Ulysses, de James Joyce: volta ao dia em 80 mundos
Félix Maier
(13/02/2007)
No texto
“Um guia para ter cultura” (http://felixmaier1950.blogspot.com/2022/01/um-guia-para-ter-cultura-por-paulo.html), Paulo Francis recomenda aos jovens a leitura de livros que
ele considera indispensáveis. São obras de autores que vão dos clássicos
gregos, passam pelo romano Suetônio (Os Doze Césares) e por Santo Agostinho (As
Confissões), chegando aos modernos como Shakespeare (Hamlet), Popper (A Lógica
da Pesquisa Científica), Bertrand Russell (História da Filosofia Ocidental),
Tolstoi (Guerra e Paz), Dostoievsky (Crime e Castigo), Thomas Mann (A Montanha
Mágica), Edmund Wilson (Rumo à Estação Finlândia). Dos autores brasileiros,
Paulo Francis sugere a leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Memórias
Póstumas de Braz Cubas, de Machado de Assis. Paulo Francis também recomenda a
leitura de Memorial do Aires, de Machado, que, para ele, “é o livro mais bem
escrito em português que há”. Porém, Paulo Francis afirma que “não é preciso
ler A Origem das Espécies, de Darwin” e diz textualmente que a leitura da
obra-prima de James Joyce, Ulysses, é simplesmente “desnecessária”. Será?
James Joyce nasceu em Dublin, Irlanda, em 2 de
fevereiro de 1882 e morreu em Zurique em 13 de janeiro de 1941. Fez estudos de
humanidades com os jesuítas no Belvedere College, em Dublin, onde tomou gosto
pela literatura através do teatro de Yeats, Ibsen e Hauptmann. “Ali recebeu
prêmios pelos ensaios que escreveu, um dos quais se intitulava ‘Meu Herói
Favorito’. É bastante significativo que, aos quinze anos, seu herói favorito
fosse Ulysses, o homem errante levado de cá para lá pelas tormentas” (Os
forjadores do mundo moderno, pg. 1086). Do pai herdou o espírito belicoso e a
bela voz de tenor.
Para Joyce, os irlandeses eram “a raça mais
atrasada de toda a Europa”. “Na juventude opôs-se ao estreito nacionalismo
do Renascimento Irlandês, ridicularizou o Amanhecer Celta chamando-o ‘twilight
twalette’ e se tornou inimigo da principal figura daquele movimento, William
Butler Yeats, dizendo-lhe: ‘Encontramo-nos demasiado tarde; você é demasiado
velho para que eu possa influenciá-lo’ ” (pg. 1085).
Dos 16 aos 20 anos, Joyce frequentou o Colégio
da Universidade. Devoto, acreditavam que fosse ingressar na ordem jesuítica.
Antes de completar 20 anos, lia latim, francês e italiano tão bem quanto o
inglês.
Transferiu-se para Paris em 1902 para estudar
medicina, carreira da qual desistiu para dedicar-se ao ensino da língua inglesa
e literatura. “Durante muito tempo seu único alimento era o chocolate – em
Ulysses as xícaras de chocolate além de ser um elemento nutritivo, são um
símbolo de sacramento - e ficou doente” (pg. 1087).
Em 1903 volta a Dublin, com a morte da mãe, ali
passando o dia 16 de junho de 1904, tão minuciosamente imortalizado nos dezoito
episódios do futuro romance Ulysses. Aos 22 anos conseguiu uma vaga de
professor na Escola Clifton, em Dalkey, onde ampliou seus estudos de línguas
estrangeiras. Participou do concurso de tenores do Festival Nacional,
entusiasmando o auditório e os juízes, mas desistiu por não aceitar um dos
requisitos: uma prova de canto sem ler a partitura antes. Em outubro de 1904,
Joyce se casa com Nora Barnacle e partiram imediatamente para Zurique, Suíça,
onde arranjou emprego como professor de línguas na Escola Berlitz.
“Durante os vinte e cinco anos seguintes, a
vida de Joyce é uma vida de exílio e sofrimento, de esforços constantes para publicar
suas obras, de brigar contra as hostilidades dos filisteus, de desilusões e
desespero” (pg. 1088).
