Pé na Cova planeja uma boa morte
Félix
Maier
Pé
na Cova acordou mais cedo do que de costume naquela terça-feira. O relógio
marcava 5h27, e o galo do vizinho, um animal de vocação suicida, ainda nem
tinha se animado a cantar. Sentou-se na beira da cama, estalando os joelhos
como quem abre uma gaveta velha, e suspirou com aquele ar de quem está revendo
o filme da própria vida — mas um filme de baixo orçamento, com som ruim e sem
final feliz.
— Tá
chegando a hora, Pé na Cova… — murmurou para si mesmo, enquanto calçava as
pantufas. — E olha que nem vai ter reprise.
A
morte, em si, não o incomodava. Tinha feito as pazes com a ideia fazia tempo. A
questão era outra: e se, no dia do velório, ninguém aparecesse? Nem pra
garantir uma foto decente pro Facebook do cemitério?
Esse
pensamento o vinha atormentando havia semanas, desde o enterro do amigo
Aparício — um sujeito alegre, língua solta, que falava palavrão como quem recita
poesia. Aparício fora um daqueles que acreditava firmemente que "quem
morre descansa", mas ninguém o avisou que o descanso incluía velório sem
plateia.
Naquela
tarde fatídica, Pé na Cova chegou à capela mortuária e contou, com a precisão
de um auditor da Receita Federal: dez pessoas. Dez! Incluindo o coveiro e o
motorista do carro funerário, que estavam ali por força do ofício.
Nenhuma
coroa de flores enfeitava o ambiente. A parede ao lado do caixão estava nua,
deprimente, como um salão de festa abandonado depois do baile. Pé na Cova, num
impulso piedoso e um tanto culpado, saiu correndo até a floricultura da esquina
e comprou, do próprio bolso, uma coroa com fita dourada. Pediu que escrevessem:
“Do amigo que ainda respira — com respeito e um pouco de ciúme.”
O
florista olhou torto, mas escreveu.
Desde
então, Pé na Cova vinha matutando. E se com ele acontecesse o mesmo? Morreu, e
pronto: meia dúzia de curiosos, dois parentes distraídos, e talvez um cachorro
vagando pela capela.
—
Ninguém quer morrer anônimo — disse a si mesmo, enquanto preparava o café. —
Nem defunto gosta de solidão.
O
espelho da cozinha o encarava com franqueza cruel. Rugas novas, olheiras
antigas. Olhos de quem já começou o estágio probatório para o além. Ele se
olhou e retrucou:
—
Pois é, Pé, tua ficha tá quase sendo chamada. E o que é que tu vai deixar pro
mundo, hein? Uns boletos, uma coleção de rótulos de cerveja e uma senha de
Wi-Fi?
Ele
riu, um riso seco, meio soluçado.
Pegou
o jornal e foi direto à página dos obituários. Era o seu ritual matinal.
Gostava de ver quem “partiu para a glória”, talvez para medir o próprio atraso.
Naquele dia, uma nota lhe chamou atenção: “Falecimento de Osmar C. da Luz, 68
anos. Deixou mulher, três filhos, seis netos e 78 seguidores no Twitter.”
Pé
na Cova ficou boquiaberto.
—
Setenta e oito seguidores? Só isso? Coitado. Morreu cancelado, o homem.
Achou
triste morrer com menos de cem seguidores. A morte moderna, pensou ele, não é
mais uma questão de alma, e sim de engajamento. Já imaginava o padre
dizendo na missa de corpo presente: “Aqui jaz um influencer de pouca importância.”
Esse
pensamento o acompanhou o dia inteiro. Decidiu, então, que precisava fazer
algo. Talvez criar um perfil novo, postar frases motivacionais do tipo ‘A
vida é curta, mas o velório pode ser longo’, só para garantir uns
seguidores póstumos.
Mais
tarde, sentado na varanda, começou a conversar de novo com seu interlocutor
preferido — ele mesmo.
—
Pé, meu velho, tu tem medo da morte?
—
Medo, não. Só não gosto da ideia de morrer impopular.
—
Mas o que é que importa, se tu nem vai estar lá pra ver?
—
Importa, sim! Vai que o além tem internet e eu fico vendo tudo pelo Wi-Fi
celestial? Imagina: dez pessoas bocejando e uma coroca desafinada cantando “Segura
na mão de Deus”.
Olhou
para o quintal. O ipê florido parecia zombar dele com suas pétalas amarelas,
como confete de enterro festivo.
—
Quer saber? — resmungou. — Acho que vou planejar meu próprio velório.
E
assim começou o projeto “Operação Despedida Digna”. Comprou um caderno novo e
escreveu na capa: “Roteiro do Meu Velório — Versão Final (ou quase)”.
Na
primeira página, listou os convidados ideais — mesmo sabendo que alguns já
tinham ido antes dele. Depois, anotou detalhes logísticos:
- Local: Capela 3 do Campo da Saudade (tem
ar-condicionado e bom estacionamento).
- Flores: Mínimo de quatro coroas — nada
de crisântemos baratos.
- Música: Preferência por boleros. Nada de
“Vencendo vem Jesus”, da Harpa Cristã — é brega demais.
- Discurso: Apenas um amigo autorizado a
falar — e, de preferência, que chore com moderação.
