A verdade sobre a tortura dos índios
Descoberta de documento que permaneceu oculto por mais de quatro décadas expõe como funcionou a política de corrupção, violência e extermínio do Serviço de Proteção aos Índios antes e durante a ditadura
Depois de quatro décadas longe do escrutínio público, o relatório foi finalmente redescoberto pelo pesquisador Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais, de São Paulo. Ele procurava há tempos o documento, mas o encontrou, por acaso, no arquivo do Museu do Índio, no Rio de Janeiro (leia quadro abaixo). Com o AI-5, o material ficou esquecido nos arquivos da Funai. Inclusive, muitos pesquisadores acreditavam que ele teria sido perdido em um incêndio no Ministério da Agricultura – na verdade, a tragédia aconteceu às vésperas da Comissão de Inquérito de Figueiredo. Agora, uma cópia está com o grupo de trabalho “Graves Violações de Direitos Humanos no Campo e/ou Contra Indígenas” da Comissão Nacional da Verdade.
Jáder Figueiredo foi uma figura ímpar, que desagradou a esquerda e a direita. Apesar de ter sido destacado para o trabalho pelo general linha-dura Albuquerque de Lima, que à época ocupava a pasta do Interior, a gravidade de suas acusações – que vão de desvio de recursos e venda de terras indígenas a assassinato, prostituição de índias e trabalho escravo –, colocaram-no contra o próprio regime militar. Foram muitos os esforços para mitigar a repercussão do escândalo no Exterior. As denúncias chegaram a ser destaque no jornal americano “The New York Times” e na revista alemã “Der Spiegel”. Um documento confidencial da Aeronáutica, de 26 de outubro de 1970, localizado pelo grupo Tortura Nunca Mais, afirma que “o fluxo de informações contra o Brasil no Exterior é constante e se faz em larga escala”. Logo abaixo, diz que “o trabalho relativo à ‘matança de índios’ foi completamente neutralizado e desmoralizado face às atividades das autoridades brasileiras”. Não é de se estranhar, portanto, que o Relatório Figueiredo tenha ficado mais de quatro décadas esquecido no arquivo da Funai, cuja criação em 1967 coincide com a extinção do SPI. “Evidentemente, o fato de ele ter permanecido oculto nas bases de dados da história brasileira foi intencional”, diz o professor Fernando Antonio de Carvalho Dantas, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás.
Jáder Figueiredo Júnior (com a foto do pai) e trechos do
documento (acima): denúncias de violência contra os índios
O Relatório Figueiredo repercutiu no "The New York Times",
o que desagradou o governo na época
Figueiredo rodou mais de 13 mil quilômetros no Brasil
e testemunhou violações contra povos indígenas
A redenção do procurador deve acontecer agora, com a redescoberta do documento que tem implicações até no presente. Segundo Cléber Cesar Busatto, secretário-executivo do Conselho Missionário Indigenista, o Ministério Público já anexou o documento aos autos do processo que pede a demarcação do território dos cadiueus, em Mato Grosso do Sul. Figueiredo, no documento, afirmou: “Estima-se em 800 mil hectares a área dessa imensa propriedade, não demarcada e hoje totalmente em poder de fazendeiros que se beneficiam de arrendamentos ilegais”. “Sem dúvida o relatório será usado como instrumento em outras disputas”, diz Busatto.
Ou seja, apesar dos esforços para apagar a verdade das violações, o relatório é um instrumento importante para esclarecer o passado. “A história dos direitos dos povos indígenas será recontada a partir do relatório”, diz o professor Dantas, ressaltando que os crimes nunca foram apagados da memória dos povos e das pessoas que lutam pelos índios no País. Segundo o antropólogo Carlos Augusto da Rocha Freire, coordenador de Divulgação Científica do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, são justamente essas memórias que ajudarão a reconstruir o que falta dessa história – 533 páginas, que representam 7% do documento, ainda estão desaparecidas. Freire diz que a repercussão internacional do Relatório Figueiredo fez com que a questão indígena fosse amplamente discutida, mas não impediu que a Funai repetisse a estrutura do SPI e adotasse uma política que dizimaria povos como os Paraná, afetados pelo projeto econômico desenvolvimentista da ditadura. “Se os velhos sertanistas e indigenistas, além das velhas lideranças indígenas, começassem a escrever suas memórias, fizessem entrevistas relatando o que viram e ouviram, e os índios incrementassem suas narrativas sobre o que sofreram nesses anos, os brasileiros, certamente, poderiam vir, agora sim, a descobrir um outro Brasil.”
Fonte: https://istoe.com.br/294080_A+VERDADE+SOBRE+A+TORTURA+DOS+INDIOS/
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