Aos 23 anos terminou uma série de contos, “Os
Dublinenses”, aceitos para publicação, mas o editor negou-se a publicá-los pelo
“naturalismo” da obra. Essa obra só seria publicada dez anos depois em Londres,
em 1914.
A primeira obra publicada de Joyce, em 1907, foi
“Música de Câmara”, um título para rir de si mesmo, cantor frustrado. “Foi
posto à venda quando Joyce tinha vinte e cinco anos e é a própria antítese do
estilo que viria a caracterizá-lo. Longe de ser inovadora, esta obra está cheia
de ecos tradicionais de poetas do século XVII, dos simbolistas franceses e da
lírica de William Butler Yeats” (pg. 1088).
“Os Dublinenses é uma obra de transição.
Joyce age como um informador insinuante, que narra um conjunto de episódios
infelizes ocorridos na cidade onde nasceu. As três primeiras histórias parecem
ser fragmentos tomados da infância; as outras são pinturas tristes e com frequência
impiedosa que irritaram seus compatriotas. A descrição vai desde a pintura de
uma brutalidade casual de Dois Galãs, à austera emoção de Evelyn, passando pela
mistura de dureza e angústia de Contraparte. O Morto é a história mais pungente
e comovedora; o realismo começa a se orientar para o simbolismo” (pg. 1088).
Joyce escreveu três histórias sob o pseudônimo
“Stephen Dedalus” para George Russel, que publicou “O Solar Irlandês”, para
fomentar os métodos agrícolas modernos e divulgar os textos do Movimento
Céltico.
“Retrato do Artista Quando Jovem é uma dupla
narração: uma descrição nostálgica de Dublin que Joyce amou e odiou ao mesmo
tempo, e um retrato de um escritor jovem e estilista, preocupado com as
associações verbais e a força mágica das palavras” (pg. 1089-90).
Com a entrada da Itália na Guerra, em 1915,
Joyce refugia-se em Zurique, retornando a Trieste em 1920, seguindo para Paris
no mesmo ano. Após a publicação de “Ulysses”, em 1922, Joyce se torna conhecido
nos meios literários. Quando a França foi invadida pelos nazistas em 1940,
Joyce refugia-se novamente em Zurique, onde morre um ano depois, quase cego e
desapontado com a pouca repercussão de sua obra.
A última obra de Joyce foi “Finnegan´s wake”,
que é a história de uma só noite de sono na cabeça do taverneiro H. C.
Earwicker e sua mulher Ana Lívia, encarnação do rio Liffey, que banha Dublin.
Livro ilegível para o leitor comum, “o processo de montagens e associações
linguísticas atinge, nesta obra, um ritmo paroxístico. Seu ponto de partida é a
teoria de Vico da realidade histórica como um movimento circular, um eterno
retorno ao ponto de partida, de modo que o livro é concebido também
circularmente, o seu ponto de partida ligando-se ao final, numa frase que é
deixada em suspenso. O centro da obra é a stream of consciousness (corrente da
consciência), que já foi o clímax do Ulysses, no monólogo de Molly Bloom”
(Mirador, Vol. 12, pg. 6552). Nesta obra, encontram-se, ainda, fragmentos de
filósofos, cientistas e historiadores; “A Interpretação dos Sonhos” e “A
Psicopatologia da Vida Cotidiana”, de Sigmund Freud; estudos de James Frazer
sobre folclore e religião; a “coincidência dos opostos”, de Giordano Bruno; a
concepção dos arquétipos antropológicos de Lucien Lévy-Bruhl. “Calcula-se
que na obra Finnegan’s Wake há milhares de trocadilhos em uma dezena de idiomas
diferentes, o que torna Joyce o maior mestre do trocadilho desde os tempos de
Shakespeare” (“Os forjadores do mundo moderno”, pg. 1096-97).
Ulysses se baseia na estrutura da “Odisseia” de
Homero, no qual Joyce lançou seu famoso método do monólogo interior. “Ulysses”
foi a descrição de um único dia na vida de duas pessoas, Stephen e Bloom,
versões modernas de Telêmaco e Ulisses.
