MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964

MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964
Avião que passou no dia 31 de março de 2014 pela orla carioca, com a seguinte mensagem: "PARABÉNS MILITARES: 31/MARÇO/64. GRAÇAS A VOCÊS, O BRASIL NÃO É CUBA." Clique na imagem para abrir MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Machado e Eça no Purgatório - Por Félix Maier

 


Machado e Eça no Purgatório

Um conto fantástico em que os mortos ainda se engalfinham em  glória e gramática.

 Félix Maier

Era uma tarde sem tarde — pois no Purgatório o tempo é uma invenção obsoleta, um relógio parado entre o céu e o inferno. O ar tinha cor de papel envelhecido e cheirava a tinta de tipografia. Por entre nuvens pardacentas, espíritos caminhavam de um lado para outro, arrastando pecados leves o bastante para não merecer o fogo, mas pesados demais para a ascensão.

E foi nessa atmosfera de papel e pecado que dois vultos se cruzaram numa tarde sem tarde, pois o tempo, ali, é uma abstração que perdeu a pontualidade.

Um deles caminhava devagar, apoiando-se num bastão feito de ironia. Tinha a pele morena, pince-nez ajustado com precisão de relojoeiro, e um sorriso discreto, desses que não riem do mundo, apenas o decifram. Era Machado de Assis, o Bruxo do Cosme Velho, que chegara ao Purgatório sem alarde, pedindo licença até para a eternidade vestindo um cerimonioso fraque translúcido.

O outro vinha de passo largo, terno preto etéreo com lenço de gola alta, bigode impecável e porte de diplomata atrasado para um baile solene. Trazia no ar o perfume distante das livrarias de Paris e no olhar a altivez dos que se creem injustiçados até por Deus e o Diabo. Era Eça de Queiroz, o português que acreditava que cada vírgula tinha alma e cada pecado, estilo.

Tropeçaram um no outro, um tropeço metafísico, como se o destino, cansado das suas intrigas terrenas, resolvesse brincar de roteirista purgacional.

Machado recuou um passo, ajeitou o fraque da alma e, com aquele tom que transforma qualquer desculpa em sentença, murmurou:

— Creio que o cavalheiro me interceptou o passo.

Eça arqueou o sobrolho e respondeu, com ligeiro sotaque de Lisboa e orgulho de quem nunca perde a nuance:

— Interceptar? Meu caro, quem tropeça em mim costuma pedir desculpas em francês.

Machado sorriu com um movimento quase imperceptível dos lábios, como quem anota uma ironia mental para uso futuro.

— Francês… até aqui o senhor o invoca. Há de haver cafés parisienses no além, imagino, com madames de névoa e pecados de veludo.

Eça abanou a mão, teatral:

— E o senhor, que nunca saiu da Rua do Ouvidor, fala como se o paraíso fosse um bonde do Rio de Janeiro.

O silêncio que se seguiu era civilizado. No Purgatório, até os insultos exigem boa sintaxe.

Começaram a caminhar lado a lado, ou quase, pois entre eles havia uma distância invisível, medida em séculos de vaidade e crítica literária.

A névoa ao redor cheirava a papel amarelado e tinta de pena. Era o perfume dos escribas da posteridade.

Machado, olhando em volta, comentou:

— Curioso, senhor Queiroz. O Purgatório assemelha-se um pouco à Academia. Há cadeiras, vaidades e votos secretos.

Eça respondeu, sem resistir à provocação:

— E, como na Academia, poucos sobem.

Machado riu com os olhos, que eram sua parte mais viva.

— Ao menos aqui não se discute ortografia.

— Discutir, não. Mas vi ali ao fundo uma alma a conjugar o verbo ascender com cê, e foi mandada de volta ao limbo por erro grave — retrucou Eça.

Caminharam. De vez em quando, passava uma alma apressada, algum poeta arrependido, tentando trocar o Purgatório por uma antologia.

No alto, anjos-porteiros cochichavam, anotando quem falava mal de quem, pois até na eternidade há jornais de fofoca metafísica.

