A
Melhor Idade
Félix Maier
Dizem
por aí que pertenço à melhor idade. É um modo diplomático de me chamar de velho. Eu discordo. Se essa é a melhor idade, imagino o
que seria a pior — talvez aquela em que a gente paga a conta do plano de saúde
e o hospital manda cartão de Natal.
Acordo
todo dia com o corpo fazendo barulhos que não constam do manual de instruções.
É um festival de estalos, rangidos e suspiros mecânicos. Parece que tenho
orquestra dentro do joelho. Outro dia, ao me levantar da cama, o quadril soltou
um tóim tão afinado que pensei em gravar um disco: Sinfonia para prótese em
dó menor.
Mas
não reclamo, não. Quer dizer, reclamo um pouco — que é o hobby oficial da
terceira idade, especialmente por eu ser um viúvo.
Meu
amigo Arlindo, por exemplo, diz que o melhor da velhice é o desconto no cinema.
Só esqueceu que a gente cochila antes do trailer acabar.
—
Eita, Válter, mas é bom cochilar com ar-condicionado e pipoca — ele me responde.
— É,
Arlindo, o problema é acordar achando que a Scarlett Johansson é sua
enfermeira.
Falando
em enfermeira, o Hospital Militar de Área de Brasília virou shopping dos
velhinhos. A melhor idade não é só decadência, é também descoberta. Como
veterano militar, descobri, por exemplo, que lá é o novo point da terceira
idade. Tem ar-condicionado, TV, Wi-Fi e café ruim de graça. O shopping dos
velhinhos é sempre muito movimentado. Deve ser por isso que uma Guia de
Encaminhamento, para atendimento externo, às vezes demora trinta e sete dias
para ser aprovada... 
No
shopping dos velhinhos a gente se encontra, põe a conversa em dia e compara
resultados de exame como quem compara gols do Brasileirão.
— O
meu colesterol tá em 280 — diz o Arlindo, com orgulho de artilheiro.
—
Ganhou de mim — respondo. — O meu só chega em 240, mas subi bem no ácido úrico.
Há
também um clima de romance entre as macas e os labirintos do velho Hospital, de modo
que é aconselhável ter o Waze à mão no celular para não se perder. O corredor
da ortopedia parece salão de baile. Viúvas penteadas, viúvos perfumados, todo
mundo fingindo que não sente dor — e sentindo.
Outro
dia, enquanto esperava o cardiologista, uma senhora simpática me perguntou se
eu acreditava em amor na terceira idade.
—
Minha filha, nessa idade eu acredito até em milagre — respondi. — E se ele vier
de minissaia, melhor ainda.
Ela
riu, mostrou os dentes (os próprios, segundo garantiu), e me disse que se
chamava Nair. Nome de anjo aposentado.
Só
no fato de eu falar em minissaia, o leitor deve imaginar minha idade,
quase centenária...
Saí
dali meio tonto. O coração disparou. Achei que fosse paixão; era só a pressão.
Mas é bom confundir as coisas — a emoção dá sentido ao remédio.
Depois
do hospital, nosso outro ponto de encontro é o baile da terceira idade, organizado num hotel da cidade. Ali o
tempo para, ou pelo menos tropeça. Chego com minha bengala cromada — herança de
tio Ubaldo, que dançava maxixe até depois do velório da esposa — e vou direto
para o bar, tomar um suquinho de laranja com intenção.
O
DJ, um rapaz de uns sessenta, toca Nelson Gonçalves, depois mete um bolero de
Altemar Dutra, e aí é que o bicho pega.
— Me
concede esta dança? — pergunto à Nair, que já estava ali, toda de lilás.
—
Depende. É pra dançar ou pra cair junto, Válter?
— Os
dois, se possível — digo, sorrindo.
E
dançamos. Devagar, como quem negocia com o destino. A cada giro, meu menisco
pede socorro, mas o coração agradece.
Terminamos
a dança com dignidade, o que significa que ninguém caiu. Um feito. O pessoal
até aplaudiu — mas talvez porque a música acabou e eles podiam finalmente se
sentar. Nair me deu um beijo no rosto, bem ali, no meio do salão, com dentadura
e tudo. Foi o beijo mais sincero dos últimos vinte anos: sem pressa, sem filtro
solar, sem medo do amanhã. 
Depois
disso, confesso que passei a esperar o baile do mês seguinte com o mesmo
entusiasmo de um adolescente esperando o recreio. A diferença é que agora o
recreio vem com diurético.