O livro “Ulysses”, “uma volta ao dia em 80
mundos”, descreve com minúcia 18 horas do dia 16 de junho de 1904, com os
personagens Stephen Dedalus (personagem também de “Retrato do Artista quando
Jovem”, de 1913) e o casal Leopold e Molly Bloom. O dia 16 de junho, todo ano,
é comemorado por fãs de todo o mundo como o Bloomsday (Dia de Bloom). “Ulysses”
foi publicado pela primeira vez, em 1922, pela editora parisiense Shakespeare
& Co. Somente em 1934 houve a 1ª edição da obra em língua inglesa.
A influência de Joyce tem sido enorme sobre
inúmeros escritores, especialmente os da língua inglesa, como William Faulkner,
John Dos Passos, Virginia Woolf e Samuel Beckett; de alemães como Alfred
Döblin; de holandeses como Simon Vestdijk; de italianos como Carlo Emilio
Gadda; e de brasileiros como Clarice Lispector e Guimarães Rosa.
“Ulysses” é uma obra cheia de neologismos, “palavras-valises,
citações eruditas, ironias, paródias e trocadilhos” (Cfr. revista Istoé
nº 1865, de 13/07/2005). No final do livro, há um monólogo de mais de 40
páginas, texto sem uma vírgula e um ponto sequer, que traduz o pensamento de
Molly Bloom vindo aos borbotões, no fluxo normal de sua consciência. “Ulysses”
foi escrito em inglês, mas possui inúmeras palavras em francês, latim, alemão e
italiano - além, é claro, do “jamesjoycês”.
Joyce sempre destruía seus originais e uma parte
de “Ulysses”, vendida a peso de ouro por um colecionador, sobreviveu por ter
servido de prova no julgamento por obscenidade que o autor sofreu em 1920.
“Ulysses” é uma obra praticamente intraduzível
que, entretanto, já tem dois tradutores brasileiros. O primeiro foi Antonio
Houaiss (“Uais”, segundo a verve de Paulo Francis), que editou o livro de 846
páginas em 1966 pela Civilização Brasileira. A outra tradução, que tem 912
páginas, foi feita por Bernardina da Silveira Pinheiro, professora de
literatura emérita da UFRJ, e lançada pela Objetiva em 2005. Essa tradução é
mais coloquial que a de Houaiss, que tem um estilo muito empolado. Há uma
terceira tradução em andamento, de Caetano Galindo, também professor de
literatura.
O escritor norte-americano Henry James foi o
precursor do flux of conscience (fluxo da consciência), antes de Joyce e
Freud, muito comum nos “romances psicológicos” modernos: “Os personagens
nunca deixam de discutir profunda e minuciosamente os acontecimentos mais
banais. Toda a ênfase é dada ao reflexo dos acontecimentos no interior dos
indivíduos” (Mirador, Vol. 12, pg. 6407). “James foi o criador da
técnica da narração indireta: os acontecimentos são relatados por vários
personagens, sob os pontos de vista diferentes de cada um, com o emprego do
flash-back” (idem, pg. 6407). Vale lembrar que, ainda antes de James,
Machado de Assis já era um craque do romance psicológico, em livros como “Memórias
Póstumas de Braz Cubas” e “Dom Casmurro”; nesta última obra, a personagem dúbia
de Capitu é tratada com mão de mestre.
“O labirinto de Ulysses (1922) é o mais
complicado de quantos labirintos literários já existiram: labirinto de temas,
de línguas, de estilos, de alusões, de relações espaço-temporais, enfim,
labirinto da linguagem do homem que é identificado com o cosmos.
A cidade de Dublin é o símbolo desse cosmos, no
centro do qual está o homem. Mas este centro não é mais o herói individual,
Dedalus, deslocado para um plano secundário, e sim o homem comum, o judeu
Leopold Bloom, que simboliza, no errante do homem dentro do labirinto cósmico.
Este labirinto é rigorosamente construído segundo determinadas relações.
As seções
de Ulysses correspondem a três partes da Odisseia homérica: a Telemaquia,
Ulisses e Nostos. Cada uma das partes começa com o nome do personagem central:
Telêmaco é Setphen Dedalus, Ulisses é Leopold Bloom, Penélope é Molly Bloom.
