EGITO - costumes e curiosidades
Por Félix Maier
Preâmbulo
O presente texto foi extraído dos II e III Capítulos de meu livro "Egito - uma viagem ao berço de nossa civilização", Editora Thesaurus, Brasília, 1995.
O livro foi fruto da vivência de dois anos no Egito, durante o trabalho na Embaixada brasileira no Cairo, de 1990 a 1992.
Boa leitura!
Félix Maier
CAPÍTULO II
O POVO DO EGITO, SEUS COSTUMES
Comparados aos povos do Ocidente, os árabes são bastante conservadores. Isso pudemos notar pelos assuntos de suas conversas, por suas vestimentas, programas de televisão e pela leitura de jornais e revistas locais. Embora, como se diz, Cairo seja uma espécie de "Paris do Oriente Médio", e o Egito - junto com a Turquia - muito mais liberal que qualquer outro país muçulmano, lá os costumes são bem diferentes daqueles encontrados no Brasil.
Embora haja muita influência do Ocidente, seja através das parabólicas que se multiplicam nos telhados das residências, seja através das músicas de rock ou dos filmes americanos na televisão, o Egito procura preservar a cultura árabe e a religião muçulmana com bastante rigor. Mesmo nos jornais mais liberais, pode-se observar as duras críticas feitas ao modus vivendi do Ocidente - principalmente dos EUA -, onde existe a degradação dos costumes, o incentivo à violência, drogas e apelo sexual. Pode-se dizer que é uma guerra de cultura que está apenas começando: Ocidente versus Oriente.
Coisas que se vê na televisão brasileira jamais entrarão no Egito. Novelas brasileiras, talvez só A Escrava Isaura. Tieta, Pátria Minha, ou as peladas "garotas do Fantástico", nem pensar. As produções egípcias não mostram sequer beijos. Filmes americanos, às vezes, mostram alguns beijos, mas as cenas mais fortes são simplesmente cortadas. Ou então, a tela fica negra, sem imagens, só com o som. O filme de Franco Zefirelli que vimos - Romeu e Julieta - tinha um pouco mais da metade do tempo normal.
Apesar da qualidade precária da televisão egípcia, que é estatal, ela apresenta uma grande variedade de assuntos culturais que não se costuma ver no Brasil, ao menos nas emissoras mais famosas. Na apresentação de filmes, a TV não mostra nenhum comercial. Não há aquela quebra de interesse na estória. Em compensação, em alguns vídeos que vimos, a cada 5 minutos havia um comercial. Era de lascar.
Devido à diferença cultural, nem por nada que no início sentimos um "choque" quando presenciamos alguns costumes egípcios, bastante estranhos sob o ponto de vista ocidental. No Egito eu vim aprender que, para o muçulmano, a mão direita é usada para fins nobres, ao passo que a mão esquerda é considerada "suja", por ser utilizada para fins negativos e menos nobres, como lavar o ânus. A seguir são descritos alguns costumes egípcios que chamaram nossa atenção enquanto dávamos os primeiros passos naquele exótico país.
O beijo entre os homens
Em público, os beijos entre casais são proibidos. A desobediência a essa lei pode levar o indivíduo à delegacia de polícia. Ou à casa do pai da moça, para explicações, se ela não for casada.
Enquanto é proibido o beijo entre casais, para não despertar "imaginações impuras", é comum o beijo entre os homens: três beijinhos na face, às vezes bem molhados... O adido militar, na primeira vez em que se apresentou às autoridades militares egípcias, ficou corado de vergonha, todo vermelho, quando um general sapecou um beijo em seu rosto. Um não, três... Mas esses beijos entre os homens não chegam a causar a mesma estranheza no Ocidente como aqueles beijos na boca tipo "desentupidor de pia" de antigos figurões soviéticos, que as manchetes estamparam em volta do mundo.
Existe o costume egípcio de os homens andarem de mãos e braços dados. Às vezes, só com o dedo "mindinho". Víamos, no início, com bastante surpresa oficiais ou praças, tanto das Forças Armadas quanto da Polícia, andarem de braços dados, mesmo fardados.
Depois nos acostumamos com isso e eu não via nenhum mal em meu filho Wagner, às vezes, em plena rua, quando fazíamos as costumeiras caminhadas pelo Cairo, também me dar seu braço. Era um sinal de aconchego e amor filial que eu não podia negar só por causa dos nossos costumes diferentes no Ocidente.
As moças egípcias, em princípio, casam virgens. Não é permitido à moça solteira manter conversa com homens. Nas escolas, os meninos sentam em bancos separados das meninas. Segundo os árabes, "a mulher é uma flor tenra que precisa ser preservada". Por isso o uso do purdah (véu), que esconde os cabelos das mulheres. A mulher muçulmana casada, no Egito, não mostra seus cabelos a não ser para o marido e pessoas da família.
Há a nequab, uma vestimenta islâmica que cobre as mulheres da cabeça aos pés, usada por uma quantidade razoável de mulheres no Egito, mas que não é normal. Com essas vestimentas, apenas são vistos os olhos das mulheres. A gente as chamava de "mascaradas", algumas até apresentando figuras grotescas, quando colocavam óculos "fundo de garrafa" por sobre a "máscara". Dava até para se assustar, quando encontradas, inopinadamente, numa dobra de esquina.
É bom lembrarmos que há 50 anos atrás, no Brasil, as mulheres também andavam com vestidos longos, até os calcanhares, e com véus nas cabeças. E a cor predominante era a preta, como posso ainda hoje observar em uma foto de minha avó junto com minha bisavó. Como as mulheres ocidentais mudaram de traje em tão pouco tempo...
Há muitos egípcios que se vestem como os ocidentais, tanto homens quanto mulheres. Mas é grande o número de egípcios, de ambos os sexos, que vestem as longas túnicas, as galabeyias, principalmente os da classe mais pobre, como os beduínos que vêm do interior. Talvez agora tenha aumentado o número de mulheres com vestidos longos, pela imposição dos fanáticos muçulmanos fundamentalistas. Enquanto Muamar Khadafi, da Líbia, se veste espalhafatosamente, cheio de panos esvoaçando ao vento, o Presidente egípcio, Hosni Mubarak, nunca é visto usando uma galabeyia.
Há mulheres que vestem galabeyias pretas, que é uma demonstração de fidelidade ao marido. O desconforto deve ser imenso, pelo calor que provoca. O ideal seria usar túnica branca, como os sauditas, que reflete a luz e, portanto, o calor. Era comum vermos mulheres, aos bandos, todas vestidas de preto. O que levou nossas crianças a comentarem: "Olha só, quantas Perpétuas!" (da novela Tieta).
Antes da ocupação francesa, todos os egípcios usavam barba e bigode. Como os franceses tinham o rosto escanhoado, o antigo costume começou a cair em desuso, embora com alguma resistência.
Antigamente, uma punição exemplar para os egípcios era cortar seu bigode à força, o que causava uma vergonha enorme. No tempo dos mamelucos, homens sem bigode não eram tolerados a entrar nas cortes de justiça e criminosos eram forçados a raspar o bigode e mandados a andar no lombo de burros, de costas, pelas ruas da cidade, para aumentar a vergonha.
Observa-se, ainda hoje, no Egito uma grande quantidade de homens que cultivam seu bigode com bastante esmero. Geralmente são bigodes enormes, como os do ex-jogador de futebol Rivelino. Quanto à barba, esta é hoje cultivada, principalmente, pelos sacerdotes coptas e pelos fundamentalistas islâmicos.
O ouro das mulheres
Há muita pobreza no Cairo. Mas a quantidade de ouro que se vê em toda a cidade, em lojas simples ou sofisticadas, nos dá a real dimensão que esse precioso metal tem na vida árabe. As mulheres são extrema-mente vaidosas, se adornam com colares, pulseiras e brincos enormes, carnavalescos. Não colocam uma barra de ouro em cada orelha porque iria rasgar...
É comum mulheres, as mais ricas, usarem uma penca de pulseiras de ouro em cada braço. O ouro tem, para essas mulheres, o mesmo que para nós tem a função da caderneta de poupança ou a guarda de dólares: é um patrimônio que a mulher leva consigo durante a vida e serve para fazer face a algum imprevisto, como doença ou separação do marido. No aperto, é só ir ao joalheiro e vender as jóias. Quando o dinheiro sobra, passa a comprar mais ouro. Desde quando é pedida em noivado, com autorização do pai, a moça já começa a receber jóias do futuro marido. Nos dias de festas, que no Egito são muitas, ela continua a receber seu cobiçado ouro, assim como no dia do aniversário.
Mesmo as meninas e senhoras mais pobres não deixam de usar suas jóias. Ficávamos admirados em observar muitas dessas mulheres, mal vestidas, de chinelos e pés sujos, porém exibindo seu reluzente patrimônio.
O uso ostensivo de jóias no Egito é possível pela inexistência de assaltantes. A lei é rigorosa, existe a pena de morte e não há essa demagogia, como no Brasil, em que grupos de defesa dos direitos humanos geralmente só se lembram de defender bandidos.
O mês do ramadã
Com 30 dias de duração, o nono mês do calendário árabe, o ramadã, é o mês das preces e do jejum. O fiel muçulmano, durante o dia, fica proibido de comer ou ingerir qualquer tipo de líquido, a não ser por ordem médica. O crente deve também se portar de modo mais pacato, conservar os olhos baixos durante o dia, para não "sofrer tentação" ao avistar uma mulher. A relação sexual também é proibida durante o dia. Outros pecados que devem ser evitados nesse mês são a luta e a perda da calma. A guerra também deve ser evitada, como diz o Corão, embora ela possa ser feita por uma "causa justa", como foi a Guerra do Ramadã, de 1973, contra Israel...
O jejum pode ser quebrado com o anúncio dos alto-falantes nas mesquitas, ao anoitecer, ou então o fiel deve saber pelos jornais, rádio ou TV quando está apto a fazer a primeira refeição do dia, o ifthar. O horário, dia após dia, varia um pouco.
Como o calendário árabe é lunar, o início do ramadã é sempre uma incógnita. Pode ser num dia ou somente em outro. Depende da acuidade visual do religioso para observar a ro'ya, ou seja, a lua no início da fase do quarto crescente. Ao menos é isso que acontece em países mais conservadores, como a Arábia Saudita. No Egito, ficávamos aguardando, até próximo do início do ramadã, para que informassem a data precisa, embora os astrônomos, com muita antecedência, pudessem prever o aparecimento da lua quarto crescente.
No Cairo, uma característica única dentre os países muçulmanos, o anúncio do fim e do início do jejum, nos dias do ramadã, é feito com o disparo de um velho canhão alemão, que pode ser ouvido em muitos pontos da cidade. O canhão encontra-se numa colina perto da Cidadela de Saladino.
Como o descrito no jornal Al-Ahram nº 3 de 14 Mar 91, a tradição começou em 1811, por puro acidente. O canhão era tão velho que o Pasha (Governador) Muhammad Áli decidiu parar de usá-lo e fazer dele um monumento. Enquanto os soldados estavam limpando o canhão, este acidentalmente disparou um tiro. Os egípcios ficaram muito felizes, pois pensaram que era o sinal dado para a quebra do jejum, à tardinha. Os grandes sheikhs (xeques) foram agradecer ao Governador e este decidiu continuar a disparar o canhão no início e no fim do jejum. Desde então, isto veio a se estabelecer como tradição. O canhão também dispara em dias de festas e feriados nacionais.
O ifthar é a primeira refeição à noitinha, após o jejum. Os mais pobres podem se servir em mesas que são arrumadas junto a muitas ruas da cidade. Cena interessante é você observar aquele povo humilde sentado à mesa, com mais de uma hora de antecedência, para garantir o lugar, com os talheres prontos para entrar em ação, como se fosse uma competição, e só iniciando a refeição com a devida autorização dos alto-falantes das mesquitas.
Um ifthar tradicional começa com um prato de tâmaras embebidas em água ou leite, como o prescrito pela sunna (ensino religioso). Muitas famílias irão incluir no menu um prato de fuul (espécie de feijão com limão e óleo de oliva), assim como uma refeição normal que pode conter sopa, carne, ave, peixe e uma grande variedade de legumes.
Se durante o dia a barriga ficou a perigo, à noite, após o ifthar, outras refeições são feitas, até alta madrugada. É a época em que mais se come no Egito - ao menos entre aquelas pessoas das classes mais altas - e muitos religiosos criticam isso, justamente por ser o mês do jejum. Açúcar e farinha de trigo você tem que fazer estoque em casa, para se prevenir contra a falta desses produtos em quase todos os armazéns da cidade.
O sohour, às 3 horas da manhã, é normalmente a última refeição, geralmente uma comida ligeira à base de iogurte e frutas, depois do que as pessoas vão dormir.
O brasileiro Zagalo, quando dirigia a seleção de futebol dos Emirados Árabes Unidos, teve um problema bastante difícil de resolver, ao assumir o trabalho na preparação para a Copa do Mundo na Itália, em 1990. Os treinos durante o ramadã só podiam ser feitos à noite, pois, com a barriga vazia, os jogadores de modo algum se prontificavam a obedecer seu treinador...
Crianças do pré-escolar acreditam que o ramadã é uma pessoa, como Papai Noel, que virá trazer as lanternas e os doces, além dos presentes que são comuns nessa época.
A fanus (lanterna) é um costume unicamente egípcio e data da época dos fatímidas. Quando Al-Muz Lidin Allah Al-Fatimi transferiu a capital muçulmana para o Cairo, na sua chegada, à noite, os cairenses saíram às ruas para recebê-lo com lampiões coloridos para iluminar as ruas que o levaram até seu palácio.
No início, a lanterna era feita de vidro colorido e vela, com formatos hexagonal ou octogonal. Hoje, as lanternas utilizam pilhas elétricas e pequenas lâmpadas para emitir luz através do material plástico. Durante o ramadã, pudemos observar os efeitos especiais dessas lanternas, com suas luzes coloridas em todos os pontos do Cairo, nas lojas, nas ruas, nas casas.
As crianças ficam impacientes em começar a jejuar e participar dos rituais do ramadã. Embora a idade "oficial" seja de 9 anos, muitas crianças de 7 anos procuram imitar seus pais durante alguns dias. Muitos estrangeiros residentes no Cairo também jejuam alguns dias, durante o ramadã, independentemente de sua religião. Que é, sem dúvida, bastante saudável para o corpo.
Nas ruas e nos canteiros das avenidas são armadas muitas tendas, emolduradas com uma infinidade de pontos de luz para iluminar a noite do ramadã. Milhares de lâmpadas caem em cascatas do alto de alguns prédios, mormente hotéis. Árvores também são enfeitadas com lâmpadas multicoloridas, apresentando um espetáculo típico do nosso Natal. O ramadã é uma festa de som, luz e calor humano.
Na época do ramadã, durante o dia, o movimento dos veículos diminui muito depois das 14 horas. Porém, após a primeira refeição do muçulmano, à noitinha, a cidade do Cairo se transforma completamente. Todo mundo combina em sair ao mesmo tempo para as ruas e o leitor não pode imaginar o pandemônio que fica o trânsito da cidade.
Uma noite, durante o ramadã, fomos levar um amigo paranaense, Anwar El Tassa, até sua residência, no Khan Al-Khalili. Em um trecho que não se leva normalmente mais de 10 minutos de carro, ficamos presos no trânsito por mais de três horas.
Mas ninguém se incomoda com isso: todo mundo enche o carro, a família toda, cantando, a música no toca-fitas brigando com o volume das buzinas, e sai satisfeito da vida, enfrentando o trânsito infernal, até alta madrugada. Os mais pobres fazem piquenique nas praças e canteiros das avenidas, com sacolas de comida, no estilo "farofeiro" das praias brasileiras. Há muitos vendedores de milho assado na brasa, shai (chá) gelado, pipoca. As crianças andam no lombo de burrinhos. Ou correm atrás da bola.
O egípcio é fanático por futebol. O leitor não acredita o carnaval que fizeram, em 1990, quando conseguiram dois simples empates na Copa da Itália. Foi um buzinaço fenomenal que avançou madrugada adentro. Eles adoram o futebol brasileiro. Imagino que tenham vibrado muito com a nossa conquista do tetra.
No meio da confusão toda de automóveis, pessoas, burrinhos, durante o ramadã pode-se observar, em todos os cantos da cidade, muitas charretes, parecidas com aquela que a ex-ministra Zélia Cardoso usou como táxi em Nova Iorque. No Egito, quando víamos uma dessas charretes (hantur, em árabe), a sugestão era imediata: "Vamos andar no táxi da Zélia?"
O horário normal de trabalho, em todos os setores, é mais ou menos de 9:30 até às 15 horas. Durante o ramadã, o horário de trabalho encurta ainda mais, de 11 às 14 horas. A tarde é sempre utilizada para a sesta, tudo pára, nada funciona. O relógio biológico do egípcio é diferente do nosso: à tarde todos dormem, saem às ruas à noite e só dormem de madrugada, mesmo que não seja época do ramadã. O ritmo de trabalho normal do egípcio é muito lento. Durante o ramadã fica mais lento ainda. De certa forma, eles têm razão em não trabalhar muito. No verão, o clima é muito seco e quente, de torrar os miolos. Eu quero ver o leitor pegar no batente, no pesado mesmo, durante mais de 4 horas, com uma temperatura que, como medimos no Cairo, ultrapassava os 45 graus centígrados. O general Schwarzkopf não foi nada delicado ao chamar os soldados egípcios de "tartarugas" nas operações militares que tiraram Saddam Hussein do Kuwait.
