nas mudanças que haveriam de consertar o Brasil9. Na realidade, não eram palavras vazias ou promessas de demagogo e logo se tratou de atacar um dos pontos dessa agenda e que mais de perto falava aos trabalhadores, iludidos pelos pelegos ditos trabalhistas: o direito de greve.

A Constituição de 1946 derrubara um decreto do Estado Novo getulista que não permitia a greve por considerá-la um recurso anti-social, mas, desde então, a regulamentação do dispositivo constitucional que a considerava legítima não fora votada pelo Congresso. Um projeto nesse sentido há muito dormia nas gavetas do Senado e nenhum dos presidentes trabalhistas ou populistas, - inclusive Getulio, de quem Jango fora ministro do Trabalho – e nem os trabalhistas do PTB que deram a vice-presidência de JK e de Jânio ao mesmo Jango, se dispusera a ressuscitá-lo. O direito de greve continuava como letra morta da Constituição. Mas Castello o fez em curto espaço de tempo com a colaboração de Arnaldo Sussekind, seu ministro do Trabalho e mediante lei do Congresso. Em 1º de junho de 1964, ele a sancionou em sessão solene, como sugerira o seu relator na Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães – que depois se transformaria em ferrenho adversário da “ditadura” -, que aconselhara:

“O presidente deverá sancionar o novo Estatuto com solenidade na Hora do Brasil, fazendo resumo do alcance social, humano e cristão da disciplina que somente agora, após 14 anos de tramitação no Congresso e quase 20 anos depois de inscrita na Constituição, as relações do trabalho passam a ter” 10.

O presidente Castello Branco, logo no início de seu governo, sentenciou que “as revoluções não se fazem sem os radicais, mas não se pode governar com eles”. O nosso atual presidente Lula já disse que não imaginava que fosse tão difícil governar o Brasil. É o resultado da experiência nova e de verificar que não se ganha eleições democráticas com os radicais – donos de muitos ímpetos, muitas verdades, mas pobres de votos – e, muito menos, se pode construir com eles. Castello - que sabia e dizia que a resposta para uma esquerda subversiva e radical nunca seria uma direita reacionária - teria que conviver com as duas para levar avante o seu programa de modernização do país e tentar pagar a fatura da imensa “massa falida” que herdara de anos de desordem institucional e populismo demagógico. Em seus mil dias de governo, empenhou-se para evitar que o que poderia ser classificado pelos de fora como uma “quartelada latino-americana” fosse, na realidade, uma revolução modernizadora. Embaraçado por seu arraigado legalismo e horror aos regimes autoritários que costumava caracterizar como caminho para um poder que corrompe e, quando absoluto, corrompe absolutamente, subestimou o tamanho do desafio e superestimou sua capacidade de vencê-lo no pouco tempo que lhe restaria. Ainda assim, pensou ter “endireitado as veredas” o suficiente para que o retorno à normalidade institucional fosse coroado pela legitimidade da eficácia que sancionaria o breve hiato autoritário e nos encaminharia a um aperfeiçoamento democrático, favorecido pelo bem estar econômico e social cujas sementes ia, generosa, penosa, mas decididamente, plantando. Semeou em abundância, em um esforço de modernização da máquina governamental que um de seus mais ferozes críticos - Carlos Lacerda – chamaria injustamente de “fúria legisferante”. O então governador da Guanabara - uma das mais importantes lideranças civis do movimento de março de 64 e sabidamente o preferido de Castello à sucessão – acabaria por virar sua ira panfletária e radical contra o presidente que ajudara a escolher, ao sentir que suas possibilidades de chegar à presidência se iam tornando mais escassas à medida que seu estofo autoritário e destrambelhado ia sendo posto a nu, face aos rumos políticos e econômicos de que discordava. Pensando na próxima eleição, inquietava-se com o paciente trabalho de construção cujos frutos provavelmente não o ajudariam em sua ambiciosa pressa de chegar ao Palácio do Planalto. Ainda mais que esse era, também, o manifesto desejo de tantos políticos da época, todos alinhados com o movimento de 64, inclusive Juscelino Kubstchek.