Cada uma das situações corresponde rigorosamente a um episódio homérico. Assim,
por exemplo, o enterro de Patty Dignam, acompanhado por Bloom, é a descida de
Ulisses ao Hades; o nacionalista virulento que ataca a menina Bloom é o
Ciclope, monstro de um olho só; a menina Getty exibindo-se na praia para a
excitação de Bloom, é Nausicaa; as cenas alucinadas no bordel, com Bloom,
Stephen e os colegas, é o encantamento de Ulisses e dos seus companheiros na
ilha da feiticeira Circe; o retorno para a casa Bloom e Stephen é a volta de
Ulisses para Ítaca e o seu reconhecimento pelo filho, Telêmaco.
Os
episódios não estão só relacionados com a Odisseia mas também com as partes do
corpo humano e a cada uma das artes e ciências humanas. Assim, por exemplo, a
cena da biblioteca, em que Bloom e Stephen se encontram casualmente,
corresponde ao cérebro, como órgão do corpo, e à literatura, como uma das artes
humanas. A teia de relações do romance foi descoberta por Valéry Larbaud e
depois explicada exaustivamente por Stuart Gilbert. Além desse labirinto de
relações, Ulysses é ainda um labirinto de línguas, de paródias estilísticas, de
montagens e associações verbais, e também associação de imagens, sobretudo no
delirante monólogo final de Molly Bloom. O romance é, enfim, a paródia da
narrativa, romance para acabar com todos os romances, e a paródia lingüística
da realidade humana” (Mirador, Vol.
12, pg. 6551-6552).
“Ulysses toma a forma de uma busca - escreveu
William York Tindall na obra James Joyce: Sua Maneira de Interpretar o Mundo
Moderno – e quase todas as personagens participam dela. A busca é sempre a
mesma, assim como seu motivo verdadeiro, seja esse a tradição ou o que alguns
chamam a integração, a força vital ou o plano qüinqüenal, o último iogue dos
Anjos ou Deus Todopoderoso... Joyce simbolizava a busca do pai. Tendo presentes
na mente seu próprio abandono e necessidade, elaborou uma imagem sugestiva,
talvez a mais perfeita de todas, da preocupação principal do homem moderno.
Maiores analogias aparecem à medida que se
avança na leitura do livro: a predileção de Bloom pela música suave e por
sabonetes perfumados; o episódio dos lotófagos; a aparição de Bloom num
cemitério e a viagem de Ulysses a Hades; a visita à oficina de um jornal e (com
grande propriedade) a Caverna dos Ventos; uma luta de um bêbado na taverna com
um cidadão terrivelmente enfurecido e o antro de Ciclope.
Finalmente,
o monólogo da cama, esse alarde sem precedente, essa cadeia ininterrupta dos
pensamentos de Molly Bloom, uma única frase, sem pontuação, de mais de quarenta
páginas e vinte e cinco mil palavras, uma vívida retrospectiva de sua vida
terrena e uma serena aceitação da mesma” (“Os
Forjadores do Mundo Moderno”, pg. 1091-1092).
Joyce levou sete anos para finalizar “Ulysses”,
que começou a ser publicado em forma de folhetim, em 1918, no The Little
Review. Nos Estados Unidos, pressionado pela Sociedade Norte-Americana para
a Supressão do Vício, o correio confiscou todos os exemplares, sob acusação de
obscenidade, e os editores foram multados e fichados. Na França, uma admiradora
indignada, Sylvia Beach, fez uma publicação particular do livro, enviando um
exemplar a Joyce, encadernado nas cores azuis e branca da Grécia. O livro teve
nove edições clandestinas pelas quais Joyce não recebeu um centavo sequer, a
exemplo de D. H. Lawrence, autor de “O Amante de Lady Chatterley”.
“Ulysses é uma projeção panorâmica da
nostalgia de Joyce. Tal qual a narração épica da qual toma emprestado o nome, é
um retrato, de vastas proporções, de exílio e viagens, de uma busca insana,
entremeada de desespero, e de uma resignação final.