No final do mês do ramadã há a festa do Aid Al-Fitr, o Pequeno Bairã, 4 dias de feriado que servem como coroamento do sagrado mês do jejum e das orações.
A pechincha, um costume árabe
Os árabes são loucos por perfumes e roupas multicoloridas. Eles usam roupas que no Brasil só se prestariam para pular carnaval. Ou para subir no picadeiro. As mulheres usam vestidos superenfeitados, sapatos cheios de cores e brilhos, uma penca de pulseiras de ouro em cada braço, brincos enormes, colares de proporções faraônicas. Os homens também usam camisas e blusas enfeitadas, sapatos floridos, às vezes na cor vermelha berrante ou, até, rosa.
Havia em nossa chancelaria um funcionário egípcio, Yunes Choucry, que gostava de se vestir com ternos de cores as mais esdrúxulas possíveis: cor rosa, verde. E sapatos coloridos, muito brilhantes. Até o ex-Presidente Collor, antes de assumir o mandato no Brasil, quando esteve no Cairo, não deixou escapar a oportunidade de se fazer fotografar ao lado de tão exótica criatura.
Os táxis andam enfeitados, muitos parecendo uma árvore de Natal ambulante, com luzes piscando e buzinas melódicas entrando madrugada adentro. O táxi funciona no sistema de lotação: pára somente se quiser e apanha o passageiro que seguir o itinerário já combinado com os outros passageiros a bordo. Quando pegam um estrangeiro, fazem a mesma coisa que no Brasil: esfolam o cara. Minha mulher Nice muitas vezes pagava 20 ou 30 libras egípcias por uma corrida de 5 libras. Depois, ela combinava de pagar o preço que pediam e, depois de saltar do táxi, pagava só a quantia correta, deixando o motorista a reclamar e gesticular sozinho.
De modo geral, todo estrangeiro é explorado no Egito. Você começa cortando o cabelo a 12 libras, depois eles baixam para 8 e até 5 libras. Minha mulher, no início, era muito explorada quando ia ao salão de beleza. Cobravam até 60 dólares por uma pintura do cabelo e um permanente.
A pechincha, no Egito, é fundamental. Sabendo que você é estrangeiro, eles sempre jogam os preços nas nuvens. Quando o preço não está afixado no produto, você pode dividir por 2, 3 ou até 10 vezes o que pedem. E não adiantava eu perguntar o preço em árabe. Quando eles olhavam minha cara de gringo, já me respondiam em inglês, perguntando se eu era russo, alemão, holandês ou sírio. A Nice, por sua vez, tem alguns traços árabes - ao menos era o que diziam: "you look like Egyptian"! (você parece egípcia)- e por isso muitas pessoas começavam a falar árabe com ela. Mas, quando abria a boca, também não convencia ninguém. Assim, tivemos que conviver com esse eterno jogo da pechincha.
O Egito é auto-suficiente em petróleo, porém é um produtor pequeno, se comparado aos ricos países árabes do Golfo Pérsico. A metade de sua produção (de mais ou menos 800 mil barris diários) é exportada, inclusive para Portugal. Outros produtos que o Egito coloca no exterior são: tâmaras (é o maior produtor mundial), cebola, alho, produtos em couro, algodão, perfume, cosméticos, cigarros, roupas, carpetes, tapetes, ônibus, móveis de cozinha, doces, peças para computador, hena para tingimento dos cabelos. Sem mencionar a grande quantidade de desenhos em papel-papiro e produtos metálicos levados como souvenires pelos turistas.
A maior fonte de divisas estrangeiras o Egito obtém com a exploração do Canal de Suez. Seguem em importância o movimento de turistas - que em 1990 foram 2.600.000, sendo 46,7% de estrangeiros - e o dinheiro remetido ao Egito por trabalhadores espalhados pelo mundo árabe, especialmente nos ricos países do Golfo Pérsico. É fácil imaginar o impacto que teve sobre a economia egípcia a eclosão da Guerra no Golfo Pérsico, quando milhares de nacionais tiveram que voltar para casa, sem emprego. Só no Iraque trabalhavam mais de 1 milhão de egípcios. Com a onda de atentados contra turistas promovida por fundamentalistas muçulmanos, a segunda maior fonte de divisas - o turismo - sofreu duro golpe. De 1992 a 1994, já foram 12 os turistas assassinados no Egito. Os hotéis e os navios luxuosos que singram o Nilo entre Lúxor e Assuã perderam de 50% a 70% do seu movimento.
A circuncisão árabe - masculina e feminina
Há uma prática muito antiga dos árabes, que é também comum entre os judeus e era usada, ainda, pelos antigos egípcios da época dos faraós: a circuncisão. Aquele cortezinho no "peru" do menino, uma cerimônia registrada no Antigo Testamento. O motivo é, sem dúvida, de se tornar mais higiênico esse importante apêndice masculino, fazendo com que o prepúcio se "descasque" com mais facilidade. Para a limpeza e para o ato sexual. Isso, todos sabemos.
O que eu não sabia é que há também a circuncisão aplicada às meninas. Embora esteja caindo em desuso nos grandes centros, no interior do Egito ainda é muito comum. Consiste em se cortar um pedaço do clitóris da menina, para ela não sentir prazer sexual quando crescer. O prazer permitido às mulheres é terem filhos, muitos filhos. E os árabes, sem exceção, têm muitos filhos. Em 1994, uma mulher da Somália fugiu com sua filha para os EUA, onde pediu asilo. Motivo: evitar que sua filha fosse mutilada em suas partes íntimas.
Sempre nos perguntavam porque não tínhamos mais filhos, se a Nice não podia ter mais. Não conseguiam entender um casal ter somente 2 filhos, como a gente. O Egito tem uma das maiores taxas de natalidade do mundo, cada mulher tendo em média 5 filhos. E o resultado aí está: superpopulação, falta de empregos e a vida miserável de milhões de habitantes. Foi bem simbólica a escolha da cidade do Cairo para sediar a Conferência das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento, no ano de 1994.
O motorista da aditância militar, Abdul, um dia convidou o meu chefe para que fosse participar de uma festa em sua casa. A festa era para a comemoração da circuncisão de sua filha.
Gordinhas do Egito
Como os judeus, os árabes não comem carne de porco. Dizem que é impura. Além do porco, o Corão proíbe comer carne de qualquer animal que tenha morrido de morte natural. Ou alimento feito com sangue.
Muitas casas são facilmente encontradas na cidade, onde você consegue comprar pernil para assar no forno, ou presunto e até linguiça. A carne de porco é muito boa, assim como o presunto. Mas a linguiça você só compra uma vez. Tem uma casa, Morcos, que faz até anúncio em um jornal escrito em inglês, para vender carne de porco.
A população mais pobre não come carne nunca, a não ser na época do Aid El-Adha, a Festa do Sacrifício, quando os ricos doam pedaços de carne aos pobres. A diversificação dos pratos egípcios mereceria um capítulo especial.
Dentre as comidas típicas, o fuul é bastante popular. Consiste de um feijão forte como soja, temperado com óleo de oliva e limão. É comido puro ou colocado dentro do aesh, aquele pão redondo, principalmente no café da manhã. Mas é preciso ter estômago de camelo quem não estiver acostumado.
Interessante era vermos as carroças passando nas ruas, com seus vasilhames enormes, de boca pequena, de onde era tirado o fuul para vender às mulheres que desciam dos apartamentos, ainda cedo pela manhã. Pelo tamanho reduzido da boca daquelas vasilhas, e a consequente dificuldade em lavar as mesmas, pode-se imaginar que a higiene não devia ser grande coisa.
Minha mulher adorava comer uára al-áinab, um bolinho de arroz e tempero enrolado em folha de videira. Em Brasília, um libanês faz o mesmo bolinho, só que utiliza folha de repolho ou couve na falta de folha de uva.
O aesh baladi é um pão chato e redondo, parecido com boina de milico, o mais popular do Egito. Tem uma cor escura, talvez pela adição de milho ou batata. Dizíamos, brincando, que era feito de areia do deserto. Esse tipo de pão era também encontrado nas calçadas, estendido sobre jornais velhos, cheio de poeira e moscas em volta. Só comprávamos o aesh shami, mais branco e higiênico, encontrado nos super-mercados, também conhecido como "pão sírio". Há, ainda, no Egito o aesh shamsi (pão do sol), feito em Lúxor de acordo com a antiga prática de deixar crescer a massa com fermento do lado de fora da casa, e o aesh saraia (pão do palácio), de cor laranja, feito de grãos finos embebidos em geléia de frutas. Há, ainda, o pão uras, também redondo e chato, popular nas festas cristãs coptas, e levado aos cemitérios para alimentar os pobres. Como se sabe, milhares de pessoas vivem nos cemitérios do Cairo.
Uma figura típica no Cairo é o ciclista que, com uma espécie de cesta rasa e muito comprida, feita de bambu, cheia de aesh, equilibrando aquilo tudo em cima da cabeça, sai pedalando em alta velocidade, dando fechada em carros e, vez por outra, dando uma trombada e espalhando o pão pelo chão, alguns rolando para longe. O sujeito, na maior calma, recolhe todos os pães na cesta, equilibra tudo de novo na cabeça e sai pedalando a destino. À vezes, a rua onde caiu o aesh é imunda, totalmente podre. Mafísh mushkêla! (Não tem problema!).
A taamiya é um tipo de lanche que faz sucesso entre os egípcios e os turistas que querem economizar seu dinheiro. É feito à base de feijão, legumes e salada.
O khusháf consiste de tâmaras e frutas cristalizadas com leite. Outro doce para o final das refeições é o kou-náfa, à base de nozes ou amendoim, coberto por um doce feito de farinha de trigo, açúcar queimado, água e gotas de limão. O khusháf e o kounáfa são pratos típicos do ramadã.
O kóshari é composto de arroz, tomate, macarrão, pimenta, salsa e cebola frita. O que não pode faltar na comida árabe é pimenta, cebola, alho, páprica e salsa, usados em profusão.
A panqueca egípcia fitir é diferente daquela conhecida no Ocidente. Consiste de camadas de um tipo de massa especial e é feito com vários ingredientes, incluindo carne ou queijo. Há, ainda, o tipo doce, muito delicioso também.
Era um espetáculo à parte vermos o chef da cozinha pegando um pouco de massa já preparada e golpeando a mesma no ar, em movimentos giratórios, com uma habilidade própria de malabarista de circo, tornando a massa do fitir fina e quase transparente. Gostávamos de comer fitir, a Nice e eu, quando voltávamos do British Council, à noite, onde estudávamos inglês.
O árabe é, antes de tudo, um comedor de salada. Isso eu já sabia, desde criança, quando um turco ia até o sítio de meu pai, em Santa Catarina, e levava consigo uma grande quantidade de verdura. Até uma espécie de caruru que a gente dava aos porcos e às vacas o turco levava para comer. No Brasil é usado erradamente o termo "turco". Muitas vezes são sírios ou libaneses e até egípcios. É que os países árabes durante muito tempo foram dominados pelos turcos otomanos, daí a generalização desse termo para todos os árabes provenientes do Oriente Médio.
As frutas encontradas no Egito são dulcíssimas. Com exceção talvez do abacaxi, que lá custa 6 dólares a unidade, todas as frutas que temos no Brasil também existem por lá. Como todas as plantações são irrigadas pelas águas do Nilo, não há o problema da falta de chuvas no Egito e vários tipos de frutas podem ser escolhidos para o cardápio durante o ano inteiro. Com o sol dardejando seus raios de fogo o ano todo no Egito, as frutas se tornam muito doces, a exemplo das do Vale do Rio São Francisco e da região do cerrado brasileiro, onde também há muito sol e calor. Laranja, figo, pêra, melancia, melão, uva, tangerina, pêssego, manga, tâmara. Nunca em minha vida tinha degustado frutas tão saborosas.
Há milhares de quitandas espalhadas por todo o Cairo, onde podem ser encontrados legumes, frutas e verduras viçosas. Há legumes de proporções faraônicas, como a beringela. Tem repolho que enche uma bacia. Em compensação, o melão é pequeno e há maçãs ácidas minúsculas, do tamanho de uma bola de gude.
Além das quitandas, podem ser observadas carroças percorrendo todas as ruas do Cairo, com vendedores anunciando seus produtos a brados altos. O mishmish (damasco), durante a época da colheita, é um dos produtos que mais se vê anunciado pelos carroceiros.
O egípcio é também um grande comedor de sementes. Em frente de armazéns, nas calçadas, podem ser vistas muitas sacas contendo sementes de girassol, melancia e abóbora, dentre outras. É incrível a habilidade que eles têm para descascar as sementes só com os dentes. Não ficam devendo nada a papagaios e araras. Durante as horas de folga, durante um bate-papo ou no recreio do colégio, é comum a gente ver egípcios mordiscando sua semente preferida.
No Cairo, é grande a quantidade de casas com doces. Em cada esquina você encontra enormes confeitarias, com tortas dos mais variados sabores, nozes cobertas com chocolate, suspiros. É uma tentação que as mulheres egípcias não conseguem resistir. Por isso, elas normalmente são enormes. Tudo é consequência da grande quantidade de comida que ingerem, o dia todo, comendo sempre, muita coca-cola, doces, chicletes e chocolate.
Quando jovens e solteiras, as egípcias são bonitinhas. Mas quando casam, a tendência geral é ficarem mais parecidas com uma Wilza Carla do que, por exemplo, uma Lucinha Lins. É uma estética da época do Renascimento, com aquelas matronas rechonchudas e redondinhas. Enormes, as egípcias, ao andarem, jogam o corpo de lado, para facilitar o levantamento das pernas. E os egípcios têm uma preferência confessa pelas gordinhas.
Embora o Corão permita beber vinho no paraíso, os muçulmanos não podem ingerir bebida alcoólica na vida terrena. Os egípcios têm uma cerveja sem álcool, de marca Stella, que pode ser encontrada em todos os cantos do país. Essa cerveja não tem gosto de nada e só desce bem pela garganta depois de você atravessar o deserto, durante um dia inteiro, sem beber água.
Os antigos egípcios, além do vinho, também bebiam cerveja. E era uma cerveja bem forte. Como se pode ler numa reportagem do jornal O Globo de 6 Set 72, os egípcios já em 1500 a. C. espalhavam mensagens de advertência pelo país: "Não faça de ti mesmo um desamparado, bebendo na cervejaria. Pois não adiantarão as palavras deste aviso serem repetidas pela tua boca, sem que tua inteligência as pronuncie também...".
Fico imaginando: os antigos egípcios nos legaram o ano solar, foram pioneiros na astronomia, medicina e na escrita, foram precursores de entidades esotéricas como a sociedade Rosa-Cruz, fazem parte das Sagradas Escrituras, com a palavra "Egito" aparecendo inúmeras vezes na Bíblia, criam na imortalidade da alma, construíram os primeiros monastérios cristãos, influenciaram os judeus e os primitivos cristãos coptas, e muitos dos costumes hoje em voga no Ocidente derivaram-se daquele antiquíssimo povo. E nos deixaram como herança a deliciosa cerveja. O leitor tem alguma dúvida de que o Egito é o berço de nossa civilização?
Dura lex, sed lex
"A lei é dura, porém é lei", diz o provérbio latino. Não sei se o número de leis no Egito chega aos pés das dezenas de milhares que devemos ter no Brasil. Mas que lá a lei é dura e muito mais eficaz que em nosso país, não tenho a menor dúvida.
No Egito existe a pena de morte, feita por enforcamento. O funcionário egípcio Helmi Sultan, em 20 anos de serviço, já enforcou mais de 240 condenados. Motivo para este tipo de condenação no Egito: assalto com armas, assassinato, latrocínio, estupro e tráfico de drogas.
Cansamos de ver pessoas sendo levadas a pescoções pela polícia até à delegacia. Direitos humanos? Segundo as autoridades egípcias, esses direitos só valem para a grande massa da população, que é séria e precisa ter preservados seus direitos e sua integridade física. Para os presos não há moleza na prisão e durante o dia vão quebrar pedra no deserto. Os ladrões, no Egito, muitas vezes acabam ficando com as mãos quase que mutiladas, de tanto levar pauladas. Na Arábia Saudita é pior: os ladrões têm as mãos decepadas.
A segurança que se tem nas ruas do Cairo deve-se ao espírito religioso da maior parte da população, das leis severas e da presença constante da polícia em todas as esquinas da cidade, militares com seus walkies-talkies e muito bem aparelhados, com viaturas e motos prontos para entrar em ação. Atualmente, com a crescente falta de recursos, esse aparato policial tem diminuído bastante, o que facilita as ações de extremistas islâmicos. Até camelos são utilizados no serviço de segurança, na área das pirâmides. Todas as pontes sobre o Nilo na cidade do Cairo têm barricadas instaladas à noite, com policiais revistando todos os carros que por lá passam.
