MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964

MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964
Avião que passou no dia 31 de março de 2014 pela orla carioca, com a seguinte mensagem: "PARABÉNS MILITARES: 31/MARÇO/64. GRAÇAS A VOCÊS, O BRASIL NÃO É CUBA." Clique na imagem para abrir MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Pé na Cova planeja uma boa morte - Por Félix Maier

 

Pé na Cova planeja uma boa morte

Félix Maier

Pé na Cova acordou mais cedo do que de costume naquela terça-feira. O relógio marcava 5h27, e o galo do vizinho, um animal de vocação suicida, ainda nem tinha se animado a cantar. Sentou-se na beira da cama, estalando os joelhos como quem abre uma gaveta velha, e suspirou com aquele ar de quem está revendo o filme da própria vida — mas um filme de baixo orçamento, com som ruim e sem final feliz.

— Tá chegando a hora, Pé na Cova… — murmurou para si mesmo, enquanto calçava as pantufas. — E olha que nem vai ter reprise.

A morte, em si, não o incomodava. Tinha feito as pazes com a ideia fazia tempo. A questão era outra: e se, no dia do velório, ninguém aparecesse? Nem pra garantir uma foto decente pro Facebook do cemitério?

Esse pensamento o vinha atormentando havia semanas, desde o enterro do amigo Aparício — um sujeito alegre, língua solta, que falava palavrão como quem recita poesia. Aparício fora um daqueles que acreditava firmemente que "quem morre descansa", mas ninguém o avisou que o descanso incluía velório sem plateia.

Naquela tarde fatídica, Pé na Cova chegou à capela mortuária e contou, com a precisão de um auditor da Receita Federal: dez pessoas. Dez! Incluindo o coveiro e o motorista do carro funerário, que estavam ali por força do ofício.

Nenhuma coroa de flores enfeitava o ambiente. A parede ao lado do caixão estava nua, deprimente, como um salão de festa abandonado depois do baile. Pé na Cova, num impulso piedoso e um tanto culpado, saiu correndo até a floricultura da esquina e comprou, do próprio bolso, uma coroa com fita dourada. Pediu que escrevessem: “Do amigo que ainda respira — com respeito e um pouco de ciúme.”

O florista olhou torto, mas escreveu.

Desde então, Pé na Cova vinha matutando. E se com ele acontecesse o mesmo? Morreu, e pronto: meia dúzia de curiosos, dois parentes distraídos, e talvez um cachorro vagando pela capela.

— Ninguém quer morrer anônimo — disse a si mesmo, enquanto preparava o café. — Nem defunto gosta de solidão.

O espelho da cozinha o encarava com franqueza cruel. Rugas novas, olheiras antigas. Olhos de quem já começou o estágio probatório para o além. Ele se olhou e retrucou:

— Pois é, Pé, tua ficha tá quase sendo chamada. E o que é que tu vai deixar pro mundo, hein? Uns boletos, uma coleção de rótulos de cerveja e uma senha de Wi-Fi?

Ele riu, um riso seco, meio soluçado.

Pegou o jornal e foi direto à página dos obituários. Era o seu ritual matinal. Gostava de ver quem “partiu para a glória”, talvez para medir o próprio atraso. Naquele dia, uma nota lhe chamou atenção: “Falecimento de Osmar C. da Luz, 68 anos. Deixou mulher, três filhos, seis netos e 78 seguidores no Twitter.”

Pé na Cova ficou boquiaberto.

— Setenta e oito seguidores? Só isso? Coitado. Morreu cancelado, o homem.

Achou triste morrer com menos de cem seguidores. A morte moderna, pensou ele, não é mais uma questão de alma, e sim de engajamento. Já imaginava o padre dizendo na missa de corpo presente: “Aqui jaz um influencer de pouca importância.”

Esse pensamento o acompanhou o dia inteiro. Decidiu, então, que precisava fazer algo. Talvez criar um perfil novo, postar frases motivacionais do tipo ‘A vida é curta, mas o velório pode ser longo’, só para garantir uns seguidores póstumos.

Mais tarde, sentado na varanda, começou a conversar de novo com seu interlocutor preferido — ele mesmo.

— Pé, meu velho, tu tem medo da morte?

— Medo, não. Só não gosto da ideia de morrer impopular.

— Mas o que é que importa, se tu nem vai estar lá pra ver?

— Importa, sim! Vai que o além tem internet e eu fico vendo tudo pelo Wi-Fi celestial? Imagina: dez pessoas bocejando e uma coroca desafinada cantando “Segura na mão de Deus”.

Olhou para o quintal. O ipê florido parecia zombar dele com suas pétalas amarelas, como confete de enterro festivo.

— Quer saber? — resmungou. — Acho que vou planejar meu próprio velório.

E assim começou o projeto “Operação Despedida Digna”. Comprou um caderno novo e escreveu na capa: “Roteiro do Meu Velório — Versão Final (ou quase)”.

Na primeira página, listou os convidados ideais — mesmo sabendo que alguns já tinham ido antes dele. Depois, anotou detalhes logísticos:

  1. Local: Capela 3 do Campo da Saudade (tem ar-condicionado e bom estacionamento).
  2. Flores: Mínimo de quatro coroas — nada de crisântemos baratos.
  3. Música: Preferência por boleros. Nada de “Vencendo vem Jesus”, da Harpa Cristã — é brega demais.
  4. Discurso: Apenas um amigo autorizado a falar — e, de preferência, que chore com moderação.
  5. Café: Forte, sem açúcar, e acompanhado de cuca com farofa em cima.

