MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964

MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964
Avião que passou no dia 31 de março de 2014 pela orla carioca, com a seguinte mensagem: "PARABÉNS MILITARES: 31/MARÇO/64. GRAÇAS A VOCÊS, O BRASIL NÃO É CUBA." Clique na imagem para abrir MEMORIAL 31 DE MARÇO DE 1964.

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Tio Arno Preis: Carta a meus leitores - Por Félix Maier

Tio Arno Preis: 

Carta a meus leitores

Por Félix Maier

Cartas-->Tio Arno Preis: Carta a meus leitores -- 15/10/2008 - 17:34 (Félix Maier)

https://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=25946&cat=Cartas&vinda=S

Arno Preis


Cara prima Teresinha,

Inicialmente, parabéns a você e a todos os professores do Brasil pelo seu dia, o Dia do Professor!

Obrigado pelo texto enviado sobre Tio Arno (http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=9666&cat=Ensaios). Gostaria de fazer alguns comentários. Como diria o esquartejador, vamos por partes:

O ensaio da professora de História da Universidade Estadual de Maringá, Elaine Pavani, é um tanto pesado, com 50% de introdução sobre a história relacionada a Antígona, de Sófocles, até, enfim, engrenar no tema em questão, que foi a morte de tio Arno. O paper de Pavani, além de ter uma pomposidade despropositada (talvez inspirado no texto de Maria Feranda de Aragão Ponzio - Cfr. "Referências bibliográficas"), apresenta pelo menos dois erros lamentáveis:

1) Não existe relação da morte de tio Arno com o relato de Antígona, porque Arno não ficou insepulto, com o corpo jogado aos abutres. Ele foi enterrado em local certo e sabido, como foi publicado pelos jornais, tanto de São Paulo, quanto do Rio de Janeiro.

2) Arno Preis não foi enterrado com nome falso, dando a entender que a ditadura fez isso de propósito, para dificultar a localização de seu corpo. Arno foi enterrado com o nome do documento que portava na ocasião, Patrick McBundy Comick, nome que foi falsificado por ele mesmo, para melhor executar seus atos terroristas e não ser pego pelas autoridades. Seu verdadeiro nome foi logo elucidado pelas autoridades, tanto isso é verdade que em seguida todo mundo já sabia de quem se tratava, como noticiaram os jornais.

A pergunta que fica é a seguinte: por que os familiares diretos de tio Arno não foram atrás do corpo logo após sua morte? Por que somente em 1993 seu corpo foi exumado e seus restos mortais levados para sua terra natal, Forquilhinha, SC? Medo das autoridades? Desinteresse? Para mim, isto ainda não foi esclarecido.

A Profª. Pavani achou estranho que militares envolvidos na morte de tio Arno tivessem sido promovidos, inclusive post mortem - caso do Sd Luzimar Machado de Oliveira, morto por tio Arno. Ora, isso é uma prática comum nas corporações militares, é previsto em lei e não há nada a estranhar. O que se deve repudiar é a promoção post mortem de Luiz Carlos Prestes e Carlos Lamarca a coronel, feitos recentemente, com provimentos de general-de-brigada para seus descendentes. Isto foi um ato ilegal, como são muitos os atos do governo dos petralhas. Ambos os militares, Prestes e Lamarca, desertaram do Exército, portanto, abandonaram a Força por sua própria vontade. Nunca houve nenhum tipo de perseguição para que deixassem a caserna para se bandear, um, a soldo de Moscou, outro, a soldo de Cuba. Se eles não fizeram a EsAO, como poderiam ter sido promovidos a oficial superior?

Quanto à abordagem do tema geral em si - "militantes políticos" x Forças Armadas - não se sabe onde termina a alienação da Profª. Pavani e onde começa o embuste. Qualquer idiota que tenha pelo menos dois neurônios sabe muito bem que o grupo terrorista ao qual pertenceu Arno Preis, comandando por Carlos Marighela, era um dos mais radicais e sanguinários que existiram no Brasil. Eles combateram, sim, a ditadura militar, de armas nas mãos, mas não para que a democracia retornasse. O que eles queriam era instalar no Brasil uma ditadura sanguinária, muito pior que a dos militares, que é a ditadura comunista de Cuba, que ocasionou mais de 130 mil mortos, entre os fuzilados e os que foram comidos pelos tubarões do Caribe, quando tentaram fugir do paraíso cubano cantado em verso e prosa por Frei Betto et caterva.

Nada Pavani diz sobre os atos praticados por tio Arno e seu grupo, como o assalto ao trem-pagador Santos-Jundiaí, em 1968, nem dos assaltos a bancos, supermercados e casas d'armas. Nada é dito dos inocentes covardemente executados pela gangue de Marighela, autor de O Minimanual do Guerrilheiro Urbano, que foi a bíblia de muitos grupos terroristas também no esterior, como as Brigadas Vermelhas, da Itália, e o Baader-Meinhof, da Alemanha. Como se vê, vivemos negros tempos do embuste, onde a verdade não tem vez, porque "é um conceito pequeno-burguês", como já dizia Lênin.

No Brasil de hoje, fazer uma análise objetiva de qualquer fato político é sempre uma temeridade, principalmente se for a respeito do "regime militar" pós-64. Ou você comunga com as mentiras sistemáticas das esquerdas, ou você é taxado de nazifascista. Não existe lógica, nem espaço para a argumentação. Só embuste. Já fui criticado por parentes por apenas dizer a verdade como ela é: os terroristas de esquerda das décadas de 1960 e 70 - aí incluído tio Arno - não eram os anjinhos que a Profª. Pavani apresenta idilicamente. Eram assassinos frios de uma ideologia que no século XX matou 110.000.000 de pessoas em todo o mundo, segundo O Livro Negro do Comunismo.

Não se pode negar a coragem de tio Arno em empunhar uma arma para "derrubar a ditadura". Ótimo tenor, que encantava seus amigos, ele sempre foi um sujeito muito valente, mas era temerário, pois não tinha medo de nada. Olavo de Carvalho me escreveu certa vez que tio Arno, em seus tempos de estudante, em São Paulo, chegou a enfrentar no tapa um militar armado. E não foi por problema político, mas por causa de um rabo de saia... Se tio Arno quisesse colocar no lugar da ditadura militar brasileira um governo do tipo dos sociais-democratas da Europa, como a Alemanha, ele teria todo meu respeito e apoio. Mas, ao empunhar a bandeira vermelha dos comunistas, ele se perdeu totalmente, e a História já provou que aquela ideologia não tinha como se sustentar, com o colapso da URSS. Hoje, nem a China quer ser comunista. Eles estão atrás de dinheiro, ou seja, do velho capitalismo. Só por aqui, nestas republiquetas bananeiras da América Latina é que tipos como Fidel, Lula, Chávez, Evo Cocales e Corrêa ainda fazem sucesso.

