Os arquivos secretos da Marinha
Confira a seguir um trecho dessa reportagem que pode ser lida na íntegra na edição da revista Época de 28/novembro/2011
ÉPOCA teve acesso a documentos inéditos produzidos pelo Cenimar, o serviço de informações da força naval. Eles revelam o submundo da repressão às organizações de esquerda durante a ditadura militar
LEONEL ROCHA
Uma caixinha de papelão do tamanho de um livro guardou por mais de três décadas uma valiosa coleção de segredos do regime militar implantado no Brasil em 1964. Escondidas por um militar anônimo, 2.326 páginas de documentos microfilmados daquele período foram preservadas intactas da destruição da memória ordenada pelos comandantes fardados. Os papéis copiados em minúsculos fotogramas fazem parte dos arquivos produzidos pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar), o serviço secreto da força naval. Ostentam as tarjas de “secretos” e “ultrassecretos”, níveis máximos para a classificação dos segredos de Estado e considerados de segurança nacional. Obtido com exclusividade por ÉPOCA, o material inédito possui grande importância histórica por manter intactos registros oficiais feitos pelos militares na época em que os fatos ocorreram. Para os brasileiros, trata-se de uma oportunidade rara de conhecer o que se passou no submundo do aparato repressivo estruturado pelas Forças Armadas depois da tomada do poder em 1964. Muitos dos mistérios desvendados pelos documentos se referem a alguns dos maiores tabus cultivados pelos envolvidos no enfrentamento entre o governo militar e as organizações de esquerda.
FIM DO SEGREDO A caixa de papelão com os microfilmes de documentos do Cenimar. Ela foi guardada por um militar anônimo por mais de três décadas (Foto: Igo Estrela/ÉPOCA)
As revelações mais surpreendentes estão nas pastas rotuladas de “Secretinho”, uma espécie de cadastro dos espiões nas organizações de esquerda. Fichas e relatórios do Cenimar identificam colaboradores da ditadura, homens e mulheres, que atuavam infiltrados nas organizações que faziam oposição, armada ou não, ao regime militar. Agiam dentro dos partidos, dos grupos armados e dos movimentos estudantil e sindical. O trabalho dos informantes e agentes secretos era pago com dinheiro público e exigia prestação de contas. Muitos infiltrados eram militares treinados pelos serviços secretos das Forças Armadas que atuavam profissionalmente. Outros foram recrutados pelos serviços secretos entre os esquerdistas, por pressão ou tortura. Havia ainda dezenas de colaboradores eventuais, simpatizantes do regime, que trabalhavam em setores estratégicos, como faculdades, sindicatos e no setor público. A metódica organização da Marinha juntou relatórios, fotografias, cartas e anotações de agentes e militantes.
Reveladores, os papéis microfilmados divulgados por ÉPOCA antecipam alguns dos debates mais importantes previstos para a Comissão da Verdade, cuja lei de criação foi sancionada recentemente pela presidente Dilma Rousseff. Aprovada pelo Congresso, a comissão foi criada com o objetivo de esclarecer os abusos contra os direitos humanos cometidos, principalmente, durante a ditadura militar. Se investigar a fundo o que se passou nas entranhas do aparato repressivo, chegará à participação de militantes de esquerda nas ações que levaram à prisão, à morte e ao desaparecimento de antigos companheiros.
Durante a luta armada, as acusações de traição muitas vezes determinaram justiçamentos, com a execução dos suspeitos pelos próprios integrantes das organizações comunistas. Isso aconteceu com Salathiel Teixeira, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que integrou o revolucionário Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), dissidência do “Partidão” que migrou para a luta armada. Salathiel terminou morto por companheiros por suspeita de ter fornecido, sob tortura, informações aos órgãos de repressão. Os documentos da Marinha mostram como Maria Thereza, funcionária do antigo INPS do Rio de Janeiro e amiga de Salathiel, foi recrutada e paga para ajudar a prendê-lo em 1970. A prisão de Salathiel foi chave para a prisão de dirigentes do partido (leia mais na reportagem).
