MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964

MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964
Avião que passou no dia 31 de março de 2014 pela orla carioca, com a seguinte mensagem: "PARABÉNS MILITARES: 31/MARÇO/64. GRAÇAS A VOCÊS, O BRASIL NÃO É CUBA." Clique na imagem para abrir MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964.

sábado, 27 de dezembro de 2025

O Sistema Toga Petralha - Por Félix Maier

 


O Sistema Toga Petralha

Félix Maier

Pé na Cova, como sempre, tem vantagens que os vivos invejam: a capacidade de ver o espetáculo de longe, sem pagar ingresso, sem precisar de máscara sanitária nem de fidelidade partidária. Do seu caixão lustroso e florido, com detalhes em metal — que chama de poltrona de primeira classe do além — ele observa o Brasilistão em chamas e sorri com dentes de lata. Não é desprezo: é cadeira de diretor de teatro para uma tragédia em série, com figurantes ridículos e trilha sonora de funk de enterro.

— Pois é — diz Pé na Cova, para ninguém em particular — se eu soubesse que a vida terminaria assim, teria comprado um caixão com Wi-Fi. Pelo menos teria lido os memes com mais calma.

A primeira regra do Brasilistão que Pé na Cova aprendeu é simples: quando a política vira espetáculo, a toga vira figurino. Nasceu, então, o Sistema Toga Petralha, espécie de carnaval jurídico-perpétuo, cujo majestoso desfile acontece no palco iluminado do Supremo Togastão Festivo (STF). Lá, entre cortinas de veludo e lagostas gratinadas com ervas de Provence, a Suprema Caneta decide o que é lei, e o que é piada de mau gosto, com ingresso para o calabouço fatal. E, como todo bom festival, o Brasilistão tem seu imperador: o Ogro de Nove Dedos, autoproclamado Imperador Barba I, que desfila em palanques dourados enquanto distribui promessas como confetes molhados.

Pé na Cova já viu tantos reinados que não se espanta mais. Mas surpreende-se com a consistência do grotesco: um criminoso condenado por unanimidade em três instâncias — nove a zero, o placar perfeito de família — é recolocado ao palco porque o Togastão assim quis. Foi uma forma do Togastão agradecer a Dom Barba I tê-los colocado lá. Houve, dizem, uma reconciliação litúrgica entre pastas, pendrives e nuvens de e-mail. Em 15 de abril de 2021 o Togastão encenou uma reviravolta que mais pareceu mágica de festa junina: agora você o vê condenado, agora o vê descondenado, e tudo isso com cobertura de longos prolegômenos na TV Justiça, lagostas e vinho do Porto.

Pé na Cova coça o queixo (ele ainda inventa esse gesto) e murmura:

— No Brasilistão, o único placar que vale é aquele que a toga marca no escudo. Democracia? Só se for em versão pocket, para viagem dos togados a Nova York, Genebra e Paris.

E porque o humor negro adora uma formatação, o Togastão se concedeu um presente emblemático: sancionou um tal de Poder Moderador de Toga, criado não por uma assembleia constituinte, nem pelo Congresso Nacional, mas pela inspiração suprema desses ilustres cidadãos de toga. Assim, as leis passam a ser recomendações, e recomendações passam a ser cassinos de palavras onde a Suprema Caneta aposta e ganha. O lema, bordado nas cortinas de veludo do Plenário por algum marqueteiro com senso de humor, poderia muito bem ser: Nós decidimos, vocês obedecem. E o povo? O povo ri, chora, faz meme e é desmonetizado. Afinal, no Brasilistão, a democracia é plena, reconhecida por Cuba, Venezuela, Irã e até a ONU — desde que tudo seja aprovado pelo Togastão.

— E os memes, meu caro? — perguntou uma voz da rua, atravessando as frestas do caixão.

— Ah, os memes — respondeu Pé na Cova, com saudade — são o que restou do sarcasmo popular. Pequenos ex-votos digitais, pendurados nos mercados que ainda têm Wi-Fi. Mas, com data de validade.

A situação não é gentil com opositores. O Togastão descobriu formas modernas de matar politicamente um terraplanista fascista: cancelamentos nas redes sociais, bloqueios bancários, multas milionárias, exílios administrativos, um soft kill jurídico que preserva o corpo e arrasa o bolso. Não é preciso paredón, basta um despacho bem redigido para colocar um adversário no calabouço fatal. E se a plateia se revolta, o Togastão manda um comunicado solene lido por uma voz do cineasta vencedor do Oscar, Ainda Estou Aqui, e tudo vira teatro do absurdo.