Falando
em diurético, é impossível ser velho e falar de amor sem falar de mijo. Não é
assunto bonito, mas é democrático. O jato, outrora altivo
e certeiro, virou um sprinkler anarquista. Molha o chão, o pé, e às
vezes até o cachorro, se ele for curioso o bastante.
Outro
dia, Nair me perguntou:
—
Válter, você ainda se sente homem, assim, no... digamos, sentido completo da palavra?
Respirei
fundo. Pensei em mentir, mas a velhice tem esse dom: a sinceridade cansada.
—
Sinto, sim. Mas agora o sentido completo vem com manual de instruções, pilha
reserva e bula do azulzinho.
Ela
riu de modo brejeiro e insinuante, e respondeu:
—
Melhor assim. Homem sincero é afrodisíaco depois dos setenta.
Foi
a primeira vez na vida que uma mulher me chamou de afrodisíaco. Anotei
mentalmente, pra contar pro Arlindo e deixá-lo com inveja.
Mas
é curioso: à medida que o corpo desaba, o amor se simplifica. Já não é sobre
músculos, mas sobre memória. Não é sobre fogo, mas sobre calor humano. 
Nair
e eu não fazemos planos; fazemos chá de erva cidreira. Nosso erotismo é mais
infusão do que combustão. E há beleza nisso. Um tipo de ternura que só quem
teve pressa demais consegue apreciar depois, quando o tempo obriga a andar
devagar.
Claro
que a velhice tem seus lados cruéis. O espelho, por exemplo, é um canalha. Outro
dia, acordei de bom humor, olhei no vidro do banheiro e levei um susto. Achei
que meu avô tinha voltado pra me visitar.
E os
remédios… ah, os remédios! Tenho tantos comprimidos coloridos que minha mesinha
parece a banca de um camelô. Azul pra animar, branco pra dormir, vermelho pra
acalmar o coração, verde pra o estresse e o estômago, amarelo pra lembrar que
ainda estou vivo.
E a
próstata, a infame. Já virou personagem da minha vida: eu acordo e converso com
ela.
—
Vamos segurar firme o mijo hoje, hein?
Ela
responde com silêncio e vingança.
Outro
dia, enquanto esperava o urologista, o Arlindo me cutuca:
—
Sabe o que é pior do que exame de toque?
— O
quê?
—
Ter saudade dele.
—  Não diga! Vai ver que você é aquele gaúcho da
estória, que estava levando uma dedada, o médico perguntou, o que você está
sentindo? e o machão disse sinto que te amo!...
Rimos
tanto que a enfermeira veio ver se estávamos passando mal.
Às
vezes penso que a velhice é uma pegadinha de Deus. Ele deixa o desejo vivo, mas
manda o corpo para aposentadoria. É um tipo de ironia cósmica: o motor ainda
ronca, mas o câmbio emperra. Mesmo assim, eu continuo muito grato. Prefiro
ranger que parar de vez.
A
Nair diz que eu sou um velho boca-suja com alma de menino.
Pode ser. Mas menino que paga imposto, toma ômega-3 e precisa de lupa pra ler
bula de Viagra.
Outro
dia fomos à missa dos idosos. O padre, jovenzinho, falou com ternura:
—
Meus irmãos, na melhor idade o corpo enfraquece, mas o espírito se fortalece.
E a
Nair cochichou:
— O
meu espírito até tenta, mas o ciático não deixa. 
Tive
que segurar o riso pra não cometer heresia.
No
fim das contas, é isso: a melhor idade é um estado de espírito com artrite. A
gente aprende a rir da própria biografia, e a escolher o que lembrar. A saudade
fica mais leve, o perdão fica mais fácil, e o amor… o amor vira um hábito
gostoso, como café sem açúcar.
Às
vezes, quando a Nair adormece no sofá, eu fico olhando pra ela e penso: Meu
Deus, como é que esse corpo que já não corre mais ainda dá conta de tanto
carinho?
Então
me vem uma vontade danada de agradecer — não pela saúde, nem pela juventude
perdida, mas pelo simples fato de ainda ter alguém pra implicar, pra segurar a
mão, pra chamar de meu amor mesmo depois que o romance virou receita de
remédio.
A
verdade, meu caro, é que envelhecer é um ato de coragem com senso de humor. A
gente vai rindo pra não cair. E se cair, que seja dançando.
Porque,
no fim das contas, a melhor idade é sempre a próxima, desde que ainda dê pra
apertar a mão de alguém e dizer, com um sorriso torto:
— A
gente tá velho, mas tá vivo. E isso, meu amigo, é o melhor que há.

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