Não há como apoiar a atitude de tio Arno, de querer escravizar uma nação inteira sob o império da Peste Vermelha. Que você me diz sobre os números abaixo, da ditadura cubana, país onde tio Arno foi fazer seu curso de graduação terrorista?

Abraços,

Félix


***


E-mail recebido de Olavo de Carvalho, no dia 12/06/2003:

“Prezado Félix,

Que surpresa, saber que você é sobrinho do Arno! Ele foi meu amigo. Eu gostava muito dele e o admirava. Ele era um homem culto, inteligentíssimo e de uma valentia física notável. Uma vez desarmou e surrou um policial que havia disparado contra ele, bem na frente da Casa do Estudante, em São Paulo (nada de coisa política, foi questão de mulher). Não me parecia ter convicção marxista muito séria – seguia as ordens do Partidão para acompanhar os amigos. Tinha bom coração e era generoso. Cantava trechos de ópera e hinos sacros com uma bela voz de tenor, fazendo duetos impressionantes com João Leonardo da Silva Rocha, barítono. De vez em quando entrava em depressões, bebia e arrumava brigas, mas em geral era bem humorado e tranqüilo. Comigo, sempre foi exemplar. Ele foi uma verdadeira perda para a nossa geração.

Um abração do Olavo de Carvalho”


***


13/10/2008 21:50

Post do Blog (Hugo Studart)

http://www.conteudo.com.br/studart/o-democrata-fidel-e-os-direitos-humanos/?searchterm=ditadura%20cubana

O democrata Fidel e os Direitos Humanos

Encontrei esses números do relatório da Câmara Ibero-Americana de Comércio/Stanford Research Institute, com dados sobre ações democráticas do kamarada Fidel entre de 1959 a 2004: foram 56.212 fuzilados no "paredón"; 1.163 assassinados extrajudicialmente; 1.081 presos politicos mortos no cárcere por maus-tratos, falta de assistência médica ou causas naturais; 77.824 mortos ou desaparecidos em tentativas de fuga pelo mar. Total: 136.288 cubanos mortos pela ditadura Castro. Em nossa ditadura militar, são 301 os mortos e desaparecidos.


***

Leia, ainda, Tio Arno Preis

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A melhor idade - Por Félix Maier

 


A Melhor Idade

Félix Maier

Dizem por aí que pertenço à melhor idade. É um modo diplomático de me chamar de velho. Eu discordo. Se essa é a melhor idade, imagino o que seria a pior — talvez aquela em que a gente paga a conta do plano de saúde e o ortopedista manda cartão de Natal.

Acordo todo dia com o corpo fazendo barulhos que não constam do manual de instruções. É um festival de estalos, rangidos e suspiros mecânicos. Parece que tenho orquestra dentro do joelho. Outro dia, ao me levantar da cama, o quadril soltou um tóim tão afinado que pensei em gravar um disco: Sinfonia para prótese em dó menor.

Mas não reclamo, não. Quer dizer, reclamo um pouco — que é o hobby oficial da terceira idade, especialmente por eu ser um viúvo.

Meu amigo Arlindo, por exemplo, diz que o melhor da velhice é o desconto no cinema. Só esqueceu que a gente cochila antes do trailer acabar.

— Eita, Válter, mas é bom cochilar com ar-condicionado e pipoca — ele me responde.

— É, Arlindo, o problema é acordar achando que a Scarlett Johansson é sua enfermeira.

Falando em enfermeira, o Hospital Militar de Área de Brasília virou shopping dos velhinhos. A melhor idade não é só decadência, é também descoberta. Como veterano militar, descobri, por exemplo, que lá é o novo point da terceira idade. Tem ar-condicionado, TV, Wi-Fi e café ruim de graça. O shopping dos velhinhos é sempre muito movimentado. Deve ser por isso que uma Guia de Encaminhamento, para atendimento externo, às vezes demora trinta e sete dias para ser aprovada...

No shopping dos velhinhos a gente se encontra, põe a conversa em dia e compara resultados de exame como quem compara gols do Brasileirão.

— O meu colesterol tá em 280 — diz o Arlindo, com orgulho de artilheiro.

— Ganhou de mim — respondo. — O meu só chega em 240, mas subi bem no ácido úrico.

Há também um clima de romance entre as macas e os labirintos do velho Hospital, de modo que é aconselhável ter o Waze à mão no celular para não se perder. O corredor da ortopedia parece salão de baile. Viúvas penteadas, viúvos perfumados, todo mundo fingindo que não sente dor — e sentindo.

Outro dia, enquanto esperava o cardiologista, uma senhora simpática me perguntou se eu acreditava em amor na terceira idade.

— Minha filha, nessa idade eu acredito até em milagre — respondi. — E se ele vier de minissaia, melhor ainda.

Ela riu, mostrou os dentes (os próprios, segundo garantiu), e me disse que se chamava Nair. Nome de anjo aposentado.

Só no fato de eu falar em minissaia, o leitor deve imaginar minha idade, quase centenária...

Saí dali meio tonto. O coração disparou. Achei que fosse paixão; era só a pressão. Mas é bom confundir as coisas — a emoção dá sentido ao remédio.

Assim como o reumatismo serve de guarda-chuva para todo e qualquer rangido de idoso, virose é o álibi elegante dos médicos quando a doença insiste em não dizer o próprio nome.

Certo dia, entrei no consultório mancando levemente, mas com alguma dignidade — como quem sabe que o inimigo é o tempo, não o menisco. O ortopedista, entusiasmado como um mecânico diante de um motor fazendo barulho novo, esfregou as mãos e anunciou:

— Vamos resolver isso, meu amigo! Quinze minutos e você sai daqui com o joelho novinho em folha.

Quinze minutos. Era o que ele dizia, com aquele sorriso de quem promete o paraíso antes que o anestésico faça efeito. Resolvi testar o entusiasmo científico:

— E como é que fica o joelho depois, doutor?