Tenho neste capítulo tentado mostrar os passos dados pelo presidente Castello e pela eficiente e competente equipe que escolhera, para modernizar o aparelho do Estado e dotar os futuros governantes de ferramentas eficazes para um desenvolvimento sólido e sustentável. Eram as respostas coerentes e verdadeiras às alardeadas “reformas de base” que enchiam o papo dos demagogos e esvaziavam a barriga dos trabalhadores. E uma das mais importantes – entre tantas - era aquela a ser dada ao problema habitacional, acenada com uma pretensa reforma urbana, cuja retórica contraproducente aparecia em medidas como o congelamento de aluguéis, a ameaça de locação compulsória de imóveis vazios e a desapropriação urbana. O congelamento só conseguira agravar o problema, desestimulando a construção de novas moradias – um poderoso instrumento de ativação do emprego na construção civil, grande absorvedora de mão de obra – e provocando a queda na oferta de locações. Outra fonte de problemas era a verdadeira “picaretagem” que se estabelecera na incorporação de condomínios, por falta de uma legislação disciplinadora e eficaz.

Um extraordinário elenco de medidas viria a ser estabelecido em curto prazo, com a criação do Sistema Financeiro da Habitação, compreendendo o Banco Nacional de Habitação, as sociedades de crédito imobiliário e um Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (Lei nº 4380 de agosto de 1964), da Lei do Inquilinato (nº 4494, de novembro de 1964), Regulamentação das incorporações imobiliárias em condomínio (Lei nº 4591 de dezembro de 1964, ainda em vigor), Lei de estímulo à construção civil (nº 4864 de novembro de 1965) e a Lei de criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS (nº 5107 de setembro de 1966). Com elas foi instituída, já em julho de 1964, a correção monetária – uma engenhosa e criativa iniciativa para aquela conjuntura – que estimulava a poupança em um quadro de inflação elevada e permitia os contratos de longo prazo, o que acabava com o assistencialismo da Fundação da Casa Popular, dos Institutos de Previdência e da Caixa Econômica que, beneficiando principalmente protegidos políticos, era na verdade um subsídio gracioso, em face da corrosão inflacionária dos débitos, inviabilizando novos financiamentos. As fontes de financiamento passaram a ser as cadernetas de poupança, as letras imobiliárias e os recursos do FGTS, estabelecido em substituição ao engodo de uma estabilidade nunca alcançada. Uma das experiências mais gratificantes do novo sistema - que se destinava prioritariamente às habitações populares e à casa própria - foi a erradicação em curto prazo de onze favelas no Rio de Janeiro, substituídas pelos conjuntos habitacionais nos subúrbios cariocas, estimulada pelas Cooperativas Habitacionais, então criadas.

Infelizmente, como tantas outras, a Reforma Habitacional acabaria sendo desvirtuada, perdendo seus verdadeiros rumos, ao sabor dos interesses políticos no recrutamento de pessoal e na escolha de projetos e pelas distorções determinadas pelos interesses econômicos, a partir do momento em que a construção das habitações de baixa renda – seu principal objetivo - foi perdendo terreno para a edificação das habitações de classe média e construções comerciais, muito mais rentáveis. Teve início uma ruinosa defasagem entre a correção monetária das prestações e o rendimento das cadernetas de poupança, favorecendo os mutuários de classe média em detrimento da construção da habitação popular. O endurecimento da política salarial para conter a inflação desencadeava sempre pressões para compensá-la com abatimentos na correção das prestações, o que atingiu seu clímax no governo Sarney quando o abatimento chegou à metade, arruinando o BNH e criando um enorme passivo no Fundo de Compensação das Variações Salariais, um dos “esqueletos” que o ministro Pedro Malan teve que “tirar do armário”, como medida preparatória para a implantação da moralizadora Lei de Responsabilidade Fiscal e que repercutiu enormemente nos números da dívida interna, então contabilizada. O “réquiem” final do sistema foi a absorção pela Caixa Econômica do BNH, em novembro de 1986, após 22 anos de funcionamento, uma das heranças do desgoverno Sarney e sua Nova República, cujas contas o contribuinte brasileiro paga até hoje.