Uma coisa me traz uma certeza definitiva: não é só a religião, levada bem mais a sério no Egito que em nosso país, que freia as ações dos marginais. O que diminui a bandidagem é a presença da polícia, ostensiva e onipresente, e a dura lex que tornam a cidade do Cairo tranquila, segura, onde você pode andar a qualquer hora do dia ou da noite sem ser importunado. No Brasil, infelizmente, é mais fácil você encontrar um pinguim andando no calçadão da praia de Copacabana do que encontrar um policial na rua.
Não posso deixar de registrar a violência que atingiu parentes e amigos no primeiro ano que estivemos no Egito: o tenente Adílson, do Rio de Janeiro, teve sua casa no Realengo assaltada, tendo que se refugiar em um apartamento na Tijuca à procura de maior segurança. O sargento Arnaldo, da Escola de Instrução Especializada, no Rio, onde servi por 6 anos, foi assassinado. Até meu irmão Günther teve sua moto roubada, em Joaçaba, SC, comprovando que a falta de segurança no Brasil é total, mesmo nas pequenas cidades do interior.
O adido militar no Egito, quando esteve de férias em 1991 no Rio, encontrou seus habitantes sitiados, trancados em seus apartamentos com milhares de fechaduras, temendo a violência a qualquer momento. Fazia lembrar o filme Fuga de Nova Iorque, uma cidade com muros de 20 m de altura, de onde ninguém podia fugir e onde cada um que resolvesse por si mesmo os seus problemas, a seu jeito.
Um Papa no Egito
Não é só a Igreja Católica que tem o seu Papa. O Egito também possui um, o Papa Shenouda III.
Como 116º sucessor de São Marcos, o Evangelista, que primeiro levou a religião cristã à África, Shenouda III é o Patriarca da Igreja Cristã Ortodoxa do Egito, a Igreja Copta.
Os coptas se consideram descendentes dos antigos egípcios. Pudemos observar que alguns coptas que trabalham na Embaixada do Brasil têm uma feição facial mais delicada, fina, se comparada com a dos árabes, que têm os traços geralmente mais grosseiros. Os coptas trazem nos braços, numa espécie de tatuagem, o símbolo da cruz.
A liturgia na Igreja Copta, como pudemos observar algumas vezes no Cairo Velho, onde há muitos templos, é um pouco parecida com a antepassada liturgia da Igreja Católica, com muitos cânticos, parecidos com o canto gregoriano, as mulheres separadas dos homens, o celebrante voltado de costas para os fiéis. Os sacerdotes coptas se vestem de preto e têm longas barbas.
O monasticismo cristão nasceu nos desertos do Egito com São Pacômio, no século IV de nossa era, e se espalhou pelo mundo inteiro. Inicialmente, os conventos eram só para homens, porém rapidamente surgiram conventos para mulheres, desde que a irmã de São Pacômio, Maria, também ingressou na vida celibatária.
Segundo alguns autores, a religião cristã copta, em sua fase primitiva, sofreu influência dos antigos egípcios, cujas entidades religiosas foram assimiladas também pela religião cristã em geral. J. Cerny, em seu livro Ancient Egyptian Religion, nos lembra que é muito grande a semelhança entre São Jorge matando o dragão com sua espada e o deus egípcio Horus matando seu inimigo, o demônio Setekh, em forma de crocodilo. O mesmo autor afirma que a escolha do dia 25 de dezembro como a data do nascimento de Jesus e a celebração do Natal apenas perpetuou a velha festividade solar do nascimento de Rá.
Mohamed Hussein, o Dr. "Chimy", é um pintor bastante popular no Cairo. "Chimy" tem belas coleções de esculturas e desenhos sobre a vida egípcia. Muitos cartões-postais com temas árabes, faraônicos e coptas contêm a marca "Chimy". As paredes da pizzaria Hut, no bairro de Dokky, têm gravuras suas. Além de telas a óleo, o Dr. "Chimy" compôs belas coleções de gravuras da vida egípcia, com temas faraônicos, coptas ou islâmicos, a exemplo de Oásis de Siwa e Os antigos mosteiros e igrejas no Egito. Esta última coleção nos fez conhecer como são alguns dos mosteiros mais importantes do Egito, como os de Santo Antônio e São Paulo, junto ao Mar Vermelho; o famoso mosteiro de Santa Catarina, aos pés do Monte Sinai; o mosteiro de São Simeão, em Assuã e os mosteiros do Wadi El-Natrun.
No Museu Copta, no Cairo Velho, vêem-se muitos objetos dos antigos cristãos, como afrescos antiquíssimos, vestimentas, instrumentos rudimentares de cirurgia, objetos em metal, madeira, marfim, ouro, prata, cobre, bronze e ferro. Uma das coleções mais interessantes e valiosas do Museu é a de ícones. Ícones são pinturas coloridas em base de madeira, com a parte superior arredondada, contendo normalmente figuras de santos. Um dos ícones no Museu representa Santo Antônio e São Paulo, o Ermita. Segundo a crença copta, o alimento diário de São Paulo consistia em meio pão, que lhe era trazido por um corvo. No dia em que Santo Antônio foi visitá-lo, o corvo levou um pão inteiro.
Antigamente, como Patriarca de Alexandria, a sede papal ficava naquela cidade. Posteriormente, a sede foi mudada para a igreja de Al-Moallaqa, construída sobre os pilares de antiga fortaleza romana da Babilônia, no atual Cairo Velho. Atualmente, a sede de Shenouda III fica na catedral de São Marcos, no Cairo, no bairro de Abayssya, e é a maior basílica da África.
Muito dinâmico e popular, com aparições frequentes na televisão e bem relacionado com as autoridades egípcias, Papa Shenouda participa de sessões na Assembléia do Povo - o Parlamento Egípcio -, mantém estreita ligação com o Grão-Sheikh da Mesquita Al-Azhar, Gad-Al-Haq Ali Gad-Al-Haq, e o grande Mufti do Egito, o Sheikh Muhammad Sayed Tantawi, os dois maiores líderes religiosos muçulmanos do Egito quando lá estáva-mos. Com aquelas autoridades religiosas, Shenouda algumas vezes participa do ifthar, o desjejum à noite, durante o mês do ramadã.
Contrastando com a intolerância dos fundamentalistas muçulmanos, para os quais nunca poderá haver qualquer espécie de ecumenismo, foi com grande satisfação que vi uma foto dos líderes religiosos muçulmanos comungando o ifthar com o Papa Shenouda, tendo na parede os símbolos das duas religiões: um crucifixo copta e o crescente islâmico. Em Mínia, cidade a caminho de Lúxor, durante um festival universitário, uma cruz copta e o crescente islâmico foram carregados à frente dos grupos de atletas que desfilaram no interior do estádio. O ex-Presidente Sadat também tinha um grande senso de ecumenismo quando quis construir aos pés do Monte Sinai o "Centro de Descanso e Meditação", com uma mesquita, uma igreja e uma sinagoga. A obra, porém, nem sequer foi começada. Certamente, é por aí que se conseguirá construir alguma coisa de útil num país como o Egito - como em outro qualquer -, para a paz social de todo um povo, independente de sua fé.
De hábitos muito simples, Papa Shenouda gosta de sair do burburinho do Cairo e seguir para o deir (mosteiro) de Anba Bishoi, em Wadi El-Natrun, a oeste do Cairo, onde entra em contato com o trabalho braçal na fazenda dos monges, auto-suficiente em leite, queijo, frango, frutas e legumes.
Maalêsh! - Bukra, Intchaalá!
Maalêsh (o "sh" com som de "x" de xícara) é talvez a palavra-chave que exprime todo o pensar do egípcio, seu humor, sua filosofia de vida, a predestinação árabe. Quer dizer "perdão, desculpe-me", "deixa pra lá", "não tem problema". Ou "dane-se!". Se o passador de roupa queimou tua camisa de seda, maalêsh! Se alguém te dá uma esfregada no carro - como aconteceu comigo, quando um micro-ônibus me imprensou na rua -, maalêsh! Se o mecânico não te entrega o carro no dia prometido, mas somente uma semana depois, maalêsh! Se o funcionário não chega cedo ao local de trabalho, após uma série de escusas e mil explicações inexplicáveis, ele diz: maalêsh! E assim vai.
Como escreveu Dalia Baligh em um artigo no Herald Tribune de 14 Nov 83, "maalêsh reflete a crença de muitos egípcios em fatalismo e na inevitabilidade daquilo que está escrito nas estrelas".
O governo egípcio já tentou proibir a circulação de carroças no centro do Cairo. E também já chegou a fazer uma campanha para não se utilizar essa mágica palavra maalêsh, querendo bani-la do dicionário. Besteira. São dois símbolos vivos dos costumes egípcios. Seria o mesmo que querer acabar com o samba e a cerveja no Brasil.
Tivemos o privilégio de assistir a alguns pequenos acidentes de carro nas ruas do Cairo. Como já foi dito, o trânsito é infernal, o fluxo de veículos é lento e as batidas de carros, normalmente, não passam de danos materiais.
Nesses acidentes, os motoristas saem de seus carros em altos brados, aparentemente agressivos, gesticulando muito. Os carros são deixados no meio da rua de qualquer jeito, o trânsito fica ainda mais caótico. A gente até aposta que uma briga feia terá início. Mas, que nada. Após uma acalorada discussão, com os contendores prometendo resolver a questão pelas vias de fato, grupos do "deixa disso" segurando os machões, finalmente o problema é resolvido com um amistoso maalêsh. Ninguém paga o prejuízo do outro. E para selar o acerto de contas, antes de irem embora, os brigões se dão três beijinhos na face. Maalêsh!
Na época em que estivemos no Egito, pudemos observar a aplicação prática dessa filosofia do maalêsh, muitas vezes relacionada ao desleixo e à irresponsabilidade. Uma vez vi-mos, espantados, um motociclista carregando um garotinho de uns 4 ou 5 anos, possivelmente seu filho, e fazendo malabarismos na avenida congestionada, andando em cima de uma só roda, a moto empinada. Nas comemorações - Copa do Mundo na Itália, fim da Guerra no Golfo -, era comum as crianças andarem em cima dos capôs dos carros, ou agarradas nos estribos, sem que os adultos tomassem qualquer iniciativa para coibilas.
Outras vezes, víamos pessoas atravessando as ruas movimentadas sem precaução alguma, os carros tendo que frear bruscamente. Um dia, perto de nossa residência, uma mulher literalmente deu uma pirueta no ar, ao ser atropelada quando tentava atravessar a Rua da Liga Árabe, uma avenida larga e moderna. Ela entrou na rua movimentada como se estivesse andando despreocupada dentro de sua casa. O motorista do carro que atropelou a mulher escapou por pouco de ser agredido por uma pequena multidão que apareceu de re-pente. Em vez de levarem a acidentada imediatamente ao hospital, ficaram discutindo em altos brados, como costuma acontecer nesses casos. Aproximamo-nos do grupo e misturando algumas palavras de inglês e árabe, como mustáshfa (hospital), parece que conseguimos o intento: o grupo deixou de discutir e embarcou a mulher no carro para levar ao médico.
A filosofia do maalêsh também se observa na falta de cuidado com as coisas. Na chegada ao Egito, quando tivemos que procurar um apartamento para morar, as residências normalmente tinham péssimo aspecto, com a cozinha impregnada de gordura pelas paredes e o fogão caindo aos pedaços. Preferem comprar um fogão novo a manter o mesmo limpo.
Um exemplo de desleixo, de maalêsh, o jornal semanal egípcio Al-Ahram, editado em inglês, nos brindou em sua edição nº 16, de 13 Jun 91: uma página inteira estava com a impressão às avessas. Porém, o jornal não perdeu o rebolado. No número seguinte pediu desculpas e, com humor, garantiu que em outro problema desse tipo um espelho acompanharia o jornal... Maalêsh!
Apesar de existir o fatalismo do maalêsh, convém ressaltar a solidariedade dos egípcios uns com os outros. Nas rodovias, quando ocorrem desastres de automóveis mais graves, com mortos ou feridos, todos procuram parar para prestar ajuda. Várias vezes observávamos, no Cairo, a presteza de todos em correr com extintores de incêndio para auxiliar um companheiro em apuros, com o carro em chamas, o que ocorre com frequência devido ao forte calor e à falta de manutenção dos veículos.
Um ato de solidariedade típica do egípcio observamos por ocasião do incêndio em uma escola pública do pré-escolar, aos fundos da Embaixada Brasileira. Todos os transeuntes procuravam ajudar os bombeiros, muitas vezes mais atrapalhando do que auxiliando, porém todos solidários na tentativa de extinguir o incêndio. Os carros nas imediações foram levados para longe com as forças das mãos, não se sabe como. Houve até cenas hilárias, como do rapaz voluntário, que segurou uma mangueira de bombeiro para ajudar no combate ao fogo e deu o maior banho na multidão em volta quando a água foi ligada.
Outra expressão muito conhecida no Egito é bukra, int-chaalá (amanhã, se Deus quiser). Esse amanhã, muitas vezes, pode ser amanhã mesmo, semana que vem ou no próximo mês. Tem uma tabuleta nas repartições públicas onde se lê: "Alá abençoa os pacientes".
Intchaalá é uma expressão que se ouve em toda conversação árabe, praticamente em cada frase. Na rua, no rádio ou na TV, da boca dos jogadores de futebol durante a Copa de 1990 na Itália, assim como nas entrevistas dos soldados indo ou retornando da Guerra no Golfo Pérsico, pudemos observar que a expressão intchaalá era constantemente usada. Isso demonstra a grande religiosidade arraigada nos costumes árabes, que não esquecem de afirmar que tudo conseguirão, se Allah assim o permitir.
O bakshish
A corrupção no Egito é bastante grande. Há sempre um "jeitinho" para tudo. As gorjetas ou bakshish são solicitadas a todo momento, tanto pelos pobres pedintes e garotos "flanelinhas" nas ruas junto aos automóveis, quanto nas repartições públicas.
Na rua, o bakshish tem seu ritual. Você não deve entregar a nota de dinheiro aberta. Deve dobrá-la várias vezes ou enrolá-la como um cigarro de palha, escondê-la sob a palma da mão e entregar com discrição. Principalmente se for para um policial...
Uma vez, no Museu do Cairo, um soldado que estava de serviço se aproximou da gente e, muito atencioso, nos levou para uma sala ao lado, para nos dar algumas explicações, que não entendemos, sobre algumas estátuas do período ptolomaico e romano, longe da vista de seu superior. Para, logo em seguida, na maior cara-de-pau, nos pedir o bakshish.
Quando da transferência do carro Fiat Fura, do Edison Netto - meu antecessor - para o meu nome, em 1990, o bakshish solicitado foi de 400 libras, mais ou menos 150 dólares. O carro deve ficar no nome do estrangeiro durante 5 anos para depois poder ser vendido. Como só ficamos 2 anos, tempo de nossa missão no exterior, esse foi o "jeitinho" arranjado para eu comprar o carro. O mesmo valor foi pedido posteriormente, em 1992, quando tive que vender o carro. Porém, o problema todo daquela transferência do carro para o meu nome não foi só o bakshish citado. Após obter o nada consta referente a multas e outras exigências, tive que voltar várias vezes ao Departamento de Tráfego local, com o contínuo que trabalha na aditância, Salah, me ajudando como intérprete.
A cada entrada naquela repartição pública tínhamos que preencher fichas e comprar selos (no Egito, até os cheques ainda usam selos). Lá dentro, em cada escaninho - e são muitos - tivemos que deixar uma "contribuição". O engenheiro que checou o número do chassis do carro, depois de receber 20 libras, exigiu mais 10. E a gente correndo de um lugar para outro, comprando selos aqui, formulários acolá, e cada um querendo a sua parte. Ninguém tinha pressa, muitos funcionários andando de um lado para outro, uns tropeçando nos outros, copos de chá quente sendo trazidos a todo instante.
Depois de quase 2 horas perambulando como alma penada, já perto do meio-dia, o funcionário que tinha a chave do cofre onde ficam os formulários dos certificados de propriedade a serem preenchidos disse que o "processo" estava dando muito trabalho a eles e que o expediente já tinha encerrado. Lógico, era a senha para mais um bakshish...
Por último, deram-me um papel para assinar, escrito em árabe, onde eu não entendia nenhum rabisco. Perguntei ao Salah do que se tratava e ele me garantiu que era uma declaração de que eu havia resolvido todos os trâmites burocráticos do veículo e que eu não tinha pago nenhuma gratificação naquela repartição. Fazer o quê? Maalêsh! Passei a entender por que Alá abençoa os pacientes...
A corrupção é mesmo uma praga mundial. Em 1991, o Egito chegou a possuir uma "bancada do pó", com 10 deputados suspeitos de pertencerem ao tráfico de drogas. Por ocasião do encerramento do exercício financeiro - em julho -, era comum no Egito aparecer incêndios "casuais" em muitas lojas comerciais e repartições públicas. Muitos alunos egípcios das escolas públicas só conseguem passar de ano se deixarem uma quantia "por fora" nas mãos dos professores.