Ele me olhou com a serenidade de quem recita um provérbio médico e respondeu, com a maior naturalidade do mundo:

— Olha... tem o joelho bom, o joelho ruim e o joelho operado.

A frase veio tão tranquila que quase acreditei que joelho operado fosse uma categoria nobre da anatomia humana, tipo reserva de luxo. Saí do consultório refletindo: se o joelho operado não era nem bom nem ruim, devia estar num limbo ortopédico — um purgatório de cartilagens e ligas de titânio.

Desde então, faz mais de dez anos que me conformei em não poder mais jogar futebol society com o joelho ruim — ele range, protesta, mas pelo menos é meu. E, também, porque um colega que resolveu melhorar a coluna com o mesmo médico hoje anda como se tivesse engolido um cabo de vassoura: elegante, ereto e permanentemente em posição de sentido. Melhor deixar o menisco quieto e o futebol nas lembranças, porque, afinal, pior que um joelho ruim é um bom arrependimento operado.

Depois do hospital, outro ponto de encontro é o baile da terceira idade, organizado num hotel da cidade. Ali o tempo para, ou pelo menos tropeça. Chego com minha bengala cromada — herança de tio Ubaldo, que dançava maxixe até depois do velório da esposa — e vou direto para o bar, tomar um suquinho de laranja com intenção.

O DJ, um rapaz de uns sessenta, toca Nelson Gonçalves, depois mete um bolero de Altemar Dutra, e aí é que o bicho pega.

— Me concede esta dança? — pergunto à Nair, que já estava ali, toda de lilás.

— Depende. É pra dançar ou pra cair junto, Válter?

— Os dois, se possível — digo, sorrindo.

E dançamos. Devagar, como quem negocia com o destino. A cada giro, meu menisco pede socorro, mas o coração agradece.

Terminamos a dança com dignidade, o que significa que ninguém caiu. Um feito. O pessoal até aplaudiu — mas talvez porque a música acabou e eles podiam finalmente se sentar. Nair me deu um beijo no rosto, bem ali, no meio do salão, com dentadura e tudo. Foi o beijo mais sincero dos últimos vinte anos: sem pressa, sem filtro solar, sem medo do amanhã.

Depois disso, confesso que passei a esperar o baile do mês seguinte com o mesmo entusiasmo de um adolescente esperando o recreio. A diferença é que agora o recreio vem com diurético.

Falando em diurético, é impossível ser velho e falar de amor sem falar de mijo. Não é assunto bonito, mas é democrático. O jato, outrora altivo e certeiro, virou um sprinkler anarquista. Molha o chão, o pé, e às vezes até o cachorro, se ele for curioso o bastante.

Outro dia, Nair me perguntou:

— Válter, você ainda se sente homem, assim, no... digamos, sentido completo da palavra?

Respirei fundo. Pensei em mentir, mas a velhice tem esse dom: a sinceridade cansada.

— Sinto, sim. Mas agora o sentido completo vem com manual de instruções, pilha reserva do marca-passo e bula do azulzinho.

Ela riu de modo brejeiro e insinuante, e respondeu:

— Melhor assim. Homem sincero é afrodisíaco depois dos setenta.

Foi a primeira vez na vida que uma mulher me chamou de afrodisíaco. Anotei mentalmente, pra contar pro Arlindo e deixá-lo com inveja.

Mas é curioso: à medida que o corpo desaba, o amor se simplifica. Já não é sobre músculos, mas sobre memória. Não é sobre fogo, mas sobre calor humano.

Nair e eu não fazemos planos; fazemos chá de erva cidreira. Nosso erotismo é mais infusão do que combustão. E há beleza nisso. Um tipo de ternura que só quem teve pressa demais consegue apreciar depois, quando o tempo obriga a andar devagar.

Claro que a velhice tem seus lados cruéis. O espelho, por exemplo, é um canalha. Outro dia, acordei de bom humor, olhei no vidro do banheiro e levei um susto. Achei que meu avô tinha voltado pra me visitar.

E os remédios… ah, os remédios! Tenho tantos comprimidos coloridos que minha mesinha parece a banca de um camelô. Azul pra animar, branco pra dormir, vermelho pra acalmar o coração, verde pro estresse e o estômago, amarelo pra lembrar que ainda estou vivo.

E a próstata, a infame. Já virou personagem da minha vida: eu acordo e converso com ela.

— Vamos segurar firme o mijo hoje, hein?

Ela responde com silêncio e vingança.

Outro dia, enquanto esperava o urologista, o Arlindo me cutuca:

— Sabe o que é pior do que exame de toque?

— O quê?

— Ter saudade dele.

 Não diga! Vai ver que você é aquele gaúcho da estória, que estava levando uma dedada, o médico perguntou, o que você está sentindo? e o machão disse sinto que te amo!...

Rimos tanto que a enfermeira veio ver se estávamos passando mal.

Às vezes penso que a velhice é uma pegadinha de Deus. Ele deixa o desejo vivo, mas manda o corpo para aposentadoria. É um tipo de ironia cósmica: o motor ainda ronca, mas o câmbio emperra. Mesmo assim, eu continuo muito grato. Prefiro ranger que parar de vez.

A Nair diz que eu sou um velho boca-suja com alma de menino.
Pode ser. Mas menino que paga imposto, toma ômega-3 e precisa de lupa pra ler bula de Viagra.

Outro dia fomos à missa dos idosos. O padre, jovenzinho, falou com ternura:

— Meus irmãos, na melhor idade o corpo enfraquece, mas o espírito se fortalece.

E a Nair cochichou:

— O meu espírito até tenta, mas o ciático não deixa.

Tive que segurar o riso para não cometer heresia.

No fim das contas, é isso: a melhor idade é um estado de espírito com artrite. A gente aprende a rir da própria biografia, e a escolher o que lembrar. A saudade fica mais leve, o perdão fica mais fácil, e o amor… o amor vira um hábito gostoso, como café sem açúcar.

Às vezes, quando a Nair adormece no sofá, eu fico olhando pra ela e penso: Meu Deus, como é que esse corpo que já não corre mais ainda dá conta de tanto carinho?

Então me vem uma vontade danada de agradecer — não pela saúde, nem pela juventude perdida, mas pelo simples fato de ainda ter alguém pra implicar, pra segurar a mão, pra chamar de meu amor mesmo depois que o romance virou receita de remédio.