Eça, sempre ansioso por justificar-se, retomou o fio das mágoas antigas:

— Ainda guardo lembrança amarga das críticas, senhor de Assis. Sob pseudônimo, o senhor me esfolou vivo em O Primo Basílio.

Machado pigarreou com elegância, ajeitando o pince-nez.

— Ah, sim… Eleazar. Era um exercício de estilo. A crítica, caro Eça, é um modo educado de praticar a caridade.

— Caridade? — Eça arregalou os olhos. — Chamou minha Luísa de tola, meu Basílio de leviano e meu realismo de vulgar!

— Limitei-me a observar — retrucou Machado — que a empregada Juliana tinha mais alma que a patroa. O senhor quis retratar o adultério e acabou traindo a psicologia.

Eça respirou fundo, dividido entre ofensa e admiração. A vaidade ferida é um espelho que se quebra refletindo o próprio rosto.

— O senhor fala como padre, mas escreve como coveiro. Metade dos seus personagens já nasce morta.

— É uma economia de enredo — disse Machado, com doçura. — O defunto autor é mais confiável do que o narrador vivo.

Eça riu, sacudindo a poeira do orgulho.

— Reconheço, há gênio no seu sarcasmo. Mas confesse: o senhor sempre invejou o meu pecado.

— Pecado? — perguntou Machado, arqueando uma sobrancelha. — No Brasil, o calor já basta.

Foram andando. O chão, feito de páginas translúcidas, parecia murmurar citações antigas. De vez em quando, uma folha solta passava flutuando, trazendo trechos de romances esquecidos. Ao longe, um coral de almas declamava versos franceses. Machado suspirou.

— Nem o senhor, com todo o seu Paris, subiu.

— Nem o senhor, com todo o seu moralismo, desceu — respondeu Eça. Talvez Deus esteja indeciso sobre o valor do estilo.

Riram. No Purgatório, o riso é moeda de purificação. Mas o silêncio seguinte não era inocente. Eça, com aquela elegância provocadora dos duelistas do Chiado, lançou:

— Diga-me, senhor Machado, não é curioso o senhor também ter vindo parar aqui? Ou seria castigo por... pequenas apropriações intelectuais?

Machado ajeitou o colarinho invisível, como quem ajusta a própria ironia.

— O senhor fala de plágio?

Eça ergueu as sobrancelhas.

— Não eu. Apenas cito fontes. Há quem diga que suas nuvens caídas vêm de Alphonse Karr, suas batatas de Ernest Renan, seu verme de Baudelaire e seu emplastro de um tal Sterne.

Machado parou, olhou para o vazio e sorriu.

— Ah, sim. Chamemos de cosmopolitismo literário. Afinal, se os franceses me influenciaram, influenciaram o senhor duas vezes.

Eça gargalhou alto, um riso de vinho e pecado.

— Ainda assim, o meu plágio cheira a Bordeaux, não a mate amargo.

Machado inclinou o chapéu inexistente.

— Pois que brindemos às influências mútuas. O senhor, herdeiro do naturalismo; eu, discípulo da ironia. E ambos, reféns da crítica.

Nesse momento, uma brisa correu, e as nuvens formaram uma espécie de cortina. Dela saiu uma figura miúda, de terno escuro, olhar fiscal e prancheta flamejante.

— Agrippino Grieco! — exclamaram em uníssono, surpresos e resignados.

O crítico literário sorriu com a satisfação de quem reencontra velhos réus.

— Senhores — disse ele —, a eternidade exige revisão. Tenho aqui os autos dos vossos pecados literários.

Eça revirou os olhos:

— Nem morto me livro da crítica.

Machado, tranquilo:

— Deixe-o falar, caro Eça. A verdade, às vezes, melhora com o tempo.

Grieco abriu a prancheta. O som do papel soou como sentença. O Purgatório, que até então sussurrava como uma biblioteca de convento, calou-se por completo. Nem o folhear das almas se ouvia. Agrippino Grieco — crítico emérito e fiscal da posteridade — abrira sua prancheta flamejante.

Os papéis, em vez de linhas, traziam pequenas chamas que ardiam em silêncio, como notas de rodapé em fogo lento.

