Escola de Brasília
Félix Maier
26/11/2001 - Usina de Letras
Barbara Freitag, professora e pesquisadora da Universidade de Brasília, em artigo escrito no Correio Braziliense (25/11/2001, afirma que a TV Cultura está lançando, a partir do próximo ano, um programa sobre cidades. Para a apresentação de cada cidade, diz Freitag, foi escolhido um escritor-cicerone. No caso de Brasília, um dos pontos altos será a Universidade de Brasília – no dizer de Freitag – que, aliás, foi convidada para falar sobre a Universidade ao escritor João Almino Souza Filho.
Caminhando pelo “Minhocão”, como é conhecido o Instituto Central de Ciências (ICC), principal prédio do campus, Freitag afirma:“A essência do projeto de Darcy Ribeiro – procurei responder – foi criar uma universidade ‘nova’, para uma cidade ‘nova’ que, por sua vez, inaugurasse uma ‘sociedade nova’."
Que sociedade nova seria essa pretendida por Darcy Ribeiro? Agnaldo del Nero Augusto, em seu livro “A Grande Mentira” (1), afirma:
“Em 29 de agosto (1968), tumultos agitaram o interior da Universidade de Brasília – UnB com depredações de salas de aula e disparos de armas de fogo. A UnB tinha sido a universidade mais atingida pela ‘Operação Limpeza’ (2), porque havia sido estruturada para a subversão da ordem. Seu fundador e primeiro reitor fora o Professor Darcy Ribeiro. Seu pensamento sobre o papel da universidade está expresso no livro “Contra Vientos y Mareas”, de Vargas Llosa, página 22, a seguir parcialmete transcrito:
‘O Professor Darcy Ribeiro, sociólogo brasileiro, fundador da Universidade de Brasília e assessor durante algum tempo da ditadura militar peruana, em seu livro sobre a Universidade Peruana (1974), define assim a missão da universidade ... levar o processo revolucionário em curso, antecipando dentro da universidade as novas formas de estrutura social que ela deverá estender a toda a sociedade.’
Diga-se de passagem que a ditadura militar peruana era de esquerda e umbilicalmente ligada à URSS.”
Sobre o trabalho de doutrinação marxista de Darcy Ribeiro, aqui e no Peru, Freitag não diz nada. Está, pois, explicado o motivo pelo qual, em 1964, depois da demisão de vários professores, o corpo docente renunciou em peso – como choraminga Freitag. A subversão, sem dúvida, estava em estado bem adiantado no campus da Asa Norte.
Continua Freitag: “No caso da UnB, vingou a idéia do campus e abortou a idéia da autonomia. A ditadura militar foi responsável pelas duas coisas. A idéia do campus favoreceu o controle político por forças da repressão. Transferindo o campus para além da L2-Norte, a polícia podia agir contra centros acadêmicos, institutos, departamentos, sem ser testemunhada. Foi o que aconteceu na UnB em 1964, 1968 e 1977.”
Freitag afirma, no trecho acima, que nunca houve “testemunha” das ações policiais na UnB, porque o campus ficava distante da cidade, portanto longe da população. Mas, com milhares de alunos estudando na UnB, como a cidade não iria tomar conhecimento de tudo o que se passasse no campus?
No parágrafo seguinte, Freitag se contradiz: “Devemos ao cineasta Wladimir Carvalho o excelente documentário ‘Barra/68’ (2000), que registrou a entrada da polícia e do Exército no campus da UnB, em 1968, prendendo alunos e professores, rasgando os livros da biblioteca e destruindo os laboratórios.”
Continua o livro de Del Nero: “No final de agosto, ocorreu na UnB um episódio que gerou nova crise. Estudantes com prisão preventiva decretada se haviam homiziado no campus. (...) Comunicado sobre o problema, o reitor ignorou-o. (...) criou-se um clima de resistência no interior da universidade, instigado pela presença de parlamentares (3) e ativistas estudantis que se valiam do incidente para fazer proselitismo. Entre estes últimos estava Luís Travassos, militante da Ação Popular, presidente da extinta UNE, também com prisão preventiva decretada por sua atuação em outras cidades.
(...) Em 29 de agosto, agentes do DOPS se dirigem à UnB a fim de dar cumprimento ao mandado de prisão. Conhecida a disposição de resistência, fizeram-se acompanhar por tropas da Polícia Militar, que ficou à distância. Preso o presidente da Federação de Estudantes Universitários de Brasília, houve reação por parte dos estudantes, que entraram em choque com a polícia. Várias viaturas foram viradas e incendiadas. Inferiorizada, a polícia civil reagiu como pôde. Em seu auxílio, acorreu a Polícia Militar, atuando com violência. Dos choques resultaram feridos dois policiais e dois estudantes. Instalações da universidade foram depredadas, em parte pela polícia em sua natural perseguição aos estudantes e em parte pelos estudantes, para demonstrar o ‘vandalismo’ da polícia. Um tiro perdido, porém, atingiu um estudante que nem estava envolvido no conflito.”