A verdade, meu caro, é que envelhecer é um ato de coragem com senso de humor. A gente vai rindo pra não cair. E se cair, que seja dançando.

Porque, no fim das contas, a melhor idade é sempre a próxima, desde que ainda dê para rir, mesmo que falte dente, e pra apertar a mão de alguém sem precisar de apoio.

— A gente tá velho, mas tá vivo. E no balanço da vida, isso já é lucro.


segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Machado e Eça se encontram no Purgatório - Por Félix Maier

 


Machado e Eça SE ENCONTRAM no Purgatório

Um conto fantástico em que os mortos ainda se engalfinham em  glória, gramática, estilo e... censura.

 Félix Maier

Era uma tarde sem tarde — pois no Purgatório o tempo é uma invenção obsoleta, um relógio parado entre o céu e o inferno. O ar tinha cor de papel envelhecido e cheirava a tinta de tipografia. Por entre nuvens pardacentas, espíritos caminhavam de um lado para outro, arrastando pecados leves o bastante para não merecer o fogo, mas pesados demais para a ascensão.

E foi nessa atmosfera de papel e pecado que dois vultos se cruzaram numa tarde sem tarde, pois o tempo, ali, é uma abstração que perdeu a pontualidade.

Um deles caminhava devagar, apoiando-se num bastão feito de ironia. Tinha a pele morena, pince-nez ajustado com precisão de relojoeiro, e um sorriso discreto, desses que não riem do mundo, apenas o decifram. Era Machado de Assis, o Bruxo do Cosme Velho, que chegara ao Purgatório sem alarde, pedindo licença até para a eternidade vestindo um cerimonioso fraque translúcido.

O outro vinha de passo largo, terno preto etéreo com lenço de gola alta, bigode impecável e porte de diplomata atrasado para um baile solene. Trazia no ar o perfume distante das livrarias de Paris e no olhar a altivez dos que se creem injustiçados até por Deus e o Diabo. Era Eça de Queiroz, o português que acreditava que cada vírgula tinha alma e cada pecado, estilo.

Tropeçaram um no outro, um tropeço metafísico, como se o destino, cansado das suas intrigas terrenas, resolvesse brincar de roteirista purgacional.

Machado recuou um passo, ajeitou o fraque da alma e, com aquele tom que transforma qualquer desculpa em sentença, murmurou:

— Creio que o cavalheiro me interceptou o passo.

Eça arqueou o sobrolho e respondeu, com ligeiro sotaque de Lisboa e orgulho de quem nunca perde a nuance:

— Interceptar? Meu caro, quem tropeça em mim costuma pedir desculpas em francês.

Machado sorriu com um movimento quase imperceptível dos lábios, como quem anota uma ironia mental para uso futuro.

— Francês… até aqui o senhor o invoca. Há de haver cafés parisienses no além, imagino, com madames de névoa e pecados de veludo.

Eça abanou a mão, teatral:

— E o senhor, que nunca saiu da Rua do Ouvidor, fala como se o paraíso fosse um bonde do Rio de Janeiro.

O silêncio que se seguiu era civilizado. No Purgatório, até os insultos exigem boa sintaxe.

Começaram a caminhar lado a lado, ou quase, pois entre eles havia uma distância invisível, medida em séculos de vaidade e crítica literária.

A névoa ao redor cheirava a papel amarelado e tinta de pena. Era o perfume dos escribas da posteridade.

Machado, olhando em volta, comentou:

— Curioso, senhor Queiroz. O Purgatório assemelha-se um pouco à Academia. Há cadeiras, vaidades e votos secretos.

Eça respondeu, sem resistir à provocação:

— E, como na Academia, poucos sobem.

Machado riu com os olhos, que eram sua parte mais viva.

— Ao menos aqui não se discute ortografia.

— Discutir, não. Mas vi ali ao fundo uma alma a conjugar o verbo ascender com cê, e foi mandada de volta ao limbo por erro grave — retrucou Eça.

Caminharam. De vez em quando, passava uma alma apressada, algum poeta arrependido, tentando trocar o Purgatório por uma antologia.

No alto, anjos-porteiros cochichavam, anotando quem falava mal de quem, pois até na eternidade há jornais de fofoca metafísica.

Eça, sempre ansioso por justificar-se, retomou o fio das mágoas antigas:

— Ainda guardo lembrança amarga das críticas, senhor de Assis. Sob pseudônimo, o senhor me esfolou vivo em O Primo Basílio. E disse que O Sr. Eça de Queiroz parece escrever com um bisturi na mão... O Sr. Eça é o Zola das senhoras portuguesas...

Machado pigarreou com elegância, ajeitando o pince-nez.

— Ah, sim… Eleazar. Era um exercício de estilo. A crítica, caro Eça, é um modo educado de praticar a caridade.

— Caridade? — Eça arregalou os olhos. — Chamou minha Luísa de tola, meu Basílio de leviano e meu realismo de vulgar!

— Limitei-me a observar — retrucou Machado — que a empregada Juliana tinha mais alma que a patroa. O senhor quis retratar o adultério e acabou traindo a psicologia.

Eça respirou fundo, dividido entre ofensa e admiração. A vaidade ferida é um espelho que se quebra refletindo o próprio rosto.

— O senhor fala como padre, mas escreve como coveiro. Metade dos seus personagens já nasce morta.

— É uma economia de enredo — disse Machado, com doçura. — O defunto autor é mais confiável do que o narrador vivo.

Eça riu, sacudindo a poeira do orgulho.

— Reconheço, há gênio no seu sarcasmo. Mas confesse: o senhor sempre invejou o meu pecado.

— Pecado? — perguntou Machado, arqueando uma sobrancelha. — No Brasil, o calor já basta.

Foram andando. O chão, feito de páginas translúcidas, parecia murmurar citações antigas. De vez em quando, uma folha solta passava flutuando, trazendo trechos de romances esquecidos. Ao longe, um coral de almas declamava versos franceses. Machado suspirou.

— Nem o senhor, com todo o seu Paris, subiu.

— Nem o senhor, com todo o seu moralismo, desceu — respondeu Eça. Talvez Deus esteja indeciso sobre o valor do estilo.

Riram. No Purgatório, o riso é moeda de purificação. Mas o silêncio seguinte não era inocente. Eça, com aquela elegância provocadora dos duelistas do Chiado, lançou:

— Diga-me, senhor Machado, não é curioso o senhor também ter vindo parar aqui? Ou seria castigo por... pequenas apropriações intelectuais?