O Cenimar representava a Marinha na poderosa comunidade de informações do governo militar, que incluía também os serviços secretos do Exército, da Aeronáutica, da Polícia Federal e das polícias Civil e Militar. O marco inicial da estruturação dessa rede que investigava e caçava inimigos dos militares foi a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), em 1964, pelo então coronel Golbery do Couto e Silva, um dos homens fortes dos governos dos presidentes Humberto de Alencar Castelo Branco, Ernesto Geisel e João Figueiredo.
Para compreender bem o confronto sangrento entre as Forças Armadas e as organizações de inspiração comunista, é necessário lembrar o contexto da época. O mundo vivia a Guerra Fria, período de polarização ideológica em que Estados Unidos e União Soviética disputavam o controle de regiões inteiras do planeta. O Brasil importou o conflito internacional. O governo militar tinha o apoio dos Estados Unidos, e parte da oposição aderiu aos regimes comunistas, com forte influência de Cuba e China. O PCB se dividiu em dezenas de siglas adotadas por grupos radicais que adotaram a luta armada como instrumento para a derrubada dos militares. O PCB defendia a via pacífica para a chegada ao poder. Nem assim escapou da perseguição do aparato repressivo e muitos de seus seguidores foram mortos e desapareceram com a participação direta da comunidade de informações. Dentro do PCB sempre se soube que a ação de agentes infiltrados teve grande responsabilidade nas prisões dos comunistas. Os documentos do Cenimar revelam que um discreto dirigente do PCB em São Paulo, Álvaro Bandarra, fez um acordo com os militares em 1968 para colaborar com a caçada aos integrantes do partido.
Os documentos do Cenimar mostram ainda como agiram os espiões para ajudar no desmantelamento de algumas das dissidências do PCB. Os agentes infiltrados pela Marinha tiveram importante participação na derrocada do PCBR, da Ação Libertadora Nacional (ALN), da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e da Frente de Libertação Nacional (FLN). Os militantes viviam escondidos em casas e apartamentos, chamados por eles mesmos de “aparelhos”. Num tempo em que não havia telefone celular nem internet, marcavam locais de encontro, conhecidos como “pontos”, com semanas ou meses de antecedência para garantir o funcionamento das organizações. Num desses “pontos”, descoberto por um agente secreto de codinome “Luciano”, morreu Juarez Guimarães de Brito, um dos líderes da VPR, procurado pelo governo por ter comandado o lendário assalto ao cofre do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros.
Os arquivos da Marinha revelam também como os comunistas subestimaram a força da ditadura e cometeram erros infantis que facilitaram o trabalho da repressão. Num tempo em que os grampos telefônicos já eram comuns, guerrilheiros tramavam ações armadas e falavam despreocupadamente ao telefone. Também convidavam para participar de grupos de ação armada pessoas que mal conheciam, o que facilitou a infiltração dos agentes secretos. A fragilidade das organizações de esquerda permitiu a infiltração do fuzileiro naval Gilberto Melo em entidades do movimento estudantil no Rio de Janeiro.
A história de Gilberto guarda grande semelhança com a do mais conhecido dos agentes duplos da ditadura, José Anselmo dos Santos, conhecido por “Cabo Anselmo”. Anselmo se tornou conhecido ainda antes do golpe como presidente da Associação dos Marinheiros, um dos focos de agitação durante o governo de João Goulart, e depois se infiltrou em organizações da luta armada como informante da repressão. Gilberto passava os dias perambulando pelo restaurante Calabouço, local de encontro dos estudantes e de organização das manifestações contra o regime militar. Ele viu quando o secundarista Edson Luiz Lima Souto foi morto durante uma manifestação por policiais no Calabouço, com um tiro no peito, no dia 28 de março de 1968.
Nos dias seguintes à morte de Edson Luiz, Gilberto, conhecido no Cenimar como Soriano, participou das manifestações desencadeadas pelo assassinato, que culminaram na famosa passeata dos 100 mil, em junho de 1968, no Rio de Janeiro. Gilberto incorporou tanto o disfarce que terminou preso duas vezes. Foi espancado e torturado como se fosse um esquerdista. Nunca revelou que era agente secreto. A morte de Edson foi um dos fatos mais marcantes daquele período, que culminou com o recrudescimento da repressão pelo regime militar e a implantação do Ato Institucional Número 5 (AI-5) no final de 1968.