- Café: Forte, sem açúcar, e acompanhado
de cuca com farofa em cima.
No
rodapé, acrescentou: “Obs.: Proibido celular com flash. O defunto agradece.”
Enquanto
escrevia, sentia um certo orgulho. Afinal, planejar o próprio velório é o auge
da autonomia. Quem disse que a morte não pode ser personalizada?
Foi
então que lhe ocorreu o detalhe derradeiro: a sepultura. Afinal, de nada
adiantaria uma despedida organizada se o pós-evento ficasse pendente. No dia
seguinte, marchou até o cemitério municipal e procurou o administrador, um
homem de terno puído e voz fúnebre. Pediu uma sepultura simples, mas definitiva
— nada de jazigos coletivos ou promoções “leve dois, pague um”. Escolheu um
lote ensolarado, com vista para o portão (sempre gostou de observar o
movimento).
Mandou
gravar a lápide com seu nome, a data de nascimento e, por óbvio, deixou a data
final em branco, com um discreto espaço entre os traços.
— É
só preencher depois — explicou ao funcionário. — Evita trabalho pro pessoal.
O
homem concordou, com a solenidade de quem assina um testamento.
Na
semana seguinte, Pé na Cova foi conferir a obra pronta. Achou o granito bonito,
bem polido, digno de um homem que sempre pagou suas contas. Passou a mão sobre
o espaço vazio e comentou consigo mesmo:
—
Agora só falta o detalhe mais caro: o corpo.
Sorriu
satisfeito. Afinal, ninguém iria gastar um tostão com ele. Era viúvo há vinte
anos, os filhos moravam longe e os sobrinhos só apareciam quando o décimo
terceiro caía. Fez as contas e concluiu que, no fundo, morrer sairia mais
barato do que continuar vivendo.
À
noite, sonhou com Aparício. O amigo aparecia radiante, de terno branco e
sorriso debochado. Disse-lhe:
— Tu
te preocupa demais, Pé. Aqui em cima ninguém liga pra número de seguidor. O que
vale é quem te trouxe café quando tu tava vivo.
Pé
na Cova acordou suando. Sentiu um misto de alívio e irritação.
—
Fala isso porque teu velório foi vazio, Aparício. Fácil filosofar depois que já
tá no além.
No
dia seguinte, levantou decidido. Resolveu visitar a floricultura onde havia comprado
a coroa do amigo. Pediu ao rapaz do balcão uma coroa nova.
—
Pra quem é? — perguntou o vendedor.
—
Pra mim mesmo. Quero deixar paga. Assim evito constrangimentos.
O
rapaz arregalou os olhos.
— O
senhor tá doente?
— Só
de realismo, meu filho.
Saiu
da loja satisfeito, levando o recibo dobrado no bolso. Pensou em emoldurá-lo.
Era como garantir um ingresso de primeira fila para o próprio espetáculo.
Nos
dias seguintes, Pé na Cova passou a caminhar pelo cemitério depois do almoço.
Dizia ser “para ir se acostumando com a vizinhança”.
Cumprimentava
os mortos como velhos conhecidos:
— E
aí, Seu Anacleto, o senhor ainda com a mesma cara de tédio?
Os
visitantes o olhavam de soslaio, sem saber se deviam rir ou chamar o padre.
Uma
tarde, sentado num banco de pedra, Pé na Cova concluiu:
— A
morte, no fundo, é uma questão de relações públicas. Se a gente não se promove
em vida, o pós-venda fica fraco.
E
riu. Riu alto, tanto que um gato preto fugiu assustado.
Naquele
riso havia resignação e certo orgulho. Sabia que estava indo, mas iria
organizado. Quem sabe até transmitiriam o velório ao vivo? #DespedidaDoPé poderia
ser trend topic por algumas horas.
Voltou
para casa mais leve, fez café, ligou o rádio e deixou o noticiário correr. Ao
ouvir o locutor anunciar a previsão do tempo — “chuvas isoladas à tarde” —
murmurou:
—
Bom, pelo menos não vai empoeirar minha sepultura.
Deitou-se
para o que poderia ser o último cochilo, sorrindo. Mas a mente já passeava pela
capela: roteiro do velório pronto, coroa comprada, sepultura marcada, vinte
carpideiras com véus ensaiando cada lágrima, pagas com café e cuca, e o padre
abençoando com solenidade. Até os mosquitos iriam compor o cenário.
Antes
de adormecer, Pé na Cova sorriu divinamente, imaginando como seria gratificante
ver a capela cheia no dia do próprio velório — e, com certeza, saborear cada
lágrima, cada olhar curioso e cada copo de cachaça que pagassem para assistir. E,
melhor de tudo, um death influencer já pago para garantir um luto
premium e uma morte monetizada.
Nada
mau, pensou. Nada mau mesmo. Morrer sem público jamais seria opção — seria como
contar uma última piada e não ouvir nem um risinho.
Durante
a madrugada, Pé na Cova acordou sobressaltado. Havia se esquecido de comprar o
caixão. No dia seguinte, escolheu um modelo de luxo, muito lustroso e florido, com
detalhes de metal, levou para casa e passou a dormir dentro.
Era
para ir se acostumando… e, de quebra, garantir que, quando chegasse a hora, a
plateia tivesse algo digno para aplaudir.
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