Freitag, em seu artigo, continua tecendo considerações sobre a UnB e as universidades em geral, especialmente no que se refere à autonomia. No caso da UnB, embora tenha reconquistado a autonomia política, com a redemocratização (1985), Freitag lamenta que a Universidade não tenha adquirido autonomia econômica, dependendo de repasses do MEC para sua subsistência. A professora lamenta que hoje a “luta” universitária gira apenas em torno de duas siglas, GAE e GED, “bandeiras” da ANDES e do MEC, respectivamente, diferente do ano de 1968, em que “universitários como Honestino Guimarães, desaparecido nos cárceres da ditadura, se dispuseram a correr risco de vida defendendo a liberdade de ensino e de pesquisa no campus...”.
Estaria Freitag sentindo saudade dos “anos de dinamite”? A professora, em seu longo artigo, cita várias vezes as “forças da repressão”, porém não situa o ano de 1968 no calendário mundial, dentro da famosa “revolução estudantil”.
Ora, sabe-se que em 1968 vivia-se o auge da guerra-fria. Fruto da “revolução cultural” da China, iniciada em 1966, e da criação da Tricontinental, em Cuba, um tipo de subversão que estava sendo exportado ao mundo pela URSS, pela China e por Cuba era a subversão estudantil.
Vladimir Palmeira, líder estudantil daquele agitado ano, afirma: “Das grandes manifestações de 1968, muitos foram os jovens que saíram para integrar organizações guerrilheiras urbanas. Nesse sentido, o trabalho político, dentro do movimento estudantil, deu os seus frutos... O fato concreto é que, a partir de então, existe no Brasil uma esquerda que faz a revolução com as armas na mão.” (4)
E não era só no Brasil – no Rio, em São Paulo ou em Brasília – que a esquerda pregava abertamente a revolução (5). Também na Europa, no México e nos EUA, o ano de 1968 estava em chamas.
Na Alemanha, em junho de 1967, estudantes tentaram tomar a Ópera de Colônia. Um estudante foi morto em choques com a polícia. Em abril de 1968, tumultos e violências sacudiram simultaneamente 27 cidades alemãs – a mais violenta teve lugar em Berlim Ocidental, com mais de 500 feridos, entre policiais e civis.
Na primavera de 1968, as agitações de Paris foram as mais amplas no mundo, pois os subversivos empolgaram outros setores, quase levando o país ao colapso. Em 20 de maio, a França estava isolada do resto do mundo, a economia paralisada, com mais de 6 milhões de trabalhadores em greve. Todos os aeroportos e as ferrovias estavam paralisados. Os bancários também aderiram à greve, assim como os funcionários públicos. No dia 21 de maio, a greve atingia 8 milhões de trabalhadores. O voto de censura, apresentado à Assembléia Nacional pelo Partido Comunista, por poucos votos deixou de derrubar o governo.
Nos EUA, aproveitando-se da Guerra do Vietnã, os agitadores profissionais incendiaram as universidades. No 1º semestre de 1968, houve mais de 200 demonstrações de vulto em centenas de universidades. No Estado de Ohio, declarou-se a Lei Marcial e foram proibidos todos os comícios. Na Universidade de Kent, a Guarda Nacional matou 4 estudantes – estopim para que 400 universidades americanas fossem ocupadas por estudantes.
Houve agitações também em Amsterdã, Roma, Tóquio, Montevidéu, México e outras grandes cidades.
No México, na “Noite de Luto”, morreram 28 pessoas e 200 ficaram feridas, segundo dados do governo. Porém, de acordo com correspondentes estrangeiros, forma em torno de 100 mortos e mais de 500 feridos. Quando a Universidade Nacional foi retomada pelo Exército mexicano, os auditórios e as salas de aula haviam sido batizados pelos estudantes com os nomes de Che Guevara, Lênin, Ho Chi Minh e outros.