Os papéis microfilmados constituem um valioso acervo para a compreensão dos métodos empregados pelos órgãos de repressão. Por razões óbvias, nos registros não constam as práticas mais hediondas, como tortura, prisões ilegais, assassinatos ou desaparecimento de pessoas. Mas eles têm o mérito de expor personagens e mostrar o roteiro das perseguições aos inimigos do regime. Os relatórios do Cenimar também registram o envolvimento de oficiais da Marinha. Eles controlavam a rede de espiões espalhados pelo país, chefiavam as equipes de busca e coordenavam os interrogatórios. “Documentos que mostram relatórios de informantes, contratações e atuação direta são raros”, afirma Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um dos principais historiadores do período militar. “Provavelmente (esses documentos) deveriam ter sido expurgados. Por algum motivo, alguém os salvou.”
O expurgo mencionado por Fico foi concretizado no acervo do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa). O Cisa fazia o mesmo trabalho do Cenimar. Também tinha agentes e controlava elementos infiltrados em organizações de esquerda. No início do ano, o Arquivo Nacional abriu a consulta aos documentos acumulados pelo Cisa e entregues um ano antes pela Aeronáutica. Mas quem for até lá em busca de documentos como os do Cenimar vai se decepcionar. Não há nada que leve à identidade de agentes e informantes, seus relatórios, comprovantes de pagamentos, material que existe fartamente nos arquivos obtidos por ÉPOCA. Procurada, a Marinha afirmou desconhecer os documentos do arquivo secreto. “Não foram encontrados, no Centro de Inteligência da Marinha, registros pertinentes aos questionamentos apresentados”, afirmou o contra-almirante Paulo Maurício Farias Alves, diretor do Centro de Comunicação Social da Marinha.
Até hoje, a história da ditadura militar no Brasil se revelou aos poucos, em imprevisíveis divulgações de documentos, relatos contraditórios de militares e incompletas declarações dos perseguidos pelo regime militar. Menos de três décadas depois de restaurada a democracia, ainda existem importantes segredos. Nas próximas semanas, ÉPOCA publicará novos capítulos dessa história ainda desconhecida.
Fonte: https://hannaharendt.wordpress.com/2011/11/26/os-arquivos-secretos-da-marinha/
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Os infiltrados da ditadura
Data: 26/11/11
As organizações de esquerda passavam por grandes dificuldades no segundo semestre de 1969. Com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5) no final do ano anterior, o governo militar ampliou os instrumentos legais de perseguição às organizações que combatiam a ditadura. As prisões de militantes levavam os grupos armados a tentar recrutar mais gente. Em outubro de 1969, um homem ofereceu serviços de bombeiro hidráulico na Administradora Bolívar, uma imobiliária de Copacabana. Disse chamar-se Luciano e conseguiu trabalho com a responsável pela empresa, Maria Nazareth Cunha da Rocha. Bom de conversa, falava de política enquanto fazia os consertos nos encanamentos. Nazareth gostou do sujeito. Mais ainda quando ele disse que estivera preso por ter participado de atividades contra o golpe militar.
Poucos dias depois, em tom confidencial, Nazareth perguntou se Luciano gostaria de fazer parte de uma organização de luta armada. A imobiliária Bolívar era, na verdade, uma espécie de condomínio de várias organizações da luta armada. Reunia a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e a Frente de Libertação Nacional (FLN). No topo, de acordo com Nazareth, estava Carlos Marighella, líder máximo da Ação Libertadora Nacional (ALN), que seria morto em São Paulo poucos dias depois, em novembro de 1969. Ela convidou Luciano a integrar um grupo de homens "dispostos a tudo", para realizar operações de assalto e sabotagem. Sem titubear, Luciano respondeu que sim. Militante experiente, na faixa de 40 anos de idade, Maria Nazareth não sabia, ao fazer o convite, que era enganada. Luciano, o homem que se apresentou como bombeiro hidráulico, era um agente do Centro de Informações da Marinha, o Cenimar.