Há uma cena em que Pé na Cova gosta de recontar com ironia gélida: a minuta do golpe, que circulou em pastas, na nuvem, grupos de WhatsApp e pendrives como se fossem receitas de bolo de avó, que foi filmada e vazada, e por isso caiu no gosto do deboche petralha. Teatral, sem roteiro, repleta de bravatas, igual comédia de pastelão. Um país que produz plot twist por WhatsApp chegou ao ápice do jeitinho institucional: se a prosa não permear o processo, o processo é quem termina por permear a prosa.

Em 2025 o Sistema Toga Petralha deu seu golpe mais escancarado: a morte simbólica de Jair Messias Bolsonaro. Não uma eliminação física. O Sistema Toga Petralha, apesar de tudo, ainda segue com regras mínimas. Foi um pomposo processo de anulação mediática: morto para a Nação, sepultado nos arquivos de transmissão, enterrado com multas milionárias, censurado nas telas, amputado da memória coletiva por decreto. Pé na Cova, que aprecia ironias históricas, aplaude:

— Uma morte por esquecimento é uma obra de arte burocrática. Não precisa de bala; basta um boato bem articulado e uma timeline vigiada.

Os nomes que antes circulavam livremente, daqueles que viraram caricaturas em outdoor e avatar de haters, agora aparecem como pseudônimos nas esquinas digitais. Para evitar que postagens sobre petralhas e piçóis caiam nos filtros automáticos, o povo apelidou os velhos conhecidos: o governador que faz selfie em obra com chuva de brita virou Narcísio G. Benfeitas; o que prometia estradas ao vento virou Romeu do Asfalto; o apresentador sempre aceso virou Dani do Microfone: com seu vozeirão de rádio AM, ele sempre anuncia a chegada de Dom Barba I como se fosse o Carnaval da Democracia. Pseudônimos viraram escudo: tão criativos quanto eficientes, e infinitamente mais divertidos.

Pé na Cova, porém, não é apenas zombeteiro; é analista social de cemitério. Ele observa como as instituições foram aparelhadas, como se tivesse havido uma convenção de costura onde se trocou o tecido da República por um veludo vermelho-vinho com reflexos tártaros, persas e mongóis, digno de um desfile de moda imperial, costurado por Xerxes e bordado por Gêngis Khan. Além do Togastão, a Polícia Federal, o Petistério Público, o IBGE, as agências reguladoras, tudo passou por reformas estéticas: trocou-se a cor das gravatas, os selos, mas manteve-se a mesma dança de máscaras. Pé na Cova acredita piamente que tudo virou moda: o Brasilistão veste o autoritarismo como um traje de gala.

— E a cultura? — alguém pergunta num sussurro pela ventania da cidade.

— A cultura virou playlist de enterro com funk e samba, com alguns versos de protesto escondidos entre refrões. Há artistas que continuam a cantar, outros que simplesmente aprenderam o novo código: sobrevivência rima com autocensura, como bem sabe o humorista Léo Lins, condenado a mais de oito anos por fazer piada politicamente incorreta.

Também existe a pauta da cogitação criminosa, a jabuticaba jurídica que criminaliza o pensamento incipiente. Bastaria rascunhar um plano, murmurar uma ideia num cafezinho, para que o Togastão inaugurasse um processo pelo crime de intenções. George Orwell, se vivo estivesse, bateria palmas. Pé na Cova sorri de lado, com face de argila.

— O Ministério da Verdade ganhou toga — conclui ele. — Agora ordens e imagens desfilam na TV Justiça com a solenidade de um espetáculo pirotécnico.

E o povo? O povo, haters a bordo, tenta rir. No lugar onde outrora havia praças, surgiram arenas de hashtags; onde havia jornais de papel, agora há podcasts de sobrevivência. Algumas revistas foram censuradas, alguns canais foram para o ar, e lá se foram, como quem apaga uma fogueira com gasolina: um espetáculo de fogaréu e fumaça dos infernos. Pé na Cova manda um beijo cínico às equipes de apagões culturais:

— Sabe como se fica famoso hoje em dia? Ser censurado por decreto. É a nova certificação de qualidade artística.

A sátira mais cruel, porém, é a do próprio poder, que se alimenta de rituais: sessões de toga festiva, lagostas que se encolhem nos talheres, discursos solenes sobre moralidade sendo proferidos entre goles de vinho do Porto. O Tocador de Caneta (apelido que Pé na Cova deu a um ministro do Togastão) assina sentenças e interroga consciências, sempre com pose de quem leu um manual de teatro do absurdo e decidiu aplicar o método. O espetáculo precisa continuar: há eleições no horizonte, e o Togastão já sabe quem convém manter no palco.