Os
acontecimentos narrados por Homero ocorrem, porém, num dia comum (16 de junho
de 1904) em Dublin, envolvendo Stephen Dedalus (Telêmaco), Leopold Bloom
(Ulysses) e sua esposa Molly (uma Penélope infiel). Há muitas outras
personagens secundárias, entre as quais Mrs. Bella Cohen, que dirigia um bordel
(Circe), Miss Doyce e Miss Kennedy, camareiras (as sereias), Mr. Deasy,
professor (Nestor), a romântica exibicionista de dezesseis anos, Getry
MacDowell (Nausicaa). Mas a narração tem como centro Bloom, que perdera um
filho e procura um filho substituto, e Dédalo, que repudiou a família e a
religião e, desligado dos homens, procura um pai” (pg. 1090).
“Com significativos jogos de palavras, com
alusões constantes à Música, à Mitologia, à Filosofia, a obras pouco
conhecidas, com suas personagens estranhas, com seu ambiente pagão, com seu
ritual católico e com sua penetração no antigo, a obra Ulysses é,
incontestavelmente, a mais complexa, a mais desconcertante e a mais ilustradora
de todos os romances - se a considerarmos um romance - jamais escritos em
qualquer época” (pg. 1094).
James Joyce “ampliou o solilóquio
shakespeareano, desenvolvendo um monólogo interior de extensão, amplitude e
riqueza sem precedentes. Foi o primeiro a empregar a ‘corrente da consciência’
como comentário fluido, como um desencadeamento avassalador de associações
livres. Apreendeu e reteve em um amálgama fluido - formado em parte por
palavras, em parte por sílabas que deslizam insinuantes - as formas dos sonhos
difusos. Sendo um gênio que uniu o cósmico ao cósmico, um jesuíta renegado
dotado da pureza de Rabelais e da crueza de Swift, Joyce foi um escritor tão
influente que os imitadores foram inevitáveis, e de estilo tão próprio que a
imitação tornou-se impossível” (pg. 1098-1099).
Na edição que tem Antônio Houaiss como tradutor,
observa-se a riqueza de neologismos utilizados em Ulysses, alguns de tamanho
quilométrico, um calhamaço de 846 páginas: “andando sobre isso algoqualcerto”
(pg. 42), “um letrâmetro cataléctico de iambos marchando” (pg. 42),
“pereternidade” (pg. 43), “com omóforion empertigado” (pg. 43), “os hipocampos
alvimontados, mordendo luciventibridões, “os corcéis de Mananaan” (pg. 43),
“sinsenhoreando o pai” (pg. 43) “guerreando a vida inteira quanto à
contransmagnificandijudeibumbatancialidade” (pg. 43), “um naco de língua de
lobo rubrifolegando de suas fauces” (pg. 52), “olhos pudoscentes, dentes
lactibrancos” (pg. 62), “lambelambendo” (pg. 63), “enterra-o barato num
comoquerquelhechames” (pg. 79), “via seu corpo e membros ondondulando leve e
sustido” (pg. 97-98), “suas enormes botas cinzempoeiradas” (pg. 113), “óculos
negribordeados” (pg. 147), “nutibocejissorriu tudo de uma vez” (pg. 202), “seu
queridomeuamoreco” (pg. 230), “quando Rutlandbaconsouthamptonshakespeare escreveu
o Hamlet” (pg. 237).