Essa corrupção generalizada talvez seja resultado dos péssimos salários pagos aos funcionários egípcios. Na época, um funcionário público começava ganhando 80 libras egípcias, o que dava menos de 25 dólares por mês. Esse era também o salário de um subtenente do exército egípcio, meu colega de graduação naquele tempo. Um general egípcio ganhava o equivalente a 200 dólares. E um soldado recruta, 5 libras, mais ou menos 1 dólar e meio. Um engenheiro formado, com vários anos de serviço, recebia em torno de 200 libras, como nos disse o gerente italiano da Fiat no Cairo, Domênico, casado com uma brasileira.
O leitor certamente dirá: "Mas o que vale é o poder aquisitivo. O preço das coisas no Egito deve ser baixo". Nem tanto assim. Senão vejamos.
A miséria da classe mais pobre
Embora uma parcela da população egípcia tivesse, na época em que lá estivemos, uma espécie de "vale de ração", com o objetivo de mensalmente adquirir uma cesta básica em armazéns públicos por um preço bastante baixo, devido aos subsídios do governo, os produtos não eram baratos para o povo em geral. Agora, com a ingerência do FMI depois da Guerra do Golfo para sanear as finanças do Egito e com o governo cortando todos os subsídios de alimentos e serviços públicos, além de manter um câmbio artificial entre a moeda egípcia e o dólar americano, a situação é muito pior. Dois terços dos alimentos são importados. O "povão" nunca come carne.
Vejamos alguns preços de produtos, à época, encontrados no Cairo, em libras egípcias (LE) e dólares americanos (US$):
- café em pó, 1 kg LE 12,80 ou US$ 3,86;
- café solúvel, 200 g LE 10,20 ou US$ 3,08;
- carne para bife, 1 kg LE 12,00 ou US$ 3,62;
- batata, 1 kg LE 1,25 ou US$ 0,37;
- açúcar (cristal), 1 kg LE 2,00 ou US$ 0,60;
- queijo, 1 kg LE 15,00 ou US$ 4,53;
- frango, 1 kg LE 5,00 ou US$ 1,51;
- banana d água, 1 kg LE 3,00 ou US$ 0,90;
- maçã local (ácida) 1 kg LE 3,00 ou US$ 0,90;
- maçã red, 1 Kg LE 12,00 ou US$ 3,62;
- uva branca, 1 kg LE 1,50 ou US$ 0,45;
- pão de forma LE 2,60 ou US$ 0,78;
- coca-cola, 2 l LE 3,00 ou US$ 0,90;
- leite em pó, 400 g LE 5,75 ou US$ 1,73.
O câmbio utilizado foi de 1 dólar para 3,31 libras, a cotação de 26 de agosto de 1991, data em que terminei de escrever uma "cartinha" de 29 folhas datilografadas para parentes e amigos no Brasil. Aquela "cartinha" acabou se tornando o gérmen deste livro. Quando saímos do Egito, em abril de 1992, o câmbio era de 1 dólar para 3,33 libras. O câmbio pouco tinha mudado. Porém, o pão de forma tinha aumentado para 5 libras e o queijo para 17 libras o quilo.
Muitos egípcios se mostraram bastante criativos frente à alta dos preços. Como me confidenciou um amigo que recentemente voltou do Egito, alguns comerciantes sem escrúpulos descobriram um meio bastante simples de não aumentar os preços: diminuíram o tamanho das embalagens. Os preços do feijão e do arroz não subiram. Mas as embalagens foram decrescendo com o correr do tempo e por fim só continham 400 gramas do produto... Maalêsh!
A verdade é que o povo humilde do Egito só come carne uma vez por ano, na época da Festa do Sacrifício, quando são abatidos carneiros e ovelhas para lembrar Abraão, que quase sacrificou seu próprio filho, ocasião em que os árabes mais ricos distribuem carne aos mais pobres. Senão, no resto do ano, a única alimentação da classe humilde é o aesh, aquele pão redondo, com algumas folhas de alface ou algumas fatias de tomate conseguidas nas "xepas" de final de feira. E o indispensável e onipresente shái (chá), que pode ser local, do Sudão ou do Sri Lanka.
Um chá muito popular no Egito é o de karkadeh (ibíscus), de grande valor medicinal. Uma das bebidas preferidas durante o mês do ramadã, o ibíscus é rico em proteínas, minerais e óleo orgânico, e bom para asma e problemas do estômago.
Com os salários muito baixos e os preços nas nuvens - o mesmo que acontece no Brasil, onde os oligopólios e os comerciantes sem escrúpulos espoliam o povo -, é fácil imaginar a penúria em que se encontra a população mais pobre do Egito. E pobreza, no Egito, é pobreza mesmo. As favelas cariocas, com muitas casas em alvenaria, luz, água por perto, não se comparam, em conforto, aos ranchos de barro batido com estrutura em bambu e cobertura de folhas de tamareira que são os barracos encontrados na periferia do Cairo, ao longo de muitos canais do Rio Nilo e no interior do país. Aquilo é, realmente, pobreza. Miséria semelhante vimos, também, em alguns barracos de refugiados palestinos na cidade de Jericó, quando viajamos a Israel.
Em compensação, a classe mais abastada costuma esbanjar. A mesa sempre tem que ser muito farta. Por isso, há muito desperdício. Foi o que pudemos notar quando íamos a restaurantes ou lanchonetes: invariavelmente, eles pediam uma quantidade enorme de pratos diferentes e deixavam tudo pela metade. Nós, que pedíamos só o que conseguíamos comer, devíamos ser taxados de sovinas.
Alguns preços no Egito eram melhores que no Brasil. Por exemplo, baixelas em aço inox, sapatos, camisas, roupas de couro. Sem dúvida, devido à baixa remuneração da mão-de-obra local. No Brasil deveria ser o mesmo, com os salários, de modo geral, muito baixos. O Brasil consegue a proeza de colocar no mercado produtos com preços de 1º Mundo, pagando salários não de 3º mas de "5º Mundo".
O casamento egípcio
A bem da verdade, o que conseguimos decifrar naquele mundo exótico e surrealista - o Egito - é que a classe mais alta, bem instruída, que tem parabólicas, que fala inglês e passa as férias na Europa, tem um modo de vida bem diferente da classe mais humilde, que deve ser a única a sofrer as desvantagens provenientes dessa sociedade onde os homens ditam as normas.
No Cairo, é uma coisa, a mulher é bastante liberal. No interior do Egito é bem diferente. Lá há ainda o costume do pai exigir um dote para entregar a filha ao futuro marido: pode ser dinheiro, ouro, camelos, bois, ovelhas, carneiros ou terras. Nos grandes centros isso já não acontece.
A virgindade da noiva é uma exigência que muitos egípcios não abrem mão, podendo o noivo anular o casamento se descobrir na noite das núpcias que sua mulher não é mais virgem. Há ainda o costume de muitos noivos exibirem o lençol manchado de sangue, na manhã seguinte à primeira noite, para provar aos familiares e aos amigos que sua mulher era virgem e que foi deflorada. Convém lembrar o aspecto religioso da virgindade, já que o Corão promete mulheres virgens ao fiel muçulmano que atingir o paraíso.
Os rapazes, desde muito cedo, são iniciados no jogo do sexo. Assim, muitos homens, ao se casarem com moças bem mais novas e virgens que não tiveram nenhuma experiência anterior, sentem a responsabilidade da primeira noite e muitas vezes não conseguem completar a relação. A pressão é muito grande para a virilidade do homem. Soumaya Namane Guessous, escritora marroquina que se notabilizou com o livro Além de Todo Pudor, afirmou que há regiões em seu país em que aparece um homem encarregado de intervir nesses casos para completar o defloramento.
A moça árabe, antes do katb al-kitab, o contrato formal do casamento, recebe o shabka (presente) do futuro marido, que são jóias em ouro e diamantes, após chegar a um acordo com o pai da moça. Nessa ocasião, é oficializado o noivado, com a leitura da Fatihah, capítulo de abertura do Corão. A família do homem, geralmente, é responsável pela compra ou aluguel da casa. À família da mulher compete providenciar o mobiliário. No Egito, o divórcio é permitido e regulado por leis religiosas.
As jóias que a mulher recebe no noivado e durante sua vida de casada é, de certa forma, uma "poupança" que ela vai fazendo ao longo da vida, para enfrentar algum revés. Alguns egípcios, com salários muito baixos, nos confidenciavam sua agonia em não poderem se tornar noivos, nem se casarem, pois o dinheiro não alcançava o dote exigido pela futura noiva. Muitos se casam com idade avançada, quando só então conseguem dar o dote inicial à noiva.
Embora não seja mais frequente no Cairo - aliás, muito difícil mesmo -, há casos em que um homem tem duas, três ou até quatro mulheres. Quatro mulheres é o máximo que o Corão permite que o fiel muçulmano tenha. O Amir (Emir, Príncipe) do Kuwait, quando esteve no Rio de Janeiro por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, trouxe "apenas" 10 das 300 mulheres que possui em seu harém. A interpretação do Corão, para ele, assim como para os reis e príncipes da Península Arábica, é mais livre. Naqueles países, cada homem rico possui muitas mulheres, algumas sendo meninas de 11 ou 12 anos compradas na Índia ou na Tailândia por 50 dólares. Em uma coisa o Corão é taxativo e não deixa dúvidas: todas as mulheres têm o mesmo direito, em todos os sentidos. Na sala, na cozinha, na cama.
A explicação que um egípcio me deu dessa vantajosa posição masculina era de que o profeta Muhammad (Maomé) permitia a poligamia por causa das guerras de conquistas islâmicas que havia na época, com um "déficit" muito grande de homens, que morriam nas guerras, deixando muitas viúvas e muita moça para "titia". Que era para evitar a prostituição e para que as mulheres sem marido não enlouquecessem. Eles devem ter gostado do costume: as guerras de conquista acabaram (com exceção de uma ou outra que acontece quando aparece um Saddam Hussein) e os haréns continuam a proliferar por lá, principalmente na Arábia Saudita e nos emirados do Golfo Pérsico. A bem da verdade, deve-se acrescentar que no Ocidente pratica-se uma poligamia mais sucinta, como é o caso daqueles que se divorciam várias vezes durante a vida para procurar novos parceiros. Ou escancarada, caso das pessoas casadas ou solteiras que trocam de parceiros com a mesma frequência com que se troca uma cueca.
No Egito, a prática da poligamia se restringe às pessoas de muitas posses e não é frequente nos grandes centros urbanos. Há casos em que várias mulheres dividem a mesma casa com um só marido. E os filhos ficam agradecidos: em vez de uma, eles têm duas mães. Aceitam esse costume com mais naturalidade do que nós, porque desde muito pequenos já convivem com essa tradição.
A poligamia, embora permitida no Egito, traz múltiplos problemas. De acordo com estudos recentes, 50% dos homens que têm uma segunda mulher o fazem devido às diferenças entre eles e suas mulheres ou suas respectivas famílias e 14% porque a mulher não lhes pode dar criança ou lhes dá somente meninas. Outras razões incluem a viagem do marido para o exterior, quando a mulher não o quer acompanhar, ou então quando a mulher adquire doença crônica e não pode mais cumprir com as "obrigações" de esposa. Deve-se destacar que na Turquia - um país muçulmano bastante liberal em seus costumes - a poligamia é proibida.
Casar jovem no Egito é um luxo somente acessível aos ricos. As moças egípcias, que tradicionalmente se casam muito novas, são, dessa forma, muitas vezes incentivadas a se casarem com homens bem mais velhos, às vezes já casados.
O casamento egípcio é muito bonito. O carro que transporta a noiva é todo enfeitado com flores e fitas coloridas. Normalmente, o casamento acontece às quintas-feiras, véspera do feriado semanal muçulmano.
A festa de casamento egípcio começa com uma "procissão" na rua, a zaffa, com tambores, tamborins e trompetes, que produzem uma música rítmica e ensurdecedora. Mulheres emitem um grito característico, o zagharit, como um trinado, ao agitarem rapidamente a língua - como os gritos de índios que se vê nos filmes de faroeste. Não sei como elas conseguem emitir aquele grito característico, qual a técnica utilizada. Mas é bem interessante.
Na frente da procissão vêm os músicos e dançarinos, vestidos com roupas brancas e vermelhas. As damas de honra, normalmente em número de seis, vestindo roupas brancas e carregando longas velas ou candelabros adornados com fitas e flores, marcham ao lado dos noivos, três de cada lado. Um pequeno garoto ou menina, à frente da zaffa, joga pétalas de rosas vermelhas sobre os noivos.
A noiva usa um longo vestido e véu brancos. A procissão chega ao local da recepção e o casal troca cumprimentos com os convidados, para depois se dirigir à kosha, poltrona prateada com grinaldas de flores, no alto de uma plataforma, para uma melhor vista do salão com os convidados.
Após a recepção, os noivos passam juntos a lailat al-dokla (a primeira noite), na mesma cidade onde ocorreu a recepção. Irão passar a noite num hotel ou num apartamento vazio de algum amigo, porém nunca na casa dos pais, o que é considerado de mau agouro. A noiva dá de presente ao marido pijamas de seda, enquanto ele dá uma peça de jóia.
Enquanto os mais pobres fazem apenas uma zaffa na rua, os ricos alugam hotel 5 estrelas, com custos muitas vezes chegando a mais de 60 mil dólares. A festa é de arromba: bufê sofisticado, lembranças em ouro para os convidados, bolo gigantesco e a khosha decorada que parece um sonho, com cadeiras ricamente enfeitadas, onde ficam os noivos. A zaffa é feita em pleno salão, com muita música, cantos-solo de cantores populares famosos, além dos gritos estridentes imitando índio. E - ponto alto de toda festa egípcia - não pode faltar a dança do ventre, com dançarinas escolhidas a dedo.
No oásis de Siwa, perto da Líbia, as celebrações de casamento duram de 7 a 15 dias. A noiva troca de vestido todo dia. Assim, a partir dos 9 anos, as meninas de Siwa começam a preparar os vestidos de noiva com a ajuda da mãe e da avó. As noivas dos beduínos do Sinai vestem um véu chamado konaa, decorado com moedas de ouro ou prata, conforme o status financeiro da família. O boro, que cobre a face da noiva, é também decorado com ouro ou prata e é considerado parte do dote. Cada governadoria do Egito tem sua dança nupcial característica. No Alto Egito, por exemplo, há a dança do tahtib, dança da vareta, na qual dançarinos esgrimam com suas varetas ao som do mizmar, um instrumento de sopro rudimentar.
Al-oud, avô do violão
Um aspecto muito importante na cultura árabe é a música. Ao contrário da música ocidental, que normalmente é escrita em tom maior, as melodias árabes são escritas em uma escala exótica, fazendo com que as músicas pareçam soar em tom menor. Isso confere uma certa gravidade e tristeza à música. Enquanto nós usamos uma escala musical de tons e semitons, eles utilizam uma escala que tem intervalos, entre as notas, de até 1 tom e meio, parecendo um pouco com a escala cigana. No início, a música árabe chegava a agredir nossos tímpanos. Mas, aos poucos, fomos nos acostumando a tirar prazer da exuberante música oriental.
A música egípcia é executada, invariavelmente, em compasso quaternário. A cadência é um pouco parecida com o bolero, às vezes em ritmo lento, outras vezes em ritmo frenético. O que não pode faltar na música árabe são os infindáveis trinados, floreios e mais floreios emitidos pelos instrumentos musicais, que nos fazem lembrar um pouco a música barroca.
Os egípcios da época dos faraós nos legaram o alaúde, al-oud em árabe. Levado para a Espanha durante a dominação mourisca, o alaúde se popularizou em toda a Europa, modificando-se através do tempo, tornando-se o avô do violão. O compositor Joham Sebastian Bach também escreveu músicas para alaúde.
Há 3 mil anos atrás, o alaúde era feito de casca de coco, e as cordas de crina e rabo de cavalo. Depois, as cordas eram feitas de tripa de gazela. É o mais antigo instrumento musical oriental de cordas e a base da maior parte das músicas e cantos árabes. Foi primeiro usado no antigo Egito, no período do Novo Reino (1580-1085 a. C.). Uma tumba faraônica, em Lúxor, pertencente a dois altos funcionários do faraó Tuthmosis IV, mostra uma cena com homens e mulheres tocando alaúde.
Convém acrescentar que, além do alaúde, o antigo Egito conhecia ainda outros instrumentos musicais. Uma pintura faraônica mostra 3 mulheres tocando instrumentos distintos de música: a da direita com harpa, ainda sem a coluna para apoio; a do meio com uma espécie de violão com longo braço e uma única corda; e a da esquerda com uma espécie de flauta com 2 tubos. Até parece um rascunho da pintura cubista Os três músicos, de Picasso.