Machado ajeitou o colarinho invisível, como quem ajusta a própria ironia.

— O senhor fala de plágio?

Eça ergueu as sobrancelhas.

— Não eu. Apenas cito fontes. Há quem diga que suas nuvens caídas vêm de Alphonse Karr, suas batatas de Ernest Renan, seu verme de Baudelaire e seu emplastro de um tal Sterne.

Machado parou, olhou para o vazio e sorriu.

— Ah, sim. Chamemos de cosmopolitismo literário. Afinal, se os franceses me influenciaram, influenciaram o senhor duas vezes.

Eça gargalhou alto, um riso de vinho e pecado.

— Ainda assim, o meu plágio cheira a Bordeaux, não a mate amargo.

Machado inclinou o chapéu inexistente.

— Pois que brindemos às influências mútuas. O senhor, herdeiro do naturalismo; eu, discípulo da ironia. E ambos, reféns da crítica.

Nesse momento, uma brisa correu, e as nuvens formaram uma espécie de cortina. Dela saiu uma figura miúda, de terno escuro, olhar fiscal e prancheta flamejante.

— Agrippino Grieco! — exclamaram em uníssono, surpresos e resignados.

O crítico literário sorriu com a satisfação de quem reencontra velhos réus.

— Senhores — disse ele —, a eternidade exige revisão. Tenho aqui os autos dos vossos pecados literários.

Eça revirou os olhos:

— Nem morto me livro da crítica.

Machado, tranquilo:

— Deixe-o falar, caro Eça. A verdade, às vezes, melhora com o tempo.

Grieco abriu a prancheta. O som do papel soou como sentença. O Purgatório, que até então sussurrava como uma biblioteca de convento, calou-se por completo. Nem o folhear das almas se ouvia. Agrippino Grieco — crítico emérito e fiscal da posteridade — abrira sua prancheta flamejante.

Os papéis, em vez de linhas, traziam pequenas chamas que ardiam em silêncio, como notas de rodapé em fogo lento.

— Muito bem, senhores — começou, com voz que soava entre o tom de júri e o de colunista. — Eis-me aqui, incumbido de revisar vossas obras e vossos pecados. Afinal, a eternidade, como a boa literatura, não admite rasuras.

Eça endireitou-se, ajeitando o bigode incorpóreo. Machado apenas arqueou a sobrancelha — esse leve gesto que, no Céu ou na Terra, valia por um capítulo. Agrippino prosseguiu:

— Primeiro réu: Machado de Assis. Acusado de citações não creditadas, apropriações cosmopolitas e filosofias reaproveitadas. Item um: Melhor cair das nuvens do que de um quinto andar — procedência, Alphonse Karr. Item dois: Ao vencedor, as batatas — fonte, Ernest Renan. Item três: Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas — Baudelaire, naturalmente. Item quatro: O emplastro Brás Cubas — ah, caro senhor, puro Sterne!

Machado manteve a calma dos culpados que filosofam.

— Meu caro Agrippino, plagiar é dar segunda vida às ideias. A originalidade é o disfarce mais refinado do talento.

— Disfarce ou travestimento? — atalhou Grieco, anotando algo em sua prancheta que faiscou.

— Travestimento é o que o senhor chama de crítica — devolveu Machado. — Um gênero que se veste de erudição e esconde o prazer de punir.

Um murmúrio percorreu as nuvens: os anjos-bibliotecários cochichavam, fascinados. Agrippino fingiu não ouvir.

— Eça de Queiroz, passo ao senhor. — E folheou outro papel ardente. — O senhor é acusado de ter plagiado Zola, adulterado o pudor e cometido pecados de descrição excessiva.

— Descrição excessiva?! — indignou-se Eça. — Eu apenas pintei o real com as cores que ele exige. Se há excesso, é do mundo, não meu.

— Descrição em minúcias da carne não é arte, é fisiologia — disse Machado.

— Zola, Balzac, Flaubert... o senhor bebeu em todas as garrafas francesas — disse Grieco.

Eça inclinou-se, com altivez.

— Ao menos as garrafas eram boas. E o senhor, Machado, confessará que me leu com atenção, pois quem me critica tanto, me admira em dobro.

Machado sorriu.

— Confesso, li-o com o prazer que se tem ao observar um incêndio da sacada: belo, mas perigoso.

Grieco interrompeu:

— Senhores! Aqui não se trata de duelo literário, mas de ajuste de contas com a posteridade.

Eça cruzou os braços etéreos:

— A posteridade, caro Agrippino, é apenas a crítica que Deus faz aos mortos.

Machado assentiu, filosófico:

— E, pelo visto, ainda não fomos absolvidos, para subir. Nem condenados, para descer.

Enquanto o debate se acirrava, as nuvens se juntaram em semicírculo, formando um anfiteatro brumoso. Sentados nas bordas vaporosas estavam figuras ilustres: Camões, que não sabia se declamava ou julgava; Garrett, que penteava o vento; Padre Antônio Vieira, que tentava converter os suspiros em sentenças; e Baudelaire, claro, fumando um cigarro de névoa, curioso para ver o destino de suas influências tropicais.

Camões foi o primeiro a falar, com a solenidade de quem atravessou mares e séculos:

— Senhores, as musas são irmãs. Não há roubo entre família.

Baudelaire, porém, sorriu de modo venenoso:

— Eu, por mim, aceito o plágio como homenagem. Desde que o homenageado receba os direitos autorais da eternidade.

Machado inclinou-se, respeitoso:

— Tenho pagado em glória tardia, caro Charles. E, se o senhor me inspirou, ao menos o fiz vestir fraque brasileiro.

— E eu — replicou Eça, sarcástico — o vesti de casaca portuguesa. Somos ambos alfaiates da linguagem.

Grieco pigarreou.

— Alfaiates, sim, mas a costura é suspeita. Há remendos visíveis, senhores.

Machado respondeu:

— Todo estilo é um remendo que o tempo chama de assinatura.

O murmúrio das nuvens transformou-se em aplauso.