Na vida real, Luciano se chama Manoel Antonio Mendes Rodrigues. Uma ficha dos arquivos do Cenimar descreve Manoel Antonio, ou "Luciano", como um agente remunerado que teve conexões com assaltos a banco e contatos em várias organizações da luta armada, como FLN, VPR e MR-8. No serviço secreto da Marinha, consta que ele mantinha contato com vários oficiais.
O Cenimar grampeou os telefones da Administradora Bolívar. Os informes da imobiliária eram transcritos à mão em "folhas de trabalho" do serviço secreto. A infiltração de Luciano nos grupos que operavam na Administradora Bolívar coincide com a prisão de vários militantes. Dos arquivos do Cenimar, é possível inferir que ela foi fundamental para a obtenção de informações que levaram a essas prisões.
Um exemplo: em 26 de novembro de 1969, os espiões descobriram que o militante Salathiel Teixeira Rolim viajara do Rio para São Paulo e Curitiba num carro modelo JK, verde, placas GB Z0 5575. Ex-integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Salathiel entrou para o radical PCBR no fim da década de 1960. Depois de rastreado pelo Cenimar, foi preso em janeiro de 1970. Torturado, deu informações que, na avaliação de antigos aliados, contribuíram para a captura de dirigentes do PCBR. Em 1973, depois de sair da cadeia, Salathiel foi morto por militantes do PCBR, sob a acusação de que traíra o partido na prisão.
A infiltração de Luciano resultou também na espionagem contra um dos mais importantes dirigentes da VPR, Juarez Guimarães de Brito. Juarez entrara em 1968 para o Comando de Libertação Nacional (Colina), organização a que pertenceu a presidente Dilma Rousseff. Em julho de 1969, integrava a VAR-Palmares, organização oriunda da fusão entre Colina e VPR. Foi Juarez quem comandou no Rio de Janeiro o assalto ao cofre de Ana Capriglione, amante do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros. Trata-se do assalto mais bem-sucedido realizado por um grupo de esquerda durante a ditadura. Ele rendeu US$ 2,6 milhões aos assaltantes.
No dia 13 de abril de 1970, Luciano relatou aos chefes do Cenimar que estivera com Juarez num encontro com Maria Nazareth. Ele telefonou outra vez ao Cenimar no dia 16, para informar que Juarez tinha um encontro no dia 18 com outro militante da VPR, Wellington Moreira Diniz, na Rua Jardim Botânico, numa esquina com a rua que "tem a seta indicando Ipanema".
Manoel Antonio Rodrigues
Bombeiro informante do Cenimar
Infiltrado num esconderijo da esquerda como encanador, ajudou a desmantelar organizações de esquerda como PCBR, MR-8, FLN e VPR
"Sempre fui ligado à esquerda e estive entre os militares que defenderam a posse de João Goulart depois da renúncia de Jânio Quadros. Eu era do Corpo de Bombeiros de Nilópolis. Fui preso e solto algumas vezes. Na última delas, em 1969, fiquei na Ilha das Flores, no Rio, onde fui barbaramente torturado durante dois meses. Fui espancado, enfiaram agulhas embaixo das minhas unhas e arrancaram unhas dos meus pés. Chegaram a ameaçar abrir meu crânio com talhadeira e marreta. Até um punhal enfiaram no meu ânus. Aceitei colaborar porque não suportava mais tanto sofrimento. Passei informações, revelei dados sem muita importância. Mantive contato com Carlos Lamarca e Carlos Marighella. Eu era da FLN quando fui torturado. Algumas vezes fui acusado de ser infiltrado, mas tinha avisado o (Joaquim) Cerveira (chefe dele na FLN) sobre minha situação, e ele me defendeu de ser justiçado."
A direção da VPR não sabia, mas Wellington estava preso desde o dia 11 de abril. No dia 18, os militares o levaram ao encontro com Juarez. No horário previsto, Juarez e sua mulher, Maria do Carmo, chegaram. De imediato, foram cercados por homens armados. Houve tiroteio – e Juarez se suicidou com uma bala no ouvido. Maria do Carmo foi apanhada viva.