Alguns aspectos da atual situação fazem lembrar a desordem que antecedeu a queda do governo João Goulart, tais como o “manicômio tributário” que Lula e seu governo pretendem solucionar com uma reforma tributária. Como “só os néscios ignoram a experiência dos outros”, segundo ensinava Bismarck, vale a pena relembrar alguns fatos de um passado não muito distante para concluir que muitas vezes as reformas são feitas em pura perda, se os que vêm atrás não acreditarem nelas e não lhes derem seguimento. Foi o que ocorreu com a reforma tributária promovida no governo Castello Branco com a Emenda Constitucional nº 18 e o Código Tributário que a seguiu, implantado a partir de 1º de janeiro de 1967, pela Lei nº 5172, de 25/11/1966, votadas ambas pelo Congresso Nacional. As profundas modificações de ordem fiscal e tributária, então estabelecidas dentro do notável esforço de modernização do Estado brasileiro levado a cabo, representaram avanços, inovações e aperfeiçoamentos cujos frutos foram a base dos bonançosos tempos do chamado “milagre brasileiro” que trouxeram nossa economia para uma invejável situação, infelizmente, desarmada pela descontinuidade administrativa, pelos choques do petróleo de 1973 e 1979 e pela adversa conjuntura internacional.

O Código então adotado extinguiu uma série de obrigações tributárias obsoletas e inúteis, como os impostos de vendas e consignações e de consumo - de onerosa incidência cumulativa -, o de diversões públicas, o de indústrias e profissões, o de licenças (municipal) e o do selo. Foram substituídos pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM) e pelo Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). O ICM era uma ousada inovação que, incidindo sobre o valor adicionado em cada transação, acabava com a tributação “em cascata”, desestimulava a verticalização industrial, com grandes benefícios para a produção nacional - especialmente no setor de autopeças -, criava um mecanismo automático de autofiscalização pela exigência da Nota Fiscal em cada venda e favorecia a obtenção de informações estatísticas orientadoras da ação governamental. A inovação despertou receios de queda de arrecadação pelos estados, o que não se confirmou. O IPI – também não cumulativo - adotava alíquotas diferenciadas em função da essencialidade dos bens. Os Estados e Municípios mantinham suas capacidades tributárias próprias e receberiam da União o repasse das cotas do IPI e do imposto de renda. Além disso, continuariam a receber as parcelas dos impostos únicos federais sobre combustíveis, lubrificantes, eletricidade e mineração.

A maior objeção que aquela reforma tributária levantou foi sobre um suposto centralismo fiscal que só viria a se confirmar por desvios praticados na sua implementação e execução. Na realidade, o novo sistema acabava com a desordem tributária, economizava custos com a arrecadação centralizada e o posterior repasse aos estados e municípios, inclusive do Imposto Territorial Rural, criado com o Estatuto da Terra e integralmente repassado aos municípios, o que era vantajoso por serem estes mais sensíveis que a União às pressões dos latifundiários infensos ao tributo. A nova sistemática criava, ainda, mecanismos de redistribuição de renda para a atenuação dos desequilíbrios regionais.

A descontinuidade administrativa que se seguiu e a falta de coerência na aplicação dos princípios que haviam norteado o novo Código, mais do que o alegado centralismo, contribuíram para a sua desfiguração. Reduções nas porcentagens dos Fundos de Participação, retenção indevida das cotas pelo governo federal, com a conseqüente corrosão inflacionária dos recursos - apesar da prática já ser na época capitulada como crime de responsabilidade – e a criação de uma série de impostos não partilhados - tais como, Finsocial, PIS-PASEP e Funrural - em detrimento das cotas dos impostos únicos, contribuíram para que o sistema fiscal fosse, no dizer de um especialista, “praticamente destroçado ao longo do tempo, pelo esgarçamento das fontes tradicionais de receita – IR e IPI – e a atomização da arrecadação pela proliferação de contribuições que não só multiplicaram a burocracia de arrecadação”, como trouxeram a aleatoriedade e a regressividade.

