MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964

MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964
Avião que passou no dia 31 de março de 2014 pela orla carioca, com a seguinte mensagem: "PARABÉNS MILITARES: 31/MARÇO/64. GRAÇAS A VOCÊS, O BRASIL NÃO É CUBA." Clique na imagem para abrir MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A melhor idade - Por Félix Maier

 


A Melhor Idade

Félix Maier

Dizem por aí que pertenço à melhor idade. É um modo diplomático de me chamar de velho. Eu discordo. Se essa é a melhor idade, imagino o que seria a pior — talvez aquela em que a gente paga a conta do plano de saúde e o hospital manda cartão de Natal.

Acordo todo dia com o corpo fazendo barulhos que não constam do manual de instruções. É um festival de estalos, rangidos e suspiros mecânicos. Parece que tenho orquestra dentro do joelho. Outro dia, ao me levantar da cama, o quadril soltou um tóim tão afinado que pensei em gravar um disco: Sinfonia para prótese em dó menor.

Mas não reclamo, não. Quer dizer, reclamo um pouco — que é o hobby oficial da terceira idade, especialmente por eu ser um viúvo.

Meu amigo Arlindo, por exemplo, diz que o melhor da velhice é o desconto no cinema. Só esqueceu que a gente cochila antes do trailer acabar.

— Eita, Válter, mas é bom cochilar com ar-condicionado e pipoca — ele me responde.

— É, Arlindo, o problema é acordar achando que a Scarlett Johansson é sua enfermeira.

Falando em enfermeira, o Hospital Militar de Área de Brasília virou shopping dos velhinhos. A melhor idade não é só decadência, é também descoberta. Como veterano militar, descobri, por exemplo, que lá é o novo point da terceira idade. Tem ar-condicionado, TV, Wi-Fi e café ruim de graça. O shopping dos velhinhos é sempre muito movimentado. Deve ser por isso que uma Guia de Encaminhamento, para atendimento externo, às vezes demora trinta e sete dias para ser aprovada...

No shopping dos velhinhos a gente se encontra, põe a conversa em dia e compara resultados de exame como quem compara gols do Brasileirão.

— O meu colesterol tá em 280 — diz o Arlindo, com orgulho de artilheiro.

— Ganhou de mim — respondo. — O meu só chega em 240, mas subi bem no ácido úrico.

Há também um clima de romance entre as macas e os labirintos do velho Hospital, de modo que é aconselhável ter o Waze à mão no celular para não se perder. O corredor da ortopedia parece salão de baile. Viúvas penteadas, viúvos perfumados, todo mundo fingindo que não sente dor — e sentindo.

Outro dia, enquanto esperava o cardiologista, uma senhora simpática me perguntou se eu acreditava em amor na terceira idade.

— Minha filha, nessa idade eu acredito até em milagre — respondi. — E se ele vier de minissaia, melhor ainda.

Ela riu, mostrou os dentes (os próprios, segundo garantiu), e me disse que se chamava Nair. Nome de anjo aposentado.

Só no fato de eu falar em minissaia, o leitor deve imaginar minha idade, quase centenária...

Saí dali meio tonto. O coração disparou. Achei que fosse paixão; era só a pressão. Mas é bom confundir as coisas — a emoção dá sentido ao remédio.

Depois do hospital, nosso outro ponto de encontro é o baile da terceira idade, organizado num hotel da cidade. Ali o tempo para, ou pelo menos tropeça. Chego com minha bengala cromada — herança de tio Ubaldo, que dançava maxixe até depois do velório da esposa — e vou direto para o bar, tomar um suquinho de laranja com intenção.

O DJ, um rapaz de uns sessenta, toca Nelson Gonçalves, depois mete um bolero de Altemar Dutra, e aí é que o bicho pega.

— Me concede esta dança? — pergunto à Nair, que já estava ali, toda de lilás.

— Depende. É pra dançar ou pra cair junto, Válter?

— Os dois, se possível — digo, sorrindo.

E dançamos. Devagar, como quem negocia com o destino. A cada giro, meu menisco pede socorro, mas o coração agradece.

Terminamos a dança com dignidade, o que significa que ninguém caiu. Um feito. O pessoal até aplaudiu — mas talvez porque a música acabou e eles podiam finalmente se sentar. Nair me deu um beijo no rosto, bem ali, no meio do salão, com dentadura e tudo. Foi o beijo mais sincero dos últimos vinte anos: sem pressa, sem filtro solar, sem medo do amanhã.