Há frases surpreendentes em “Ulysses”, que devem
ferir de morte os ouvidos dos puritanos stalinistas defensores do
“politicamente correto”: “A Inglaterra está nas mãos dos judeus. Nos mais
altos postos: nas finanças, na imprensa. E são o sinal de decadência de uma
nação” (comentário de Mr. Deasy, pg. 38); “A Irlanda é o único país que
nunca perseguiu os judeus. Sabe por quê? Porque nunca os deixou entrar”
(pg. 41); “Estas pesadas areias são linguagem que maré e vento inscreveram
aqui” (pg. 50); “Trotou adiante e, levantando a perna traseira, mijou rápido
curto numa rocha incheirada. Os prazeres de pobre” (sobre um cão, pg. 53); “Achas
minhas palavras obscuras. Escuridade está em nossas almas, não achas? Mais
maviosa. Nossas almas, vergonhiferidas por nossos pecados, apegam-se a nós
ainda mais, uma mulher apegando-se ao seu amante, e mais e mais” (pg. 55); “Ele
lhe olhava calmo a corpulência e para o entre-seio de suas mamas macias,
esparramadas dentro da camisola como ubres de uma cabra” (pg. 71); “Cova
de palha com bosta. A melhor coisa para limpar luvas de pelica de senhoras. O
sujo limpa. Cinzas também” (pg. 76-77); “Lá está ele: fuzileiros de
Dublin. Rubritúnicas. Muito chamativos. Isso deve ser o porquê as mulheres caem
por eles. Uniforme” (pg. 81); “Aqueles velhos papas eram entendidos em
música, em arte e estátuas e pinturas de todas as espécies. Palestrina também
por exemplo. Ainda assim, ter eunucos no seu coro era forçar um pouco. Que
espécie de voz é isso? Deve ser curioso ouvir depois da de seus baixos
profundos” (pg. 92); “Rosto afogueado: rubriquente. Excesso de João
Bebessobe. Tratamento nariz vermelho. Beber como o diabo até torná-lo adelito.
Um bocado de dinheiro ele gastou para colori-lo” (pg. 108); “A carruagem
galgava mais lentamente a colina da praça de Rutland. Batem seus ossos. Sobre
caroços. É um indigente. Nem chega a gente” (pg. 109); “Deve-se ser
cuidadoso com as mulheres. Pegá-las com as calças nas mãos. Nunca mais lhe
perdoam” (pg. 114); “O padre alviblusado entrou após ele dispondo sua
estola com uma mão, balançando com a outra o pequeno livro contra sua barriga
de sapo. Quem lerá sem estorvo? Eu disse o corvo. ‘Pararam perto do catafalco e
o sacerdote começou a ler de seu livro num fluente coaxar’ ” (pg. 117). “Açougueiros,
por exemplo: tornam-se parecidos com bifes crus” (pg. 118); “Os
cemitérios chineses com papoulas gigantes crescendo produzem o melhor ópio,
contou-me Mastiansky. O Jardim Botânico é logo ali. É o sangue infiltrando-se
terra adentro que dá vida nova” (pg. 123); “Ler a própria notícia
necrológica dizque que se vive mais tempo. Dá-te um novo fôlego. Novo contrato
de vida” (pg. 124); “Estamos agora rezando pelo repouso de sua alma.
Desejando que sejas eterno e não no inferno. Bela mudança de clima. Da
frigideira da vida para o fogo do purgatório” (pg. 126); “... de fazer
uma sesta dentro de uma cesta. Bobagem, não é? Cesta foi posto aí está claro
por causa da sesta” (pg. 138); “Soa mais nobre que britânico ou
brixtônico. As duas palavras como que sugerem gordura na grelha” (pg. 149);
“A carne flácida do seu pescoço tremelicava como barbela de galo” (pg.
155); “Deus quer vítima cruenta. Nascimento, hímen, martírio, guerra,
fundação de um edifício, sacrifício, flamofertório de rim, altares de druidas”
(pg. 170-171); “Tudo à Mateu, primeiro eu” (pg. 171); “Foi uma freira
dizque que inventou o arame farpado” (pg. 175); “Baboseira para
embasbacar bobocas” (pg. 183); “Jejum do Yom Kippur limpeza da primavera
do de dentro. A paz e a guerra dependem da digestão de algum sujeito.
Religiões. Perus e gansos de Natal. Matança dos inocentes. Comer, beber e
alegrar-se. Então é o pronto-socorro cheio depois. Cabeças atadas. O queijo
digere tudo menos a si mesmo. Queijo poderoso” (pg. 195); “Deus fez o de
comer, o diabo o como comer. Siri ‘á la diable’ ” (pg. 195); “E nós a
empanturrar comida num buraco com outro atrás: comida, quilo, sangue, esterco,
terra, comida: ter de alimentar-se como se atiça locomotiva” (pg. 200); “Dizem
que ele dava sopa às crianças pobres para fazê-las protestantes na época da
crise de batatas” (sobre o Reverendo Thomas Connellan, pg. 205); “Peter
Piper picou um pito da pica de pico de picante pimenta” (pg. 218);
“Cuidado com o que queres na juventude, pois o terás na maturidade”
(citando Goethe, pg. 223); “meu reino por um trago” (pg. 241); “Depois
de Deus, Shakespeare foi quem mais criou” (pg. 242); “arreganhou num
sorriso sua grossa nigribeiçola” (pg. 253). Os personagens de “Ulysses”
gostam muito de “caldeirada de carne do Egito”, frase repetida muitas
vezes no livro. Seria uma sopa de camelo?