No rodapé, acrescentou: “Obs.: Proibido celular com flash. O defunto agradece.”

Enquanto escrevia, sentia um certo orgulho. Afinal, planejar o próprio velório é o auge da autonomia. Quem disse que a morte não pode ser personalizada?

Foi então que lhe ocorreu o detalhe derradeiro: a sepultura. Afinal, de nada adiantaria uma despedida organizada se o pós-evento ficasse pendente. No dia seguinte, marchou até o cemitério municipal e procurou o administrador, um homem de terno puído e voz fúnebre. Pediu uma sepultura simples, mas definitiva — nada de jazigos coletivos ou promoções “leve dois, pague um”. Escolheu um lote ensolarado, com vista para o portão (sempre gostou de observar o movimento).

Mandou gravar a lápide com seu nome, a data de nascimento e, por óbvio, deixou a data final em branco, com um discreto espaço entre os traços.

— É só preencher depois — explicou ao funcionário. — Evita trabalho pro pessoal.

O homem concordou, com a solenidade de quem assina um testamento.

Na semana seguinte, Pé na Cova foi conferir a obra pronta. Achou o granito bonito, bem polido, digno de um homem que sempre pagou suas contas. Passou a mão sobre o espaço vazio e comentou consigo mesmo:

— Agora só falta o detalhe mais caro: o corpo.

Sorriu satisfeito. Afinal, ninguém iria gastar um tostão com ele. Era viúvo há vinte anos, os filhos moravam longe e os sobrinhos só apareciam quando o décimo terceiro caía. Fez as contas e concluiu que, no fundo, morrer sairia mais barato do que continuar vivendo.

À noite, sonhou com Aparício. O amigo aparecia radiante, de terno branco e sorriso debochado. Disse-lhe:

— Tu te preocupa demais, Pé. Aqui em cima ninguém liga pra número de seguidor. O que vale é quem te trouxe café quando tu tava vivo.

Pé na Cova acordou suando. Sentiu um misto de alívio e irritação.

— Fala isso porque teu velório foi vazio, Aparício. Fácil filosofar depois que já tá no além.

No dia seguinte, levantou decidido. Resolveu visitar a floricultura onde havia comprado a coroa do amigo. Pediu ao rapaz do balcão uma coroa nova.

— Pra quem é? — perguntou o vendedor.

— Pra mim mesmo. Quero deixar paga. Assim evito constrangimentos.

O rapaz arregalou os olhos.

— O senhor tá doente?

— Só de realismo, meu filho.

Saiu da loja satisfeito, levando o recibo dobrado no bolso. Pensou em emoldurá-lo. Era como garantir um ingresso de primeira fila para o próprio espetáculo.

Nos dias seguintes, Pé na Cova passou a caminhar pelo cemitério depois do almoço. Dizia ser “para ir se acostumando com a vizinhança”.

Cumprimentava os mortos como velhos conhecidos:

— E aí, Seu Anacleto, o senhor ainda com a mesma cara de tédio?

Os visitantes o olhavam de soslaio, sem saber se deviam rir ou chamar o padre.

Uma tarde, sentado num banco de pedra, Pé na Cova concluiu:

— A morte, no fundo, é uma questão de relações públicas. Se a gente não se promove em vida, o pós-venda fica fraco.

E riu. Riu alto, tanto que um gato preto fugiu assustado.

Naquele riso havia resignação e certo orgulho. Sabia que estava indo, mas iria organizado. Quem sabe até transmitiriam o velório ao vivo? #DespedidaDoPé poderia ser trend topic por algumas horas.

Voltou para casa mais leve, fez café, ligou o rádio e deixou o noticiário correr. Ao ouvir o locutor anunciar a previsão do tempo — “chuvas isoladas à tarde” — murmurou:

— Bom, pelo menos não vai empoeirar minha sepultura.

Deitou-se para o que poderia ser o último cochilo, sorrindo. Mas a mente já passeava pela capela: roteiro do velório pronto, coroa comprada, sepultura marcada, vinte carpideiras com véus ensaiando cada lágrima, pagas com café e cuca, e o padre abençoando com solenidade. Até os mosquitos iriam compor o cenário.

Antes de adormecer, Pé na Cova sorriu divinamente, imaginando como seria gratificante ver a capela cheia no dia do próprio velório — e, com certeza, saborear cada lágrima, cada olhar curioso e cada copo de cachaça que pagassem para assistir. E, melhor de tudo, um death influencer já pago para garantir um luto premium e uma morte monetizada.

Nada mau, pensou. Nada mau mesmo. Morrer sem público jamais seria opção — seria como contar uma última piada e não ouvir nem um risinho.

Durante a madrugada, Pé na Cova acordou sobressaltado. Havia se esquecido de comprar o caixão. No dia seguinte, escolheu um modelo de luxo, muito lustroso e florido, com detalhes de metal, levou para casa e passou a dormir dentro.

Era para ir se acostumando… e, de quebra, garantir que, quando chegasse a hora, a plateia tivesse algo digno para aplaudir.


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