— Muito bem, senhores — começou, com voz que soava entre o tom de júri e o de colunista. — Eis-me aqui, incumbido de revisar vossas obras e vossos pecados. Afinal, a eternidade, como a boa literatura, não admite rasuras.

Eça endireitou-se, ajeitando o bigode incorpóreo. Machado apenas arqueou a sobrancelha — esse leve gesto que, no Céu ou na Terra, valia por um capítulo. Agrippino prosseguiu:

— Primeiro réu: Machado de Assis. Acusado de citações não creditadas, apropriações cosmopolitas e filosofias reaproveitadas. Item um: Melhor cair das nuvens do que de um quinto andar — procedência, Alphonse Karr. Item dois: Ao vencedor, as batatas — fonte, Ernest Renan. Item três: Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas — Baudelaire, naturalmente. Item quatro: O emplastro Brás Cubas — ah, caro senhor, puro Sterne!

Machado manteve a calma dos culpados que filosofam.

— Meu caro Agrippino, plagiar é dar segunda vida às ideias. A originalidade é o disfarce mais refinado do talento.

— Disfarce ou travestimento? — atalhou Grieco, anotando algo em sua prancheta que faiscou.

— Travestimento é o que o senhor chama de crítica — devolveu Machado. — Um gênero que se veste de erudição e esconde o prazer de punir.

Um murmúrio percorreu as nuvens: os anjos-bibliotecários cochichavam, fascinados. Agrippino fingiu não ouvir.

— Eça de Queiroz, passo ao senhor. — E folheou outro papel ardente. — O senhor é acusado de ter plagiado Zola, adulterado o pudor e cometido pecados de descrição excessiva.

— Descrição excessiva?! — indignou-se Eça. — Eu apenas pintei o real com as cores que ele exige. Se há excesso, é do mundo, não meu.

— Descrição excessiva de libertinagem não é arte, é fisiologia — disse Machado.

— Zola, Balzac, Flaubert... o senhor bebeu em todas as garrafas francesas — disse Grieco.

Eça inclinou-se, com altivez.

— Ao menos as garrafas eram boas. E o senhor, Machado, confessará que me leu com atenção, pois quem me critica tanto, me admira em dobro.

Machado sorriu.

— Confesso, li-o com o prazer que se tem ao observar um incêndio da sacada: belo, mas perigoso.

Grieco interrompeu:

— Senhores! Aqui não se trata de duelo literário, mas de ajuste de contas com a posteridade.

Eça cruzou os braços etéreos:

— A posteridade, caro Agrippino, é apenas a crítica que Deus faz aos mortos.

Machado assentiu, filosófico:

— E, pelo visto, ainda não fomos absolvidos, para subir. Nem condenados, para descer.

Enquanto o debate se acirrava, as nuvens se juntaram em semicírculo, formando um anfiteatro brumoso. Sentados nas bordas vaporosas estavam figuras ilustres: Camões, que não sabia se declamava ou julgava; Garrett, que penteava o vento; Padre Antônio Vieira, que tentava converter os suspiros em sentenças; e Baudelaire, claro, fumando um cigarro de névoa, curioso para ver o destino de suas influências tropicais.

Camões foi o primeiro a falar, com a solenidade de quem atravessou mares e séculos:

— Senhores, as musas são irmãs. Não há roubo entre família.

Baudelaire, porém, sorriu de modo venenoso:

— Eu, por mim, aceito o plágio como homenagem. Desde que o homenageado receba os direitos autorais da eternidade.

Machado inclinou-se, respeitoso:

— Tenho pagado em glória tardia, caro Charles. E, se o senhor me inspirou, ao menos o fiz vestir fraque brasileiro.

— E eu — replicou Eça, sarcástico — o vesti de casaca portuguesa. Somos ambos alfaiates da linguagem.

Grieco pigarreou.

— Alfaiates, sim, mas a costura é suspeita. Há remendos visíveis, senhores.

Machado respondeu:

— Todo estilo é um remendo que o tempo chama de assinatura.

O murmúrio das nuvens transformou-se em aplauso.