— Quer apostar? — pergunta uma coruja virtual, que assombra as linhas do tempo — o Sistema garante um favorito e dois coadjuvantes. Se o candidato for realmente independente, o Sistema o amarra com uma canetada: missão dada é missão cumprida!

Pé na Cova ri e lembra: o país não é unificado, é dividido em bantustões de ideias e algoritmos, onde o diálogo virou transmissor de dados e a empatia é um plugin pago, Plus ou Team. A multidão desloca-se entre calçadas e teclados, em busca de um fio de sentido que lhes oxigene o rosto. Alguns ainda cantam hinos de outrora, como Eu te amo, meu Brasil, vestidos de verde-amarelo; outros, entre uma gritaria sertanojo e uma baixaria funk, compartilham memes como penitência.

Na atualidade, não importa quem seja eleito Presidente do Brasil, de direita ou de esquerda, porque quem de fato governa é o Sistema Toga Petralha. O deboche do Togastão é tão escancarado e cruel que aplicou multa de R$ 22,9 milhões ao Partido Liberal (PL), por litigância de má fé. O PL, por pura coincidência, é o Partido de Jair Messias Bolsonaro e tem o número... 22. E o Ogro ficou muito feliz ao indicar o comunista Flávio Dino para o Togastão, justo no dia 27 de novembro de 2023, data que lembra a malfadada Intentona Comunista de 1935, que deixou mais de 1.000 civis e 34 militares mortos, alguns militares friamente assassinados enquanto dormiam no quartel.

Com as instituições federais totalmente aparelhadas pelo PT durante as duas últimas décadas, e observando as inúmeras maracutaias petistas como Correios, Mensalão, Petrolão, BNDES para obras em países dos kamaradas bolivarianos, como Cuba e Venezuela, até o extraordinário  chansonnier  Moacyr Franco perdeu a paciência, compondo uma canção-protesto: República Federativa do Bandido. Tem muito cidadão que não acompanha mais os noticiários, seja na TV, no rádio ou nas mídias, nem tem mais grupos de WhatsApp, bloqueou todos. E tem flamenguista fanático que não vê mais seu time jogar, só para não ter que ligar a TV Globo, considerada #GloboLixo.

No meio dessa ruína com iluminação cênica, há uma esperança teimosa, não anunciada pelos becos oficiais: a possibilidade de se erguer uma nova catedral, não de pedra, mas de consciência cívica. Pé na Cova, que tem tempo de sobra, observa as migalhas do renascimento nos Restos de Brasil: um coletivo que organiza teatro de rua, um grupo que cria o Movimento Brasil Conservador, uma escola que ensina retórica, latim e sarcasmo como ferramentas de resistência. São sementes pequenas, criadas com suor e riso mordaz. Enéas Carneiro vem aí!

— A luta é como uma costura feia — diz Pé na Cova — paciente, repetida, com pontos tortos que não ficam invisíveis. Mas costuram!

E assim o Brasilistão segue: o Gárgula de Nove Dedos gargalha do frontispício de sua catedral lúgubre, despejando promessas podres sobre os súditos do Brasilistão. O Sistema Toga Petralha segue com sua dança ritual, lembrando um sabá céltico de juízes em transe. Pé na Cova, fiel comentarista do cotidiano entrópico, derretido no próprio caos, celebra o absurdo com ironia: a tragédia foi cortada em episódios, o riso transformou-se em algoritmo de resistência e as noites ainda são longas, mas, para ele, eternas no sentido literal.

No fim do ato, Pé na Cova se vira para a plateia — não há público formal — e faz uma oração profana:

— Que os que sobreviverem aprendam a rir com aquilo que não podem mudar e a lutar contra aquilo que podem. Quando o teto ruir, não haverá mais fuga, apenas o silêncio de um país sepultado sob os escombros de sua própria orgia, ao som do último riso de pedra do Gárgula. Então, tenham a coragem de cavar uma saída em vez de esperar que o Imperador Barba I lhes entregue uma escada de papel.

O palco se apaga. A internet continua acesa. Os memes seguem sua marchinha fúnebre. E Pé na Cova retorna ao seu silêncio, satisfeito por ainda ter humor, e, como sempre, uma opinião mortal sobre tudo.


Obs.: Crônica tirada do e-book Contos Risonhos - Entre Risos e Sonhos (E alguns pesadelos)https://felixmaier1950.blogspot.com/2025/12/contos-risonhos-entre-risos-e-sonhos-e.html.


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