ÉPOCA encontrou Manoel Antonio Mendes Rodrigues, o Luciano, no bairro de Guaratiba, no Rio de Janeiro. Coronel reformado da Polícia Militar, ele confirmou todas as informações que constam dos documentos do Cenimar. Disse que passou a colaborar com a Marinha depois de preso e torturado. Afirmou também que teve três filhos com uma militante de esquerda, professora da Escola de Belas-Artes, no Rio. Entrou com um processo na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e foi considerado perseguido político. Não pediu reparação financeira. "Não pesa na minha consciência que algum companheiro tenha sido morto por minha causa", afirma Manoel Antonio.
Esse tipo de atitude fria e desapaixonada não deve gerar espanto quando se leva em conta o treinamento rigoroso que recebiam os agentes do Cenimar. Para preservar suas fontes de informação, era preciso que os agentes mantivessem a discrição e o silêncio perante os demais organismos do governo e da repressão. Um caso que ilustra bem essa característica foi vivido em 1968 pelo agente Gilberto de Oliveira Melo, na época com 26 anos.
Gilberto havia sido infiltrado pelo Cenimar em um dos principais pontos das agitações políticas do Rio de Janeiro nos anos 1960, o restaurante estudantil Calabouço, um ponto de concentração dos secundaristas cariocas. Ele participava de protestos e foi preso pela Polícia Militar numa passeata. Na cadeia, recebeu murros na cabeça e no abdome.Fiel às normas de segurança dos militares, nada disse sobre sua relação com a Marinha. Depois de solto, ele começou a sentir tonteiras e lapsos de memória. Esses problemas foram descritos num documento assinado pelo diretor do Cenimar, capitão de mar e guerra Fernando Pessoa da Rocha Paranhos, endereçado ao ministro da Marinha.
Gilberto de Oliveira Melo
O marinheiro e agente duplo
Falso estudante, ajudou a monitorar manifestações no Rio de Janeiro em 1968. Ele afirma que não se arrepende de nada do que fez e faria tudo de novo
Entrei na Marinha para fazer o serviço militar em 1961 e me transformei em soldado profissional. Fui escolhido para o Cenimar porque tinha excelente disciplina e não questionava ordens. Eu era louco por realizar ações, principalmente as mais perigosas. Passava os dias entre os estudantes, jogava pingue-pongue, almoçava no restaurante e até frequentava algumas aulas. Cheguei a namorar uma colega que estudava farmácia. Vi o momento em que (o estudante) Édson Luis foi baleado e morto. Ele não atendeu a meus gritos para que se deitasse no chão e continuou jogando pedras na polícia. Simpático, não era comunista nem revolucionário. Na cadeia fui torturado e não podia dizer que era infiltrado. Fazia parte do disfarce resistir até que outro agente avisasse o Cenimar. Meus relatos eram feitos à mão todas as noites. Não me arrependo de nada. Cumpri meu dever como militar e, se fosse chamado hoje, faria tudo novamente, mesmo com quase 70 anos.
Paranhos relatou que Gilberto era fuzileiro naval e se tornara agente do Cenimar em outubro de 1967. Elogiou sua atuação na identificação de líderes do movimento estudantil. Examinado pela Marinha depois de apanhar da PM, Gilberto disse que se ferira numa briga, atitude classificada por Paranhos como "altamente elogiável quanto à segurança". Os arquivos do Cenimar guardaram cópias de três fotos do momento em que Gilberto foi preso na manifestação. Têm também cópias de título de eleitor e carteiras de identidade, trabalho e de estudante do Instituto Cooperativo de Ensino. "Atua na área estudantil, é remunerado. Trabalhando na UFRJ como arquivista", diz o documento.
ÉPOCA encontrou Gilberto de Oliveira Melo no Rio de Janeiro. Ele mora numa casa cheia de grades, parecida com um bunker, no bairro da Penha. Gilberto leu os documentos do Cenimar e confirmou todas as informações que constaram deles. Reclamou do vazamento dos arquivos secretos e se mostrou preocupado em dar entrevista sem autorização da Marinha. Aceitou conversar com a reportagem, mas não quis ser fotografado. Aos 69 anos, está na reserva como cabo dos Fuzileiros Navais. Ao longo da conversa, mostrou-se um abnegado agente secreto, disposto a qualquer sacrifício em nome do Cenimar. Gilberto brincou dizendo ser "meio doidinho" por causa das sequelas que precisou tratar. Vive desconfiado – e teme retaliação dos militantes de esquerda.