Permitam-me, caro leitor, uma breve interferência — pois quem vos fala, como todo narrador, não é neutro, apenas disfarçado. Machado e Eça, naquele instante, não discutiam a autoria das frases, mas o direito de serem eternos à sua própria maneira. O Purgatório, esse salão nebuloso, não passa de um congresso literário sem encerramento, onde cada alma quer a última palavra e nenhuma deseja ouvir a alheia. E eu, observador das brumas, vi que o julgamento de Agrippino não buscava justiça — buscava estilo. Eça queria a elegância da forma; Machado, a elegância do pensamento; Agrippino, a elegância da censura.

De repente, Grieco retirou da pasta um pergaminho e o ergueu como um troféu. Era o original de Memórias Póstumas de Brás Cubas, com anotações à margem em francês. As letras cintilavam, revelando o diálogo secreto dos autores mortos.

— Eis aqui — disse o crítico, triunfante — a prova de que Machado lia Sterne com entusiasmo quase eclesiástico.

Machado olhou o pergaminho, sereno.

— Li-o, sim. E aprendi com ele que a morte é o narrador mais honesto.

Eça comentou, em voz baixa:

— E o mais rentável.

Grieco continuou sua sanha acusatória, exibindo agora um exemplar de O Primo Basílio com dedicatória a Balzac.

— E o senhor, Eça, não fica atrás. Sua Lisboa cheira a Paris, seu adultério fala francês, e seu moralismo tem sotaque de salão.

Eça abriu os braços:

— Ah, mas foi o pecado que me deu tema, e o tema, estilo. Escrevi o que todos fazem, mas fingem ignorar.

Machado, com um sorriso enviesado, completou:

— Eu escrevi o que todos ignoram, mas fingem compreender.

Grieco suspirou, vencido pela dialética.

— Pois bem — disse ele —, declaro-vos igualmente culpados de genialidade reincidente.

O coro de sombras aplaudiu. Baudelaire, com fumaça azulada, murmurou:

— Ah, se todo plágio fosse assim...

Camões ergueu a espada, feita de neblina e lembrança:

— Pela pena e pelo verbo, absolvidos sejam!

Mas Agrippino, que não cedia facilmente, fechou o relatório com ar de tabelião da eternidade:

— A sentença não é tão simples. Permanecerão ambos no Purgatório até redigirem juntos um tratado intitulado Do Plágio como Forma Superior de Admiração.

Eça fez cara de horror.

— Escrever com este homem?

Machado respondeu com um meio-sorriso filosófico:

— Um prazer infernal, caro Eça.

E assim terminou a sessão.

As almas dispersaram-se como leitores após o prefácio. Eça e Machado permaneceram sentados sobre uma nuvem de leve densidade crítica. Entre eles, Agrippino já desaparecera, deixando no ar um leve cheiro de tinta e burocracia.

Machado quebrou o silêncio:

— Sabe, Queiroz, talvez a eternidade seja apenas uma segunda edição, revista e aumentada.

Eça respondeu:

— Desde que o prefácio não seja seu.

Machado riu.

— Nesse caso, escrevamos em parceria.

Eça levantou-se, resignado:

— Pois bem. Comecemos o tratado. E se a eternidade tem revisores, que ao menos sejam imparciais.

Sobre a mesa pairavam folhas de papel celestial — luminosas, como se escritas por dentro. Era o material concedido por Agrippino Grieco para que redigissem o tratado Do Plágio como Forma Superior de Admiração.

Eça começou o preâmbulo, empunhando a pena espectral:

— “Nós, abaixo-assinados, Machado de Assis e José Maria Eça de Queiroz, reconhecemos que toda obra é filha ilegítima de outra, e que a originalidade é uma forma elegante de esquecimento.”

Machado assentiu, sorrindo:

— Belo começo. Faltam apenas as entrelinhas, que é onde reside a ironia.

— Ironia? — respondeu Eça. — Prefiro o sarcasmo, é mais civilizado.

— O sarcasmo é francês; a ironia, universal — retrucou Machado.

Ambos se entreolharam, compreendendo que o tratado seria mais difícil do que a confissão de um santo. Machado suspirou, olhando o papel que não se deixava concluir.

— Escrever, aqui, é como tentar acender fósforos molhados.

— Natural — ouviu-se a voz de Grieco, retornando num halo vaporoso para atormentar os ilustres escribas. — O Purgatório é a tipografia do eterno inacabado.

— Então somos linotipistas da posteridade — gracejou Eça.

— Não, senhores. — A voz de Agrippino tornou-se grave. — São personagens do próprio estilo. O castigo de todo grande escritor é viver preso àquilo que escreveu.

Machado ergueu as sobrancelhas:

— Nesse caso, estou condenado a ironizar até o fim dos tempos.

— E eu — disse Eça — a descrever salões que não existem.

— Pois que descrevam o que sempre escreveram — replicou Agrippino, antes de desaparecer numa centelha de crítica.

Decididos a terminar o tratado, os dois mestres resolveram visitar o Salão das Ideias Perdidas, onde pairavam todas as frases que nunca chegaram a ser escritas. Era um lugar impressionante: flutuavam ali inícios de romances, metáforas abortadas, parágrafos esquecidos e até o esboço de um soneto de Camões sobre mosquitos.

Eça observou, fascinado:

— Eis aqui a biblioteca da humanidade inconclusa.

Machado tocou numa frase suspensa no ar, Se Deus fosse crítico literário… — e murmurou: — Essa é perigosa. Pode transformar-se em realidade.

Do fundo do salão, uma voz ecoou, grave e mansa:

— Transformou-se em realidade, meus filhos.

Era uma voz sem corpo, mas com muita autoridade. As ideias se afastaram respeitosamente.

— Quem fala? — perguntou Eça, empalidecendo até quase sumir.

— O Autor — respondeu a voz. — Chamam-me de Deus, mas prefiro o título de Crítico Universal.

Machado inclinou-se.

— Então é verdade que o mundo é apenas um manuscrito divino?

— Um rascunho, Machado. Ainda em revisão.

Eça, entre o espanto e a ironia, perguntou:

— E nós, o que somos?

— Margens comentadas.

Houve um silêncio sublime, interrompido apenas pelo farfalhar das nuvens. Machado, em sua calma olímpica, ousou dizer:

— Senhor, se somos notas de rodapé, ao menos que sejamos legíveis.

Eça completou:

— Ou elegantes.

A voz sorriu — e um raio de luz atravessou o salão.