Atualmente, o alaúde é feito de nogueira, pessegueiro ou sândalo, e as cordas - em 5 ou 6 pares - de fios de naylon. A ponta do braço do alaúde, onde são fixadas as cordas, é "quebrada", entortada para trás. O alaúde é fabricado em 3 tipos: o egípcio, o shami (região da Síria, Líbano, Palestina e Jordânia) e o turco. O alaúde egípcio é resistente e tem um som genuinamente "oriental", enquanto o shami é mais fraco e fino. O alaúde turco fica no meio-termo. No Egito, o alaúde tem o formato de uma meia-pera, medindo a caixa 55 cm de largura e 84 cm de comprimento, e o braço 1/3 do comprimento da caixa.
Além do oud, outro instrumento musical bastante popular no Egito é a ribaba. Rudimentar, com uma ou duas cordas e parecida com o berimbau brasileiro, a ribaba é tocada com o auxílio de um arco. O som é estridente e o instrumento consegue emitir uma gama razoável de notas musicais. A ribaba é também um instrumento de auxílio para o recital da Sirra Al-Hilaliyya, a "Ilíada" árabe, um poema épico que é ainda recitado no Alto Egito.
Músicos egípcios famosos como Abdel Wahab, considerado o pai da moderna música egípcia, falecido em 1991, utilizaram o oud de uma maneira muito particular, principalmente como instrumento-solo em orquestras. Poucas horas depois da Revolução de 23 de julho de 1952, o músico egípcio Al-Son-bati pegou seu alaúde e compôs, espontaneamente, a famosa canção nacional Misr, Misr, Misr Omuna (Egito, Egito, Egito nossa Mãe).
Sibha, o "rosário" islâmico
A sibha era conhecida nos tempos antigos e usada como ornamentação e amuleto e, acredita-se, foi introduzida no mundo cristão e árabe pelos chineses e indianos.
Várias religiões usam a sibha de um modo ou de outro. As palavras podem ser diferentes mas o propósito é o mesmo: louvar a Deus. A palavra sibha provém de tasbeeh, uma palavra que reconhece a perfeição de Alá através da fala de seus "99 nomes perfeitos".
A sibha tem diferentes partes: as contas, um contador e uma mizana, que significa "minarete" e está na parte mais alta da sibha.
Há dois tipos de sibha largamente conhecidos no islamismo: aquela de 33 contas e uma outra de 99 contas. A primeira é 1/3 da sibha total e é a mais utilizada pela população do Cairo. Víamos a profunda religiosidade dos egípcios muçulmanos rezando com seus "rosários" nos mais diferentes locais: no táxi, nas ruas, sentados nas calçadas. Como sabemos, o fiel muçulmano não deve proferir o nome de Alá, porém os seus vários nomes perfeitos, como por exemplo: Al-Khabir (o Grande), Al-Alim (o Onisciente), Al-Basir (o Onipresente).
As contas da sibha podem ter diferentes formas, como a de oliva, de uma lágrima ou semente de trigo. As contas podem ser feitas com material barato, como plástico, ou material caro, como pedras preciosas ou ouro.
Os materiais mais utilizados para fabricar sibha no Egito são pó de âmbar, osso, madeira de sândalo e yousr, uma espécie de coral. No Egito, contas já lapidadas de rubi, jade, esmeralda e lazulita são importadas do Brasil, Itália, Alemanha e dos EUA.
Há quadros egípcios que contêm gravados os "99 nomes perfeitos de Alá", todos eles começando com o artigo "Al". Podem ser pequenos tapetes de lã ou seda pura, ou quadros com fundo negro com os nomes em dourado, encontrados com frequência nas lojas e nas residências dos egípcios.
Dr. Ragab e a reinvenção do papiro
Os egípcios foram pioneiros em vários ramos da ciência, como medicina, astronomia e a escrita. A escrita egípcia começou com simples pinturas de objetos (pictogramas), evoluiu para a pintura da ideia (ideograma) e terminou com o hieróglifo (fonograma) traçado no papiro, palavra que deu origem, mais tarde, ao vocábulo "papel". Há mais de 5.000 anos e num período de 3.000 mil anos dominaram esse método de imprimir caracteres e desenhos em papiro, até que em 105 de nossa era os chineses inventaram o papel. O papiro, a partir de então, entrou em desuso e sua técnica de fabricação foi esquecida. Além do Egito, o papiro crescia também na Síria e na Mesopotâmia.
A papirologia é uma ciência auxiliar da História, abrangendo documentos que datam do II milênio a. C. até o século XII d. C. O interesse pelos papiros começou em 1752, com as descobertas feitas nas ruínas de Herculano, onde foram encontrados mais de 1.800 rolos de papiro, incluindo obras filosóficas de Filodemo, cuja publicação só ocorreu em 1793.
Na aldeia de Medinet, na região de Fayyum, ao sul do Cairo, foram descobertos mais de 100 mil papiros. Desses, 70 mil foram adquiridos pelo arquiduque Rainer e mais tarde doados à Hofbibliotheck, atual Biblioteca Nacional de Viena, que tem a maior coleção do mundo.
Encontra-se em papiro a maior parte do que se conhece da literatura do Egito antigo, incluindo os textos litúrgico-funerários do Livro dos Mortos. Em papiro conhecemos elementos para a história econômica, política e administrativa da antiguidade, bem como estudos matemáticos, tratados médicos, princípios de zoologia e botânica.
Para os estudos bíblicos, a papirologia se mostrou de grande importância: é em papiro que se conhece o mais antigo texto dos Evangelhos, o fragmento de João, 18: 31-33 e 37-38, além de escritos apócrifos e dos Evangelhos Coptas.
O Dr. Hassan Ragab, nascido no ano de 1911 em Helwan, sul do Cairo, graduou-se em engenharia, com estudos suplementares em Paris. Foi adido militar em Washington e embaixador na China, onde pela primeira vez se interessou pelo papiro, vendo a fabricação do papel-bambu dos chineses.
O Dr. Ragab, a partir dos anos 60, começou a pesquisar o segredo da manufatura do papiro. A planta só foi encontrada por Ragab no sul do Sudão e na Etiópia, de onde trouxe as primeiras mudas que tem na sua plantação de papiro, na chamada "Ilha Faraônica", no Rio Nilo, junto ao Cairo. Após vários anos de pesquisas, o Dr. Ragab conseguiu descobrir a técnica de fabricação do papiro que é hoje utilizada por muitos centros produtores nas imediações do Cairo. A "Ilha Faraônica" é assim chamada porque o Dr. Ragab instalou na mesma uma espécie de Disneyworld local, com dezenas de atores que se vestem como os antigos egípcios e cultivam a terra como nos tempos faraônicos. Uma festa para as filmadoras dos turistas.
A planta de papiro é na realidade um talo longo, de 2 a 3 m de altura, com folhas ralas na parte superior. Além do papel-papiro, a planta também era utilizada pelos antigos egípcios para a fabricação de barcos.
Para a confecção do papiro, corta-se o talo da planta em fatias e deixa-se na água por algum tempo para dissolver materiais estranhos, principalmente glicose (açúcar). Em seguida, as tiras são entrelaçadas, horizontal e verticalmente, e colocadas numa prensa para uma perfeita adesão. Não há necessidade de cola. A própria planta possui substância para essa adesão. Depois de seco, o papel-papiro é cortado em tamanhos diversos e os grandes centros de produção contratam um pequeno batalhão de pintores, principalmente estudantes da Faculdade de Belas-Artes do Cairo.
No caminho das pirâmides de Gizé até as pirâmides de Sakara, junto a um canal do Nilo para a irrigação, encontram-se os mais importantes centros produtores de papiros do Egito. Disputam a preferência dos turistas papiros simples, que na rua custam 1 libra, até os que cobrem uma parede inteira e valem um pequena fortuna. Antigos cooperadores do Dr. Ragab, depois de aprenderem o ofício, abriram suas próprias fábricas. No mesmo caminho podem ser visitados também grandes centros produtores de tapetes. Embora não tenham a fama dos tapetes persas, turcos ou paquistaneses, há tapetes egípcios para todos os gostos, desde tapetes minúsculos de lã, que custam 60 dólares, até os luxuosos tapetes 2x3 m, em seda pura, que custam até 20 mil dólares.
Pela durabilidade do material e por causa de sua significação histórica, importantes documentos governamentais egípcios são, ainda hoje, redigidos em papiro. Anos atrás, no Brasil, muitos diplomas de engenheiros e médicos eram também feitos em papiro, como me confidenciou um amigo.
Conhecemos os Institutos de Papiro Dr. Ragab, no Cairo e em Lúxor, ambos os museus instalados em barcos ancorados no Nilo. Nesses museus pudemos observar muitos desenhos em papiro, tanto reproduções de cenas faraônicas encontradas em templos e tumbas, como motivos muçulmanos do Corão e até desenhos coptas, como a Sagrada Família que fugiu para o Egito. Nos museus há fotos do Dr. Ragab com personalidades do mundo inteiro, como Henry Kissinger e Jimmy Carter, demonstrando o prestígio do inventor.
Há também os espertalhões que, ao invés de utilizarem a planta de papiro, fazem uso de folhas de bananeira ou cana, obtendo um produto semelhante, porém de péssima qualidade e nenhuma durabilidade.
Os núbios - um povo que perdeu sua terra
Em 1971, foi inaugurada a Represa de Assuã, construída com ajuda técnica e financeira da antiga União Soviética. A Represa inundou todo o território fértil da Núbia, no Vale do Nilo, originando-se a formação do Lago Násser, de 500 km de extensão. O termo "núbio" é genericamente aplicado ao povo que habitava entre a 1ª Catarata, em Assuã, e Dongola, no Sudão. A Represa passou a regularizar a vazão do Rio Nilo, evitando as enchentes. Porém, o Vale do Nilo, de Assuã até o Delta, passou a não mais receber a preciosa terra negra, o húmus que as enchentes traziam e fertilizavam o Vale. Com isso, os terrenos estão ficando muito salinizados e não se sabe ainda o impacto que isso poderá ter no futuro.
Para evitar a submersão de numerosos templos e estátuas faraônicas, devido à construção da Represa de Assuã, a UNESCO promoveu uma gigantesca operação de engenharia, fazendo resgate de numerosas obras e transferindo de local templos inteiros. O complexo de Abu Simbel, o maior monumento no local, com templos e estátuas de Ramsés II medindo 20 m de altura, foi cortado em enormes blocos e reconstruído nas imediações, em local mais alto. O templo de Philae, coberto pelas águas da antiga Represa de Assuã, construída em 1902, também foi desmontado pela UNESCO e reconstruído, pedra sobre pedra, em outra ilha, próxima do local original.
Em Abu Simbel observa-se outra prova do avanço da astronomia no antigo Egito: nos dias 20 de fevereiro e 20 de outubro, dias do equinócio, os raios do sol passam por uma porta e iluminam uma estátua do faraó no fundo do templo.
Durante os 10 anos antes do final da construção da Grande Represa, a população total da Núbia foi retirada de sua terra natal. Uma metade foi colocada no Egito, em Kom Ombo, 15 km ao norte de Assuã e a outra metade assentada no nordeste do Sudão, em Qashim Al-Girba. Anteriormente, outras represas menores, construídas a partir de 1902 e cada vez mais altas, começaram a inundar as terras núbias e seu povo tinha que, cada vez mais, se afastar de seu torrão natal.
Os núbios são facilmente reconhecidos no Egito pela sua pele preta, mas sem os traços negróides da África subsaariana. Os núbios são altos e esguios, de olhos amendoados, nariz pequeno e lábios finos. Até hoje mantêm suas tradições e sua linguagem própria e poucos se casam com egípcios propriamente ditos.
Os árabes conquistaram a Núbia no século VII e retiraram-se após concluírem um tratado com o rei núbio cristão, que durou 600 anos. Os núbios concordaram em enviar, todos os anos, 350 escravos ao Cairo em troca de alimentos, cavalos e roupa. A partir do século XI, começaram a se estabelecer tribos árabes na área, que se integraram aos núbios, vindo a ser conhecidos como Beni Kanz (Filhos de Kanz), um nome ainda aplicado aos núbios do norte.
Os núbios sempre foram uma presença constante no Egito, como os barqueiros do Nilo junto às rochas graníticas de Assuã, os guardas dos monumentos do Alto Egito, empregados domésticos, copeiros e cozinheiros. Atualmente, muitos se destacam como doutores e cientistas provenientes das melhores universidades egípcias.
As mulheres núbias são conhecidas como exímias artífices de joalheria feminina, principalmente aquela feita de contas de vidro. Entre seus produtos destacam-se as tiras de taha, fitas de contas afixadas na frente do véu preto que as mulheres egípcias usam, criando um efeito bonito para a cabeça. As taha são usadas, ainda, como cinto e nas golas em "V" de vestimentas femininas. As núbias costumam, ainda, fazer tranças nos cabelos, umas nas outras.
Uma outra marca registrada da cultura núbia são os tapetes de lã ou algodão, de acabamento rústico. Normalmente, os tapetes núbios retratam cenas árabes, com camelos, tamareiras, casas com coberturas abobadadas - típicas da região -, em tons preto-e-branco, destacando-se ainda as figuras humanas estampadas em tapetes, como se fossem máscaras de atores teatrais.
CAPÍTULO III
ANDANDO PELO EGITO
Nossa casa e nossos amigos
Além dos brasileiros que trabalhavam na Embaixada e de algumas brasileiras casadas com egípcios, conhecemos várias famílias de nacionalidades as mais variadas. Nos cursos de inglês que frequentamos no Cairo, conhecemos, além dos árabes, pessoas dos mais remotos cantos do mundo, incluindo professores britânicos, americanos e australianos. É desnecessário dizer da riqueza, em termos culturais, que esse contato nos propiciava. Devido à facilidade da língua, e até por causa de uma melhor e mais rápida "sintonização", trocávamos visitas com mais frequência com brasileiros, argentinos, espanhóis, bolivianos e italianos.
Assim, fizemos uma boa amizade com a família do auxiliar do adido militar da Argentina Raul, um veterano da Guerra das Malvinas, que tinha 3 chicos mais ou menos da idade dos nossos. Saíamos juntos muitas vezes para a pizzaria Hut ou para tomar banho no Mar Vermelho, a 160 km de distância, perto de Suez. Com aquele contato frequente, todos nós já conseguíamos entender bem o espanhol. O Wagner até arriscava um "portunhol" quando falava com os nenos.
Procurávamos, ma medida do possível, viver o novo país, conhecer tudo o que o Cairo tem de mais interessante e viajar pelo interior do Egito. Além dos dos pontos turísticos, também frequentávamos centros culturais, museus, exposições e "bazares" das embaixadas.
Uma festa à fantasia fez sucesso na casa do sargento Raul, na comemoração de seu aniversário. A entrada para a festa, só com fancy dress. E com a cabeça coberta, para ninguém ser identificado. A Nice vestiu-se de odalisca e eu de beduíno árabe. Era um show à parte para os moradores do prédio onde morava o argentino, principalmente para as crianças, verem os mais variados tipos de fantasias aparecerem na festa. Causou sensação um jornalista chileno da EFE espanhola vestido à la terrorista palestino, com uma "metralhadora" a tiracolo.
Na entrada da festa, fui abordado por "Chapeuzinho Vermelho", com cestinha e tudo, que me pegou para dançar. Minha mulher me observava com olhar desaprovador... Não consegui identificar a pessoa com quem estava dançando, apenas que era um homem. Na hora de cantar o "parabéns p'ra você", todos tiraram suas máscaras e pude descobrir quem fora meu par na dança: o coronel adido militar da Argentina.
O nosso lazer mais frequente era ver vitrines e lojas no Cairo, folhear livros em livrarias, ir ao Zoológico e ao bairro de Khan Al-Khalili, assistir filmes no cinema Al-Tahrir, muito bom, com cadeiras numeradas, ir a piscinas em hotéis no Cairo, frequentar festinhas de aniversário e andar a cavalo ou a camelo na área das pirâmides, onde há muitas baias.
Durante a semana a batida era firme: a Nice, que é professora, monitorava os estudos das crianças e eu ia trabalhar na Embaixada. No segundo ano eu levava o Wagner comigo, para aliviar o trabalho de minha mulher. As crianças estudavam por correspondência. O Colégio Anglo-Americano, do Rio de Janeiro, mandava as apostilas, a orientação para o monitor e as provas. Se fossem matriculados em algum colégio do Cairo - árabe, francês, inglês ou alemão -, haveria o problema da língua e seriam matriculados em um nível bem abaixo do deles. Além de não terem o ensino do Português. Assim, sobrou a opção do Anglo-Americano, o único colégio à distância reconhecido pelo Ministério da Educação.
Na aditância militar, era a primeira vez na vida que eu tinha contato com o pessoal do Itamaraty. Além do embaixador, o corpo diplomático da Embaixada Brasileiras no Cairo era formado por um ministro-conselheiro, uma primeira-secretária e um terceiro-secretário. Havia outros funcionários na chancelaria e no consulado, tanto egípcios, quanto brasileiros. O secretário da aditância militar era filho de um egípcio casado com uma brasileira e vivera até os 18 anos no Rio de Janeiro, e muito nos auxiliava nos trabalhos por ser fluente em inglês e árabe, além do português.