Permitam-me, caro leitor, uma breve interferência — pois quem vos fala, como todo narrador, não é neutro, apenas disfarçado.
Machado e Eça, naquele instante, não discutiam a autoria das frases, mas o direito de serem eternos à sua própria maneira. O Purgatório, esse salão nebuloso, não passa de um congresso literário sem encerramento, onde cada alma quer a última palavra e nenhuma deseja ouvir a alheia. E eu, observador das brumas, vi que o julgamento de Agrippino não buscava justiça — buscava estilo. Eça queria a elegância da forma; Machado, a elegância do pensamento; Agrippino, a elegância da censura.

De repente, Grieco retirou da pasta um pergaminho e o ergueu como um troféu. Era o original de Memórias Póstumas de Brás Cubas, com anotações à margem em francês. As letras cintilavam, revelando o diálogo secreto dos autores mortos.

— Eis aqui — disse o crítico, triunfante — a prova de que Machado lia Sterne com entusiasmo quase eclesiástico.

Machado olhou o pergaminho, sereno.

— Li-o, sim. E aprendi com ele que a morte é o narrador mais honesto.

Eça comentou, em voz baixa:

— E o mais rentável.

Grieco continuou sua sanha acusatória, exibindo agora um exemplar de O Primo Basílio com dedicatória a Balzac.

— E o senhor, Eça, não fica atrás. Sua Lisboa cheira a Paris, seu adultério fala francês, e seu moralismo tem sotaque de salão.

Eça abriu os braços:

— Ah, mas foi o pecado que me deu tema, e o tema, estilo. Escrevi o que todos fazem, mas fingem ignorar.

Machado, com um sorriso enviesado, completou:

— Eu escrevi o que todos ignoram, mas fingem compreender.

Grieco suspirou, vencido pela dialética.

— Pois bem — disse ele —, declaro-vos igualmente culpados de genialidade reincidente.

O coro de sombras aplaudiu. Baudelaire, com fumaça azulada, murmurou:

— Ah, se todo plágio fosse assim...

Camões ergueu a espada, feita de neblina e lembrança:

— Pela pena e pelo verbo, absolvidos sejam!

Mas Agrippino, que não cedia facilmente, fechou o relatório com ar de tabelião da eternidade:

— A sentença não é tão simples. Permanecerão ambos no Purgatório até redigirem juntos um tratado intitulado Do Plágio como Forma Superior de Admiração.

Eça fez cara de horror.

— Escrever com este homem?

Machado respondeu com um meio-sorriso filosófico:

— Um prazer infernal, caro Eça.

E assim terminou a sessão.

As almas dispersaram-se como leitores após o prefácio. Eça e Machado permaneceram sentados sobre uma nuvem de leve densidade crítica. Entre eles, Agrippino já desaparecera, deixando no ar um leve cheiro de tinta e burocracia.

Machado quebrou o silêncio:

— Sabe, Queiroz, talvez a eternidade seja apenas uma segunda edição, revista e aumentada.

Eça respondeu:

— Desde que o prefácio não seja seu.

Machado riu.

— Nesse caso, escrevemos em parceria.

Eça levantou-se, resignado:

— Pois bem. Comecemos o tratado. E se a eternidade tem revisores, que ao menos sejam imparciais.

Sobre a mesa pairavam folhas de papel celestial — luminosas, como se escritas por dentro. Era o material concedido por Agrippino Grieco para que redigissem o tratado Do Plágio como Forma Superior de Admiração.

Eça começou o preâmbulo, empunhando a pena espectral:

— “Nós, abaixo-assinados, Machado de Assis e José Maria Eça de Queiroz, reconhecemos que toda obra é filha ilegítima de outra, e que a originalidade é uma forma elegante de esquecimento.”

Machado assentiu, sorrindo:

— Belo começo. Faltam apenas as entrelinhas, que é onde reside a ironia.

— Ironia? — respondeu Eça. — Prefiro o sarcasmo, é mais civilizado.

— O sarcasmo é francês; a ironia, universal — retrucou Machado.

Ambos se entreolharam, compreendendo que o tratado seria mais difícil do que a confissão de um santo. Machado suspirou, olhando o papel que não se deixava concluir.