Freitag, em todo seu longo artigo, não cita sequer de passagem as agitações que percorriam o mundo como rastilho de pólvora. Por que será? Descrever as ações policiais na UnB, sem identificar os motivos da “revolução estudantil”, é o mesmo que escrever, daqui a 30 anos, sobre os bombardeios americanos contra o Afeganistão, sem mencionar Bin Laden e seu grupo terrorista Al-Qaeda, acusados pelos atentados terroristas do dia 11 de setembro de 2001, contra Nova Iorque e o Pentágono. Eu até já estava achando que os professores universitários ganham pouco. Porém, depois de ler o que escrevem as “libélulas” da USP e as “borboletas” da UnB, estou começando a mudar de opinião...
No final do artigo, Freitag cita seu guru Jürgen Habernas, que acaba de receber o Prêmio da Paz da Câmara do Livro Alemão: “Além de formar as novas gerações, a universidade precisa cultivar a ética e competência comunicativa!”
Após ler os verbetes “Escola de Frankfurt” e “Anti-autoridade” (5), abaixo, sabe-se matematicamente que o marxista Darcy Ribeiro está para Horkheimer, da mesma forma que Habernas está para a ética.
Ah! Para finalizar, a edição comemorativa dos 30 anos do “Campus”, ‘jornal-laboratório’ da UnB, venceu o 8º Prêmio Líbero Badaró de Jornalismo, na categoria Jornalismo Universitário. Condizente com a nostalgia da Professora Freitag, o tema foi “O que restou da aventura guerrilheira no sertão”, em que estudantes, orientados pelo professor David Renault, estudam os últimos passos de Carlos Lamarca no sertão baiano, nas cidades de Macaúbas e Ibotirama. A edição especial tem 19 páginas coloridas, formato standard. Depois da Escola de Frankfurt, estaríamos hoje conhecendo a “Escola de Brasília”?
Brava Freitag, bravíssimo, UnB!
Notas:
(1) “A Grande Mentira” foi editado pela Biblioteca do Exército Editora, Rio de Janeiro, 2001.
(2) A “Operação Limpeza” foi desencadeada pela contra-revolução de 1964, para expurgar corruptos e comunistas.
(3) Um dos parlamentares presentes na UnB foi Mário Covas.
(4) Veja “A Esquerda Armada no Brasil”, de Antonio Caso, Morais Editores, Lisboa, 1976.
(5) Veja meu ensaio “A TV Lumuba e o AI-5”, em Usina de Letras.
(6) Escola de Frankfurt - famosa escola de pesquisa sociológica alemã da década de 1920, deu ênfase, entre outras pesquisas, à “personalidade autoritária”. Tomando como ideal o homem livre (um tema sem teor científico, um mero sonho), deveria explicar por que, depois do Iluminismo e de Marx – agora, que pela primeira vez na História, a sociedade industrial estava finalmente organizada socialmente –, o mundo produzia ainda tantas personalidades autoritárias, líderes e seus vassalos. A chamada “Escala F” do livro “Personalidade Autoritária” (co-produzido por Max Horkheimer) “media” os traços da personalidade autoritária: 1) passividade automática ante os valores convencionais; 2) cega sujeição à autoridade; 3) inimigo da introspecção; 4) rígido; 5) pensamento mediante clichês. Enfim, tudo se destinava a determinar e quantificar o anti-semitismo, os racismos, o conservadorismo econômico etc. Max Horkheimer e Theodoro Adorno foram diretores da Escola. Na década de 1930, a Escola transferiu suas atividades para os EUA, primeiro para a Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, e depois para a Califórnia. após a II Guerra Mundial, a Escola voltou a seu lugar de origem, Frankfurt. Quando Adorno, em 1970, começou a falar a seus alunos, estes rodearam o conferencista, tiraram-lhe a camisa e o atacaram como sendo um agente do imperialismo americano; algumas semanas depois do ataque, Adorno morreu de ataque cardíaco.
Anti-autoridade - o escritor contrário à autoridade por excelência, o alemão Max Horkheimer, diretor da Frankfurt School e co-autor de “The Authoritarian Personality”, foi autoritário com seu aluno Jürgen Habermas (hoje, um dos mais importantes filósofos do mundo), que discordou do mestre em várias opiniões e foi obrigado a tirar seu diploma em outra escola. Outros opositores da autoridade foram Adorno, Reich Fromm, Erikson, os quais, na década de 1920, acreditavam nas experiências do esquerdismo, incluindo as soviéticas, passando a idéia de que a “velha sociedade” era repressiva e que a “nova sociedade” era igualitária, comunista, e que emanciparia a humanidade inteira. Essas idéias levaram grupos a aplaudir a destruição de padrões tradicionais, como a família e a religião. Infelizmente, apesar de não lograrem o amaldiçoado intento, nunca lhes foi imputado o rótulo de “autoritarismo”, que tanto combatiam e tanto pregavam.
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