No contato com o pessoal do Itamaraty pudemos comprovar que a vida dos diplomatas não se resume no arquétipo hollywoodiano, com pessoas se refestelando em rodadas de uísque, andando em Mercedez-Benz, o bolso forrado de dólares. Além da barreira dos costumes e dos idiomas, há também muitas apreensões quando servem em países com algum tipo de convulsão social prestes a explodir. Sem lembrar o problema da formação escolar dos filhos, pelas transferências a outros países, uma constante em suas vidas. Porém, o que esses "andarilhos" conseguem obter em matéria de cultura pelas inúmeras viagens ao longo de suas vidas é algo realmente invejável e encantador.
O meu trabalho na aditância militar começava às 9 horas e terminava às 15 horas e 30 minutos. O expediente era de domingo a 5a. feira, porque 6a. feira é dia santificado para os muçulmanos. Assim, normalmente, o Wagner e eu chegávamos por volta das 16 horas em casa para almoçar. No início senti alguma dificuldade no trabalho administrativo, porque nunca havia estado numa função burocrática: sempre trabalhara em laboratórios fotográficos, tomadas de fotos e filmagens, edições de vídeo. Mas, com o tempo, deu para me aperfeiçoar no trabalho burocrático da aditância e posso afirmar que as burradas cometidas não foram muitas. Além do mais, como dizemos no Exército, "nada se cria, tudo se copia".
Os "purussauros" brasileiros
Aos domingos chegava a mala diplomática e sempre aguardávamos com bastante ansiedade alguma notícia do Brasil e, principalmente, a revista Veja que o nosso amigo Wilson Ramos dos Santos, de Brasília, nos mandava como brinde. A Veja era disputada quase a tapa em casa, inclusive pelo meu filho Wagner. Com essa revista ficávamos por dentro do que acontecia no Brasil, com notícias up to date. Além de Veja, recebíamos também o Jornal do Brasil, edições de domingo, onde eu apreciava os artigos de Fernando Pedreira, arguto observador da realidade brasileira, com seu estilo enxuto, erudito e incisivo que sempre me fascinou.
Uma coisa que nos chamou a atenção, na época, foi a imprensa recrudescer seus ataques ao governo Collor e às Forças Armadas brasileiras. Quanto a Collor, depois, infelizmente, fomos saber que a imprensa tinha razão. Porém, não entendíamos como a metralhadora giratória de quase toda a imprensa brasileira procurava desmoralizar e ridicularizar os homens de farda.
Observávamos que na imprensa brasileira, então, havia aquele eterno repisar em velhas feridas, que já deveriam ter sido cicatrizadas, mesmo porque a anistia fora concedida há mais de 10 anos. Porém, os revanchistas, batendo sempre na mesa tecla, ad nauseam. Uma hora as "Forças Armadas não servem para nada". Outra hora ridicularizavam os chefes militares, por qualquer motivo. Sem mencionar a "revisão" que pretendiam fazer sobre a vida heroica do patrono do Exército, o Duque de Caxias, querendo provar que na Guerra do Paraguai ele havia trucidado soldados paraguaios indefesos. Ou do filme Rádio Auriverde, de Sílvio Back, que tentou ridicularizar os nossos abnegados pracinhas na campanha da FEB, na Itália. Tudo isso prova o desejo funesto em tentar denegrir e desmoralizar o nosso Exército, uma das poucas entidades nacionais que ainda não caiu nas mãos dos sindicatos. Assim, é fácil entender porque querem acabar com o nosso Exército e criar uma espécie de Guarda Nacional, com direito a greves e arruaças, como já acontece com a Polícia Federal e muitas polícias estaduais.
Via-se o endeusamento de antigos guerrilheiros - como Lamarca agora está sendo feito por um filme de Sérgio Rezende -, como se todos fossem mansos cordeirinhos massacrados pelos militares. Querem porque querem um "Che" Guevara brasileiro. Em setembro de 1994, o "Tribunal da História", da TVE, "absolveu" Lamarca por 4 votos a 3 porque entendeu que ele "era um sonhador, um herói revolucionário, que sonhava em acabar com a pobreza e a desigualdade social". Sob essa ótica, poderíamos absolver todos os crimes de Stálin e Fidel Castro, de Mussolini e Hitler, por quererem impor os seus respectivos "sonhos". Assim, não será de estranhar se, além de Lamarca, Marighella, "Lampião, "Escadinha" e o último "Robin Hood" dos morros do Rio de Janeiro armado com AR-15 também vierem a ser alçados à condição de heróis nacionais.
Interessante é observar, ainda hoje, a total falta de lógica de alguns "intelectuais" brasileiros, que tanto criticam o regime militar brasileiro pós-64 e aplaudem, sem restrições, o terror praticado por Stálin e Fidel Castro. Voos e mais voos de "solidariedade a Cuba" são feitos por esses "intelectuais" para conceder uma sobrevida ao "dinossauro" cubano. Para os "purussauros" brasileiros, o Muro de Berlim continua rijo como nunca e parece que ainda alimentam o sonho de construir em nosso país uma "cortina de taquara".
Mas, voltemos à nossa vida no Egito após esta rápida digressão ocasionada pelos gritos histéricos contra os militares que ouvimos no outro lado do Atlântico, no Cairo. Enfim, os cães ladram, e o Exército passa.
Durante a estada no Egito, na contagem regressiva para o "repatriamento", que ocorreu em 1992, fazíamos um série de planos para a volta ao Brasil: um passeio pela Europa, comprar um carro, mobiliar a casa, já que nos desfizemos de tudo na viagem para o Egito, e reservar algum dinheiro para a possibilidade de comprar um apartamento. Apesar dos gastos elevados, sempre dá para economizar um bom dinheiro. E temos que aproveitar a chance para fazer um pé-de-meia, talvez única na vida, para não lamentar depois.
Assim, rapidamente nos aclimatamos no Egito, todos nos adaptamos bem à vida árabe. a poeira do deserto deve ter feito bem a todos, principalmente a nossos filhos, que cresceram como pé de milho. O Wagner logo alcançou o tamanho da mãe, a voz começou a engrossar e o bigode cresceu de repente. A Cris também se desenvolveu rápido, tomando corpo de mocinha. O que significava que eu estava ficando velho, com alguns cabelos brancos já aparecendo na cabeça.
Criação de cabras em apartamento
Mohandeseen era o bairro onde morávamos, na cidade de Gizé, agora abocanhada pelo Grande Cairo. Nome proveniente de muhandis (engenheiro), o "bairro dos engenheiros" é bastante novo ainda, moderno, muitos espigões estão em fase de construção.
O fim do Império Soviético
Quando chegamos no Egito, em 1990, uma reviravolta impressionante começou a mudar o mapa político de nosso planeta, que iria provocar a derrocada do comunismo na União Soviética e no leste europeu. Atlas geográficos tiveram que ser refeitos quase que diariamente. A poeira do Muro de Berlim, derrubado com alegria em 1989, ainda não havia assentado completamente. O réveillon daquele mesmo ano mostrou a alegria dos alemães no Portão de Brandemburgo, pela reunificação de seu país, uma difícil caminhada ainda hoje sendo percorrida por aquele valente povo.
Porém, na China, o furacão da liberdade que vinha do leste europeu não conseguiu fazer as reformas exigidas por estudantes, na Praça da Paz Celestial. Ainda não tinha chegado a hora da derrubada da "cortina de bambu". Como pudemos observar depois, talvez a China não estivesse tão errada assim. A antiga União Soviética primeiro concedeu abertura política para então promover a abertura econômica. O desastre se faz sentir até hoje. Enquanto isso, a China, embora tenha ainda um governo de ideologia comunista, promove uma abertura econômica de bons resultados antes de iniciar qualquer abertura política. Com o aumento do uso da tecnologia no campo, além do rápido crescimento industrial nas cidades, não será nada fácil controlar o provável fluxo de parte de seus 800 milhões de camponeses para a periferia das cidades. Imagine, que favelões poderão surgir.
Em 1991, após o malogrado golpe contra Gorbachev, começou a libertação de algumas repúblicas soviéticas, inicialmente as repúblicas bálticas. Foi tudo rápido demais e até hoje seus cidadãos perderam o rumo da nau, inclusive alguns países voltando a ter governos comunistas. Naquele mesmo ano, redescobrimos o holocausto com os campos de concentração na Iugoslávia, que começou a se esfacelar como país. Os sérvios começaram a fazer uma "faxina étnica", violando mulheres muçulmanas da Bósnia-Herzegovina, para "depurar" a raça, além de promover execuções em massa e destruir um patrimônio artístico e arquitetônico sem igual no mundo. De certa forma, explica-se essa barbárie, como será colocado nesse livro mais adiante.
Interessante foi eu saber com alguma antecedência o que poderia ocorrer na Iugoslávia, com o fim de seu regime comunista, ao manter longas conversas com um casal italiano, Vito e Carmela, que já tinham vivido oito anos naquele país. Antes de começar o colapso na Iugoslávia, em 1991, Vito já havia colocado em a situação: "Como pode sobreviver um país com 8 hinos e bandeiras diferentes?" Como se sabe, aquele país era formado por 6 repúblicas e 2 províncias autônomas e se falava, em todo o território, o servo-croata, o esloveno, o albanês, o húngaro e o macedônio - sendo o servo-croata a língua oficial. Um caldo de cultura que somente a mão de ferro do Marechal Tito conseguiu manter unido.
Fala-se muito no "fim da história", ocasionado pela derrocada do Império Soviético. Fogos pipocam no ar comemorando o fim do comunismo, porém muitos se esquecem que enquanto 20% da população mundial detiver mais de 80% da renda mundial, como ocorre hoje, a utopia socialista nunca irá acabar. Frei Betto e os teólogos da libertação que o digam. Para eles, o paraíso terrestre continua ao alcance de nossas mãos, em Cuba.
O neoliberalismo ou o laissez-faire "requantado" por Reagan e pela Senhora Thatcher - que estamos imitando atabalhoadamente -, aliando à competitividade suicida da "qualidade total" dos mercados mundiais globalizados, mostram sinais negros nas casas de seus próprios mentores, com milhões de desempregados. As ruas de Londres, se continuar o aumento da pobreza naquela cidade, poderão servir no futuro para tomadas in loco de uma refilmagem de Oliver Twist. Nos EUA, apesar da recente recuperação econômica, o desemprego e o caldo de cultura formado pela sua imensa população marginalizada - negros, indígenas, latinos, muçulmanos e asiáticos - poderão vir a se tornar uma bomba de retardo com consequências imprevisíveis.
Se é verdade que a "unanimidade é burra" e a maioria defende hoje o neoliberalismo com unhas e dentes, o que há, efetivamente, para comemorar? Particularmente, só acredito em uma coisa: trabalho. Se não conseguirmos aumentar o número de empregos para a população, dar trabalho a quem efetivamente quer trabalhar (muitos só querem o peixe, não a vara de pescar) e oferecer salários condignos, ficaremos sempre reféns do paternalismo estéril de conceder migalhas aos mais pobre, uma ação que apenas enriquece as contas secretas das ONGs e nada resolve. E criando para Betinho o posto de "Superministro da Fome".
Um corpo que cai
Há muitos edifícios sendo construídos no Cairo. Fica difícil imaginar de onde vem tanto dinheiro, já que o país é pobre e a infitah, a política de "portas abertas", é só relativa e ainda espanta investidores estrangeiros.
Os arranha-céus que crescem em todo o Grande Cairo são feitos sem nenhuma segurança para os operários. Os andaimes são improvisados com troncos de eucalipto e cordas.
Segundo nos afirmaram várias pessoas que moram no Cairo há bastante tempo, muitos operários já despencaram de prédios que hoje emolduram os cartões postais junto ao Nilo, como o Hotel Ramsés Hilton e as torres gêmeas, de concreto e vidro fumê, do Misr Bank (Banco Egípcio), muito parecidas - embora bem menores - com as do World Trade Center de Nova Iorque, que tremeram após um atentado terrorista.
O desleixo com a segurança não acontece só em prédios em construção. Na semana em que chegamos ao Cairo, próximo à Embaixada do Brasil despencou uma janela de ferro, matando um homem que passava na calçada.
Alguns meses antes de retornarmos ao Brasil, começaram reformas no prédio da Embaixada do Brasil, no último dos seus 13 andares. Você acertou, leitor. Caiu mesmo alguma coisa do prédio. Mas não foi um operário. Foram restos de cimento e pedaços de tijolo que num dia quebraram o vidro do Mercedes-Benz do nosso Embaixador e no outro, em 6 de novembro de 1991, o vidro traseiro do nosso Fiat. Nesse mesmo dia, o Emir do Kuwait fazia pose para as câmaras e apagava, através de controle remoto, o 732º e último poço de petróleo que ainda ardia, incendiado por Saddam Hussein.
Arguído, o engenheiro dono do apartamento em obras nos deu uma explicação bem razoável quando apresentei a conta do prejuízo: ele não era culpado pelo acidente, não havia jogado nada de propósito em cima do carro, lamentava muito o ocorrido e nada podia fazer. Traduzindo, não ia pagar uma piastra.
Fui então dar queixa na polícia, sabendo de antemão que não ia resolver nada. Apenas como precaução, já que as obras continuavam e o carro poderia sofrer prejuízo mais grave no futuro.
Chegamos à delegacia e um funcionário nos informou que logo um tenente nos atenderia. Como demorava, perguntei ao Salah, que levara como intérprete, o motivo da longa espera. Após as explicações, o Salah traduziu informando que o tenente estava rezando na mesquita e que já estava vindo.
Depois de meia hora, finalmente fui atendido. O tenente achou interessante a minha foto da carteira de motorista, que estava de viés. Quando mandei plastificar o documento, o operador da máquina tirou os grampos que prendiam a foto e esta correu um pouco durante a plastificação. Como o Egito é a terra do maalêsh, do "deixa prá lá", usei aquele documento durante os dois anos que lá estive, sem nenhum problema. Até carteira de motorista internacional tirei com aquele documento.
Enquanto me inquiria, toda hora um coronel numa sala distante chamava o tenente e este, após pegar o quepe deixado na mesa, ia atender com presteza, nos deixando a esperar mais um pouco. A operação bota-quepe-tira-quepe se repetiu umas 10 vezes e quase 2 horas após nossa chegada na delegacia a ocorrência estava devidamente registrada sob o número 2333/91.
A delegacia era de uma pobreza franciscana. Um escaninho atrás do tenente, com alguns papéis, era todo o mobiliário da sala, além do balcão e alguns bancos de espera. A ocorrência foi minuciosamente escrita em 2 folhas de papel-jornal, onde assinamos embaixo. O que foi uma temeridade. Assinar embaixo de um texto árabe, com aquelas letrinhas parecendo macarrão, e não entender nada, é o mesmo que assinar em branco. O tenente nos garantiu que o engenheiro responsável pelo estrago no carro seria chamado para dar explicações. Como o esperado, ficou tudo por isso mesmo. Fazer o quê? Maalêsh!
Dinheiro do Langoni e do Galvêas
Quando chegamos no Egito, em 5 de março de 1990, 1 dó-lar valia 2,67 libras egípcias (LE). Quando saímos do Cairo, em 14 de abril de 1992, dia do aniversário de minha mulher Nicinha (tomamos champanhe no avião, que chique!), o dólar valia LE 3,32. Em mais de 2 anos, a libra tinha se desvalorizado apenas 24,34% em relação ao dólar. Naquele período, obviamente, a inflação foi maior, porque o governo egípcio manteve, e ainda mantém, um câmbio artificial, que não reflete a realidade. Porém, para comparação, no Brasil a inflação em fevereiro de 1994, de apenas 28 dias, foi em torno de 40%.
No primeiro ano em que moramos no Cairo, os preços quase não mudaram. Meses e meses, até as piastras (centavos de libra egípcia) eram as mesmas, como a gente podia observar nas latas de leite Ninho.
Com o apoio dado aos aliados ocidentais contra Saddam na Guerra do Golfo Pérsico, o Egito teve perdoada toda sua dívida militar com os EUA e 50% de sua dívida externa com os EUA e a Alemanha, desde que cumprisse a cartilha do FMI, que passou a monitorar a economia egípcia e exigir medidas duras para saneamento de suas finanças. O governo começou a retirar vários subsídios, tanto de produtos alimentares básicos, como também de combustíveis e serviços públicos - luz, gás e telefone. E os preços aumentaram bastante.
A moeda foi controlada ferreamente pelo governo e a libra egípcia não se desvalorizou como era de se esperar. Por isso, no segundo ano deu para perceber a perda do valor da moeda a cada compra no mercado. Mas, não foi nem de longe o absurdo da inflação vista nos últimos anos no Brasil. Interessante é observar que, apesar da inflação continuar subindo no Egito, até o final de janeiro de 1995 o câmbio pouco tinha mudado - um dólar valia menos de 3,40 libras egípcias.