De volta ao Café das Sombras Leves, escreveram juntos, pela primeira vez sem disputa: Toda criação é uma herança. Todo gênio, um tradutor. Plagiar é participar da corrente secreta das vozes que não cessam. Aquele que escreve sozinho mente; aquele que copia, dialoga.
Por isso, o plágio é a mais pura forma de admiração.

Assinaram juntos, Machado com pena de corvo, Eça, com pena de pavão: Machado de Queiroz – Eça de Assis (Revisado por Laurence Sterne e Émile Zola).

Quando finalizaram o tratado, Agrippino Grieco reapareceu, surpreendentemente com um leve sorriso.

— Está aprovado — disse ele. — Mas, aviso: a eternidade o transformará em apócrifo.

Machado inclinou-se, satisfeito:

— Todo texto que sobrevive ao autor é apócrifo.

Eça levantou o copo:

— Às cópias que nos superam!

Brindaram com vinho purgacional em copos feitos de névoa.

No alto do Purgatório, as nuvens se abriram. Camões com um tapa-olho novo, tecido pelas Parcas, Zola com seu diáfano béret, Vieira com batina negra purgacional e colarinho clerical branco, Baudelaire no terno escuro com laço de veludo e até o clérigo espirituoso com peruca branca Sterne acenavam, como num sarau de luz. O Café dissolveu-se em claridade, e o som das risadas se confundiu com o canto dos anjos revisores.

E o narrador, este modesto cronista das almas, encerrou o relato, dizendo ao leitor que o Purgatório, no fundo, não é um castigo. É apenas a sala de espera entre a leitura e a reescrita.

E lá ficaram Eça e Machado, entre o riso e o verbo, escrevendo sem fim o que já estava escrito, comentando o que nunca será dito, pois na eternidade, como na literatura, ao vencedor, as batatas.

Só não se sabia ainda se as batatas viriam cozidas no fogo eterno ou servidas à moda do paraíso — o Crítico Universal não entrega spoilers.  


                                      ***                                                        

Obs.:

Machado de Assis, sob o pseudônio Eleazar, escreveu na revista Cruzeiro ácidas críticas contra o livro O Primo Basílio, de Eça de Queiroz. O crítico literário Agrippino Grieco, no livro Machado de Assis (Conquista, Rio de Janeiro, 2a. edição, revista, 1960), revolveu todos os escritos de Machado, identificando muitas frases famosas que seriam plágio de autores franceses e ingleses não menos famosos.

Assim, resolvi colocar esse trio  e outros gigantes da literatura  no Purgatório, para que continuem se enfalfinhando em glória, gramática, estilo e... censura.

Félix Maier



quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Pé na Cova planeja uma boa morte - Por Félix Maier

 

Pé na Cova planeja uma boa morte

Félix Maier

Pé na Cova acordou mais cedo do que de costume naquela terça-feira. O relógio marcava 5h27, e o galo do vizinho, um animal de vocação suicida, ainda nem tinha se animado a cantar. Sentou-se na beira da cama, estalando os joelhos como quem abre uma gaveta velha, e suspirou com aquele ar de quem está revendo o filme da própria vida — mas um filme de baixo orçamento, com som ruim e sem final feliz.

— Tá chegando a hora, Pé na Cova… — murmurou para si mesmo, enquanto calçava as pantufas. — E olha que nem vai ter reprise.

A morte, em si, não o incomodava. Tinha feito as pazes com a ideia fazia tempo. A questão era outra: e se, no dia do velório, ninguém aparecesse? Nem pra garantir uma foto decente pro Facebook do cemitério?

Esse pensamento o vinha atormentando havia semanas, desde o enterro do amigo Aparício — um sujeito alegre, língua solta, que falava palavrão como quem recita poesia. Aparício fora um daqueles que acreditava firmemente que "quem morre descansa", mas ninguém o avisou que o descanso incluía velório sem plateia.

Naquela tarde fatídica, Pé na Cova chegou à capela mortuária e contou, com a precisão de um auditor da Receita Federal: dez pessoas. Dez! Incluindo o coveiro e o motorista do carro funerário, que estavam ali por força do ofício.

Nenhuma coroa de flores enfeitava o ambiente. A parede ao lado do caixão estava nua, deprimente, como um salão de festa abandonado depois do baile. Pé na Cova, num impulso piedoso e um tanto culpado, saiu correndo até a floricultura da esquina e comprou, do próprio bolso, uma coroa com fita dourada. Pediu que escrevessem: “Do amigo que ainda respira — com respeito e um pouco de ciúme.”

O florista olhou torto, mas escreveu.

Desde então, Pé na Cova vinha matutando. E se com ele acontecesse o mesmo? Morreu, e pronto: meia dúzia de curiosos, dois parentes distraídos, e talvez um cachorro vagando pela capela.

— Ninguém quer morrer anônimo — disse a si mesmo, enquanto preparava o café. — Nem defunto gosta de solidão.

O espelho da cozinha o encarava com franqueza cruel. Rugas novas, olheiras antigas. Olhos de quem já começou o estágio probatório para o além. Ele se olhou e retrucou:

— Pois é, Pé, tua ficha tá quase sendo chamada. E o que é que tu vai deixar pro mundo, hein? Uns boletos, uma coleção de rótulos de cerveja e uma senha de Wi-Fi?

Ele riu, um riso seco, meio soluçado.

Pegou o jornal e foi direto à página dos obituários. Era o seu ritual matinal. Gostava de ver quem “partiu para a glória”, talvez para medir o próprio atraso. Naquele dia, uma nota lhe chamou atenção: “Falecimento de Osmar C. da Luz, 68 anos. Deixou mulher, três filhos, seis netos e 78 seguidores no Twitter.”

Pé na Cova ficou boquiaberto.

— Setenta e oito seguidores? Só isso? Coitado. Morreu cancelado, o homem.

Achou triste morrer com menos de cem seguidores. A morte moderna, pensou ele, não é mais uma questão de alma, e sim de engajamento. Já imaginava o padre dizendo na missa de corpo presente: “Aqui jaz um influencer de pouca importância.”

Esse pensamento o acompanhou o dia inteiro. Decidiu, então, que precisava fazer algo. Talvez criar um perfil novo, postar frases motivacionais do tipo ‘A vida é curta, mas o velório pode ser longo’, só para garantir uns seguidores póstumos.

Mais tarde, sentado na varanda, começou a conversar de novo com seu interlocutor preferido — ele mesmo.

— Pé, meu velho, tu tem medo da morte?