Mas a volta definitiva à anarquia fiscal e tributária - que hoje levanta a grita por uma reforma - foi dada pelo lamentável retrocesso imposto à estrutura tributária pela Constituição de 1988. Essa fábrica de utopias – como a chamou Roberto Campos – perpetrada com a colaboração e a conivência de muitos que hoje, nos governos, se queixam de seus resultados, convalidou uma enorme redistribuição da capacidade tributária em favor de estados e municípios sem a correspondente redistribuição de encargos, agravada pela impensada eliminação dos impostos únicos que passaram à atribuição dos estados, privando a União dos recursos para a construção e manutenção das estradas federais e para a construção de novas centrais elétricas.

Para completar o quadro, acrescente-se a desbragada, irresponsável e demagógica criação de municípios economicamente inviáveis, na ânsia de criar “cabides de emprego” para os cabos eleitorais e cartórios para apaniguados.

Talvez seja por isso que o antigo metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva, ao dar seu depoimento para Ronaldo Costa Couto incluir no livro “Memória viva do regime militar – Brasil: 1964-1985”, publicado em 1999, tenha tido um rasgo de sinceridade, fazendo tantos elogios ao que ele e o ex-ministro do governo Sarney chamam de “regime militar”. Quem quiser conferir e refrescar a memória, está lá, às páginas 250 e seguintes.

Como um herói de Carlyle, Castello Branco iluminou sua época.


Notas:

1 - Depoimento a Ronaldo Costa Couto, in Memória viva do regime militar – Brasil: 1964-1985, Ed Record –S.Paulo – 1999, Pág. 72.
2 - Superintendência da Reforma Agrária.
3 - Luís Viana Filho in O governo Castello Branco, pág. 276.
4 - Lanterna na popa – pág. 680/696.
5 - Idem da Nota 2, pág. 278
6 - Um grande latifundiário e reacionário que se transformaria depois em líder esquerdista.
7 - Mário Henrique Simonsen, citado por Luís Viana Filho, op. cit. pág. 282.7
8 - Depoimento a Ronaldo Costa Couto, Op. cit. Pág. 72.
9 - Editora Ática - 5a edição - 1998.
10 - Depoimento a Ronaldo Costa Couto, Op, cit., pág 250.
11 - Luís Viana Filho, op. cit., pág. 116/119.


(*) General-de-Divisão Reformado do Exército Brasileiro, foi instrutor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Exerceu, como oficial superior, quase todas as funções de Estado-Maior, especialmente as ligadas às áreas de Informações e Operações. Após passar para a reserva, em 1987, dedicou-se à arte de escrever, tendo seu primeiro livro publicado, uma auto-biografia - "Meninos, eu também vi!" - em 1989.

É colaborador do jornal "Gazeta do Povo" de Curitiba, membro do Centro de Letras do Paraná, Direitor Cultural do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná e Sócio correspondente do Instituto de Geografia e História Militar do Rio de Janeiro. Ocupa a cadeira nº 15 da Academia de História Militar e Terrestre do Brasil (Resende - RJ) e recentemene passou a ocupar a cadeira nº 10 da Academia Paranaense de Letras. Autor de várias obras, destaca-se "O fascínio dos Anos de Chumbo ", publicado em 2004.



Adendo:

Leia a entrevista que o General Negrão Torres deu à "História Oral do Exército - 31 de Março de 1964", desmascarando o "Pentateuco" de Elio Gaspari (5 livros sobre a ditadura militar) - https://felixmaier1950.blogspot.com/2020/05/general-raimundo-negrao-torres-desanca.html


 


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