Uma atitude também frequente entre os ex-infiltrados é oposta à de Gilberto. Ele teme retaliação. Outros chegam a exigir reparação e a pedir indenização do governo por ter sido perseguidos durante a ditadura. Uma história surpreendente é de Vanderli Pinheiro dos Santos. Quem consulta os arquivos da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça descobre que Vanderli foi indenizado pelo Estado em cerca de R$ 234 mil e recebe um benefício mensal de pouco mais de R$ 3 mil. À comissão, ele afirmou ter entrado para o PCB em 1964, ter treinado guerrilha, mas ter desistido da militância em 1969. Segundo ele, quando tentava se engajar no Corpo de Bombeiros do Distrito Federal, foi preso e torturado no Batalhão de Polícia do Exército em Brasília, acusado de subversão. Depois de solto, afirmou, não conseguiu emprego e decidiu mudar para o Rio de Janeiro, onde ficou detido por 30 dias para "averiguações".
Clóvis Bezerra
Ex-militante da ALN
Ele afirma que sempre desconfiou de Vanderli. Na ocasião, propôs aos companheiros executá-lo, mas foi voto vencido na organização
Vanderli foi o mais grave caso de infiltração policial de que tenho conhecimento. Desconfiávamos que ele tinha sido recrutado pela repressão desde antes do golpe militar. Na ALN (Ação Libertadora Nacional), ele atuou no Rio e no Paraná, onde ajudou a entregar militantes do MR-8. O (Carlos) Marighella pediu que indicássemos dois militantes para treinar guerrilha em Cuba. Vanderli foi um dos escolhidos. Semanas depois, ele desistiu e confirmei minha desconfiança. Propus ao nosso grupo que ele fosse executado, mas fui voto vencido. Vanderli viu as armas que guardávamos na casa do meu irmão e nos delatou. Corremos para retirar as armas, mas logo depois a polícia chegou ao local. Encontrei Vanderli novamente na cadeia e perguntei por que ele tinha virado informante. Ele me disse, com cinismo, que tinha sido sacaneado pelo grupo. Depois, encontrei-o como taxista em Brasília. Eu me recusei a conversar com um traidor. Ele sozinho entregou toda a ALN em Brasília.
Quem consulta os arquivos do Cenimar, porém, descobre que Vanderli foi um infiltrado. Quando uma equipe da Marinha estourou no Rio quatro esconderijos do MR-8, em 2 de março de 1969, prendeu Vanderli e outros quatro militantes. Vanderli se apresentou como agente infiltrado do Serviço Nacional de Informações (SNI). O Cenimar registra que entrou em contato com o SNI e confirmou a informação. No depoimento à Marinha, Vanderli, então com 25 anos, dizia que, depois de solto, teria condições de se infiltrar num grupo esquerdista de Brasília.
ÉPOCA investigou a vida de Vanderli no Distrito Federal. Antigos militantes de esquerda afirmam tê-lo conhecido. Desde os tempos de clandestinidade, pesavam sobre Vanderli suspeitas de que ele trabalhava para a repressão. "Vanderli sozinho entregou toda a ALN de Brasília", afirma Clóvis Bezerra, ex-militante da organização. ÉPOCA tentou entrevistar Vanderli nas últimas semanas, sem sucesso. Ele tem uma chácara na periferia de Brasília e, segundo um vizinho, trabalha com táxi. Quando a reportagem conseguiu contato com Vanderli pelo telefone e disse que pretendia conversar sobre os tempos da ditadura, ouviu a seguinte pergunta: "Como você conseguiu meu telefone?". Vanderli disse então que voltaria a ligar em seguida. Nunca mais ligou nem atendeu os telefonemas.