Depois disso, confesso que passei a esperar o baile do mês seguinte com o mesmo entusiasmo de um adolescente esperando o recreio. A diferença é que agora o recreio vem com diurético.

Falando em diurético, é impossível ser velho e falar de amor sem falar de mijo. Não é assunto bonito, mas é democrático. O jato, outrora altivo e certeiro, virou um sprinkler anarquista. Molha o chão, o pé, e às vezes até o cachorro, se ele for curioso o bastante.

Outro dia, Nair me perguntou:

— Válter, você ainda se sente homem, assim, no... digamos, sentido completo da palavra?

Respirei fundo. Pensei em mentir, mas a velhice tem esse dom: a sinceridade cansada.

— Sinto, sim. Mas agora o sentido completo vem com manual de instruções, pilha reserva e bula do azulzinho.

Ela riu de modo brejeiro e insinuante, e respondeu:

— Melhor assim. Homem sincero é afrodisíaco depois dos setenta.

Foi a primeira vez na vida que uma mulher me chamou de afrodisíaco. Anotei mentalmente, pra contar pro Arlindo e deixá-lo com inveja.

Mas é curioso: à medida que o corpo desaba, o amor se simplifica. Já não é sobre músculos, mas sobre memória. Não é sobre fogo, mas sobre calor humano.

Nair e eu não fazemos planos; fazemos chá de erva cidreira. Nosso erotismo é mais infusão do que combustão. E há beleza nisso. Um tipo de ternura que só quem teve pressa demais consegue apreciar depois, quando o tempo obriga a andar devagar.

Claro que a velhice tem seus lados cruéis. O espelho, por exemplo, é um canalha. Outro dia, acordei de bom humor, olhei no vidro do banheiro e levei um susto. Achei que meu avô tinha voltado pra me visitar.

E os remédios… ah, os remédios! Tenho tantos comprimidos coloridos que minha mesinha parece a banca de um camelô. Azul pra animar, branco pra dormir, vermelho pra acalmar o coração, verde pra o estresse e o estômago, amarelo pra lembrar que ainda estou vivo.

E a próstata, a infame. Já virou personagem da minha vida: eu acordo e converso com ela.

— Vamos segurar firme o mijo hoje, hein?

Ela responde com silêncio e vingança.

Outro dia, enquanto esperava o urologista, o Arlindo me cutuca:

— Sabe o que é pior do que exame de toque?

— O quê?

— Ter saudade dele.

 Não diga! Vai ver que você é aquele gaúcho da estória, que estava levando uma dedada, o médico perguntou, o que você está sentindo? e o machão disse sinto que te amo!...

Rimos tanto que a enfermeira veio ver se estávamos passando mal.

Às vezes penso que a velhice é uma pegadinha de Deus. Ele deixa o desejo vivo, mas manda o corpo para aposentadoria. É um tipo de ironia cósmica: o motor ainda ronca, mas o câmbio emperra. Mesmo assim, eu continuo muito grato. Prefiro ranger que parar de vez.

A Nair diz que eu sou um velho boca-suja com alma de menino.
Pode ser. Mas menino que paga imposto, toma ômega-3 e precisa de lupa pra ler bula de Viagra.

Outro dia fomos à missa dos idosos. O padre, jovenzinho, falou com ternura:

— Meus irmãos, na melhor idade o corpo enfraquece, mas o espírito se fortalece.

E a Nair cochichou:

— O meu espírito até tenta, mas o ciático não deixa.

Tive que segurar o riso pra não cometer heresia.

No fim das contas, é isso: a melhor idade é um estado de espírito com artrite. A gente aprende a rir da própria biografia, e a escolher o que lembrar. A saudade fica mais leve, o perdão fica mais fácil, e o amor… o amor vira um hábito gostoso, como café sem açúcar.

Às vezes, quando a Nair adormece no sofá, eu fico olhando pra ela e penso: Meu Deus, como é que esse corpo que já não corre mais ainda dá conta de tanto carinho?

Então me vem uma vontade danada de agradecer — não pela saúde, nem pela juventude perdida, mas pelo simples fato de ainda ter alguém pra implicar, pra segurar a mão, pra chamar de meu amor mesmo depois que o romance virou receita de remédio.

A verdade, meu caro, é que envelhecer é um ato de coragem com senso de humor. A gente vai rindo pra não cair. E se cair, que seja dançando.

Porque, no fim das contas, a melhor idade é sempre a próxima, desde que ainda dê pra apertar a mão de alguém e dizer, com um sorriso torto:

— A gente tá velho, mas tá vivo. E isso, meu amigo, é o melhor que há.

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