Vez por outra, o contínuo que trabalhava conosco na aditância militar, Salah, nos trazia dinheiro brasileiro e perguntava se ainda tinha valor, se eu podia trocar por libras egípcias. Eram pessoas que chegavam à Embaixada e tentavam trocar o nosso cruzeiro, cruzado ou cruzado novo, assinados por Galvêas ou por Langoni - os que me lembro - e não entendiam que aquele dinheiro não servia para mais nada, nem para mim que era brasileiro. O vexame era grande, pois nós, que temos um país riquíssimo, nos colocávamos nessa situação ridícula e eles, espremidos naqueles fiapos de terra cercados por deserto, tendo que importar 2/3 da alimentação, nos estavam dando exemplo de como ter uma moeda digna, confiável.
Por falta de eficácia do nosso governo e medidas mais duras contra os especuladores, não há plano econômico que sensibilize de vez industriais e comerciantes sem escrúpulos. Um exemplo cristalino pode ser dado a respeito. Na implantação do real, em 1994, os preços em cruzeiro real deveriam ser divididos por 2.750. Porém, as aves de rapina do comércio e da indústria apenas riscaram 3 zeros, ou seja, dividiram os preços apenas por 1.000. Por isso temos produtos três vezes mais caros que nos EUA e na Europa. Os salários foram fixados no rodapé enquanto que os preços foram parar no teto. Apesar disso tudo, os preços continuam subindo. O povo humilde, de baixos salários, e os aposentados mais uma vez se estreparam. Por uma questão de justiça deve-se afirmar que, ao menos por ora, possuímos uma moeda mais decente e já passamos a ter uma certa noção do valor dos preços - embora entre os mais altos do mundo.
Há pouco tempo, até os portugueses faziam piadas a nosso respeito, pela incapacidade de colocarmos um pouco de racionalidade em nossa moeda. No retorno ao Brasil, em 1992, vimos um outdoor em Lisboa, onde a revista Fortune dizia que o presidente Collor devia mandar nosso Ministro da Fazenda ler aquela publicação para resolver nossos problemas econômicos.
Para mostrar claramente como nossa moeda se depreciava, o Herald Tribune de 15 Nov 91 deu um exemplo bem prático: as 200.000 cópias do livro Zélia, uma Paixão, com preço de capa de Cr$ 6.500,00. Este valor, em março de 1990, quando Zélia Cardoso assumiu o Ministério da Fazenda, equivalia a 170 dólares. No lançamento do livro, era menos de 7 dólares.
Assim, o que eu poderia ter dito ao egípcio sobre uma moeda podre que fazíamos questão de gastar com a máxima velocidade, que não dávamos valor algum? Que nem o nosso governo a queria e já a havia substituído por UFIR e tantos outros tipos de unidades monetárias? Que tinha que dizer a meu filho: "Vá correndo gastar sua mesada, que amanhã tudo estará mais caro!"? Depois da URV e do real, o que mais nos espera? Continuaremos a ter uma moeda que não serve nem para os colecionadores?
Politicamente correto
Andando pelo Egito, em 1991, ficamos sabendo da nova moda americana de se expressar frente a várias causas abraçadas por militantes, principalmente aquelas defendendo minorias ou deficientes físicos: o modo pecê ou "politicamente correto" de se expressar.
No Brasil, já tínhamos outros PCs famosos - além do "Partidão" -, como os computadores pessoais e o tesoureiro de Collor, PC Farias. Viríamos a ter outro pecê famoso, mais adiante, o escritor Paulo Coelho. Ficou sacramentado que negro brasileiro não era mais negro, mas "afro-brasileiro". Os índios passar a ser "nativos". Lucraram os incompetentes, que não podiam mais ser chamados daquela forma, mas de "diversamente capacitados". Palavras como "aleijado", "cego", "anão", deveriam ser banidas dos dicionários. Anão, hoje, só pode ser udado para designar algum daqueles baixinhos que na Comissão de Orçamento do Congresso Nacional surrupiou dinheiro público a rodo. E não se utiliza mais o termo "homem", porém "ser humano", "humanidade", para designar ambos os sexos. Homo sapiens também está errado, por excluir a mulher e sugerir que ela seja stulta (burra). O ex-Presidente José Sarney estava à frente do tempo quando dizia "brasileiras e brasileiros!"...
Agora, uma pergunta: e como fico eu, que já fui chamado no Rio de Janeiro de "branco azedo" e "pindirriga" (pinho-de-riga)? Ou me chamem de euro-brasileiro ou é processo-já! A Senadora Benedita da Silva, do Rio de Janeiro, não pode ser chamada de "negra", nem de "favelada", a não ser que esteja em campanha eleitoral, ocasião em que ela própria usou o bordão "mulher, negra, favelada" para angariar votos.
Assim, todos devem achar muito politicamente correto os movimentos de gays, de negros (não seria "afros"?), de mulheres. É PC chamar Fernando Henrique (que é branco) de "mulatinho", como ele mesmo se autodefiniu, porém chamar o sindicalista Vicentinho de mulato é encrenca na certa. Em matéria de pecê, o machão Schwarzenegger, "grávido" no filme Junior, está o máximo! alguns britânicos, sem ter o que fazer na vida, propõem que Deus seja chamado de She (Ela), para derrubar preconceitos machistas...
Não são somente as ex-repúblicas soviéticas e a ex-Iugoslávia que apresentam suas tribos separatistas. Hoje, em cada canto do mundo e também no Brasil há "tribos" locais que desejam obter o status de "etnia", desde minorias negras, muçulmanas ou indígenas, neonazistas, gangues de funks, meninos de rua, os sem-terra. Estabeleceu-se que é politicamente correto "dar voz e vez" a essas tribos - desde que sejam tribos de interesse de alguns órgãos, ONGs, associações ou partidos políticos que julgam estar acima do bem e da verdade, como é o caso daqueles que se colocam ideologicamente à extrema canhota, que se apresentam como democratas e messiânicos, mas são apenas fascistas. Há, hoje, alguma coisa mais PC do que as ONGs?
Um nazista, no Rio Brande do Sul, propõe a separação dos Estados do Sul do Brasil. Se a gente facilitar, daqui a pouco irão provar por Mohamed + Ahmed que Foz do Iguaçu é um enclave muçulmano. Que Salvador é um principado negro - perdão, "afro" -, com hino nacional no ritmo da timbalada cantado por Daniela Mercury. Em resumo, nada de globalismo que Bush quis apresentar com sua "nova ordem mundial". O que conta, hoje, é o tribalismo. Está de volta a antropofagia.
Desta forma, que tal se criássemos, também, por exemplo, o Movimento do Cabra Macho da Paraíba? O Movimento dos Sem-Automóvel? Ou a Filarmônica da Raça Branca, todos seus integrantes obrigados a terem olhos azuis e serem descendentes de barões dos castelos da Renânia, e utilizarem somente violinos Stradivarius?
Dentro da linha do "politicamente correto", sugiro a criação de um novo partido: PCB, Partido Capitalista Brasileiro. As cores da bandeira? Bem originais, sem "samplear" país algum, como fez o PCdoB. Com tirar vermelhas e brancas e estrelinhas brancas sobre fundo azul. O presidente de honra deste novo PCB poderia ser Abílio Diniz, que prega a livre remarcação dos preços em seus supermercados...
Hoje, além do pecê existe o conceito "ecologicamente correto". Na realidade, é apenas mais uma trama dos países ricos para pressionar países menos desenvolvidos. Por motivos aleatórios exigem que os produtos importados para seus países não podem vir de "santuários ecológicos". Assim, se um artigo brasileiro for produzido na Amazônia - por exemplo, móvel de mogno -, terá pouca chance de ser colocado nos supermercados do 1º Mundo. A não ser que tenha o selo "ecologicamente correto" fornecido pelos donos do mundo.
5º Jogos Africanos: Olimpíada Mubarak
Além da Copa do Mundo na Itália, em 1990, que acompanhamos pela televisão, houve outro evento esportivo de grande interesse no Egito: os 5º Jogos Africanos, realizados no Cairo e algumas cidades próximas, como Alexandria e Ismailia, a partir de 20 de setembro de 1991.
É uma copa africana em que quase todas as modalidades esportivas são disputadas, de 4 em 4 anos.
Foi construído um ginásio coberto, de alto gabarito, para completar a cidade esportiva em Heliópolis, onde também fica um grandioso estádio de futebol. A cidade esportiva é constituída de muitas edificações, uma verdadeira vila olímpica, com muitos ginásios, parque aquático, centros de convenções. Creio que estariam habilitados a sediar os jogos olímpicos sem muita dificuldade. Aliás, um dos sonhos do Presidente Mubarak.
Na cerimônia de abertura, à noite, toda a área próxima à vila esportiva ficou com suas ruas congestionadas. Muitas delegações estrangeiras nem chegaram a assistir a cerimônia de abertura, retidas nas ruas de Heliópolis. Voltávamos de Port Said e no engarrafamento perdemos o mesmo tempo que havíamos gasto na viagem de 220 km até o Cairo. Vimos passar a comitiva presidencial, armada até os dentes, com muitos guardas, batedores e até um pequeno carro de combate. Todo cuidado no Egito é pouco para a segurança de seu Presidente. Que o diga o ex-Presidente Sadat. Eu gostaria de ver o ex-Presidente Itamar, como presidente do Egito, se ele ia ficar brincando de gato-e-rato com sua equipe de segurança, dispensando sua guarda pessoal. Como é bom o nosso país e muitos não sabem!
Um amigo nos contou que na cerimônia de abertura dos Jogos os cristãos coptas praticamente não tiveram acesso ao estádio, tantas eram as dificuldades criadas.
A abertura dos Jogos Africanos foi abrilhantada com a dança de 1.800 meninas adolescentes seguida de show faraônico. Desfilaram carruagens faraônicas, soldados vestiam roupas simbolizando a antiga história egípcia, faraós e rainhas eram carregados por "escravos"em cadeiras fechadas. Com um bonito painel humano desenhando a palavra "PAZ" em 6 idiomas - devido à Conferência de Paz, entre árabes e judeus, prevista para iniciar naquele ano em Madri - e outras interessantes evoluções pelo campo, a tônica do evento foi uma exaltação ao Presidente Mubarak. Como já foi afirmado, com amplos poderes sobre o país, Mubarak é um "Ramsés" dos tempos modernos. Na realidade, os Jogos Africanos foram a "Olimpíada Mubarak".
Em muitos eventos, esportivos ou culturais, pode-se notar o empenho que os egípcios fazem em exaltar seus ancestrais. No encerramento de um festival internacional de cinema, pudemos observar o palco do teatro todo adornado com motivos faraônicos, incluindo portais de templos religiosos e obeliscos. Esse aspecto é sempre enfatizado pelos egípcios, embora anacrônico e já sem muito apelo. Os fundamentalistas islâmicos simplesmente abominam esse relacionamento com os antigos egípcios, principalmente por terem sido um povo politeísta. Por isso, criticam o governo por apresentar essa faceta como a mola propulsora do turismo no país - a história dos faraós com seus templos e suas pirâmides. Na morte de Sadat é bem significativa a afirmação de um dos assassinos do Presidente: "Matei o faraó!".
Durante os Jogos, os egípcios foram rápidos em aplicar seus ippons nos adversários - só que fora do tatame. Mil e uma mutretas foram armadas em cima dos estrangeiros. Viaturas que levavam delegações de outros países, às vezes enfrentavam "casualmente" tráfegos infernais, somente chegando aos locais da competição quando a mesma já havia acabado... Não é preciso dizer que o Egito ficou com o maior número de medalhas, prejudicando os outros 45 países estrangeiros.
No mês seguinte, em 11 de outubro, começou o VI Campeonato Mundial de Voleibol Masculino Juvenil, no Cairo, do qual o Brasil também participou.
O Brasil começou arrasador, ganhando da China, Venezuela, Iugoslávia, Bulgária e Japão. Mas tropeçou na Itália, ficando em 4º lugar. O campeão foi uma "zebra": a Bulgária.
Houve um fato interessante naquele campeonato. O time da então União Soviética não conseguia entender, no seu primeiro jogo, porque as cortadas de seus atletas saíam muito fortes, fora da quadra adversária, acabando por perder para a Tchecoslováquia.
Posteriormente, mataram a charada quando resolveram medir a quadra: estava com as dimensões inferiores à medida oficial... Maalêsh!
Passeios a cavalo e a camelo
Um hobby nosso, às sextas-feiras, dia de folga no Egito, era ir até a área das pirâmides para andar a cavalo ou a camelo. Mais a cavalo do que a camelo. Os camelos eram "pachorrentos e cansadíssimos de guerra", como diria Moacir Werneck de Castro, do Jornal do Brasil. Às vezes só encontrávamos matungos para montar. Porém, na maioria das vezes tínhamos sorte em andar em cavalos bem nutridos, que comprovavam a fama dos cavalos árabes, fortes, esbeltos, luzidios.
No primeiro passeio fomos literalmente "depenados" - como todo turista desavisado que não sabe o preço das coisas. Pelo passeio de uma hora pagamos 20 libras egípcias (6 dólares) por cada cavalo e o mesmo preço por um camelo, quando depois aprendemos que o preço normal eram 5 libras por cabeça. Maalêsh!
No Egito, via de regra, os preços são mais altos para os estrangeiros, ao menos no que se refere a diárias em hotéis, entradas a museus e mensalidades escolares. Uma assinatura anual do jornal semanal egípcio Al-Ahram, em inglês, custa para os egípcios LE 26,00 (menos de US$ 8,00), para os outros países árabes US$ 60,00 e para o resto do mundo US$ 150,00. Fica a pergunta: estaria implícita a cobrança de uma espécie de juro aos "imperialistas" estrangeiros que exploraram o Egito por tantos séculos?
Os camelos na área das pirâmides são todos muito enfeitados e coloridos, como se fossem bonecos de brinquedo. Bastante fedorentos, muitos deles beijam o dono na boca após emitir um grunhido estranho. Um sucesso para as filmadoras dos turistas.
O passeio a cavalo ou a camelo começa numa área onde há vários estábulos, próximo a um teatro aberto, em frente às pirâmides, onde todas as noites há um show de som e luzes, com os alto-falantes discorrendo sobre a história faraônica em vários idiomas. Um passeio mais longo e não muito concorrido leva os turistas até as pirâmides de Sakara, a uns 20 km ao sul das pirâmides de Gizé. O passeio que sempre fazíamos nos levava até um local mais elevado, no deserto, de onde tínhamos toda a vista das pirâmides e, ao fundo, o Vale do Nilo e a cidade do Cairo. Daquele local pode-se ver não só as três grandes pirâmides mas 9 pirâmides ao todo. As pirâmides menores eram destinadas aos filhos e às mulheres dos faraós. Pode-se ver, ainda, ao sul do Cairo, os arranha-céus de Maadi, com as mais altas torres da cidade. Maadi é um bairro chique, com bastante arborização, onde moram principalmente americanos.
Um belo dia, fazíamos a costumeira cavalgada na área das pirâmides, com breves trotes e galopes, o beduíno que nos servia de guia fustigando os cavalos. Num desses galopes, eu estava um pouco à frente de minha família e de repente ouvi gritos. Olhando para trás, vi uma cena que não foi nada fácil para minha mulher: ela tinha caído do cavalo e ficara presa com um pé no estribo, sendo arrastada pelo cavalo a galope. Instintivamente, ela se desviava das patas do animal, que quase a golpeavam no rosto e no peito.
Rapidamente saltei do cavalo para acudi-la e chegamos juntos, o beduíno e eu, para frear o cavalo e socorrê-la, que a essa altura tinha desmaiado.
Quando voltou a si, a Nice me deu a maior bronca do mundo, por não tê-la socorrido de imediato. O pesadelo devia ter durado uns 10 ou 15 segundos, mas para ela foi uma eternidade.
Uma radiografia no pé tirou todas as nossas dúvidas. Não havia nada de mais grave, nenhuma fissura no osso, só uma marca roxa no pé que ficara preso no estribo. Coincidência ou não, depois desse dia não passamos mais a cavalgar na área das pirâmides. Seguro morreu de velho.
Há no Cairo uma excursão de 5 dias, em lombo de camelo, até um oásis. Um conhecido nosso contou a epopeia que é fazer um passeio dessa natureza. São dois dias para se chegar até o oásis, um dia para descansar dos solavancos do camelo e mais dois dias para a volta. Uma experiência que não vale a pena repetir.
Kkamsín, o vento de 50 dias
Khamsín (pronuncia-se "ramsín", o "r" carioca), em árabe, quer dizer cinquenta. No Egito, khamsín é o vento que normalmente aparece na primavera - se é que no deserto possa haver primavera -, lá pelos meses de março e abril. Não aparece todo dia, nessa época, mas esporadicamente, num período de mais ou menos 50 dias. Por isso o nome de khamsín.
Ás vezes, esses ventos são verdadeiras tempestades de areia que deixam o Cairo com aspecto de fog londrino. Desert Storm (Tempestade no Deserto) foi a operação militar do Ocidente que expulsou os iraquianos do Kuwait. Nome bem apropriado, por sinal.
Em 1990, nós vimos pela primeira vez uma dessas tempestades cobrindo o Cairo de poeira. Mal dava para ver os edifícios do outro lado do Rio Nilo.Improvisando um rústico bazar, um quitandeiro amarrou entre duas casas um toldo que virou vela de navio, fazendo ruir a parede de uma das casas e machucando várias pessoas. Reclamaram quando bati uma foto.