— Escrever, aqui, é como tentar acender fósforos molhados.

— Natural — disse Grieco. — O Purgatório é a tipografia do eterno inacabado.

— Então somos linotipistas da posteridade — gracejou Eça.

— Não, senhores. — A voz de Agrippino tornou-se grave. — São personagens do próprio estilo. O castigo de todo grande escritor é viver preso àquilo que escreveu.

Machado ergueu as sobrancelhas:

— Nesse caso, estou condenado a ironizar até o fim dos tempos.

— E eu — disse Eça — a descrever salões que não existem.

— Pois que descrevam o que sempre escreveram — replicou Agrippino, antes de desaparecer numa centelha de crítica.

Decididos a terminar o tratado, os dois mestres resolveram visitar o Salão das Ideias Perdidas, onde pairavam todas as frases que nunca chegaram a ser escritas. Era um lugar impressionante: flutuavam ali inícios de romances, metáforas abortadas, parágrafos esquecidos e até o esboço de um soneto de Camões sobre mosquitos.

Eça observou, fascinado:

— Eis aqui a biblioteca da humanidade inconclusa.

Machado tocou uma frase suspensa no ar, Se Deus fosse crítico literário… — e murmurou: — Essa é perigosa. Pode transformar-se em realidade.

Do fundo do salão, uma voz ecoou, grave e mansa:

— Transformou-se em realidade, meus filhos.

Era uma voz sem corpo, mas com autoridade. As ideias se afastaram respeitosamente.

— Quem fala? — perguntou Eça, empalidecendo até quase sumir.

— O Autor — respondeu a voz. — Chamam-me de Deus, mas prefiro o título de Crítico Universal.

Machado inclinou-se.

— Então é verdade que o mundo é apenas um manuscrito divino?

— Um rascunho, Machado. Ainda em revisão.

Eça, entre o espanto e a ironia, perguntou:

— E nós, o que somos?

— Margens comentadas.

Houve um silêncio sublime, interrompido apenas pelo farfalhar das nuvens. Machado, em sua calma olímpica, ousou dizer:

— Senhor, se somos notas de rodapé, ao menos que sejamos legíveis.

Eça completou:

— Ou elegantes.

A voz sorriu — e um raio de luz atravessou o salão.

De volta ao Café das Sombras Leves, escreveram juntos, pela primeira vez sem disputa: Toda criação é uma herança. Todo gênio, um tradutor. Plagiar é participar da corrente secreta das vozes que não cessam. Aquele que escreve sozinho mente; aquele que copia, dialoga.
Por isso, o plágio é a mais pura forma de admiração.

Assinaram juntos, Machado com pena de corvo, Eça, com pena de pavão: Machado de Queiroz – Eça de Assis (Revisado por Laurence Sterne e Émile Zola).

Quando finalizaram o tratado, Agrippino Grieco reapareceu, surpreendentemente com um leve sorriso.

— Está aprovado — disse ele. — Mas, aviso: a eternidade o transformará em apócrifo.

Machado inclinou-se, satisfeito:

— Todo texto que sobrevive ao autor é apócrifo.

Eça levantou o copo:

— Às cópias que nos superam!

Brindaram com vinho purgacional em copos feitos de névoa.

No alto do Purgatório, as nuvens se abriram. Camões, Zola, Vieira, Baudelaire e até Sterne acenavam, como num sarau de luz. O Café dissolveu-se em claridade, e o som das risadas se confundiu com o canto dos anjos revisores.

E o narrador, este modesto cronista das almas, encerrou o relato, dizendo ao leitor que o Purgatório, no fundo, não é um castigo. É apenas a sala de espera entre a leitura e a reescrita.

E lá ficaram Eça e Machado, entre o riso e o verbo, escrevendo sem fim o que já estava escrito, comentando o que nunca será dito, pois na eternidade, como na literatura, ao vencedor, as batatas.

Só não se sabia ainda se as batatas viriam cozidas no fogo eterno ou servidas à moda do paraíso — o Crítico Universal não entrega spoilers.  


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