Há admiradores e severos críticos de Joyce.
Segundo Alfred Noyes, “Ulysses” “é simplesmente o livro mais imundo já
publicado”. Yeats, porém, disse que era “indubitavelmente a prosa mais
reveladora de gênio já escrita desde a morte de Synge”. T. S. Eliot
declarou: “Mediante o mito, mediante o emprego contínuo de paralelos entre o
contemporâneo e o antigo, Joyce emprega um método que muitos outros utilizarão
depois dele. É um modo simples de abordar, ordenar, de dar forma e significação
ao imenso panorama de trivialidade e anarquia que é a história contemporânea”
(pg. 1093). L. A. G. Strong escreveu: “Para apreciar a obra de Joyce de modo
completo, os críticos precisariam saber tudo o que Joyce sabia” (pg. 1098).
Para sobreviver, Joyce recebia a ajuda de amigos
e anônimos. A maior parte do dinheiro recebido se destinava ao tratamento de
sua filha Lucy, internada num sanatório, com problemas do sistema nervoso. No
final da vida, começou a ficar cego e viu-se obrigado a escrever seus trabalhos
em milhares de folhas grandes, com letras enormes. Joyce morreu em Zurique, no
dia 13 de janeiro de 1941, depois de ser operado de uma úlcera maligna no
duodeno.
Marx, Darwin, Freud, Proust, Joyce e Einstein
foram os principais “demolidores do século XIX”. O mundo moderno começou
em 29 de maio de 1919, quando fotografias de um eclipse solar obtidas na ilha
de Príncipe, na costa oeste africana, e em Sobral, no Brasil, confirmaram a
Teoria da Relatividade Geral, de Einstein. “No princípio dos anos 20 surgiu
uma crença, pela primeira vez em nível popular, de que não mais havia quaisquer
absolutos: de tempo e espaço, de bem e mal, de conhecimento, sobretudo de
valores. Erroneamente a relatividade se confundiu com relativismo, sem que nada
pudesse evitá-lo” (“Tempos Modernos”, pg. 3). Não há dúvida de que esse
relativismo, de vários aspectos - o relativismo moral de Freud, o relativismo
econômico de Marx, o relativismo literário de Joyce e o relativismo temporal de
Einstein -, colocou o mundo moderno às avessas.
Paulo Francis estava errado. “Ulysses” não é uma
obra “desnecessária”. Ela iniciou uma revolução na literatura, abraçada por
escritores do naipe de Virgina Woolf, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Com
Joyce, qualquer simples mortal se torna um herói homérico, não em luta contra
monstros, deuses e sereias hipnóticas, mas na eterna luta pela vida, na
trivialidade do dia a dia de um executivo ou de um simples operário. Que pode
ser resumido nos oitenta mundos percorridos em um único dia, como Mr. Bloom,
descrito magistralmente por James Joyce.
Bibliografia consultada:
1. “ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA DO BRASIL
PUBLICAÇÕES LTDA”. MIRADOR, Volume 12. São Paulo e Rio de Janeiro, 1992.
2. JOYCE, James. “Ulysses”. Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1966. Tradução de Antônio Houaiss.
3. JOHNSON, Paul. “Tempos Modernos - O mundo dos
anos 20 aos 80”. Biblioteca do Exército e Instituto Liberal, Rio de Janeiro,
1994.
4. “Os forjadores do mundo moderno”, 5º volume.
Editora Fulgor, São Paulo, 1962 (direção de José Severo de Camargo Pereira, da
USP). Tradução de João Neves dos Santos e Cecília Thompson.
5. Revista Istoé nº 1865, de 13/07/2005.
Luiz Chagas, in “Na pista de Joyce”.
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