Os documentos secretos do Cenimar revelam que a extensão da infiltração dos órgãos militares nas organizações de esquerda ia além do nível da militância e muitas vezes chegava à cúpula. A pasta número 7 dos arquivos, sob o título "Documentos de Pessoas Efetivamente Registradas no Cenimar" e o timbre do Ministério da Marinha, afirma que Alvaro Bandarra, integrante da alta cúpula do PCB em São Paulo, trabalhou para a ditadura. Ele aparece com o nome falso "Nicolau" e é identificado pelo código KT-67. A ficha de Bandarra o descreve como comunista ligado ao PCB desde 1947. Ele nasceu em Santos em 1926, candidatou-se a vereador em 1947 e, no mesmo período, participou da campanha O petróleo é nosso. No pé da página, uma observação manuscrita registra o dia 9 de outubro de 1968 como a data a partir da qual ele passou a colaborar com a repressão.
Bandarra ocupava um posto estratégico na estrutura do PCB. Usava o codinome "Machado" e era integrante do comitê municipal em Santos e do comitê estadual em São Paulo. Um relatório interno do partido diz que ele era dono de uma livraria em Santos. Mantinha contatos frequentes com Walter Ribeiro, integrante do comitê central do PCB que usava o codinome "Beto", hoje desaparecido. O documento interno não faz nenhuma acusação direta a Bandarra, mas afirma que, pela quantidade de prisões ocorridas no Estado, parecia que a polícia tinha um informante específico para o comitê de São Paulo. O relatório diz ainda que Bandarra, depois de uma reunião do comitê central em novembro de 1973, foi chamado a prestar esclarecimentos à polícia de Santos. Indiciado como dirigente comunista, não foi condenado.
ÉPOCA localizou um filho de Alvaro Bandarra. Ele tem o mesmo nome do pai, que já morreu. Alvaro Bandarra Filho diz que considera "improvável" que o pai tenha colaborado com a repressão durante a ditadura. "A família foi orientada pelo meu pai a não revelar as reuniões políticas que aconteciam na minha casa", afirma.
A vida dos infiltrados era cheia de medo, dúvida e tensão. Todos esses ingredientes estão presentes na correspondência da militante Maria Thereza Ribeiro da Silva. Primeiro, suas cartas foram interceptadas pelo Cenimar. Depois, ela acabou aliciada como informante. "Estou desesperada. Acabo de me convencer, com os últimos acontecimentos lidos nos jornais, que dentro em breve serei presa", escreveu ela em 1o de agosto de 1969, numa carta manuscrita a uma amiga, Odete. Maria Thereza disse ter sido iludida pela organização de esquerda em que militava (o PCBR) e que não tinha dinheiro para quitar uma nota promissória. "Entre outras coisas, cheguei a comprar dois carros em nome de um motorista conhecido meu, de nome Bispo, com dinheiro fornecido por Salathiel." Três dias depois de escrever a carta, Maria Thereza foi presa por agentes do Cenimar. Um manuscrito do Cenimar com data de 4 de agosto de 1969 registra um acordo feito com ela. No primeiro dia, a militante aliciada pela Marinha recebeu 100 cruzeiros novos.
No Cenimar, ela ficou conhecida pelo código RK-33 e pelos nomes falsos “Renata” e “Lindolfo”. Os contatos com o serviço secreto eram feitos por meio do capitão de corveta “Alfredo”. Três anos e meio depois do acordo com o Cenimar, Maria Thereza enviou uma carta a “Alfredo”, datada de 26 de fevereiro de 1973 e assinada por “Renata”. Ela reclama das dificuldades que tem para sustentar a filha, “Dominique”, e ajudar os pais com o dinheiro que ganha com uma pensão alimentícia e com o pagamento do Cenimar. No total, recebe Cr$ 1.270. Para equilibrar o orçamento, pede que o Cenimar aumente seu salário.
ÉPOCA não conseguiu entrevistar Maria Thereza. O nome dela aparece em cadastros do governo federal, mas seu endereço na periferia do Rio não foi encontrado. Ex-militantes do PCBR procurados não se lembraram dela. A ex-colaboradora da Marinha permaneceu nas sombras mesmo depois do fim da ditadura. Como seria de esperar de um agente secreto.
Fonte: https://fenapef.org.br/35910/
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