— Medo, não. Só não gosto da ideia de morrer impopular.

— Mas o que é que importa, se tu nem vai estar lá pra ver?

— Importa, sim! Vai que o além tem internet e eu fico vendo tudo pelo Wi-Fi celestial? Imagina: dez pessoas bocejando e uma coroca desafinada cantando “Segura na mão de Deus”.

Olhou para o quintal. O ipê florido parecia zombar dele com suas pétalas amarelas, como confete de enterro festivo.

— Quer saber? — resmungou. — Acho que vou planejar meu próprio velório.

E assim começou o projeto “Operação Despedida Digna”. Comprou um caderno novo e escreveu na capa: “Roteiro do Meu Velório — Versão Final (ou quase)”.

Na primeira página, listou os convidados ideais — mesmo sabendo que alguns já tinham ido antes dele. Depois, anotou detalhes logísticos:

  1. Local: Capela 3 do Campo da Saudade (tem ar-condicionado e bom estacionamento).
  2. Flores: Mínimo de quatro coroas — nada de crisântemos baratos.
  3. Música: Preferência por boleros. Nada de “Vencendo vem Jesus”, da Harpa Cristã — é brega demais.
  4. Discurso: Apenas um amigo autorizado a falar — e, de preferência, que chore com moderação.
  5. Café: Forte, sem açúcar, e acompanhado de cuca com farofa em cima.

No rodapé, acrescentou: “Obs.: Proibido celular com flash. O defunto agradece.”

Enquanto escrevia, sentia um certo orgulho. Afinal, planejar o próprio velório é o auge da autonomia. Quem disse que a morte não pode ser personalizada?

Foi então que lhe ocorreu o detalhe derradeiro: a sepultura. Afinal, de nada adiantaria uma despedida organizada se o pós-evento ficasse pendente. No dia seguinte, marchou até o cemitério municipal e procurou o administrador, um homem de terno puído e voz fúnebre. Pediu uma sepultura simples, mas definitiva — nada de jazigos coletivos ou promoções “leve dois, pague um”. Escolheu um lote ensolarado, com vista para o portão (sempre gostou de observar o movimento).

Mandou gravar a lápide com seu nome, a data de nascimento e, por óbvio, deixou a data final em branco, com um discreto espaço entre os traços.

— É só preencher depois — explicou ao funcionário. — Evita trabalho pro pessoal.

O homem concordou, com a solenidade de quem assina um testamento.

Na semana seguinte, Pé na Cova foi conferir a obra pronta. Achou o granito bonito, bem polido, digno de um homem que sempre pagou suas contas. Passou a mão sobre o espaço vazio e comentou consigo mesmo:

— Agora só falta o detalhe mais caro: o corpo.

Sorriu satisfeito. Afinal, ninguém iria gastar um tostão com ele. Era viúvo há vinte anos, os filhos moravam longe e os sobrinhos só apareciam quando o décimo terceiro caía. Fez as contas e concluiu que, no fundo, morrer sairia mais barato do que continuar vivendo.

À noite, sonhou com Aparício. O amigo aparecia radiante, de terno branco e sorriso debochado. Disse-lhe:

— Tu te preocupa demais, Pé. Aqui em cima ninguém liga pra número de seguidor. O que vale é quem te trouxe café quando tu tava vivo.

Pé na Cova acordou suando. Sentiu um misto de alívio e irritação.

— Fala isso porque teu velório foi vazio, Aparício. Fácil filosofar depois que já tá no além.

No dia seguinte, levantou decidido. Resolveu visitar a floricultura onde havia comprado a coroa do amigo. Pediu ao rapaz do balcão uma coroa nova.

— Pra quem é? — perguntou o vendedor.

— Pra mim mesmo. Quero deixar paga. Assim evito constrangimentos.

O rapaz arregalou os olhos.

— O senhor tá doente?

— Só de realismo, meu filho.

Saiu da loja satisfeito, levando o recibo dobrado no bolso. Pensou em emoldurá-lo. Era como garantir um ingresso de primeira fila para o próprio espetáculo.

Nos dias seguintes, Pé na Cova passou a caminhar pelo cemitério depois do almoço. Dizia ser “para ir se acostumando com a vizinhança”.

Cumprimentava os mortos como velhos conhecidos:

— E aí, Seu Anacleto, o senhor ainda com a mesma cara de tédio?

Os visitantes o olhavam de soslaio, sem saber se deviam rir ou chamar o padre.

Uma tarde, sentado num banco de pedra, Pé na Cova concluiu:

— A morte, no fundo, é uma questão de relações públicas. Se a gente não se promove em vida, o pós-venda fica fraco.

E riu. Riu alto, tanto que um gato preto fugiu assustado.

Naquele riso havia resignação e certo orgulho. Sabia que estava indo, mas iria organizado. Quem sabe até transmitiriam o velório ao vivo? #DespedidaDoPé poderia ser trend topic por algumas horas.

Voltou para casa mais leve, fez café, ligou o rádio e deixou o noticiário correr. Ao ouvir o locutor anunciar a previsão do tempo — “chuvas isoladas à tarde” — murmurou:

— Bom, pelo menos não vai empoeirar minha sepultura.

Deitou-se para o que poderia ser o último cochilo, sorrindo. Mas a mente já passeava pela capela: roteiro do velório pronto, coroa comprada, sepultura marcada, vinte carpideiras com véus ensaiando cada lágrima, pagas com café e cuca, e o padre abençoando com solenidade. Até os mosquitos iriam compor o cenário.

Antes de adormecer, Pé na Cova sorriu divinamente, imaginando como seria gratificante ver a capela cheia no dia do próprio velório — e, com certeza, saborear cada lágrima, cada olhar curioso e cada copo de cachaça que pagassem para assistir. E, melhor de tudo, um death influencer já pago para garantir um luto premium e uma morte monetizada.

Nada mau, pensou. Nada mau mesmo. Morrer sem público jamais seria opção — seria como contar uma última piada e não ouvir nem um risinho.

Durante a madrugada, Pé na Cova acordou sobressaltado. Havia se esquecido de comprar o caixão. No dia seguinte, escolheu um modelo de luxo, muito lustroso e florido, com detalhes de metal, levou para casa e passou a dormir dentro.

Era para ir se acostumando… e, de quebra, garantir que, quando chegasse a hora, a plateia tivesse algo digno para aplaudir.