Voltamos para Alexandria e nos hospedamos no Hotel Palestina, bastante modesto, porém com varandas voltadas para o Mediterrâneo. A praia em frente, sinuosa, lembrava a de Copacabana.
No outro dia, voltamos ao Cairo pela Rodovia do Deserto.
A Rodovia do Deserto que liga Alexandria ao Cairo é uma auto-estrada de boa pavimentação, pouco movimento e serve como opção à engarrafada rodovia do interior do Delta. Localizada um pouco fora do Delta do Nilo, no lado ocidental, a Rodovia tem também a finalidade de atrair habitantes ao longo de seu curso, onde se vê muitas construções em andamento e estufas para o cultivo de plantas diversas. É um inteligente método de aos poucos ir tomando as áridas terras do deserto para serem ocupadas por plantações e habitantes. A única coisa que falta é a água, pois o terreno é fértil. Como ela chega até lá em encanamentos, aos poucos o deserto vai sendo dominado pelo homem e se tornando verde.
No meio do percurso, também de 220 km, existe a Cidade de Sadat (Madinat Al-Sadat). Construída em pleno deserto, parece uma miragem que de repente surge ante nossos olhos. Caixas de água em forma de enormes cálices dão boas-vindas e entramos para conhecer aquela cidade, com prédios muito bem construídos, muitas praças e muito verde, porém sem nenhum habitante na época. Um pouco adiante há um complexo industrial para dar emprego aos moradores da Cidade de Sadat.
No Cairo perguntei por que a Cidade de Sadat ainda não estava habitada e se não havia perigo de invasão de moradores. Disseram que, apesar da falta de emprego e do problema crônico de moradias, muitos preferem ficar no Cairo, com todos os problemas que apresenta, a se estabelecer no deserto, longe de suas raízes. Por isso, talvez até hoje aquela cidade não esteja plenamente habitada.
O mesmo problema acontece na Cidade Seis de Outubro, perto de Fayyum, em pleno deserto, ao sul do Cairo, onde muita gente trabalha durante o dia naquela cidade industrial e depois enfrenta um percurso de horas para o retorno ao lar. Alguns estudantes no British Council me garantiram que enfrentavam diariamente aquele percurso, de ida e volta, para trabalhar em multinacionais alemãs e italianas estabelecidas naquela cidade.
Na chegada ao Cairo, depois de passar perto de uma gigantesca pirâmide e contornar algumas montanhas, pudemos observar a pesada poluição que paira sobre a cidade, que só desaparece quando algum khamsín, a tempestade de areia, leva aquelas nuvens pesadas de enxofre e gás carbônico para o deserto.
As pirâmides de Gizé nos diziam que estávamos bem perto de casa no retorno daquele belo passeio que fizemos até Alexandria e El-Alamein.
Viagem a Sharm El-Sheikh
Na época em que tentaram aplicar um golpe em Gorbachev, na então União Soviética, em agosto de 1991, viajamos a Sharm El-Sheikh, um balneário no sul da Península do Sinai, junto ao Mar Vermelho, entre o Golfo de Suez e o Golfo de Ácaba.
O balneário fica não muito longe de Gibal Moussa (Monte Moisés), como é chamado pelos egípcios o Monte Sinai que conhecemos da Bíblia, onde Moisés recebeu as tábuas de pedra com os Dez Mandamentos. Aos pés do Monte Sinai, de 2.285 m de altitude, há o famoso mosteiro de Santa Catarina, cercado por altas muralhas, que foi construído em 527 pelo imperador Justiniano. É um pequeno oásis entre montanhas desérticas, pelo verde exuberante encontrado em suas imediações. Natural de Alexandria, Santa Catarina foi martirizada no século IV por causa de sua fé. Próximo daquele local fica o ponto culminante do Egito, o Gibal Katherinah (Monte Santa Catarina), com 2.367 m de altitude.
No Sinai, perto da cidade jordaniana de Ácaba - palco de importante batalha vencida pelo aventureiro inglês "Lawrence da Arábia" e os árabes contra os turcos otomanos na I Guerra Mundial -, fica uma importante cidade turística, Taba. Quando Israel completou sua retirada do Sinai, em 1982, recusou-se a sair daquela região, dizendo que era parte de seu território. Após arbitragem internacional, Taba foi devolvida ao Egito em 1989.
O Museu de Taba, criado em 1994, exibe objetos faraônicos, greco-romanos, coptas e islâmicos, além de descobertas arqueológicas do Canal Al-Salam, que está em construção e vai levar a água do Nilo à Península do Sinai. O Museu inclui uma coleção valiosa que foi levada do Sinai por Moshe Dayan, ex-Ministro de Defesa de Israel, e devolvida ao Egito há pouco tempo.
Ao norte do Sinai, passando por El-Arish, ficava o famoso "caminho de Horus", por onde a Sagrada Família passou quando fugiu para o Egito e por onde também passou o general árabe Amr Ibn Al-Ass para conquistar aquele país. Horus é o nome de um deus egípcio, com cabeça de águia, e é o símbolo da Egypt Air, a companhia aérea estatal egípcia. Os antigos faraós já tinham descoberto no Sinai as ricas jazidas de cobre e pedras preciosas e estabeleceram seu domínio sobre a região.
As Minas do Rei Salomão, provavelmente, não ficavam no Sinai, na antiga localidade de Timna, ao norte de Taba, sítio de antigas minas de cobre, como se acreditava. As últimas especulações dão como endereço a Arábia Saudita, onde havia a rica mina de Ofir, possivelmente no local da atual mina de Mahd adh Dhahab, cujo significado é "Berço de Deus". Porém, o sítio da antiga Ofir nunca foi determinado com precisão. "Então foi Salomão a Asiongaber, e a Ailat, à praia do mar Vermelho, que está na terra de Edom. E o rei Hirão mandou-lhe, por meio dos seus servos, naus e marinheiros práticos do mar, que foram com a gente de Salomão, a Ofir, e de lá trouxeram ao rei Salomão quatrocentos e cinqüenta talentos de ouro" (Segundo Livro dos Paralipômenos 8: 17-18). A cidade de Ailat - balneário israelense atual - fica entre Taba e Ácaba.
Na Península do Sinai é grande o número de beduínos. Povo nômade, mudam de lugar com frequência em busca de alimentação para seus animais. As mulheres dos beduínos, além dos vestidos longos, usam véus negros adornados com moedas de ouro ou prata, que cobrem quase todo o rosto, e que indicam o status de riqueza da família. Elas apascentam os animais, principalmente ovelhas e cabritos, com cães magricelas, em busca de vegetação que quase não se vê. Os homens usam túnicas longas e véus brancos com um laço negro para prender os mesmos à cabeça. Eles cozinham, tomam conta dos camelos e fazem fogueiras de varetas de acácia para aquecer o chá em latas enegrecidas pela densa fumaça.
O beduíno, porém, é um homem muito desconfiado. Totalmente isolado, suspeita de todos, até dos parentes mais próximos, que possam roubar sua escassa vegetação para o rebanho e a pouca água disponível. Um provérbio beduíno exemplifica bem sua filosofia básica: "Eu contra meu irmão; meu irmão e eu contra nosso primo; meu irmão, eu e nosso primo contra o mundo". Um pouco ao sul de Suez, no Sinai, encontra-se importante sítio de peregrinação, que é a Vertente de Moisés. Segundo a tradição, a água era salobra e Moisés tornou-a potável quando fincou nela um cajado, durante o Êxodo dos hebreus para a Terra Prometida.
Após descrever um pouco sobre o Sinai, voltemos à nossa viagem ao balneário de Sharm El-Sheikh, onde ficamos uma semana. Encostado numa enseada de águas mansas e mornas, Sharm El-Sheikh é um paraíso para turistas de todas as partes do mundo. Local de pesca e escafandria, os turistas se deliciam com a água cristalina, o sol sem fim, os corais multicoloridos e os peixes apresentando as cores e as formas as mais exóticas possíveis. Muitos grupos de excursionistas utilizam submarinos ou barcos com o fundo em acrílico para poder melhor observar os corais e os peixes do Mar Vermelho. Há alguns barracões parecendo guarda-sóis gigantes em volta da enseada, construídos pelos israelenses durante a ocupação do Sinai, que apresentam o desenho estilizado da Estrela de Davi, símbolo judeu por excelência.
Ficamos hospedados no Hotel Marina. No complexo daquele hotel há muitos "iglus", cabanas arredondadas, feitas de material sintético, porém confortáveis, com ar-condicionado.
Chamou nossa atenção a quantidade de turistas japoneses em Lúxor. Em todos os locais por que passamos, no Egito ou fora do país, os japoneses eram sempre maioria: nas Pirâmides e na Cidadela de Saladino (Cairo), em Sharm El-Sheikh (Sinai), em toda a Terra Santa, Roma, Vaticano, Paris. Com certeza, com a moeda forte que têm e com o custo de vida altíssimo no Japão, fica muito mais barato passar as férias fora de casa. Nós, com o real valendo mais que o dólar, sonhamos um dia fazer o mesmo. O que pode ser apenas um breve sonho de verão deste início de 1995...
No segundo dia de visita a Lúxor alugamos um táxi para conhecermos as famosas tumbas subterrâneas nos Vales dos Reis e das Rainhas, que ficam na margem ocidental do Rio Nilo.
Atravessamos o Nilo em um ferry-boat e observamos uma extensa cultura de cana-de-açúcar, com trilhos para os trens apanharem a carga, e vários canais irrigando aquela parte do Vale do Nilo.
Guardando os Vales dos Reis e das Rainhas ficam os dois Colossos de Memnon. Estas estátuas de pedra têm uma altura de 20 m e é o que restou do antigo templo funerário de Amenofis III. Em péssimo estado, as estátuas apresentam rachaduras imensas e parecem que vão ruir a qualquer momento. Historiadores atribuem o dano a um terremoto que afetou toda a antiga Tebas no ano 27 a. C. Porém, outros acreditam que foi obra da barbárie do rei Cambises, da Pérsia.
Algumas estórias de humor
Documento do Dr. Yussef
Um dia a Ludmila, uma garotinha esperta de 5 aninhos, filha de um casal brasileiro que chegou dois meses depois da gente, perguntou à sua mãe:
- Mãe, deixa eu ver o Gaúcho da Fronteira nesta revista?
- Gaúcho da Fronteira? - inquiriu a mãe.
Ela foi ver do que se tratava. Não era o cantor dos pagos gaúchos. Apenas, estampada na revista, uma enorme foto de Fídel Castro.
Horário de verão
O sargento Raul, que trabalhava na aditância militar da Argentina, estava tomando café tranquilamente em casa, quando seu chefe telefonou querendo saber por que ainda não tinha chegado ao local de trabalho. O Raul disse que só iria meia hora depois, porque estava muito cedo. Somente após as explicações é que o coronel veio a saber o porquê do "atraso" de seu auxiliar: havia acabado o horário de verão e tinha esquecido de atrasar seu relógio...
Enquanto isso, este panaca que escreve estas mal-traçadas linhas, que no dia anterior havia enviado vários telex ao Brasil comunicando a mudança de horário a ser realizada, eu esqueci também de atrasar o relógio e estava me perguntando na Embaixada: "Por que será que até agora, quase 10 horas, não chegou ninguém ainda para trabalhar?"
Mas não aprendi a lição. No ano seguinte, no dia 1º de maio, à tarde, feriado nacional, fui levar as crianças para o catecismo. A aula começaria às 17 horas e chegando perto da igreja comentei com minha mulher: "Chegamos cedo, faltam ainda 15 minutos". Quando entramos no pátio do colégio, ao lado da igreja de São José, em Zamalek, a professora Stella e a freira Josefina nos aguardavam com um sorriso de orelha a orelha. Esquecêramos de adiantar o relógio. Tinha começado o horário de verão...
Quero máia!
Um passatempo predileto nosso era passear à noitinha pelas ruas do Cairo e entrar em todos os bazares para conhecer os produtos tipicamente egípcios expostos nas prateleiras. Não há supermercados grandes, como o Carrefour, embora comecem a aparecer alguns mercados de tamanho médio, como o Alfa e a rede Sunny. Lá, ainda predominam os antigos "secos e molhados" que existiam há 20 no Brasil, armazéns e lojas que podem ser encontrados em qualquer dobra de esquina do Cairo.
Numa dessas andanças, dentro de um mercado, minha mulher chamou "Maia"! para me mostrar alguma coisa - é assim que ela fala quando me chama pelo sobrenome, Maier.
Fui atender minha mulher, que estava com sua atenção voltada para quinquilharias diferentes do meu interesse, e quase que simultaneamente apareceu o atendente da loja com duas garrafas de água mineral para entregar à minha mulher. Ela não havia pedido nada, mas conseguimos decifrar o mal-entendido e rimos bastante: máia, em árabe, significa "água"...
Os caipiras saydis
No Egito, quem mais sofre com as piadas são os saydis, os caipiras provenientes do interior, especialmente do Alto Egito, que ficam perdidos quando chegam à cidade grande. São beduínos analfabetos que facilmente caem no conto de algum vigarista. Mas, os espertos habitantes da cidade até que não precisam inventar muitas anedotas. Elas acontecem, de verdade.
Há uma estória verídica de um desses saydis que chegou ao Cairo. Com algum dinheiro no bolso, ele queria fazer crescer rapidamente seu capital. Chegando ao ponto final de ônibus, procurou um senhor que lhe pareceu apto a orientá-lo em como melhor aplicar o dinheiro. A proposta apresentada para fazer render o dinheiro não podia ser melhor: comprar um bonde que atravessava a cidade. Era só subir no bonde e começar a cobrar a passagem de cada um. O bonde anda sempre cheio e, assim, logo poderia ver o sonho realizado, o dinheiro aplicado rendendo a valer. Somente quando o pobre sayd foi cobrar o dinheiro dos passageiros, ocasião em que foi jogado para fora do bonde, é que foi compreender em que furada havia se metido. Como se vê, não é só mineiro que compra trem...
Líbano, boa terra
Outra anedota vem do Líbano. Devem ter copiado do Brasil, onde temos a mesma piada. Deus fez o mundo e começou a dar um capricho especial na região onde hoje fica o Líbano: clima agradável, muitas árvores frutíferas, paisagens lindas, vales, montanhas, neve. Como sabemos, uma área onde durante 15 anos muçulmanos e cristãos brincaram de se matar numa guerra civil sangrenta. Bem, com todo aquele capricho de Deus em acabar sua criação naquele lugar, um anjo protestou:
- Mas, por que o Senhor está se esmerando tanto neste lugar, enquanto que em outras partes do mundo há terremotos, vulcões e furacões?
Ao que o Senhor respondeu:
- Mas você não sabe que povinho eu vou botar aqui!...
Tanque andando em marcha à ré
Os egípcios gostam de fazer piadas deles mesmos. Mesmo relacionando seu maior rival na região, Israel.
Numa de suas guerras contra Israel, um capitão egípcio quis saber de seu soldado por que ele estava dirigindo o carro de combate em marcha à ré para enfrentar o inimigo. O soldado respondeu:
- É que fica mais fácil para fugir quando os israelenses nos atacarem...
Você, leitor, deverá dizer que são todas piadas sem graça, mixurucas. Tem razão. Nenhuma delas leva você a dar gargalhadas. Mas é bom lembrar que estamos no Egito, voando em nosso tapete persa da imaginação, onde as piadas não são pesadas, não há aquela apelação que existe no Brasil, onde até para entreter crianças em um programa humorístico de TV se tenha que lançar mão de piadas "pesadas" o tempo todo.
No Egito não existe nada disso. As ruas podem ser muito sujas, o povo sem higiene. Mas uma coisa importante as crianças do Egito ainda têm e que as nossas crianças desde muito cedo já perderam no Brasil por causa da sujeirada que aparece diariamente na televisão, nas revistas, na vida do dia-a-dia: pureza. Lá você encontra ainda crianças inocentes, com 10, 12 anos. E mesmo os adultos têm um comportamento que muitas vezes pensamos que são todos criancinhas. Era muito bonito ver aquilo.
O leitor poderá dizer que sou moralista. Pode ser. Mas é bom lembrar que já estamos tão acostumados com o que acontece em nossa volta que achamos tudo muito "natural". Um exemplo: você só sente o mau cheiro das fezes quando entra em um banheiro onde alguém defecou. Enquanto você defeca, quase nem sente. Até lê jornal.
Uma vez, um colega do curso de inglês emprestou uma fita de vídeo e me recomendou que não deixasse que as crianças vissem. Fui observar, alta hora da noite, depois das crianças terem ido dormir, se poderia mostrar o filme para elas. Qual não foi minha surpresa quando vi que aquele filme tinha passado numa "tela quente" no Brasil, sem corte algum.E que as crianças já tinham assistido.
Como as águas do Nilo, que mansamente correm para o Mediterrâneo, os egípcios não têm pressa nenhuma em atingir esse estágio da civilização que nós ocidentais já alcançamos: violência de todo tipo, apelação sexual, completa falta de pudor. Era uma pena eu não poder gargalhar junto com os egípcios de suas piadas "mixurucas".
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